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Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho e cidadania para o operariado Cristiane Cotta e Silva Diana Couto Pinto Maria Cristina Leal RESUMO O artigo analisa a reforma reali- zada por Fernando de Azevedo no Distri- to Federal em 1927/28, 6poca em que 0 operariado se impunha como ator social de peso na Capital da Repi- blica. Tem 0 objetivo de mos- trar que, ao apresentar o tra- batho e a profissionalizacao como dimensées a serem tra- tadas pela escola, a Reforma Fernando de Azevedo teve uma finalidade politica: co- locar a escola a servico do Fstado, numa perspectiva de instrumento da “cidadania regulada”. Palavras-chave: Reforma Fernando de Azevedo ~ Tra- batho ~ Profissionalizagéo — Cidadania regulada. 1. Introducao Na comemoragdo dos 70 anos da reforma educa- cional, promovida no antigo Distrito Federal por Fernando de Azeve- Cristiane Cotta e Silva ‘Mestranda.em Educagéio (CFR Diana Couto Pinto Doutora em Educagéo (FE/UPRI) Pasquisadora do PROEDES (FE/UFRD) Professora ilo Curso de Mestrado em Edueagao da UNESA Maria Cristina Leal Doutora em Educagio (FEUERS), Professora Titular da UEP. do, socidlogo e educador que acreditava na educagae como veiculo de mudanga @ desenvolvimento social, néo podemos deixar de registrar aspectos por ele valo- rizados e capazes de plan- far as raizes de um sistema de ensino que ampliasse para a classe trabalhadora a possibilidade de acesso 6 educacéo escolar. Examinar alguns dos aspectos do reforma pres- supée identificar os limites e possibilidades, bem como as intengdes da agao educativa desenvolvida pelo poder publico nas dé- cadas de 20 e 30 no anti- go Distrito Federal. Consti- tui também um esforco de reflexdo a respeito da re- forma projetada para uma sociedade em transicéo de um mundo, até entdo, pre- dominantemente tradicio- nal, agrario e oligérquico, para uma sociedade crescentemente in- Ensaio: aval. pol. piibl. Kduc., Rio dle Janeiro, 0.7, n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 282 dustrial, urbana, moderna, que estava a exigir a construgéo de padres morais laicos e mentalidades mais abertas e capazes de “aceitar” a convivéncia mais préxima entre cidadéos proprietdrios e trabalhadores. A intervengdo e o empenho do Estado visando promover a cidadania para a classe trabalhadora através da educacdo sé poder, no entanto, ser com- preendida no quadro dos acontecimen- tos que marcaram a insergéo do operari- ado urbano na sociedade brasileira do inicio da Republica. A fim de identificar- mos a forma como se deu essa insercéo, utilizaremos duas expresses cunhadas por Santos (1994). A primeira, apresen- tada pelo autor como marca histérica da Primeira Republica, denomina-se “/aissez- faire repressivo e cidadania em recesso". Ela expressa, segundo Santos, que a prevaléncia da ideologia do /aissez-faire ficou restrita as dreas urbanas “cujas re- logées econémicas e sociais deveriam pautar-se pelos principios que regeram as organizagées sociais evropéias no periodo que vai do inicio da industriali- 20¢G0 ds primeiras leis de regulagéo so- cial.” (Santos, 1994, p. 64-5) Ao lado dessa penetragdo das leis de regulacao social no contexto urbano, caracterizadas basicamente como acordos privados en- tre empregadores e empregados, produ- ziram-se, até principios da década de 20, leis sociais efetivas, descritas mais adi- ante, apontando para a incapacidade de o mercado por si s6 regular as rela- g6es trabalho/capital. Importa assinalar também que, do inicio da era republi- cana até 1927, pelo menos cinco leis Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal repressivas sobre atividades politico-sin- dicais do operariado urbano foram pro- duzidas, “iodas visando, sobretudo, & expulsdo de trabalhadores estrangeiros por motivos de militincia sindical’ (San- tos, 1994, p. 65). Tal fato indica a pro- cedéncia da expresséo “cidadania em recesso” que, por sua vez, vai conduzir @ idéic de cidadania regulada: ) Por cidadania regulada en- tendo o conceito de cidadania cujas raizes encontram-se nao em um cédigo de valores politi- cos, mas em um sistema de estratificagéo ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificagéo ocupacional é de- finido por norma legal. Em ou- tras palavras, sé0 cidadéos aqueles membros da comunida- de que se encontram localizados em qualquer uma das ocupacées reconhecidas e definidas por lei. (Santos, 1994, p. 68) Essa concepcéo de cidadania es- tabelece uma vinculagdo direta entre os direitos que so dados ao individuo por ser membro de uma comunidade e @ pro- fissGo que Ihe garante um lugar no pro- cesso produtivo. Desde que o individuo tenha escolhido uma profissdo reconhe- cida por lei e que a esteja exercendo, ele preenche condicées basicas para garan- tir a sua cidadania. £ essa concepcéo de cidadania que permite o extensdo de di- reitos aos trabalhadores cujas profissées estejam formalmente reconhecidas. E também essa mesma concepgao de ci- dadania que, por outro lado, limita e nega Ensaio: aval. pol. ptibl. Educ., Rio de Janeiro, v.7, n. 24, p. 281-298, jul /set, 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho e cidadania para o operariado 283 © acesso a direitos sociais bésicos a todo um contingente de trabalhadores que atu- am em setores profissionais nao legali- zados, como € 0 caso principalmente dos trabalhadores rurais. Para Santos, 0 conceito de cida- danic regulada tem sentido somente a partir da Revolugéo de 30. Consideramos, no entanto, que, na década anterior, o Estado j4 tomava medidas importantes para efetivar a cidadania regulada. En- tre elas, vale destacar aquelas criadas no campo educacional e que legitima- ram 0 trabalho e a profissionalizagéo como dimensées a serem tratadas pela escolarizagao. Uma vez que estas dimen- s6es receberam atengao especial na Re- forma Fernando de Azevedo, tomamos esta reforma como um dos exemplos que atestam a preocupacéo do Estado para com 0 operariado urbano. Empenhado, i6 no final dos anos 20, em dar solugéo aos conflitos sociais urbanos (controle pela educacao} e em tracar um pré-mo- delo de cidadania regulada, o Estado associou cidadania e ocupagao também no campo educacional. A nossa intengao, ao destacar os debates sobre escola do trabalho e ensino profissionalizante, é apontar a Reforma do Distrito Federal como precursora do movimento que, no pds-30, institucionaliza a cidadania regulada. Para aprender a importincia do ensino profissionalizante na Reforma Fernando de Azevedo, vamos tragar um breve quadro do operariado urbane do Distrito Federal nas décadas de 10a 20, com 0 intuito de avaliar a intensidade e os objetivos da incorporacéo dos ide- gis de trabalho/ensino profissional pela Escola Nova. 2. Operariado do Distrito Federal: ator urbano do laissez-faire tupiniquim A interpretagéo do quadro econé- mico, que fez emergir no inicio do século um operariado urbano, pode ser inicia- da por Oliveira (1975) que retrata e ex- plica as condigées da mao-de-obra dis- ponivel no momento de emergéncia do “modo de producdo de mercadorias”. Para Oliveira, a forca de trabalho liberta da escravidéo e desprovida de qualificagdo técnica s6 poderia oferecer a0 capital o sua forca muscular. Nessa falta de qualificagao minima, reside a principal explicagéo para o fato de o tra- balhador nacional ter sido preterido pelo estrangeiro: (...) Nao € estranho, por isso, que em meio a uma abundancia de for- ca de trabalho, a industria brasilei- ra nos fins do século XIX e primeira década do XX tenha que socorrer- se do imigrante estrangeiro, cuja predominéncia no total da classe operdria ainda era absoluta em 1920. (Oliveira, 1975, p. 405) A folta de qualificagéo para ativi- dades industriais e a diviséo marcante entre operariado nacional e estrangeiro so, portanto, aspectos relevantes da si- tuagéo do operariado naquela época. Ensaio: aval. pol. pil. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 281-298, jul./set. 1999 284 As andlises de Pinheiro (1977) e Lobo (1978) sobre o proletariado indus- trial da Primeira Repiiblica complementam a interpretagéo de Oliveira e fornecem um quadro do que se passava no Rio de Janeiro naquele periodo, especialmente no que se refere & situagdo do operaria- do nacional e estrangeiro. Pinheiro e Lobo confirmam que os dados disponiveis no perfodo 1890-1920 demonsiram o pre- dominio do proletariado estrangeiro so- bre o nacional na Capital da Reptblica. Em 1920, de acordo com o Cen- so das Industrias, havia no Rio de Janeiro 56.517 operdrios trabalhando em 1.542 estabelecimentos, conforme demonstra o quadro a seguir. "Se compararmos os 51.403 ope- rarios empregados nas 1.219 indus- trios em 1920 com os 34.890 dos 638 fabricas dos mesmos tipos de Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal censo de 1906, notamos que o crescimento do proletariado foi peque- no, provavelmente por causa da ex pansdo do uso de méquinas e da for- 0 motriz....." lobo, 1978, p. 529) De acordo com Lobo, a despeito do aumento pouco significative ocorrido no numero de operdrios entre 1906 e 1920, a participagéo da méo-de-obra estrangeira ainda era significativa. Sobre a composicéo do operari- ado empregodo no Distrito Federal, os registros disponiveis revelam a utiliza- cao de mulheres e criancas com eleva- do grau de analfabetismo, independen- temente do setor que empregava este tipo de trabalhador. Outros fatores importantes para se dimensionar as razées da legitimagéo do trabalho na escola sao os dados e inter- Tipo de Industria N° de Operdrios Fiagéo e Tecido Couro e Peles Madeira Ceramica Alimentos Vestudrio e Toucodor Moveis Edificagao Aparelhos de Transporte Artigos de Luxo e relativos és Ciéncias e Letras (carimbos, ee esmaltadas, molduras, caixas de jdia e instrumentos de mUsico) Fonte: (Lobo, 1978, p. 529) Ensaio: aval. pol. piibl. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho ¢ cidadania para o operariado 285 pretacdes a respeito do tipo de mao-de- obra empregada, bem como de sua ca- pacidade e nivel de consciéncia para empreender lutas sociais e politicas. A estes fatores serd acrescentada a contrapartida do Estado no sentido de incorporar a classe operaria emergente a0 espaco urbano. Na Primeira Republica, seis corren- tes politicas disputaram a hegemonia do movimento operdrio: socialistas, libertérios (anarquistas e anarco-sindica- listas), comunistas, catélicos, “trabalhis- tas” e “amarelos”. Como assinala Ghiraldelli Jr, naquele periodo, "0 movi- mento operério soube se expressar frente aos interesses dominantes através de suas vanguardas socialistas, anarco-sindicalis- fas, anarquistas e comunistas; ao mesmo tempo que néo conseguiu evitar o surgimento de liderancas pelegas susten- tadas pela [greja e pelo Governo’ (1987, p. 31), como era o caso dos “amarelos”. A passagem relatada por Pinheiro (1977, p. 175pilustra bem a politica de boa re- lagdo existente entre governo e determi- nada categoria de operdrio: para come- morar o fim da greve da Leopoldina, os lideres “amarelos” e trabalhadores mari- timos visitaram o Presidente Epitécio Pes- soa, tendo sido por ele advertidos de que mais do que nunca era importante que os trabalhadores “honestos” se distanci- assem dos anarquistas. Nos primeiros anos da Republica, ‘© movimento operdrio sofreu influéncia do socialismo. Em 1895, realizou-se em Sao Paulo um congresso socialista, quando foi fundodo 0 Partido Socialista Brasileiro que teve duracdo efémera (um ano). Na oca- sido tragou-se um plano de luta contra a exploracéo econémica e se elegeu a gre- ve como forma de presséo por melhores saldrios. Sob a inspiragéo e a lideranca do Partido Socialista, aconteceram as pri- meiras greves no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, inclusive a greve geral realizada no Distrito Federal em 1903, A partir de 1906, os socialistas cedem a lideranca do movimento operd- rio aos anarco-sindicalistas que enfatizavam a importancia dos sindica- tos e menosprezavam a luta politica. Para eles, © sindicato deveria liderar a luta contra o Estado e formar a base da nova sociedade a ser criada. Em 1906 e 1907 acontecem duas greves operdrias em Séo Paulo atribui- das ds liderancas anarco-sindicalistas. Entre 1908 e 1913, arrefece o im- ec ees réncia de medidas repressivas tomadas pelo Estado e do elevado indice de de- semprego que fragilizava os sindicatos. Na segunda metade dos anos dez, 0 movimento operario recrudesce, com destaque para as greves realiza- das em Sao Paulo (1917) e no Distrito Federal (1919). Em 1919, 0 Distrito Federal jé con- tava com 100.000 operdrios sindicaliza- dos, o que contribuiu para reunir de 50.000 a 60.000 operdrios nas manifes- tagdes do dia 1° de Maio daquele ano, realizadas na Praga Maud. Ensaio: aval. pol. piibl. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 251-298, juul./set. 1999 286 Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal Ainda em 1919, duas agées do operariado mereceram destaque no Dis- trito Federal: a primeira foi a entrega de uma peticdo dos operdrios ao Presidente Delfim Moreira em que se reivindicave a jornada de 8 horas nas fdbricas (6 de maio de 1919); a segunda foi a greve realizada de 18 de maio a 27 de julho por cervejeiros, sapateiros, alfaiates, cos- tureiras, barbeiros, fotdgrafos, emprega- dos de padarias e fabricas de cigarros Essa sitvagao de mobilizagéo do antes de 1930. Esse fato pode explicar as razées e o empenho do Estado em tra- tar as questées do trabalho néo mais marcadamente como assunto de policia, mas como questao social. Tais medidas incluiam mecanismos coercitivos, legais e de controle capazes de permitir uma viséo racional do problema. E neste con- texto que se entende melhor o principio da escola do trabalho e o destaque a profissionalizagéo na reforma educacio- nal empreendida no Distrito Federal en- tre 1927 e 1930 Medida Legal i 1923 | Estabilidade no emprego, penséo e aposentadoria para ferrovidrios 1926 _|Amesma medida foi estendide aos portudrios 1925 Regime de férias para comercidrios 1927 Fonte: Pinheiro (1977) operariado, favorecida pelo debate e avangos do trabalho no plano internaci- onal, viabilizou uma série de medidas legais de protegéo ao trabalhador que apresentamos no quadro acima. Estas sGo, portanto, medidas antecipatérias de uma legislagao social e previdenciéria que visava a absorgéo do operariado pela cidade. Da situagdo aqui descrita, é pos- sivel constatar que © operariado se im- punha como ator social de peso no es- pago urbano da Capital da Republica jé Regulamentagéo do trabalho do menor 3. O Movimento Educacional na Primeira Republica e a Classe Trabalhadora O final do Império foi marcado por uma vigorosa discusséo em torno de ques- tes educacionais, visando enfrentar as condicées precérias do atendimento esco- lar entao disponivel. Nas palavras de Nagle (1978: 261}, a “Republica herdou do Im- pério um acervo rico para pensar e repen- sar uma doutrina e um programa de edu- cacao” (p. 261). Mas a Repdblica também herdou do Império a responsabilidade de Ensaio: aval. pot. piibl. Educ., Rio de Janeiro, v.7, n. 24, p. 281-298, jul,/set. 1999 rma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho e cidadania para o operariado 287 resolver alguns problemas cruciais e créni- cos da educacéo brasileira referentes & qualidade do ensino e a possibilidade de ampliagéo da oferta de educacéo escolar. Nos primeiros anos da Republica, as prioridades decorrentes da instalagao do novo regime fizeram com que os pro- blemas educacionais ficassem em segun- do plano. Este fato nao impediu, no en- tanto, que a Primeira Repiblica fosse pré- diga no que diz respeito realizagdo de reformas educacionais: Reforma Benjamin Constant (1890); Cédigo Epitdcio Pessoa (1901); Reforma Rivadévia Correa (1911); Reforma Carlos Maximiliano (1915); e Reforma Rocha Vaz (1925). A distribuigéo de competéncias constitucionais entre Unido e Estados em matéria de educagéo fez com que essas reformas tratassem ape- nas do ensino secundario e superior. Vale ressaltar que essas reformas nGo introduziram mudangas significativas naqueles graus de ensino, talvez porque as mudangas fossem indesejdveis, talvez porque lhes faltasse uma filosofia norteadora. Para Azevedo (1958), apenas duas dessas reformas corresponderam a um sistema de idéias e tinham um conted- do filoséfico mais ou menos definido: a Reforma Benjamin Constant, que, influen- ciada pelo Positivismo, pretendeu dar um cunho mais cientifico ao ensino secundé- rio, 0 que redundou em enciclopedismo; € a Reforma Rivadévia Correa, que insti- tuiu 0 regime de livre concorréncia no en- sino, com resultados desastrosos. Na Primeira Republica, o Gover- no Federal preocupou-se também com a oficializagéo do ensino profissional. Assim, através do Decreto n° 7.566, de 23 de setembro de 1909, foi defi- nida a criagéo, nas capitais dos esta- dos, de Escolas de Aprendizes Artifi- ces, com a finalidade de ministrar gra- tuitamente ensino profissional de nivel primGrio. Pelo Decreto n° 8.319, de 20 de outubro de 1910, foi regulamenta- do o ensino de agronomia. Essa regu- lamentagdo, além de ser uma cépia fiel da organizagéo educacional agricola francesa, nao levava em consideracgéo © contexto nacional, principalmente as diferencas existentes entre nossas pré- ticas agricolas rudimentaresm, nem as condicées climéticas. Deve-se registrar que 0 ensino pro- fissional manteve as mesmas caracteristi- cas do Império: destinava-se as classes pobres, aos érfaos e aos desvalidos. Nao constitula propriamente um programa educacional, era mais “um plano assistencial aos necessitados da miseri- cérdia publica”, sendo seu objetivo ine- quivoco a regeneracéo pelo trabalho. (Nagle, 1976: 164) Na segunda metade dos anos dez, a temdtica educacional voltou a ocupar a agenda das discussées publicas e foi elevada & condigéo de “salvagdo nacio- nal". Acreditava-se que, com a multipli- cagdo da oferta escolar, seria possivel absorver amplas camadas da populagéo e classificar o Brasil entre as grandes na- des do mundo.4 Para Noronha (1990), o tema edu- cacional ndo era considerado monopé- Ensaio: aval. pol. pibl. Educ., Rio de Janeiro, » 7, n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 288 Cristiane Cotta ¢ Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal lio de nenhum grupo, nem seguia uma trajetéria homogénec e articulada a in- teresses de determinado segmento da sociedade. Embora o entusiasmo pela educacéo estivesse atrelado a interesses contraditérios, a eleigao da educacdo como tema de “salvagéo nacional” pro- moveu uma certa convergéncia entre es- ses interesses. Para as elites empenhadas na mo- dernizacéo da sociedade, a educacéo de massa era considerada um instrumento politico de mudanca de direcéo do mode- lo econdmico agrario-exportador para ur- bano- industrial. Para amplos segmentos da populacéo, 0 acesso & educagao represen- fava uma oportunidade de ascenséo social e de fuga da condigéo de trabalhador manual ndéo-qualificado. Ja a pequena burguesia via a educagao como veiculo de preparacdo do “trabalhador disciplinado”. Por sua vez, os setores mais combativos do operariado urbano perce- biam a educacgdo como “uma ferramen- ta eficaz na luta contra a opressdo, a ponto de pensar e colocar em pratica os seus préprios meios educativos”. (Noronha, 1990: 33) Essas experiéncias educacionais ~ independentes e inovadoras — que 0 ope- rério urbano — socialistas, libertarios (anarquistas e anarco-sindicalistas) e co- munistas — desenvolveu na Primeira Re- publica nem sempre foram registradas pela Historia da Educacdo Brasileira. Para Noronha, 0 fato de setores mais organizados da classe trabalhado- ra perceberem a educagéo como um dos instrumentos mais eficazes para lutar con- tra 0 optessdo e a favor da ampliacao do leque de oportunidades sociais contraria a crenca de que o operariado brasileiro, na Primeira Repbblica, era passivo, su- balterno, apdtico e desprovido de cons- ciéncia politica. Os socialistas, que detiveram a hegemonia do movimento operdrio nos primeiros anos da Repéblica, sempre enfatizaram a questéo educacional em seus programas partiddrios. Ja em 1890, no programa de 40 pontos do Partido Operario do Rio Grande do Sul, trés fo- ram reservados & educacéo, defenden- do a necessidade de propagar per todo oterritério nacional o ensino integral, lei- go, profissional e publico Impossibilitados de assumir 0 po- der para implantar sua proposta educa- cional, os socialistas fundaram escolas operarias para criangas e adultos em vé- rios estados brasileiros, além de jornais ¢ bibliotecas populares. Na avaliagéo de Ghiraldelli Jr. (1990) as propostas socialistas continham dois equivocos: (1) insistiam no ensino téc- nico de cardter profissionalizante sem considerar a proposta marxista de uniGo entre ensino intelectual e trabalho; e (2) ignoravam as ressalvas que Marx fazia a educagéo estatal, dado o cardter de clas- se do Estado. Para o mesmo autor, as ex- periéncias educacionais sociolistas per- deram o lugar de destaque quando os anarco-sindicalistas assumiram a hegemonia do movimento operdrio. Ensaio: aval. pol. publ. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 281-298, jul/set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho ¢ cidadania para 0 operariado A pedagogia libertaria baseava- se nas concepgées do pensador radi- cal espanhol Francisco Ferrer, criador da Escola Racionalista ov Moderna. A pedagogia racionalista valorizava o pensamento cientifico, combatia a in- fluéncia religiosa na educagéo, defen- dia a co-educacao de sexos e classes e repudiava prémios, castigos, exames e notas. Como os libertérios eram con- trérios a qualquer influancia do Estado na educagéo, nao defendiam o ensino pUblico e gratuito. Seu idedrio educa- cional foi colocado em prdtica no Bra- sil de diversas maneiras: pela propa- ganda em jornais, revistas, teatro, ro- mances; pela participagéo em movi- mentos reivindicatérios; e pela educa- Go formal. No campo da educagao formal, criaram varias escolas infantis, centros de estudos sociais para adultos e a Universidade Popular de Ensino Li- vre do Rio de Janeiro. Os varios centros de estudos soci- ais criados no Pais eram organizacées que reuniam trabalhadores para leitura e dis- cussdo de obras literdrias. De acordo com Ghiraldelli Jr. (1986), eram verdadeiras escolas de ensino mituo, onde os traba- Ihadores mais experientes iniciavam os demais nas idéias anarquistas e na orga- nizagéo sindical. A Universidade Popular, fundada por elementos oriundos das camadas médias e intelectuais de elite, oferecia 20 trabalhador cursos ministrados sob a forma de palestras auténomas. A sua duragéo efémera (cinco meses) é atri- buida ao discurso ervdito dos mestres, 289 que contrastava com a realidade cultu- ral do proletariado, e a dificuldades de ordem financeira. No biénio 1917-1919, marcado por intensa agitagdo sindical, acentuou- se a represséo ao movimento libertrio que entrou em declinio, provocando o fechamento das “escolas modernas”. Ghiraldelli Jn (1986) lembra que naquela época o Pais assistia & prolifera- do das "ligas nacionalistas", que preten- diam combater 0 analfabetismo. Essas li- gas, porém, néo se mobilizaram em defe- sa das escolas modernas. Gracas a esse episédio, os operdrios comecaram a ter consciéncia da néo neutratidade da edu- cacéo e de que as propostas liberais de alfabetizagéo, que caracterizaram aquele movimento denominado entusiasmo pela educagéo, “nao tinham o mesmo signifi- cado do movimento por educacéo popu- lar desenvolvido pelas liderancas operdri- as". (Ghiraldelli Jr, 1986: 36) Com a vitéria da Revolugdo Russa de 1917, muitos militantes do anarco- sindicalismo no Brosil se transferem para ‘© comunismo, chegando a participar da fundacdo do Partido Comunista em 1922. A partir de entao, o pensamento marxista tende a se tornar hegeménico no seio da esquerda brasileira e novos pardmetros educacionais se apresentam para o operariado. As primeiras contribuigées dos co- munistas pera a educagéo popular apa- receram nos jornais operérios simpati- Ensaio: aval. pol. pitbl. Educ., Rio de Janeiro, 24 p. 281-298, jul /set. 1999 290 Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal zantes do bolchevismo, que publicavam artigos comentando a reforma da edu- cagdo promovida por Lénin na Russia. Assim, no universo da discussdo sobre questées educacionais sdo incluidos os temas: escola unitdria, articulagao ensi- no e trabalho produtivo; ¢ administra- gdo da escola com a participagdo dos trabalhadores. A proposta educacional comunista era lutar “pela escola unitéria, que realmen- te integrasse todas as classes sob uma dnica forma de ensino. Nao se tratava mais de falar em “ensi- no ténico profissional’, mas sim de procurar entender o significa do da proposta de uniéo “ensino com trabalho produtivo”. (Ghiraldelli Jr., 1986: 36) Os comunistas brasileiros priorizoram a politizagdo das massas e, para isso, promoveram varios cursos so- bre a ideologia marxista-leninista. Com a criagéo do Bloco Operario Camponés, langaram uma plataforma ideolégica, visando participar das cam- panhas eleitorais. Essa plataforma con- finha um item sobre educagéo, que pro- punha: (1) extensdo da obrigatoriedade do ensino primério; (2) ajuda econdmica 4s criangas pobres em idade escolar (for- necimento de roupa, material escolar, alimentagéo e transporte gratuito); (3) ‘aumento do ndmero de escolas profissi- onais para ambos os sexos; (4) melhoria das condicées de vida do professor pri- mario; e (5) subvengéo as bibliotecas populares. Ghiraldelli Jr. (1986/1990) critica as deficiéncias tedricas dos comunistas brasileiros que insistiam na defesa do ensino meramente profissionalizante, ig- norando os polémicos debates sobre politecnia que ocorriam entre Lénin, Krupskaia e educadores russos. A proposta pedagdgica comunista nado logrou éxito provavelmente em decor- réncia dos seguintes fatores: (1) a priori- dade concedida & politizagéo das mas- sas; (2} a fragilidade tedrica que prejudi- cou 0 discurso pedagdgico; (3) a repres- 360; e (4) a concorréncia das propostas elaboradas pelos intelectuais instalados no poder (governos estaduais e municipais). Em contraposigéo ao “entusiasmo pela educacdo”, que se preocupava com a difusdo da escola existente ou com a alteracdo de um ou outro aspecto do pro- cesso, surge na década de 20 o “otimis- mo pedagégico, que propunha a substi- tuigdo do modelo educacional. No bojo da influéncia norte-ame- ricana que emergiu depois da Primeira Guerra, chega ao Brasil 0 novo modelo educacional - a Escola Nova — que iria conquistar grande parte dos jovens inte- lectuais interessados por questées edu- cacionais, inclusive aqueles ligados & esquerda. Iniciou-se, entao, o ciclo de reformas de ensino realizadas em alguns estados por aqueles intelectuais bafeja- dos pelo idedrio escolanovista. Entre eles estava Fernando de Azevedo. ‘Ao mesmo tempo, a tematizagéo da educagéo como “salvadora” da po- Ensaio: aval. pol, ptibl. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 281-298, jul/set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho e cidadania para o operariado pulagéo inculta vai cedendo lugar fematizagéo da educagéo como “disciplinadora” do trabalhador. Noronha esclarece que esse des- locamento néo ocorreu através de ruptu- ra mas de uma énfase maior no aspecto disciplinador que um sistema de ensino diversificado poderia ter sobre a distribui- Go desigual dos individuos na socieda- de, procurando predeterminar o lugar es- pecifico que cada um deveria ocupar na pauta da estratificagéo ocupacional, bem como a constituigéo de uma “cidadania” regulada pelo nivel de insergdo nessa pauta. (Noronha, 1990: 33) Assim, a despeito de o movimento operdrio — socialista, libertério e comunista ~ ter apresentado projetos edu- cacionais préprios, a educagéo escolanovista, encampada pelo Estado, tornou-se hegeménica. Saviani considera a proposta escolanovista uma verséo educacional que garantiria a integracéo da socieda- de, através, de um lado, da formacao de elites capazes de dirigir 0 pais e, de ou- tro lado, pela integragéo da populagéo no seu conjunto e, portanto, também dos trabalhadores, a partir de uma educagéo publica comum a cargo do Estado. (Saviani, 1990, p. 10) 4. A Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal A reforma do ensino piblico do Distrito Federal, realizada por Fernando 291 de Azevedo em 1927, compreendia os seguintes niveis e ramos de ensino: (1) ensino infantil, ministrado em escolas maternais e jardins de infancia, a crian- cas de 2 a 7 anos incompletos; (2) ensi- no primério de cinco anos, ministrado em escolas nucleares, fundamentais e gru- pos escolares; (3) ensino vocacional de dois anos, ministrado em cursos comple- mentares anexos ds escolas normais, pro- fissionais e domésticas; (4) ensino normal de cinco anos, ministrado nas escolas normais; (5) ensino técnico-profissional de quatro anos, ministrado em escolas e ins- titutos profissionais; (6) ensino domésti- co, de quatro anos, ministrado em esco- las domésticas. Dos ideais sociais da educacéo, que podem ser sintetizados na afirmagao de que a educagdo constitui elemento dindémico de transformagao social, jun- tamente com a fungao de adaptagao ao meio, decorrem os irés princtpios funda- mentais da organizagéo escolar: escola unica, escola comunidade, escola do trabalho. A “escola Unica” propde que o ponto de partida seja comum a todos, 0 que seria garantido pela democratizagéo do acesso, pela obrigatoriedade e pela gratuidade. O principio da “escola comuni- dade” visa 4 harmonizacéo entre a de- manda social profissionalizante e os in- dividuos que deveriam, pelo desenvol- vimento da consciéncia coletiva, estar predispostos & cooperagao e 4 solidari- edade. O objetivo é de dar aos alunos Ensaio: aval. pol pibl. Bduc., Rio de Janeiro, 24, p. 281-298, jul /set, 1999 292 Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal uma “prética de vida social e coletive", exercitando 0 autogoverno e consiruin- do a consciéncia do bem coletivo desde «a escola primaria. O terceiro principio, a “escola do trabalho”, busca adaptar o sistema esco- lar & realidade do desenvolvimento cien- tifico e industrial, com destaque para a preparagdo da mao-de-obra operdria. Isso se comprova pela imporfancia que a Reforma dé ao ensino profissionalizante. Como a sociedade moderna se apoia no trabalho organizado, a escola deve ser o meio de preparagdo para o trabalho eo espago de combate ao preconceito em relagdo a ele. A concepgao de escola do trabalho pressupde uma “escola activa e de experiéncia pessoal em que todo o estudo deve ser aquisicdo e trabalho, fei- to em comum” (Discurso de 8 de setem- bro de 1927, p. 42). Ainda que se trate de uma visdo liberal, em que a relagdo trabalho e escola é apresentada “como um recurso didatico, pelo valor moral do trabalho ou tendo em vista um ingresso imediato no mercado ocupacional” (Ma- chado, 1989, p. 85), a retorma inaugura e legitima, no ambito piblico e escolar, um espago para a formagéo profissional. O principio da escola do trabalho enfatiza os seguintes aspectos: profis- sionalizagao —“mediante uma atividade constante nos respectivos campos de tra- balho”; moral —" conformar as formas morais do aluno dirigindo-o a examinar constantemente seus atos de trabalho”; e solidariedade —“escola da comunidade do trabalho, em que os alunos se aper- feigoam, ajudam-se e apoiam-se recipro- camente e socialmente”. (Lourengo Filho, 1974, p. 153) A parte referente ao ensino profissionalizante tinha a finalidade de formar homens para a acdo e€ para a pré- tica, dilatando seu horizonte mental, “dan- do-lhes 0 ‘minimo de conhecimentos’ necessérios tanto para a prética racional de um oficio, como ao cumprimento dos seus deveres e ao exercicio de direitos de cidadéo" (Azevedo, 1958, p. 159), acen- tuando a relagdo cidadania e ocupagéo. Essa nova perspectiva representava uma substancial mudanga em relagao ao en- sino profissional. A Reforma estruturou 0 ensino téc- nico masculino em Greas e definiu as es- colas onde seriam oferecidas: (1) Escola Visconde de Mau4, curso agricola; (2) Es- cola Visconde de Cairu, cursos de obras em madeira, madeira artistica e obras anexas para a instalagéo de interiores; (3) Instituto Jodo Alfredo, cursos eletrotécnico e mecinica industrial; (4) Escola Alvaro Batista, curso de artes graficas; (5) Escola 28 de Janeiro, curso comercial; e (6) Es- cola Souza Aguiar, curso de mecdnica. Previu, ainda, a criagao de uma “escola de construgdo” que seria instalada na zona suburbana ou rural, e duas “escolas de pesca” a serem instaladas em Guaratiba ena liha do Governador. A estrutura e o curriculo dos cur- sos profissionalizantes da Reforma Fernando de Azevedo revelam que nao houve avangos no sentido de se garantir a co-educagio, pois observa-se uma ni- tida demarcagao entre os cursos destina- Ensaio: aval. pol. pitbl. Educ., Rio de Janeiro, v.7,n. 24, p. 281-298, jiul/set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho e cidadania para 0 operariado 293 dos ao sexo masculino e feminino. As escolas profissionais femininas estavam estruturadas em trés areas. A primeira — oficios e artes — oferecia cur- sos de costura e confeccdes; chapéus; rendas e bordados; flores; tecidos de malha; cintas e acessérios. A segunda ~ cursos domésticos — ministrava cursos de cozinha, lavagem e engomado. A tercei- ra — comercial ~ oferecia cursos de dati- lografia, estenografia e contabilidade A possibilidade de utilizagéo da méo-de-obra feminina se restringia & in- déstria leve e ao trabalho doméstico. Essa restrigdo esta de acordo com as finalida- des que a Reforma atribuia & educacao profissional feminina: (1) ministrar conhe- cimentos de artes e oficios adequados; (2) contribuir para a independéncia da mulher, dando-lhe educagéo utilitaria; (3) atrair a mulher para trabalhos manuais e ocupa- ges domeésticas; (4) preparar futuras do- nas de casa, em proveito da vide familiar; (5) despertar e desenvolver o gosto artistico e a capacidade técnica nas pequenas in- dstrias; e (6) elevar o nivel morale intelec- tual das classes pobres operdrias. AReforma de 1928, que Fernando de Azevedo denominou “Carta Organi- ca do Ensino Técnico” visava, de acordo com seu realizador: (1) arrancar 0 ensino técnico do abandono, do caos e do pla- no inferior em que se encontrava; (2) aius- tar 0 ensino profissional ds exigéncias mo- demas e as necessidades do pais, apa- relhando a escola para “dor aos operdri- os uma formagéo profissional é altura dos Circunsténcias e das exigéncias técnicas das industrias modernas" (1958, p. 160); e (3) dar ao Distrito Federal, “em todos os graus da hierorquia industrial, operdrios, empregados e mestres habilitados” (1958, p. 159). Para Piletti (7994), no entanto, a Reforma Fernando de Azevedo teve uma finalidade politica: instituir a escola a ser- vico do Estado e, mais que isso, do po- der politico dominante, atribuindo-lhe como um de seus fins principais, nas pala- vras do proprio reformador, “enraizar o operério ds oficinas, o lavrador @ terra eo pescador as praias" . (Piletti, 1994, p. 131) Nessa perspectiva, a Reforma Fernando de Azevedo, néo obstante ter assimilado principios psicopedagdgicos da Escola Nova, teve um objetivo funda- mentalmente politico-social na medida que incorpora a idéia da educagde como disciplinadora da méo-de-obra que co- mecava a circular no final dos anos 20. 5. CONSIDERAGOES FINAIS Neste artigo, buscamos relacionar a Reforma Educacional, promovide por Fernando de Azevedo no Distrito Fede- ral, ao processo de transigdo entre o pe- rlodo do “laissez-faire repressivo e de ci- dadania em recesso” e a fase de institucionalizagéo da “cidadania regu- lada”. Para isso, assumimos que a Re- forma Fernando de Azevedo pode ser considerada uma medida que contribuiu para a efetivagéo da cidadania regula- da, cujo foco central € o trabalho profissionalizado e reconhecido como atributo de cidadania. Ensaio: aval. pol. piibl, Educ., Rio de Janeiro, v7, n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 294 Destacamos também as condiges de vida e oportunidades de trabalho do operariade urbano, constituide de brasi- leiros e estrangeiros, bem como sua luta visando a conquista de direitos trabalhis- tas. Nesse contexto, destacamos algumas das idéias educacionais nascidas no seio dos correntes libertérias, socialistas e co- munistas, buscando apontar as diferen- Gas entre essos propostas de esquerda e «a escolanovista de cunho liberal. Vale ressaltar ainda a mudanca ocorrida, a partir de 30, na forma de en- carar o movimento operdrio e a quesiéo social: © que na Primeira Republica era caso de policia, no pés-30 se converte em caso de politica. Do reconhecimento de que “as classes trabalhadoras sao agentes sociais reais e, como tais, néo podem ser politicamente ignorados” (Saviani, 1990: 10) decorrem as medi- das de cunho social e politico tomadas por Getilio Vargas, ainda no Governo Provisério: criagéo do Ministério do Tra- balho, Industria e Comércio (1930); de- terminagées sobre sindicalizagao das classes patronais e operdrias (1931); ins- tituigdo da carteira profissional (1932) e da jornada de trabalho de oito horas (1932); requlamentagéo do trabalho de mulheres e menores (1932), do direito a férias (1933) e do saldrio minimo (1934) Com essas medidas e com 0 movimento trabalhista, pretendia-se incorporar os tra- balhadores ao processo politico e garan- tir a paz social. No plano educacional, considera- mos que no Governo Getdlio Vargas, principalmente no Estado Novo, algumas Cristiane Cotta ¢ Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal medidas podem ser caracterizadas como strumento da cidadania regulada: o Art. 129 da Constituigao Federal de 1937 e a Reforma Capanema. O Art. 129 da Constituicéo de 1937 destinava 0 ensino pré-vocacional e profissional as classes menos favorecidas, estabelecendo ofi almente o dualismo educacional e predeterminando a origem social da méo- de-obra que se pretendia formar. A Reforma Capanema, realizada no inicio da década de 40, veio reforgar esse dualismo ao criar dois sistemas pa- ralelos, fechados, incomunicéveis, ver- dadeiros instrumentos de estratificagao social: de um lado, 0 ensino profissiona- lizante que tinha como objetivo formar 0 trabalhador para a industria, para o comércio e para a agricultura; de outro, 9 ensino secunddrio, que se destinava “a preparacdo das individualidades condutoras, isto é, dos homens que de- verdo assumir as responsabilidades mai- ores dentro da sociedade e da nagao” (Gustavo Capanema, Exposicéo de Mo- tivos). Vale esclarecer que a concluséo do curso secundério conferia o direito de prestar concurso vestibular para qual- quer curso superior, enquanto que os concluintes dos cursos profissionalizantes 86 podiam ingressar em cursos superio- res afins. O curso secundario era privi- legiado ainda no que se refere 4 articu- lacéo com os outros ramos de ensino, uma vez que os concluintes do Gindsio podiam ingressar em qualquer curso téc- nico, néo havendo, porém, reciprocida- de. Em decorréncia dessa falta de arti- culagéo entre ensino profissionalizante e ensino secundario, o destino dos alu- Ensaio: aval. pol. pribl. Educ., Rio de Janeiro, v.T,n. 24, p. 281-295, jul/set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabalho ¢ cidadania para o operariado nos que ingressavam no profissiona- lizante era selado aos 11/12 anos quan- do prestavam exame de admisséo. Essa estratificagao social através da educacéo $6 iria terminar no inicio da década de 50 com a chamada “Lei da Equivaléncia” (Lei n° 1.821, de 12 de marco de 1953, regulamentada pelo De- creto n° 34.330, de 21 de outubro de 1953}, que dispés sobre o regime de equi- valéncia entre os diversos ramos do ensi- no médio. A Lei de Diretrizes e Bases da Educagao Nacional (Lei n° 4.024 de 20 de dezembro de 1961) viria estabelecer @ equivaléncia plena. 295 Como se pode constatar, na Pri- meira Repiblica e no Governo Getilio Vargas, 0 Estado tentou cooptar o opera- riado através da legislagdo social, enquadré-lo através da coergéo (medi- das repressivas como, por exemplo, as normas reguladoras da entrada e expul- sG0 de estrangeiros) e persuadi-lo por meio da educacao. Nesse contexto, conclui-se que a Reforma Fernando de Azevedo se carac- teriza como um instrumento que contri- buiu para a “cidadania regulada” Ensaio: aval. pol. publ. Bduc., Rio de Janeiro, v.Z,n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 296 Cristiane Cotta e Silva/Diana Couto Pinto/Maria Cristina Leal ABSTRACT The article analyses the reform carried out by Fernando de Azevedo in the Federal District in 1927-1928, a period when the working class showed itself as a social player of considerable importance in the Capital. It has as its objective that in showing labour and professionalism as dimensions to be treat by the school, the Reform Fernando de Azevedo had a political aim: to place the school at the service of the State, to be viewed as an instrument of “regulated citizenship”. Keywords: Reform Fernando de Azevedo — Work ~ Professionalism ~ Regulated citizenship. RESUMEN El articulo analiza la reforma realizada por Fernando de Azevedo en el Distrito Federal en 1927/28, época en que los obreros se imponian como actores sociales de peso en la Capital de la Republica. Tiene como objective demonstrar que, al presentar e/ trabajo y la profesionalizacién como dimensiones a ser practicades por la escuela, la Reforma Fernando de Azevedo ha tenido una finalidad politica: poner la escuela a servicio del Estado, en una perspectiva de instrumento de la “ciudadania regulada’. Palabras-clave: Reforma fernando de Azevedo — Trabajo ~ Profesionalizacién — Ciudadania regulada. Ensaio: aval. pol. ptibl. Edue., Rio de Janeiro, © 1n. 24, p. 281-298, jul /set. 1999 Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal: Trabatho ¢ cidadania para 0 operariado 297 Referéncias Bibliograficas AZEVEDO, F. A cultura brasileira: intro- dugao ao estudo de cultura no Bra- sil. 3.ed. rev.ampl. [Séo Paulo]: Me- Ihoramentos, 1958. 3v. (Obras completas, v.13) ___. Novos caminhos e novos fins: a nova politica de Educagéo no Brasil: subsidios para uma histéria de quatro anos. 3.ed. Sao Paulo: Melhoramen- tos, 1958. 256p. (Obras completas de Fernando de Azevedo; 6) . A reforma do ensino no Distrito Federal: discursos e entrevistas. Sao Paulo: Melhoramentos, 1929. 143p. FAORO, R. Os donos do poder: formo- do do patronato politico brasileiro. 5.ed, Porto Alegre: Globo, 1979. 2v. GHIRALDELLIJR., P A evolugao das idéi- as pedagégicas no Brasil republica- no. Cadernos de Pesquisa, Séo Pau- lo, n.60, p.28-37, fev.1987. . Movimento operdrio e educagéo popular na Primeira Republica. 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