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Colegio Educagio Pés-Critica Guacira Lopes Louro Coordenadores: Tomas Tae da Siva Pablo Get Géner0, sexslidade © educagio Guacira Lopes Louro GENERO, SEXUALIDADE E EDUCAGAO Uma perspectiva pés-estruturalista Bibiogaa | ISBNS5-326-1862-6 | G27 eI Petropolis 1987, 1 ‘Aemergéncia do género 1uem confia nor dicionarios (e desconfia do que ali nao ests) talvez tenha resisténcias em iniciar este dillogo. No sentido muito especifico ¢ particular que nos interessa aq, género nfo aparece no Aurelio.! Mas as palavras podem significar muitas coisas. Na verdade, clas sio fugidias,instives, tem mltiplos apelos, Admitindo que as palavras tm histéria, ou melhor, que elas fazem histéria, 0 conceito de género que pre= tendo enfatizar esti ligado diretamente & historia do movimento feminista contempordnea. Constituinte desse movimento, ele esté implicado linghistica e poli- ticamente em suas lutase, para melhor compreender 0 ‘momento eo significado de sua incorporagio, é preciso que se recupere um pouco de todo o processo, ‘AgGes isoladas ou coletivas, dirigidas contra a ‘opressio das mulheres, podem ser observadas em ‘muitos e diversos momentos da Histrla e, mais recen- temente, algumas publicagSes, filmes ete. vem se preo- cupando em reconhecer estas ages. No entanto, ‘quando se pretende referir ao feminismo como um ‘movimento social organizado, esse & usualmente reme- tido, no Ocidente, ao século XIX. Na virada do século, as manifestagdes contra a dis- criminagio feminina adquiriram uma visibilidade & oy uma expressividade maior no chamado “sufragismo”, ‘ou seja, no movimento voltado para estender o direito do voto as mulheres. Com uma amplitude inusitada alastrando-se por virios paises ocidentais (ainda que ‘com forgae resultados desiguais),o sufragismo passou a ser reconhecido, posteriormente, como a “primeira onda” do feminismo, Seus objetivos mais imediatos (eventualmente acrescidas de reivindicagées ligadas & organizagio da familia, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profissées) estavam, sem divida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe édia, ¢o alcance dessas metas (embora circunserito a alguns paises) foi seguido de uma certa acomodagio no ‘movimento. Seri no desdobramento da assim denominada “segunda onda” — aquela que se inicia no final da déeada de 1960 — que fer pagdes socials e politicas,iré se voltar para as constru- ‘gbes propriamente teéricas. No ambito do debate que a partir de entio se trava, entre estudiosas e militantes, inismo, além das preocu- de um lado, e seus’ crticos ou suas eriticas, de outro, seré engendrado © problematizado o conceito de género, | se tornou higar comum referirse ao ano de 1968 ‘como um marco da rebeldia e da contestacio. A refe- réncia € stil para assinalar, de uma forma muito con- creta, a manifestacio coletiva da insatisfagao e do pro- testo que jé vinham sendo gestados ha algum tempo. Franga, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha sao 1s locais especialmente notiveis para observarmos inte- lectuais, estudantes, negros, mulheres, jovens, enfirn, diferentes grupos que, de muitos modos, expressam sua inconformidade e desencanto em relacio aos tradicio- nais arranjos sociaise politicos, is grandes teorias uni- versais, ao vazio formalismo académico, & discrimi nagio, & seyregagio e ao silenciamento. 1968 deve ser ‘compreendido, no entanto, como uma referéncia a um ‘processo maior, que vinha se constituindo e que conti nuaria sé desdobrando em movimentos especificos ‘em eventusis solidariedades. E, portanto, nesse contexto de efervescéncia social « politica, de contestagio © de transformagio, que © movimento feminista contemporineo ressurge, expres- sando-se niio apenas através de grupos de conscienti- zagio, marchas © protestos pablicos, mas também através de livros, jornas ¢ revistas. Algumas obras hoje clissicas — como, por exemplo, Le deueiéme sexe, de Simone ‘Beauvoir (1949), The feminine mystique, ‘de Botly Friedman (1963), Sexual politics, de Kate Millett (1969) — marcaram esse novo momento. Militantes feministas participantes do mundo académico vio trazer para o interior das universidades e escolas ques- tes que as mobilizavam, impregnando e “contami nando” 0 seu fazer intelectual — como estudiosas, docentes, pesquisadoras — com a paixio pol Surgem os estudos dla mulher. 16 A mulher visivel Tornar vsivel aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feminstas desses primeiros tempos. A segregagto sociale politica aque as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conse- quencin a sua ampla invisiilidade como sujeito — inclusive como sujeito da Cigncia E preciso notar que ess invisiblidade, produzida 4 partir de méltiplos discursos que caracterizaram a esfora do privado, o mundo doméstico, como o “verda- deiro” universo da mulher, jé vinha sendo gradativa- mente rompida, por algumas mulheres. Sem diva, desde ha muito tempo, as mulheres das classes traba- thadoras e eamponesas exerciam atividades fora do lr, nas fibrica, nas oficinas e nas lavouras. Gradativa- mente, essas e outras mulheres passaram a ocupar também escrtérios,ljas, escolasehospitais, Suasativi- dds, no entanto, eram quate sempre (como sfo ainda hoje, em boa parte) rigidamentecontroladase dirigidas por homens e geralmente representadas como secund- Fas, de apoio”, de assessors ou auxilio, muitas vezes. ligadas & assisténcia, ao euidado ou A educagio. As caracteristicas dessas cupagies, bom como aocultagio do rotineito trabalho doméstico, passavam agora a ser cobservadas, Mais ainda, a estudiosas feminists iiam também demonstrar e denunciar a auséneia ferins tas cigneias, nas letras, nas artes Assim, os estudos inicais se constituem, muitas vezes, em descrig6es das condigées de vida ¢ de tea- ra balho das mulheres em diferentes instincias e espagos Estudos das dreas da Antropologia, Sociologia, Edlu- cagio, Literatura etc, apontam ou comentam as desi gualdades sociais, politicas, econdmicas, juridicas, denunciando a opressio e submetimento feminino. Contam, eiticam e, algumas vezes, celebram as “carac teristicas” tidas como fernininas Com 0 objetivo de fazer avangar essas andlises € acreditando na potencialidade dos empreendimentos coletivos, algumas mulheres vo fundar revistas, pro- mover eventos, organizar-se em grupos ou niicleos de estudos... As vezes transformados em guetos, mediante processos nos quais também tém responsabilidade e envolvimento, muitos desses grupos acabam por ser cexeluidos (e por se excluirem) da dindica mais ampla do mundo académico, Torna-se comum a tendéncia de deixar que nesses espagos e apenas neles) se trate das questées relacionadas & mulher. Deste modo, pro- postas, que iam desde a “integragdo do universo femi- ‘ino a0 conjunto social” até pretensées mais ambiciosas de “subversio dos paradigmas te6ricos vigentes”, tenfrentam muitas dificuldades para se impor. Ha uma disposiga para que pesquisadoras mulheres se ocupem fem discutir ou construir uma Hist6ria, uma Literatura, ‘ow uma Psicologia da mulher — de algum modo pertur- bbando pouco a nogio de um universo feminino sepa- rado. Seria, no entanto, um engano delxar de reconhecer ‘a importincia destes primeiros estudos. Acima de tudo, 18 cles tiveram 0 mérito de transformar as até entio esparsas referéneias as mulheres — as quais eram usu almente spresentadas como a excegio, anota de rodapé, © desvio da regra masculina — em tema central Fizeram mais, ainda: levantaram informagses, constru- fram estatisticas, apontaram lacunas em registros oft- ciais, vieses nos livros escolares, deram voz aquelas que ‘eram silenciosas e silenciadas, focalizaram reas, temas fe problemas que nio habitavam espago académico, falaram do cotidiano, da familia, da sexualidade, do doméstico, dos sentimentos. Fizeram tudo isso, geral- mente, com paixio, ¢ esse foi mais um importante argu- ‘mento para que tis estudos fossem vistos com reservas. les, decididamente, nio eram neutros. Coloca-se aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu cariter politico. Objetividade e neutralidade,distancia- ‘mento ¢ssengio, que haviam se constituido, convencio- aalmente, exh condigées indispensiveis para o fazer académico, eram problematizados, subvertidos,trans- gedidos. Pesquisas passavam a langar mlo, cada vez com mais desembaraco, de lembrangas ede historias de vida; de fontes iconograficas, de registros pessoais, de difrios, cartas ¢ romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as ques- tes eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetéria histériea especifica que construiu 0 lugar social das mulheres © que o estudo de tais questies tinha (¢ tem) pretensbes de mudanca. 19 Estudos sobre as vidas femininas — formas de tra- balho, corpo, prazer, afetos, escolarizagio, oportuni dados de expresso e de manifestacio artistca, profiss ‘onal e politica, modos de insergio na economia e no ‘campo juridico — aos poucos vio exigir mais do que deserigées minuciosas e passario a ensaiar explicagSes. Se para algumas as teorizagbes marxista representario ‘uma referéncia fundamental, para outras as perspec- tivas construidas a partir da Psicandlise poderio parecer mais produtivas. Haverd também aquelas que afirmario ‘a impossibilidade de ancorar tais andlises em quadros tedricos montados sobre uma Iégica androcéntrica e. ‘que buscario produzir explicagées e teorias propria- ‘mente feministas, originando 0 “feminism radical” Em cada uma dessas fliagées tesricas usualmente se econhece um mével ou causa central para a opressio feminina e, em decorréncia, se constr6i uma argumen- tagdo que supée a destruigo dessa causa central como o ‘caminho légico para a emaneipagio das mulheres, Essas diferentes perspectivas analiticas, embora fonte de debates © polémicas, nio impedem que se ‘observer motivagio e interesses comuns entre as estu- diosas. Numa outra posigio, estardo aqueles/as que jus- tificam as desigualdades sociais entre homens e mulheres, rementendo-as, geralmente, as caracteri ticas biolégicas. O argumento de que homens ¢ ‘mulheres sao biologicamente distintos e que a relagio centre ambos decorre dessa distingio, que & comple- ‘mentar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter 0 caréter de 20 argumento final, irrecorrvel. Seja no Ambito do senso ‘comurm, sejarevestido por uma linguagem “centiica, 2 distingio biolégica, ow melhor, a distingio sexual, serve para compreender — e justficar — a desigual- dace soca. E imperative, entdo, contrapor-se a esse ipo d& argumentagio. E necessirio demonstrar que nio sho ropriamente as caracteristicas sexuais, mas é a forma Como essascaracteristieas sho representadas ou vaori- zaklas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vat constitu, efetivamente,o que 6 ferinino ou masculino ‘em uma dada sociedade e em um dado momento hist6- Fico, Para que se compreenda o lugar eas relagdes de homens e mulheres numa sociedade importa observar rio exatamente seus sexos, mas sim tudo o que social- mente se construiu sobre os sexes. O debate vai se cons- tituit,entio, através de uma nova linguagem, na qual _género seré um conceit fundamental Género, soxo @ sexu E através das feministas anglo-saxas que gender passa a ser usado como distinto de sex. Visando "rejeitar um determinismo biolégico implicito no uso de termos ‘como sexo ou diferenga sexual”, elas desejam acentuar, através da linguagem, “o carter fundamentalmente social das distingdes baseadas no sexo" (Scott, 1995, p. 72).O coneeito serve, assim, como uma ferramenta ana- Iitica que é, ao mesmo tempo, uma ferramentapolitica, Ao dirigir foco para cardter “fundamentalmente a social”, nfo hi, contudo, a pretensio de negar que 0 ‘género se constitul com ou sobre corpos sextados, ot seja, no 6 negada a biologia, mas enfatizada, delibera- damente, 4 construgéo social e histérica produzida sobre as caracteristicas biolégicas. Como diz Robert Connell (1995, p. 189), “no género, a pritica social se dirige aos corpos”. O conceito pretende se referir a0 ‘modo como as caracteristicas sexunis so compreen- didas ¢ representadas ou, entio, como sio “trazidas para a pritica social e tornadas parte do processo histo Pretende-se, dessa forma, recolocar 0 debate no ‘campo do social, pois & nele que te constroem e se reproduzem as relagGes (desiguais) entre os sujettos. AS justificativas para as desigualdades precisariam ser bus- cadas nio nas diferencas biol6gicas (se & que mesmo ‘estas podem ser compreendidas fora de sua constitu- {go socal), mas sim nos arranjos sociais, na historia, nas condigies de acesso aos recursos da sociedade, ‘nas formas de representagio, (© conccito passa a ser usado, entio, com um forte pelo relacional — j& que € no ambito das relagSes sociais que se constroem os géneros. Deste modo, ainda ‘que os estudes continuem priorizando as andlises sobre as mulheres, eles estardo agora, de forma muito mais cexplicita, referindo-se também aos homens. Busca-se, intencionalmente, contextualizar 0 que se afirma ou se ssupie sobre of géneros, tentando evitar as afirmagées -generalizadas a respeito da “Mulher” ou do “Homen 2 [Na medida em que 0 conceito firma 0 cariter social do eminino © do cempregam a levar em consideragio as distintas socie- dlades e os distintos momentos historicos de que estio tratando, Afasta-se (ou se tema intengio de afastar) pro- pposiges essencialistas sobre os géneros; a dtica esti dirigida para um processo, para uma construgio, © nfo para algo que exista a prior. O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os pro- jetos eras representagoes sobre mulheres e homens sio diversos. Observa-se que as concepgdes de género diferem nio apenas entre as sociedades ou os ‘momentos histéricos, mas no interior de uma dada soci- ‘edade, a0 se considerar os diversos grupos (6tnicos,reli- ‘losos,racizis, de classe) que a constituem. © que ocorre é, entio, uma importante transfor- ‘magia nos Estudos Foministas — transformagio essa ‘que néo se faz sem intensas discussées e polémicas. Vale notar que, implicado lingistica e politicamente no debate anglo-taxio, o termo no poderia ser simples- mente transposto para outros contextos sem que sofresse, também nesses novos espagos, um processo de_ disputa, de ressignificagio e de apropriagio. Assim, no Brasil, ser jé no final dos anos 80 que, a principio timi= ddamente, depois mais amplamente, feministas passarao a utilizar o terme “género” A-caracteristica fundamentalmente social ¢ relaci- onal da conceito nao deve, no entanto, levar a pensiclo ‘como se referindo a construgio de'papéis masculinos e culino, obriga aquelas/es que © 23 fomininas. Papéjs seriam, basicamente, padres ow regras arbiGlrle que ums sociedad estabelece seus membros e que definem seus comportamentos ‘Baas apes. ene day Gate Cao ee portar.. Através do aprendizado de papéis, cada ula ever conheser o que 6considerads adequado (efx Tterminada sociedade, « responder a esas expecta “Fax Ain que ublizada por muitow/as, crea concepcd _JBode se mostrar recutora ou sgpplista, Discutraapren- dlisager de papéis masculinos e femininos parece ETRE TINTS OE Gs RITTUGN& para as relagos Titerpessouls. As der s entia os sujetos tone Se ee Taco Fiearam sem Srame wis apenas ae EDTA “Ferns que podem sssumir os macoulinicles ea fom Gue (através das instituicses, dos disc ‘Sadigos, das praticas e dos simbolos...) constituem hie- imquasenteosgenemy SS ‘A pretensio 6, entio, entender 'o_género como constituinte da identidade dos sujeitas. E aqui nos ‘Vemos frente a outro conceito complexo, que pode ser formulado a partir de diferentes perepectivas: o con- ceito de identidade, Numa aproximacio as formulagies mais criticas dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais, compreendemos os sujeitos como tendo identidades plurais, miltiplas; identidades que_se Talore gue (ransformam, que nid sto Tas Ou permanentes, que Fala ne petm serena Asim 0 send ea de pertencimento a diferentes grupos — étnicos, senuais, de clase, de g2nero,ete.—consituiosujeitoe pode levlo a se perosber como se fosse “empurrado tem diferentes diregdes" como diz Stuart Hall (1992, p 4), Ao afirmar que o gensio institu a identidade d “sueifefpssim como aetna, aclasse, oa nacionalidede, jor exemple) pretende-se refers, portanto, algo que transconde o'mero desempenho-de puntis a ida. ‘Berscber o ginero fazendo parte do sujito, consttuine dasa. O sujeito¢ brasileiro, negro, homem, ete, Nessa Derspectiva admite-se que a8 diferentes institigies e Priticas sociais sio constituidas pelos géneros e sio, também, constituintes dos genetos. Estas praticas¢ins- Lituigbes “fbricam’ os sujetos. Busea-se compreender que a justica, a igreja, as priticas educativas.onde foverno, a politica, et, so atravessadas pelos géneros: esas instineias, priticas ov espagos socials so “generis ficadas” — produzem-se, ou “engendram-se” a parti. Tar elagoed Se inca a WS apes parr dese Fane us relagies de classe, nica, ete)? E importante qué notemos que grande parte dos discursos sobre género de algum modo incluem ou cenglobam as_questées de sexualidade (Mac An Chaill, 1996). Antes de avangarmos, no entanto, talvez seja importante tentar estabelecer algumas distingSes entre généro e sexualidade, ou entre identidades de género é identidades sexuais. E verdade que, ao fazer isso, cor rremos 0 risco de cair numa esquematizagio, j4 que nd pritica social tais dimensdes slo, usualmente, articu- 25 ladas e confundidas. ‘Apenas mais recentemente alguns estudiosos ¢ estudiosas estio buscando um refinamento nas andlises, acentuando algumas distingSes que podem ser impor- tantes. Ao longo de seus estudos, Jeffrey Weeks (1999, P. 6) afirma inimeras vezes que “a sexualidade tem tanto a ver com as palavras as imagens, o ritual e a fan- {asia como com o corpo”. Compartilhando da posicéo de muitos outros estudiosos estudiosas, ele fala da impos- sibilidade de se “compreender a serualidade obser- vando apenas seus componentes ‘naturais...), esses sganham sentido através de processos inconscientes formas culturais” (p. 21)° Se Foucault foi capaz de ‘Wagar uma Historia da Sexualdlade"(1988), isso acon- teceu pelo fato de compreendé-ta como uma “invengio social", ou seja, por entender que ela se constitu & partir de miltiplos discursos sobre 0 sexo: discursos que regulam, que normalizam, que instauram,saberes, ‘que produzem “verdades”, — Observamos que 95 suieitos podem exercer sua semualidade de diferentes formas, eles podem “viver ‘Tour desejos © prazeres comporais” de tnuitos modos (Weeks, apud Britzman, 1996). Suas dentidades sezuais se constituriam, pots, sravés das Tors Some Tp ‘Saperecom paeerovhe We ese sono da Se post, demos enero fom parcetvos/a Pot ( SSapbeam eat oncdades degre Om, Soviet 26 ‘que essas identidades (sexuais e de genero) estio pro- fundamente inter-relacionadas; nossa linguagem ¢ ‘nossas priticas muito freqiientemente as confundem, tomnando difiil pensé-las distintivamente. No entanto, clas nio sio a mesma coisa. Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossenuais, bissexuais(e, ao mesmo tempo, eles também podem ser negros, brancos, ot indis, rioos ou pobres etc.).O que importa aqui considerar é que — tanto na dindmica do ‘genero como na dindmica da sexualidade — as identi. les ie-sunmte coulda cas aio le Cad Seas num determinado mamantp- Nio ¢ possivel rar um momento — soja este 0 nascimento-a WOES Seago brs maturidada~ gueposersaTomad como ‘Fqusle om due adentidade seal efouaidentidade, Saad adoums Sitio compre se constituindo, clas so usvels e. na fanto,passivels de tr ss ‘Deborah Britzman (1996, p. 74) afirma: fenhuma identidade sexual — mesmo a mais nar ‘mativa — 6 automatica, auténtica, facilmente ass ‘ida; nenhuma identidade sexual existe sem nego- Ciagio ou construgio. Nao existe, de um lado, uma identidade heterossexual Ié fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida @, de outro, uma ‘dentidade homossexual instivel, que deve se virar sozinha, Em ver disso, toda identidade sexual 6 tum constructo instivel, mutivel ¢ volatil, uma relagdo social contraditéria € nfo fnalizada (grifos da autora) a7 possivel pensar as identidades de género de modo semelhante: elas também estiocontinuamonte so cons: truindo e se transformando. Em suas relagbes sociais, atravessadas por diferentes discursos,sfmbolos, repre fentagées © priticas, os sueitos vio se construindo como masculins ou femininos, arranjando © desarran- Jando seus ligares socinis, sas disposigbes, suas formas de sor ede estar no mundo, Essas construgées e esses arranjos slo sempre transt6rios, ansformando-se nio ‘apenas ap longo do tempo, historicamente, como também transformando-se na articulagio com as histé- "as pessoas, a5 iontidades sexuais, dtnicas, de raga d& dase ‘Mais uma observagio 2 ser feita: algumas estudi -osas ¢ estudiosos (como Judith Butler) vem sugerindy que usualmente pensamos trabalhamos sobre género “numa matriz heterossexual”. Contudo, Butler (apud Mac An Ghaill, 1996... 198) diz que 6 crucial mianter uma conexdo nio-causal endo redutiva entre genero e sexualidade. Exatamente devido ao fato de a homofobia operar muitas vezes través da atribuigio aos homossexuais de um « abjeto, € que se chama os homens gay de “fomininos” ou se chama as mulheres Iésbieas de “masculinas” ero defeituoso, de um género falho ou mesmo A homofebia, © medo voltado contra os/as homosse- azn, pode se expressar ainda numa espécie de “terror em relagio a perda do género”, ou Seja, no terror de no 28 ser mais considerado como um homem ou uma mulher “reais"ou “auténticos/as”. Por tudo isso, Judith afirma ‘que é “crucial manter um aparato tedrico que leve em! ‘consideragio 0 modo como a serualidade 6 regulada através do policiamento e da censura do jénero". Descons Ainda qu Saquanto categoria analiticalpasse a ser utilizado, com maior 0a menor propriedade e ajus- tamento, no contesto de varios paradigmas teéricos, ‘uma parte significativa das formulagées produzidas polasos feiministas atuaisestabelece articulagées entre ‘essa conceptualizagio e algumas teorizagSes pés-estr- turalistas. Na verdade, seria dificil supor que movi- ‘mentos contemporineos (no caso, o feminismo e o pés- estruturalismo, ambos se constituindo em meio 3 efer- vvescéncia intelectual do final dos anos 60) deixassem de produzir efeitos métuos e fosser capazes de se manter isolados. _Expressando-se de formas diversas, por vezes apa- rentemente independentes, feministas e pos-estrutura- listas compartilham das eriticas aos sistemas explica- tivos globais da sociedade; apontam limitag6es ou incompletudes nas formas de organizacio e de compre- tensio do social abragadas pelas esquerdas; problema tizam os modos convencionais de produgio ¢ divul- zagio do que & admitide como ciéncia; questionam a ‘concepgio de um poder central e unificado regendo o todo social, ete 29 [As produgées dos/as pensadores/as pés-estrutura listasefeministas terlo, pos, pontos de contato, mesmo que sejam também evidentes algumas zonas de discor- dincia ou atrito. Acentua-se e amplia-se, assim, o debate entre asos estudiosas/os feministas, na medida ‘em que a apropriagio de insights ou conceltos pés-es- truturalista 6 assumida por algumas/alguns e rejeitada por outras/outros. Entre as estudiosas mais conhecidas nesse campo esté Joan Scott, historiadora norte-americana que escreve, em 1986, um artigo instigante: Gender: a useful ‘category of historical analysis. Traduzido e divulgado no Brasil o texto passa a ser utilizado amplamente por aquelas/es interessadas/os nas relagGes de género. No tentanto, as implicagées te6ricas da abordagem de Scott talvez tenham sido, muitas vezes, observadas um tanto superficialmente, jé que seu estudo serve de suporte a trabalhos marcados pelas mais diversas perspectivas (Louro, 19958). Ela no exconde, entretanto, que toma de empréstimo alguns conceitos pés-estruturalistas, em especial elaborados por Michel Foucault © Jacques Derrida. Néo nga, também, que, para uma historia- dora social feminista, aproximar-se e apropriar-se de teorizagbes feitas no campo da ‘Filosofia e da Teoria Literria foi dif. Por tudo isso é possivel compre- tender que as idéias que ela propse tenham sido férteis a0 mesmo tempo, perturbadoras, ‘Um ponto importante em sua argumentagio déia de que ¢ preciso desconstruir o “carter perma- 30 nente da oposigio bindria” masculino-feminino, Em. otras palavras: Joan Scott observa que é constante nas, andlises e na compreensio das sociedades um pensa- ‘mento dicot8mico e polarizado sobre os géneros; usual- mente se concebem homem e mulher como polos ‘opostos que se relacionam dentro de uma légica invari- vel de dominagio-submissio. Para ela seria indispen- sével implodis essa logica., Scatt nio esti sozinha nessas observagées, outras cestudiosas ¢ estudiosos também apontam as limitagSes implicitas nessa rigida visio polarizada. A base de algu- mas dessas argumentagdes pode ser encontrada em Jacques Derrida. Lembra esse filgsofo que 0 pensa- ‘mento moderne foi e € marcado pelas dicotomias (pre- senga/auséncia, teoria/pritica, ciéncia/ideologia ete). [No “jaga-das dicotomias” os dois pélos diferem.ese. ‘opSem #,aparentemente. cada sum & una e idéntica ast mesmo. A dicotomia marca_também.a superioridade “do -primeizo elemento. Aprendemos a pensar a nos ‘pensar dentro dessa légica e abandoné-la nao pode ser tarefa simples, A proposigio de desconstrugdo das dico- tomias — problematizando a consttuicio de cada pélo, demonstrando que cada um na verdad supde e contém, © outro, evidenciando quejcada pélo no é uno, mas plural, mostrando que cada pélo é,internamente,fratu- rado e dividido — pode se constituir numa estratégia subversiva e fértil para o pensamento. Desconstruir a polaridade rigida dos géneros, _significaria problematizar tanto a oposigao entre enti a cles quanto # unidade interna de cada um. Implicaria ‘observar que o pélo masculine contém o feminino (de ‘modo desviado, postergado, reprimido) ¢ vice-versa: implicaria também perceber que cada um desses pélos @ internamente fragmentado e dividido (afinal nio ‘existe a mulher, mas viriase diferentes mulheres que ‘no sio idénticas entre si, que podem ou nfo ser solidé- Flas, fimplices ou opositoras). Por outro lado, essa eterna oposi 0 bindria usual- mente nos faz equiparar, pela mesma l6gica, outros pares de conceitos, como “produgio-reprodugao”, “pliblico-privado”, “razio-sentimento”, ete. Tais pares correspondem, & possivel imediatamente perceber, a0 ‘masculino e ae feminino, e evidenciam a prioridade do primeiro elemento, do qual o outro se deriva, conforme to dicotimico. Ora, é ficil concluir que essa légica 6 problemética para a perspectiva femi- nista, que ela nos “amarra” numa posigio que é, apa- rentemente, conseqiiente e inexoravel. Uma légi parec que ;pontar para um lugar “natural” e fixo para cada A desconstrugio trabal perceber que a oposigio & cons contra essa logica, faz no inerente e fixa. A desconstrugéo sugere que se busquem 0s pro- cessos © as condigées que estabeleceram os termos da polaridade, Supe que se historicize a polaridade e a bierarquia nela implicit, Teresa de Lauretis (1986, p. 12), uma importante ‘estudiosa ferinista, lembra que 0 proprio “significado 32 da diferenca sexual” é colocads em termos de oposigio (Catureza ou cultura, biologia ou socializagio"), oque é tum modo de compreensio que esti muito préximo da conhecida expressio “anatomia-destino”. Ha pouco avanco, segundo Teresa, em se dizer que a diferenga sexual é cultural; 0 problema que permanece € 0 de’ 1 as diferengas (sejam elas consideradas cultu- ras, socials, subjetivas) “em relagio ac homem — sendo ele & medida, o,padrio, a referéncia de todo discurso legitimado’. A l6gica dicotémica carrega essa idéia. Em conse- iiéncia, essa l6giea supée que a relago masculino-fe- rminino constitul uma oposigio entre um pélo domi- ante ¢ outro dominado —e essa seria ‘nica e perma- nente forma de relagio entre os dois elementos. O pro- cesso desconstrutivo permite perturbar essa idéia de relagio de via Gnica e observar que o poder se exerce fem varias diregGes. O exeroicio do poder pode, na ver- dade, fraturar e dividir internamente cada termo da ‘oposigto, Os sujeitos que constituem a dicotomia nis) slo, de fato, apenas homens ¢ mulheres, mas homens mulheres de virias classes, raga, eligioes,idades, ec € suas solidariedades e antagonismos podem provocs (5 arranjos mais diversos, perturbando a nogio sim- plista e reduzida de "homem dominante versus mulher dominada”. Por outro lado, no custa reafirmar que 0s ‘grupos dominados sio, muitas vezes, capazes de fazer dos espacos e das instincias de opressio, lugares de resistencia e de exercicio de poder. 33 ‘Uma das conseqiiéneias mais sgnificativas da des- construgio dessa oposigio bindria reside na possibili dade que abre para que se compreendam e incluam as “diferentes formas de masculinidade e feminilidade que © constituem socialmente, A concepgio dos géneros como se produzindo dentro de uma logica dicotémica implica um polo que se contrapée a outro (portanto uma idéia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supde ignorar ou negar todos os sujeitos sciais que rio se “enquadram” em uma dessas formas. Romper a dlicotomia poderé abalar o enraizado carter heterosse- xual que estaria, na visio de muitos, presente no con- ceito “género”. Na verdade, penso que © conceito 56 poder manter sua utilidade tedrica na medida em que incorporaresses questionamentos. Mulheres ehomens, que viver feminilidades e masculinidades de formas f iversas das hegeménicas e que, portanto, muitas vezes [po sio representados/as ou reconhecidos/as como |[verdadeiras/verdadeiros” mulheres e homens, fazer triticas a esta estrita eestreita concepgio binéria Vale notar que as eriticas a tal concepgio sio também feitas por outras feministas que percebem 0 onceito como extremamente marcado por sua origem acadmica, branca, de classe média. Sendo assim, a ‘menos que se desconstrua a polarizagio dos géneros © se problematize a identidade no interior de cada pélo, se deixar de contemplar os interesses, as experiéneias 0s questionamentos de muitas mulheres, como os das. mulheres nio-brancas e as lésbicas (bem como se dei- 1ario de fora as diferentes formas de masculinidade). 34 / Bologe, da “Paradoxalmente”, como diz Teresa de Lauretis (1994, p. 209), "a construgio do, género também se faz por meio de sua desconstrugio”. Ao aceitarmos.que a Constrigio do género é histérica e se faz incessante mente, estamos entendendo que as relagées entre hhomens e mulheres, os discursos © as representagies estas celagies_esto em_constante mudangs. Isso supde que as identidades de género estio continua rmente’se transformando, Sendo assim. é indispensével fadmitir que até mesmo as teorias © as praticas femi- nistas — com suas critieas 20s discursos sobre género & suas propostas de desconstrugio — esto construindo aénero, Notas 1. No Dicionio do Aur (1904) aparece uma se de dei Ges pats gener. desde se signifieados o rbito da gi, da ook cial “hose ou natures do seuntoabordado or wt srt ur and, expan clnieadan com git er incre” Chg ser 0 que no €)¢ "ao aero gener de" (aio ‘ht conlorme a opniz ou gosto de-alpuén no grad) 2 Ne oar qu Ameri Herta itary nl ne ie dhefingde rondo com “seal dent, especialy i elton 0 Society of culture’ acrescentando também o wero fo seer (como sinnime de tw engender © qe se podera trdist or ‘cena erty produat) Tore nd, Diario do aureio nds permanece sm regiror nenhuma conotago préxina & reclamada pelos Estudos emits 5. Para otey Weeks (109, p21 io extem regis simples ou tices enti "sex" € sociedade™. qualqver forma de pens que Spur estas dune instances nu redetonismo, As post bilidades erties do ananal humano, sua eapacidade de Ferma, as fntmidadee pazernunes poem ser express “xponines- ‘mente’ sem tunformagbs mt compose organi na inroads rode de crngu, contr tvdade sca, nama tein compose o amr 40 artigo, publcdotitlente oo 1986 no Anercan Hist ‘cal Reso 5 pstrtorent gon olor da orn Seat ‘Gender nd Plc of Hato (Nova York, Calbia Univer Pres, 1988, Una tigi em port, reainda por mim at dotenocm rants Les cer de HUF de 1968, pe. Sui ove Edad « Renda, 1 (8) de 1900. Uns nos {Pads revita por omar Tad de Sv, oiginl pblcaion Edun Malis 903) e108 Género, sexualidade e poder Op Ess Feminists etveram sempre conta mente preocupados com as relagies de poder. Como j foi salientado, inieialmente esses estudos pro- coraram demonstrar as formas de silenciamento, sub- ‘metimento ¢ opressio das mulheres. A exposigio dessas situagies parece ter sido indispensvel para que se vis bilizasse aquelas que, histérica e lingtisticamente, ha- iam sido negadas ou secundarnadas, Mas sea denna“ tia, aguas condigéo social hierarquicamente subordinada, De Y aualquer modo, a concepcio que atravessou grande parte dos Estudos Feministas foi (¢talvez ainda seja) a de um homem dominante versus uma mulher domi- rnada — como se essa fosse uma formula dnica, fixa &}* permanente. No entanto, jé ha algum tempo. algumas estudi- cosas e estudiosos vém problematizando essa concepgio. Por um lado, so enfatizadas as formas elocais de resis tancia feminina; por outro Tado, sio observadas as perdas ou 08 custos dos homens no exerefcio de sux __“superioridade” social; além disso, o movimento gay € 0 7_ movimento de mulheres lésbicas também vim demons at rae” qu aa e perc tno consti nua boa 3 | ‘A construc escolar das diferencas Daten stings dsinaden esa Jentende disso, Na verdade, a escola produ isso. Desde seus inicios, a instituigho escolar exerceu uma acio distintiva, Bla se ineumbiu de separar os sujeitos — tomando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela no tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, of que Ii estavam, através de rmiltiplos mecanismos de classifcagio, ordenamento, hierarquizacio, A escola que nos foi legada pela socie- dade ocidental moderna comegou por separar adultos dd criangas, eatslicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobrese ela imedia- tamente separou os meninos das meninas. Concebida inicialmente para acolher alguns — mas nfo todos — ela fo, lentamente, sendo requisitada por aqueles/as aos/as quais havia sido negada. Os novos grupos foram trazendo transformagSesinstituigao, Ela precisou ser diversa: organizacio, curriculos. prédios, docentes, regulamnentas, avaliagées iriam, explicita ov implicitamente, “garantie” — e também produzir — as diferengas entre os sujeitos. E necessério que nos perguntemos,entio, como se produziram e se produzem tais diferencas © que efeitos, clas tém sobre 05 sujeitos. ‘A escolarizacio dos compos das mentes A escola delimita espagos. Servindo-se de simbolos e cédigos, ela afirma o qu cada um pode (ou no pode) fazer, cla separa’ e institu. Informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através de seus quadros, crucifixes, santas ou escul- ‘turas, aponta aqueles/as que deveriio ser modelos e per. mite, também, que os sujitos se reconhegam (ou 10) nesses modelos. O prédio escolar informa a todos/as sua razio de existir. Suas marcas, seus simbolos e arranjos arquiteténicos “fazer sentido”, instituem méltiplos septs, constituem distintos sueitos. ‘Tomemos como exemploum desses tradicionais quadros alegéricos comumente representatives de ‘momentos especiais da Histéria! Destaca-se alia figura disfana de uma mulher, vestida com trajes da Antiga Grécia e aparentemente guiando um grupo de sol- dados. Esses soldados tim A frente um comandante, ccujos trajes atestam sua importincia © nobreza. Os rostos sio iluminados, compenetrados. Alguns podem ter tombado, mas os demais avancam, destemidos. Que leituras podem fazer desse quadro meninos e meninas, brancos/as e negrosias,ricovas e pobres? Que detalhe parecer a cada um/a deles/as mais significativo, mobili- zador de sua atengio, provocador de sua fantasia? Cer- tamente muitas e diferentes estérias podem ser cons- truidas. £ impossivel ignorar, contudo, que ali a mulher (ainda que em destaque) nio é personagem da luta con- ela 6 a “inspiradora” da agio (representando, 58 talvez, a pitria ou a liberdade); os homens — todos. brancos — sio os verdadeiros guerreiros, aqueles que cfetivamente estio “fazendo a Historia” (com maiti ceulas). sua frente, um homem especial: um herdi, um lider que, aparentemente, tem uma posigo socal supe- tora dos outros homens. Esses homens no tém medo, parecem saber qual o seu “dever”, nfo parecem hesitar. Essas “informagées" (e muitas outras de tantas outras leituras) podem permitir que alguns pretendam chegar, algum dia, aseriguais ao her6ie que outras e outros nao se coloquem essa meta, seja por nio a considerarem atrativa, seja por néo se julgarem dignos/as dela Os sentides precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as moltiplas formas de constituigio dos sujeites implicadas na concepgéo, 1a organizagao e no fzercotidiano escolar. O olhar pre- cisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores © salas, deter-se nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceberos sons, as falas, as sinetas eos silén- cos; & necessario sentir 0s cheiros especiais: as eadén- cias ¢ 08 ritmos marcando os movimentos de adultos & eriangis. Atentasos aos pequenosindios. veremos ‘queaté mesmo o tempo eo espago da escola n tribufdos nem usados — portanto, nio so concebidos — do mesmo modo por todas as pessoas, Ao longe da histiria, as diferentes comunidades (e no interior delas, os diferentes grupos sociais) constru- 1m modos também diversos de conceber e lidar com 0 tempo e 0 espago: valorizaram de diferentes formas o 50 tempo do trabalho eo tempo do dei: 0 espago da casa ois oda ra; delimitaramos lugares permitidos eos pro bios (¢ deteeminaram os sujetor que podiam ou nfo transtar por eles); decidiram qual otompo que impor. tava (0 da vida ou o depois dela); apontaram as formas adequadas para cada pesson ocupar (ou! gastar) © tempo. través de muitasinsttuigaese pitas, essas concepsies foram © sio aprendidas e interiorizadas: tornanse quase“natras” (ainda que sejam “ats cule turais) A escola é part importante dense procesto. Tal “naturalidade” tio fortemente construida talvez nos impega de nota que, no interior das atuais escolas, onde conviver meninos © meninas, apazes & roger, eles ¢ clas se movimentem, circulem se agrupem de formas distintas. Observamos, entio, que eles parecer “procisir” de mais espago do que elas parecer prefrir“naturalmente” as aividades a0 ar livre. Registramos a tendéncia nos meninos de “imvadir” os espacos das meninas, de interromper mia brincadetas.E,usvalmente, consideramos tudo so de algum modo inserito na “ordem das coisas”. Tale também parea “natural” que algumascriangas possam usuffui de tempo livre. enquanto que outras tenham de trabalhar ap6s o horério escolar, que aguas devam “poupar” enquanto que outras tenham direito a “matar” © tempo. Um longo aprendizado vai, afinal, “colocar ~ cada qual em seu lugar”. Mas as divisdes de raga, classe, etnia, sexualidade © género estio, sem divida, impli cada nessas construgses e 6 somente na histéria dessas divis6es que podemos encontrar uma explicagio para a © “Togiea” que as roge. Por umn aprendizado efieaz, continuado e sutil, um ritmo, uma cadéncia, uma disposigio fica, uma pos- tura parecem penetrar nos sujeitos, ao mesmo tempo ‘em que esses reagem e, envolvidos por tai dispositivos ce prticas, constituem suas identidades “escolarizadas”. Gestos, movimentos, sentidos so produzides no espago cetcolar eincomporados por meninos e meninas, tornam- se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos sio treinados, fazendo com ‘que cada um e cada uma conhegaos sons, os cheiros ¢ os, sabores “bons” © decentes e rejeite os indecentes; >aprenda o que, a quem @ como tocar (ou, na maior parte das vezes, nio tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e nio outras.. todas essas lies sio atra- vessadas pelas diferengas, elas confirmam e também produzem diferenga. Evidentemente, os sujeitos nio silo passivos receptores de imposigdes externas. Ativa mente eles se envolvem e sto envolvidos nessas apren: dizagens — reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente. - (Os mais antigos manuais j ensinavam aos mestees ‘8 cuidados que deveriam ter com os corpos e almas de seus alunos. © modo de sentar e andar, as formas de ccolocar caddemnos e canetas, pés e mis acabariam por produzir um corpo escolarizado, distinguindo o menino ‘ou a menina que “passara pelos bancos escolares”, esses manuais, a postura retatranscendia a mera dis- 6 pposigio fisica dos membros, cabega ou tronco: ela devia ser um indicative do caréter e das virtudes do educando (Louro, 1995b). As escolas femininas dedicavam intensas e repetidas horas a0 treino'das habilidades manuais de suas alunas produzindo jovens “pren- dadas”, capazes dos mais delicados e complexos traba- Ihos de agulha ov de pintura. As marcas da escolari- zagio se insereviam, assim, nos corpos dos sujeitos. Por vezes isso se fazia de formas tio densas e particulares que permitia — a partir de minimos tragos, de pequenos indicios, de um jeito de andar ou falar — dizer, quase com seguranga, que determinada jovern foi normalista, que um rapaz cursou 0 colégio militar ou que um outro estudou num seminario. Certamente as recomendagées dos antigos manuais foram superadas, fs repetides treinamentos talver j& nio existam. No entanto, hoje, outras regras, teorias e conselhos (cienti- ficos, ergométricas, psicol6gices) si produzidos em adequagio as novas condigées, 20s novos instrumentos € priticas edueativas, Sob novas formas, a escola con- tinua imprimindo sua “marca distintiva” sobre os sujeitos. Através de maltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes. A fabricacdo das diferencas ‘Sexiemo e homofobia na prética educative Foucault dizia, no seu conhecide Vigiar ¢ Punir (1987, p. 153) A disciplina “fabric individuos: ela 6 a técnica «2 ‘espeeifica de um poder que toma os individuos 20 ‘mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercicio. Nao é um poder triunfante (..) ‘um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas perma- rnente. Humildes modalidades, procedimentos ‘menores, se os compararmos aos rituals majestosos dda soberania ou aos grandes aparelhos de Estado. © processo de “fabricagio” dos sujeitos 6 continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptivel. Antes de tentar percebé-lo pela leitura das leis ou dos decretos que instalam e regulam as instituigSes ou percebé-lo nos solenes discursos das autoridades (embora todas cessas instincias também fagam sentido), nosso olhar deve sCroltar especialmente para as priticas cotidianas fem que se envolver todos os sujitos. Sio, pois, as pra- ticas rotineiras e comuns, 05 gestos e as palavras banali- zades que precisam se tornar alvos de atencio reno- vada, de questionamento e, em especial, de desconfi- ‘anca. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: descomfiar do que é tomado como“ Afinal, & “natural” que meninos © meninas se separem na escola, paraos trabalhos de grupos ¢ para as filas? E preciso aceitar que “naturalmente” a escotha dos brinquedos seja diferenciada segundo 0 sexo? Como explicar, entio, que muitas vezes eles e elas se “imisturem” para brincar ou trabalhar? f de esperar que ‘0s desempenhos nas diferentes disciplinas revelem as diferencas de interesse aptidio “caracteristicas” de cada género? Sendo assim, teriamos que avaliar esses 63 slunos e alunas através de criterios diferentes? Como Drofessoras de series nical, precisamos aceitar que oF tmeninos si “natualmente” mais agitados ecuriosos do {que as meninas? E quando ocorre una situagto oposta& txperada, ou seja, quando encontramos meninos que se dledicam a atvidades mais trangiilas © meninas que preferem jogos mals agresivos, devemos nos “pre0- {Cupar pols Iso 6 indiendor de que esses/asalunonas ‘sti apresentando “desvior" de comportamento? Curriulos, norms, procedimentos de ensino,teo- ris, inguagem, materiasdiditics, processos de aval ‘cto slo, seguramente, oct das diferengas de género, Seruaidade otia, classe — slo constituidos por essas Aistingbes¢, ao mesmo tempo seus produtores, Todas fesias dimensdes precizam, poity ser colocadas em ‘questio.£ indispensivel questionar nfo apenas 0 que ensinamos. aso modo como ensinamose que sentidos nossos/as alunos/as do ao que aprendem. Atrevida- mente ¢ preciso, também, problematizar as teorias que forientam nosso trabalho (fchuindo, aqui, até mesmo acqelasteorias consideradas “eritcas") Temos de estar atentasjos,sobretudo, para nossa linguagem, procu Tando percebero sexism, o racismo ¢o etnocentrisrno

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