Você está na página 1de 6
Por mais precério ¢ limitado que possa ser o mundo da cultura, no planeta Terra, em confronto com 0 infinito do cosmos, nao se pode negar que, com ele, a espécie humana alterou a imago mundi, nela inserindo a imago hominis. Por tais razdes, as ciéncias naturais, de per si, nao lograriam, fem set conjunto, dizer o que € hoje o nosso planeta, incompreensfvel sem as obras culturais em todos os dominios da criacdo espiritual Como salientamos em Experiéncia e Cultura, se amanha 0 homem fosse varrido da face da Terra, € aqui aportassem outros seres dotados de poderes racionais, eles poderiam, com base em leis fisicas ou biol6gicas, reconstituir a Terra como fenémeno natural, mas nao lograriam jamais ter fa imagem do mundo que temos nds, beneficifrios do sorriso da Gioconda edo olhar de Moisés de Michelangelo perdido no infinito, ¢ de todos os bens a nosso aleance, a comecar dos livros até 05 mais delicados instru ‘mentos eletrénicos, desde os portentosos equipamentos urbanisticos ao mais rudimentar dos utensilios. E que, desaparecido o homem, extingue-se 1 cultura, por ser esta a presenga do homem no universo da natureza. Capitulo XVII BEM INDIVIDUAL E BEM SOCIAL © PROBLEMA DA SANCAO 101. As leis naturais no so sancionadas, nem sancioniveis, porque as conseqiiéncias por elas previstas resultam necessariamente do {alo em seus nexos causais!. As leis morais ou juridicas nao se podem, porén preender desprovidas de sancdo. Examinemos melhor o assunto que & de ‘manifesta importancia, visto como aqui surge 0 problema do dever, euj cumprimento € exigido em razio de um bem, que se quer salvaguardar Houve quem tentasse estabelecer as bases de uma Etica sem sancio, mas a tentativa reputada, em geral, falha. Nao é possivel coneeber orde: nagdo da vida moral sem se prever uma conseqiiéncia que se acrescente regra, na hipstese de violacdo. Parece paradoxal, mas & verdadeiro que as leis fisicas se enunciam sem se prever a sua violacio, enquanto que as leis éticas, as juridicas inclusive, sio tais que seu inadimplemento sempre se previne, E proprio do Direito a possibilidade, entre certos limites, de ser violado. O mesmo se deve Por outro lado, quando se observa que um fate nfo & plen por uma lei fisica, esta nao subsiste mais como lei, mas apenas como momen envolvesse a destruigao da regra! 1, Deixamos aqui de examinar 0 complexo problema da “necessidade” das lel causes, Bastard lembrar que a inferéncia nelas enunciada pode ser apenas provivel, mus a probabilidade deve ser consideravelmente superiot & metade part que 0 principio em questdo possa ser chamado validamente de “lei causal” (RUSSELL Human Knowledge, pag. 326). (V.. supra, pigs. 137, 195 © segs) 205 As leis que profbem 0 homicidio ou o furto sio violadas diariamente, , nem por haver homens ¢ grupos que violem ditas leis, elas devem deixar de existir. Ao contrétio, nés podemos dizer, como disse um grande fildsofo da Italia no século passado, Rosmini, que o Direito brilha com esplendor invulgar onde ¢ quando violado®, exatamente no momento da violagio da lei juridica que ela resplende com mais intensidade, provocando a tutela, a garantia, a salvaguarda daquilo que se estima valioso Ha, pois, uma diferenca fundamental entre esses dois grupos de leis, das leis fisicas e das leis éticas, de ordem causal umas, teleol6gicas as otras; insanciondveis as primeiras, sancionaveis as segundas; leis cegas para o mundo dos valores as fisicas, leis essencialmente axiolégicas as que regem © mundo do Direito ou da Moral. Sio dois mundos, que nio se repelem nem se excluem, mas, ao contrério, se completam, porque na base do mundo da cultura esté sempre o mundo da natureza © jurista ow 0 cultor das cigncias morais niio desprezam o que é natural, mas 0 “compreendem”, accitando as explicagdes que as ciéncias exatas thes propiciam, delas se scrvindo para @ consecucio de seus fins’. 102. Todas as cineias da realidade tém a experiéncia como seu ponto de partida, procurando apreender ou captar aquilo que nela ou por ela se revela. Algumas cincias limitam-se, como vimos, a explicar funcionalmente os fenémenos, enquanto outras implicam uma compreensio de natureza te. 2. ANTONIO ROSMINI SERBATI, Filosofia del Diritto, 1865, 2° ed. vol. I pig. 126, 5. Nao hé, pois, antinomia entre natureza e cultura, e, consoante dizer de EDUARDO SPRANGER, “toda cultura radica no stio da natureza © no complexo vital condicionado por ela", sendo certo que, “em virtude do significado insuflado 3 ‘matéria e aos elementos naturais, o substrato sensivel convertese em algo difers do que constituia a sua mera peculiaridade fisica. A atribuigao de um sentido vs tomando cada vez wdependente do cardter particular do substrato material” (Ensayes sobre la Cultura, pigs. 45 © segs.) Entre ngs, TOBIAS BARRETO talvez tenhs exagerado o coniraste entre malunces @ cultura #0 escrever que esta é "a antitese (sic) da natureza, no tanto quanto cla importa uma mudange no natural, no intuito de fazélo belo e bom" (Questoes Vigentes, ed. do Estado de Sergipe, pe. 140), mas a sua compreensio revelase bem imais nitida do que a de SILVIO ROMERO ou de CLOVIS BEVILAQUA. Sobre teste ssunto, v. nosso ensaio “O Culturalismo na Escola do Resife", nos Anais do I Congresso Brasileiro de Filosofia, Sio Paulo, 1950, vol. 1, pigs. 209 © segs. ¢ em Horizontes do Direito e da Histéra, cit. © ponto de vista de TOBIAS coincide, aliés, com o de vérios culturalistas do Direito, como, por exemplo, MAX ERNST MAYER, que escreve: "S6 a natureza & ‘eega para o valor e, por isso, é a antitese da cultura’, (Filosofia del Derecho, trad, de Legar Lacambra, Ed. Labor, 1957, pég. 81.) 206 leolégica, 2 qual pode determinar uma tomada de posicio estimativa do espirito e, por conseguinte, a formulacao de normas, Do fato se passa a lei, assim como da lei se volve ao fato, Esta passa- gem, no entanto, ndo se realiza da mesma forma, pelo mesmo processo, quando se trata de fato puramente fisico, ou ento, de um fato de ordem cultural, seja econdmico, hist6rico, jurfdico ou moral. No primeiro caso a passagem ¢, de certa maneira, direta, visto como 4 lei fisica nfo faz sendo retratar nos fatos aquilo que neles é constante esté implicito. Explicar, como esclarecemos anteriormente, & tornar explt- cito aquilo que esté implicito no fato. O cientista que no seu laboratério realiza experiéncias quimicas procura revelar nexos objetivos que jé se contém no fato, embora tenha de recorrer logicamente a elementos estranhos de referéncia ou reducdo. Assim sendo, embora se explique um fato por outro, por referéncia ou reducio, a explicacao nao resulta de algo positivamente atribuivel ao sujeito por seu coeficiente de estimativas. A compreensio, que, como jé salientamos, & propria das ciéncias cultu- rais, representa, a0 contrério, um ato positivo de envolvimento do fendmeno, quase que dirfamos de “penetracdo do objeto” para situé-lo no seu sentido total para a existéncia humana. Essa integragéo vetorial ou de sentido pode culminar na determinacdo de leis gerais de tendéncia ou em esquemas ideais e tipificadores de ago, ou entao, em verdadeiras normas de conduta: donde # distingao entre ciéncias culturais puramente compreensivas ¢ ciéncias culturais normativas, E por essa razio que para se atingirem leis, como, por exemplo, as leis juridicas, toma-se necessdria uma tomada de posiedo volitiva perante © fato, tomada de posicdo que constitui momento essencial de sua génese, © que no ocorre no dominio da Sociologia e da Histéria. Em ambos os casos, porém, hé valoragdo e compreensio, pois so todas ciéncias culturals Entre 0 fato natural ¢ a lei fisica nfo existe solucio de continuidade, porquanto a lei sistematiza 0 que se contém implicitamente no fendmeno mesmo. A explicacio é, pois, funcional e insuscetivel de receber “sangdo”, conceito este muitas vezes confundido com a simples idgia de efeito ou de conseqiiéncia J4 no plano das citncias culturais & possivel haver sangio ¢ muitas veres a sangéo é necesséria, quando se trata daquela espécie de ciéncias, cujas valoragées implicam uma escolha e a afirmacao de pautas obrigatérias de conduta Neste ponto julgamos conveniente tratar do problema da saneZo, que Eo correlato de toda e qualquer obrigacio ética. Sancdo é toda consegiiéncia 207 que se agrega, intencionalmente, a uma norma, visando ao sew cumprimento obrigatério, Sango, portanto, & somente aquela conseqiiéncia querida, desejada, posta com o fim especifico de tutelar uma regra. Quando a medida se reveste de uma expresso de forca fisica, temos propriamente 0 que se chama coag@o. A coacao, de que tanto falam os juristas é, assim, uma espécie de sangio, ou seja, a sangdo de ordem fisica. sclarecido, assim, 0 conceito de sangio, perguntamos se ela é com pativel com o plano das ciéncias naturais A primeira vista, parece que sim, que quem desrespeita a natureza sofre uma sangdo. E que nés estamos dando indevidamente a um “feito fisico” 0 nome de sangao. claro que 0 médico, que dé uma dose de arsé- nico superior & resisténcia do doente, provoca um efeito de conseqiiéncias desastrosas. O ndo-cumprimento de uma lei natural implica, necessiria inexoravelmente, em uma conseqiiéncia. Néo devemos, porém, chamar esta conseqtiéncia de sancdo, porque ela esté imanente no processo. No plano da natureza, o efeito jé se contém no fato, resultando da posicdo de certos antecedentes de forma predeterminada. Nao é possivel ou necessaria @ interferéncia de nenhum ato volitivo para que a conseqiiéncia sobrevenha, No mundo ético, a0 contrério, a conseqiiéncia pode sobrevir ou nio, conforme surja ou nd, extrinseca ou externamente ao proceso, uma sancio, que pode consistir tanto na autocritica e reprova¢ao da propria consciéncia (censura individual) como reptidio ou censura social, a qual, como ocorre nos dominios do Direito, pode culminar num ato de coagio, isto é na interferéneia da forga para salvaguarda do bem comum. A coagio juridica pode consistir tanto na pritica de atos que importam prejuizo do trans: gressor (0 protesto de um titulo cambial, por exemplo) como na penhora ‘ou atresto de bens do devedor relapso, ou ainda na perda da propria liberdade, em virtude de sentenca condenatéria criminal. A aplicagio das sangdes, em seus diversos graus, deve estar proporcionada as exigén da justica, como passamos @ examinar. JUSTICA E BEM COMUM 105. Na disctiminagao dos valores‘, demos realee a0 como forga ordenadora da Etica e momento culminante da vida espiritual, pois é s6 tendendo a realizar o que Ihe parece ser o seu bem, em harmonia com os demais, que o homem se revela aos outros ¢ a si proprio. 4. Cf. cap. XVI 208 Ja Aristoteles, no inicio da Politica, nos ensina que 0 homem nao quet apenas viver, mas viver bem. Esta expressio nao deve ser tomada, € claro, no sentido aparente de fruigo de valores materiais, confinada nossa exis tncia entre os horizontes das preocupacdes imediatas. O bem, a que o homem se destina e que the & conatural e proprio, diz respeito a0 seu aperfeigoamento moral, como tinico ente, cujo ser é 0 seu dever ser, como tal capaz de modelarse segundo influéneias subjetivas € sociais, mas mando a sua liberdade instauradora de algo original Sendo um ser, cuja autoconsciéncia exige 0 reconhecimento da corres- pondente dignidade alheia, o bem do homem nio pode deixar de ser inte- gracio de duas perspectivas: a do ego e a do alter. Se, como diz Scheler, o bent consiste em servir a um valor positivo sem prejuizo de um valor mais alto, 0 bem social ideal consistieé em servir a0 todo coletivo respeitandose a personalidade de cada um, visto como evi dentemente a0 todo no se serviria com perfeigéo se qualquer de seus ‘componentes nao fosse servide Na realidade, impde-se preservar 0 bem do individuo como ponto final, como fim a que se deve tender de maneira dominante; mas, a0 mesmo tempo e correspondentemente, & mister salvaguardar e acrescer o bem do todo, naquilo que 0 bem social € condi¢o do bem de cada qual. Ha portanto, dois aspectos do problema do bem ou, por outras palavras, dois momentos de realizagdo do valor do bem — um individual, outro social ‘© bem, enquanto bem do individuo, como fim dltimo dessa direcdo axiol6gica, constitui 0 objeto da Moral, e objetivo iiltimo da Etica. E nesse sentido que Miguel de Unamuno dizia que 0 homem vale mais que toda 2 Humanidade. Néo € no sentido sovioldgico ou juridico. A Moral tende @ apreciar 0 homem naquilo que & especifico ¢ singular da pessoa, expressio de uma subjetividade intocével. © bem, visto como valor social, ¢ 0 que chamamos propriamente de justo, e constitui o valor fundante do Direito. Jé em nossa tese sobre os Fundamentos do Direito, sustentamos duas proposigdes fundamentaie: 1) toda Axiologia tem como fonte o valor da pessoa humana; ¢ 2) — toda Axiologia juridica tem como fonte o valor do justo, que, em dltima andlise, significa a coevisténcia harménica e livre das pessoas segundo proporeio © igualdade © valor proprio do Direito é, pois, a Justia — ndo entendida como simples relagio extrinseca ou formal, aritmética ou geométrica, dos atos humanos, mas sim como a unidade concreta desses atos, de modo a const tuirem um bem iutersubjetivo ou, methor, o bem comum, realizével histo- ricamente como ume exigéneia constante de intercomunicabilidade social 209 A Justica que, como se vé, nao € sendo a expresso unitéria ¢ integramic dos valores, todos de convivéncia, pressupée 0 valor transcendental da pessoa humana, e representa, por sua vez, 0 pressuposto de toda a ordem juridica. Essa compreensio hist6rico-social da Justiga leva-nos a identificd-la com 0 bem comum, dando, porém, a este termo um sentido diverso do que The conferem os que atentam mais para os elementos de “estrutura”, de tuma forma abstrata e estitica, sem reconhecerem que 0 bem comum s6 pode set concebido, coneretamente, como tim processo incessante de composigao de valoragées ¢ de interesses, tendo como base ou fulero o valor condicio nante da liberdade espiritual, a pessoa como fonte constitutiva do mundo cultural A distingZo dos aspectos relatives ao bem enquanto social ¢ a0 bem enquarnto individual evidencia tanto a necessidade de distinguir, como a de correlacionar 0 Direito © a Moral, que constituem as duas partes mais relevantes da Etica. Além da conduta moral e da conduta juridica, existem outras formas de comportamento, que so governadas por outras expresses possiveis do bem, como podemos ver nas chamadas regras de “costumes”, isto é, de convencio social, de trato social, de etiqueta, de clegdncia, que realizam, a seu modo, o valor do bem Em conclusfo, a discriminagdo acima j4 nos habilita a situar a expe: rigneia juridica como: 1) uma experiéncia histérico-cultural; 2) de natureza Gtica; 3) e normativa; 4) que tem como valor fundante o bem social da convivéncia ordenada, ou 0 valor do justo. 104. Nao é possivel tratar aqui de todas as doutrinas que tém pro- curado determinar 0 contetido do bem. Alguns autores prendem-se & linha do pensamento clissico, concebendo o bem como felicidade, ou seja, como 4 realizago daquilo que postula a plenitude do ser e, como tal, a harmonia do individuo consigo mesmo. De maneita geral, poderse-ia dizer que, em tal caso, 0 bem é aquilo a que homem tende por natureza, gracas a0 que representa em seu espirito a nota dominante ou o elemento fundamental, que é a razio. Viver segundo a natureza é viver segundo a razio. Outros autores reduzem o bem & nocdo do til, ou do economicamente apreciavel, ou, entdo, & satisfacdo dos valores mais imediatos da existéncia Se nos colocarmos no ponto de vista do conteiido, haveré tantas concepgses do bem quantas as expresses axiolégicas fundamentais, por- ‘quanto © poeta diré que seu bem consiste na realizacao dos valores esicticos, fenguanto que o homem de negécios traduziré seu ideal em algo de mensuré: vel e vital, Superando, no entanto, as divergéncias particulares de conte‘do, fica sempre de pé a nocio de que bem é aquilo a que todo homem tende, de conformidade com as suas inclinagoes naturais, desde que a forma de agir 210 de cada um seja condigao do agir dos demais numa unidade concreta ¢ dindmica entre as partes © 0 todo. Nao basta que, ao procurar o bem que nos atrai, no causemos dano & outrem, consoante concepedo individualista e cOmoda que consagra 0 isolamento ou a autonomia de cada homem como centro de uma trajet6ria social indiferente & sorte dos demais. Ja o dissemos e vale a pena repetir: © homem deve ser apreciado segundo 0 prisma do individuo, e segundo 0 prisma da sociedade em que ele existe. Sio duas formas ou manciras fundamentais de apreciar-se o problema do bem, marcando, efetivamente, dois momentos de um tinico processo, visto como a colocagao de um envolve, necessariamente, a colocagéo do outro. E nesse sentido que podemos dis- tinguir, mas no separar, 0 estudo do bem em duas grandes

Você também pode gostar