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LUIS AURELIANO GAMA DE ANDRADE* POLITICA URBANA NO BRASIL: O PARADIGMA, A ORGANIZAGAO E A POLITICA (*) Departamento de Ciéncia Politica, Universidade Federal de Minas Gerais. a AE Sob dois aspectos constitui a experiéncia da politica urba- é na, acumulada ao longo dos tltimos dez anos, eixo privilegiado para a andlise politica. Primeiro, por tratar-se de politica nova,’ serve ela de campo de explorac4o para a investiga¢fo de questdes ainda pouco abordadas, concementes 4 propria origem das poli- § ticas: como nasce uma politica? em resposta a que situac6es? » q quem a articula? eas Um segundo aspecto diz respeito 4 insergfo da politica urbana na estratégia maior do desenvolvimento: que papel lhe é assinalado na estratégia? que relagSes mantém com outras politicas, mais diretamente comprometidas com a produ¢4o do desenvolvimento? A anélise da politica urbana encerra ainda maior interesse pelas carac- teristicas do quadro econémico e institucional que Ihes forneceram a mol- dura: i. o regime autoritdrio ii. os fluxos e refluxos experimentados pelo sistema econémico no perfodo iii. o contexto de répida urbanizagfo Uma politica, independentemente de seu objeto material, nfo responde apenas a condicionantes localizados no ambiente externo. Fatores internos, ligados tanto ao planejamento quanto 4 execuc4o, podem afetar tanto o sentido como a direg40 assumidos pela politica. Veio rico de andlise é a propria histéria natural das politicas: como se configuram no tempo os problemas para os quais a politica é 0 remédio? Que efeitos advém dos éxitos e fracassos percebidos? Como evolui o quadro institucional da politica? Quais sfo os agentes principais? O que fazer? Como se compdem interna- mente? A politica urbana brasileira, conforme se mostraré mais adiante, nfo parte de visfo compreensiva do “problema urbano” no pais. Ao contrdrio, tem ela desde o inicio da implantag&o cardter nitidamente fragmentério. Privilegia o aspecto habitac#o, e s6 muito gradualmente anexa novas dreas tais como dgua, esgotos sanitdrios, planejamento de cidades e dreas metropo- litanas. O quadro institucional que lhe corresponde é, por outra parte, ati- pico: a sua frente est4 nfo uma agéncia governamentat, um ministério ou um Orgfo de administragao direta, mas um banco: o Banco Nacional de Habi- taco. E objetivo do presente estudo explorar, nas linhas tragadas acima, alguns dos aspectos que tém constituido o cerne da politica urbana brasi- leira, a partir de 64. Quest6es de relevo, entre as quais ressalta a de uso do 119 solo, ndo serfo tratadas, dadas as limitagdes de pesquisa a que esteve sujeito 0 trabalho. Especial realce é concedido 4 politica habitacional por ter sido ela, de fato, a matriz da politica urbana. Na acertada expresso de Frankenhoff, “a politica de desenvolvimento urbano no Brasil é um rebento do sistema nacional de habitagéo”.? Nasce a Politica Urbana Com a lei n9 4.380, de 21 de agosto de 1964, que institui o Plano Nacional de Habitac%o e cria o Banco Nacional de Habitagfo e o Servico Federal de Habitacdo e Urbanismo, é dado o passo inicial da politica urbana no pais. Por trés das novas medidas estd a inten¢fo de demonstrar a sensibili- dade do novo regime 4s necessidades das massas despertadas politicamente no governo Goulart. Atesta-o a carta enderecada por Sandra Cavalcanti ao Presidente da Repiblica, em que é encaminhada a proposta do Plano com a sugestS0 para a criagfo do BNH:? “Aqui vai o trabalho sobre o qual esti- vemos conversando. Estava destinado 4 Campanha Presidencial de Carlos, mas nés achamos que a Revolugao vai necessitar de agir vigorosamente junto as massas. Elas esto 6rfas e magoadas, de modo que vamos ter de nos esforgar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solucdo dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuard de forma amenizadora e balsdmica sobre suas feridas civicas”.* A memoria das tenses sociais nas favelas, a suposta facilidade com que as populacOes marginalizadas tinham sido mobilizadas pela esquerda e o potencial de conflito que representavam para 0 novo regime, constituiam outro elo do argumento politico que justificou as medidas tomadas. No dizer de outro participante da criagfo do BNH, 0 “descompasso entre 0 pais real e suas instituig6es caracteriza-se por vdrios fenémenos, e dentre estes destacamos a mobilizag4o social e ecolégica das massas rurais e a vacancia politica que essa migraco inevitavelmente acarreta, j4 pela ruptura de vinculos tradicionais de comando partiddrio e eleitoral, j4 pelo agrava- mento das condigdes de vida urbana que essa nova camada social, sem preparo para a vida urbana, e por isso mesmo marginalizada, produz: o desequilibrio ocasionado pelo maior peso eleitoral que essas massas desassistidas, social- mente ressentidas e desprovidas de liderangas auténticas, viriam trazer a0 resultado final das escolhas pelo voto, resultando dai um inevitdvel alarga- mento do campo da demagogia. Por isso compreendeu o governo de entéo que a simples busca de novos esquemas politicos, sem que antes se desse a essa populagéo marginalizada, pelo menos, um encaminhamento de solugSes 120 para os impasses econdémico-sociais a que chegara o pais, nunca se consti- tuiria numa férmula real para a solugdo do problema politico, que afinal tinha no conjunto de condigdes sécio-econémicas sua principal origem. Eis porque fez o Presidente Castelo Branco do plano habitacional o primeiro grande plano de governo”. O Plano Nacional de Habitag¥o, e com este o BNH, surge, assim, num momento em que é crucial para o novo regime dar provas de que é capaz de atacar problemas sociais. A percep¢fo é de que hd “uma vacdncia de lide- rangas”, de que “‘as massas esto érfas” e “‘socialmente ressentidas”’; é preciso pois mostrar que 0 novo governo é receptivo a suas necessidades: que pode, sem a demagogia da esquerda, agir pronta e seguramente em beneficio delas. Também deve a criagio do IBRA, Instituto Brasileiro de Reforma Agraria, ser vista como fruto da conjuntura de implantagAo do regime. A este interessava fundamentalmente garantir legitimidade junto 4s massas. Os ecos do populismo ainda nfo estavam de todo afastados do cendrio polt- tico. A politica urbana, como de resto a politica social do perfodo, nasce antes de tudo como filha esptiria do regime extinto em 64. A repercussfo do periodo pré-64 nfo se fez sentir apenas na prioridade concedida 4 politica urbana. A configura¢4o que o problema assume aos olhos do novo governo guarda estreita correlagio com os eventos politicos de antes de margo de 64. A escolha de habitag&o como o eixo da politica se deveu principalmente a ter sido sob o aspecto das tensOes nas favelas, das massas disponiveis, das migragdes macigas para as cidades, que o problema urbano ganhou visibilidade e contomno nos inicios dos anos sessenta. A filosofia da casa propria, outro elo importante na politica do BNH, também encontrou na teoria das massas disponiveis a sua motivag4o principal. No dizer de um dos artifices do sistema, o Ministro Roberto Campos, “a solugio do problema pela casa propria tem esta particular atracAo de criar o estimulo de poupanga que, de outra forma, nfo existiria, e contribui muito mais para a estabilidade social do que 0 imével de aluguel. O proprietdrio da casa prépria pensa duas vezes antes de se meter em arruacas ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem”.® Se por uma parte a politica urbana emerge com 0 propésito de contri- buir para “estabilidade social’ ou para criar ‘aliados da ordem’, nao quer dizer que tenham sido estes os tinicos e exclusivos efeitos perseguidos. A geragio de novos empregos, a mobilizag4o da construcfo civil para atenuar a crise econ6mica e as vantagens taticas de sua utilizagdo para sanar crises localizadas tiveram peso ponderdvel na concepg4o da politica urbana e foram desde 0 inicio percebidos como um dos seus papéis principais: “no quadro de desenvolvimento urbano brasileiro, 0 problema mais importante nfo era a casa, era a abertura de oportunidades de emprego para absorvermos as 121 massas de trabalhadores semi-especializados, de oportunidades para mobili- zarmos os escritérios de engenharia, de planejamento, de projetos, de arqui- tetura e dar trabalho ds firmas de construgdo civil e 4 industria de construgao, forgas paralisadas na economia brasileira””.” O desdobrar da politica tornard explicito que os objetivos buscados através da politica urbana, via BNH, n4o tinham a complementaridade suposta. Ao contrdrio, revelar-se-4o incompativeis e, até certo ponto, irrecon- cilidveis: a realizago de um s6 se alcanca mediante o sacrificio do outro. A medida que se distancia de sua origem, a politica urbana, por outra parte, vai gradualmente perdendo o cardter social e politico que a inspiraram. Esvaziadas as eleigdes de sentido politico, extintos os partidos politicos e desmobilizadas as massas, afasta-se o perigo populista e removem-se da arena politica os Ultimos vestigios do periodo pré-64. Se estes tinham forne- cido o impeto inicial da politica, provaram no entanto nfo ter nem a forga, nem a permanéncia necessdria para que o problema fosse efetivamente enfren- tado. O documento que encaminhou o Plano Nacional de Habitag4o ao Presi- dente Castelo Branco, refletindo o clima da época, chamava a atengdo para 0 predominio do objetivo social sobre 0 econdmico e alertava: “é preciso nfo abandonar a populac4o favelada. Na realidade, ela é muito maior do que se vé nas favelas pois a elas se somam as casas de c6modos, as 4guas-furtadas, os pordes etc. Essa gente tem um poder aquisitivo minimo, mas é gente. Para eles deverd ser mantido esse Fundo de Assisténcia Social previsto no texto de forma ampla, para ser posteriormente estudado e regulamentado. Se essa faixa de populagfo nfo for atendida, o Plano ficard falho. Poderd ajudar a construg4o civil do pais a se recuperar; poderd atuar brilhantemente na aber- tura de frentes de trabalho; poderd melhorar as empresas médias e pequenas de produg&o de material de construg4o e poderd dar destino melhor 4 capaci- dade de poupanga dos mais bem aquinhoados. Mas, sem atender a faixa prole- téria (salério minimo), terd fracassado no seu objetivo social. Os recursos do Plano serfo fatalmente desviados apenas para os que suportarem os énus da compensag&o inflaciondria a ser instaurada”’® O BNH: o que fez, o que faz Em seus 11 anos de existéncia passou o BNH por trés fases distintas: a primeira, de 64 a 67, corresponde a sua estruturag4o; a segunda, de 67 a 71 € caracterizada por sua atuacfo em termos de banco de primeira linha; finalmente, a terceira, de 71 em diante, corresponde 4 reestruturagdo do BNH, que passa a funcionar em moldes de banco de segunda linha, assumindo em escala crescente o papel de agente principal do desenvolvimento urbano do pais.’ 122 1. A fase de implantagéo Institufdo através da Lei NO 4.380, de 21/08/64, o BNH é¢ investido nas fungdes de érgfo central dos Sistemas Financeiros da Habitac&o e do Sanea- mento, com competéncia para “orientar, disciplinar e controlar o Sistema Financeiro da Habitag4o” para “promover a construg4o e a aquisigfo de casa propria, especialmente pelas classes de menos renda”. O pardgrafo unico do artigo 17 da mesma lei vedava-lhe “operar diretamente em financiamento, compra e venda ou construgdo de habita¢4o”. Tais fungdes deveriam ser exer- cidas pelos agentes executivos do sistema. Sob trés aspectos representa o modelo BNH uma inovacao na poli- tica habitacional. Primeiro, trata-se de um banco, ao contrdrio das solucdes anteriores baseadas na Casa Popular e nas caixas de peciilio e érgaos previ- dencidrios. Segundo, os financiamentos concedidos prevém um mecanismo de compensagdo inflaciondria, a corregdo monetéria, que reajusta automati- camente os débitos e prestagSes por indices correspondentes as taxas da inflagdo. Terceiro, constitui um sistema em que Se busca articular o setor publico, coma fung4o de financiador principal, com o setor privado, a quem compete, em ultima andlise a execugdo da politica de habitades. O modelo parece assentar-se nos pressupostos de que: i. solugdes subsidiadas, tipo Casa Popular, levam inescapavelmente 4 politica clientelistica; ii, a capacidade administrativa do Estado é inferior 4 do setor privado. iii. a centralizagfo normativa e a descentralizagfo executiva, baseada esta Ultima no interesse préprio dos agentes executivos seriam condig6es apropriadas para assegurar a eficiéncia do funcionamento do sistema. Conforme se veri mais adiante, as inovag6es introduzidas pela nova politica habitacional, ao invés de lhe facilitarem a realizac4o dos objetivos acentuaram ainda mais o conflito entre eles. A opgdo por uma base empre- sarial de atuagdo, se eliminou 0 risco do distributivismo politico, na politica habitacional, tornou ainda mais dificil 0 acesso das camadas de renda baixa 4 casa propria. As tens6es entre objetivos acrescentou-se uma outra, de efeito talvez mais profundo: o conflito entre meios e objetivos. Como realizar obje- tivos tio diversos como os perseguidos pela politica habitacional com um Gnico e mesmo instrumental de politica? Como garantir atratividade para os empresdrios do setor nos investimentos destinados as populagdes de baixo poder aquisitivo, sem onerar excessivamente a casa? Como assegurar 0 acesso 4 casa propria, por parte das classes baixas sujeitas na sistemdtica BNH 4 123 corregéo monetéria, se, em decorréncia da politica maior do desenvolvimento, optou-se pelo congelamento dos saldrios? Os impasses a que se verd submetida a politica habitacional decorrem, em parte, da discrepancia entre os fins, tornados explicitos, e os meios efeti- vamente adotados para implementdos. As linhas empresariais de atuagio, aliadas 4 corregfo monetéria, se impedem a descapitalizagdo progressiva do BNH, evitam um sistema de favoritismos de ambito nacional e reduzem os tiscos de corrupgfo, também impedem que os mutudrios de minguados recursos possam se beneficiar da politica. Além destes aspectos, ao fazer do sistema financeiro a pedra angular da politica habitacional, o modelo BNH criou grupo de pressfo fortissimo, representado pelos construtores, bancos, financeiras, associagSes de poupanga e crédito imobilidrio, que dificilmente embarcariam em politica que lhes contrariasse os interesses. A lentidfo das respostas do BNH a mudangas conjunturais — sobretudo as que requerem alterag6es na sistemdtica financeira — talvez encontre parte de sua explicagfo na’ago dos grupos de pressdo, formados pela propria politica habitacional. 2. Implantando a maquina: a segunda fase Com a designagféo do BNH para gestor financeiro do Fundo de Garantia por Tempo de Servigo, criado através da Lei n? 5.107 de 14/9/66, supera-se a escassez de recursos que ameagou a politica habitacional em seus primeiros dois anos. O Fundo, constituido por 8% dos saldrios pagos mensalmente, passou a ser a fonte principal de financiamento da politica. S6 muito recentemente, em outubro de 75, seria ele superado pelos recursos provenientes das cader- netas de poupanga e letras imobilidrias.’° N&o era a existéncia de recursos 0 tinico problema enfrentado pelo BNH. A curta experiéncia dos seus primeiros dois anos havia j4 mostrado problemas operacionais de monta. O mecanismo das hipotecas, por meio do qual eram repassados os recursos ao empresério — 0 iniciador, no jargfo do BNH — apresentava distorgSes graves, ocasionando inadimpléncia, atrasos e dificuldades de financiamento. Pela sistemdtica de hipotecas, o iniciador deveria apresentar 0 projeto de investimento a ser financiado contendo detalhado estudo de viabilidade técnica e financeira junto ao BNH. Este, se satisfeitas as condigdes de financiamento, assinava uma ‘“Promessa de Compra e Venda de Hipotecas”, através da qual assegurava ao empresdrio a compra dos créditos hipotecdrios gerados com a venda do imével. Com a Promessa de Compra e- Venda de Hipotecas, o iniciador levantava junto ao financiador, outra figura do sistema, 124 geralmente banco, os recursos necessdrios 4 construgfo. O financiador, por seu turno, refinanciava os recursos por ele concedidos ao iniciador junto ao proprio BNH. Construido o imével e vendidas as unidades, o iniciador liqui- dava seu débito junto ao financiador e este, por sua vez, junto ao BNH, que se transformava em detentor dos créditos hipotecdrios. As dificuldades com tal sistemdtica residiam em dois pontos bdsicos: o valor dos iméveis e os percentuais do financiamento. O teto m4ximo para o valor de iméveis era de 500 sal4rios minimos, enquanto que o percen- tual mdximo de financiamento concedido era fixado em 80%. Ao adquirente cabia completar os 20% do valor do imével com poupanga prépria. Iméveis que excedessem o valor de 500 saldrios teriam de ter a diferenca financiada ou pelo comprador ou pelo vendedor. Resolugdes posteriores alteraram a mecanica e os limites de financia- mento: a de n9 35/68 dividiu o pais em 4 regi6es e fixou limites percentuais de financiamento por valor do imével e por localizacfo. Com esta medida unidades residenciais do mesmo valor passavam a ter diferentes percentuais de financiamento, dependendo da regiffo em que estavam situadas. A de n9 48/69 fixou em 52% o percentual financidvel diretamente pelo BNH. Caberia ao iniciador ou ao mutudrio complementar o financia- mento. A alteracfo foi posteriormente revista pelas dificuldades de comer- cializagfo encontradas. Criou-se, para sanar tais problemas, 0 mecanismo das segundas hipotecas, através do qual agentes do sistema, sociedades de crédito imobiliério, assumiriam com recursos préprios o financiamento de 28%, cabendo ao mutuério os restantes 20%. A pratica do sistema continuou a revelar dificuldades. Prestag6es teriam de ser pagas em dois lugares, correspondendo 4 primeira e segunda hipotecas, © sistema financeiro nfo respondeu 4 nova sistematica e os iniciadores enfren- tavam dificuldades de obter financiamento para os 28%. Dobrando-se tais dificuldades, o BNH decide por fim assumir ele préprio 0 financiamento dos 28%, correspondentes a segunda hipoteca. N&o foi apenas no tocante 4s modalidades de financiamento que a pol{tica habitacional enfrentou problemas. Mais graves, e de maior reper- cussfo social, foram os referentes 4 aplicagfo dos mecanismos de compen- sagfo inflaciondria. Institufda com a lei que criou o Plano Nacional de Habitagdo, a correg4o monetdria buscava proteger os recursos do sistema de descapitali- zago ocasionada pela inflagfo. A administragfo da corre¢fo provou nfo ser tarefa simples e exigiu adaptagSes e mudancas, que s6 muito lentamente foram adotadas, a despeito da grita generalizada. Incidia a corregfo tanto sobre o saldo devedor como sobre as pres- tagdes. A sistemdtica adotada para o reajuste das prestag6es inicialmente, 125 o chamado plano B, previa corregSes a cada trés meses, prazo em que era corrigido o valor da UPC, Unidade Padrao de Capital, a “moeda” do BNH. Parecia Idgica a forma de reajuste, exceto por um ponto capital: os saldrios sofriam alterag6es em bases anuais. A criacfo dos planos A e C, que previam o reajuste anual das prestagSes 60 dias apés a decretago do saldrio minimo, o segundo, se resolveu o problema das prestag6es, deixou a desco- berto ainda a séria questo do saldo devedor. Sobre este incidia também a corregfo monetéria o que acarretava a anomalia de, terminados os paga- mentos das prestagOes, nfo se ter liquidado ainda o débito. Nestes casos, previa a sistemdtica pagamento de prestag6es por periodo de até 50% dos prazos iniciais do financiamento. Com a resolugfo n? 36/69, é criado o Plano de Equivaléncia Salarial que estabelece um numero fixo de prestag6es eliminando de vez o problema. Se, findo o pagamento das ‘prestagOes, o mutudrio ainda tiver saldo devedor serd este liquidado automaticamente pelo Fundo de Compensagfo de Va- riagGes Salariais, estabelecido pela resolugao n9 25/67. A crise por que passou a politica habitacional no perfodo deixou a descoberto os pontos de vazamento do sistema. A par das mudangas opera- cionais descritas acima, tém lugar, ainda no perfodo, os primeiros passos que levarfo o BNH na diregfo de uma politica de desenvolvimento urbano. A lei que o criara previa atuag4o também nas dreas de saneamento: o sistema era de habitago e saneamento. A expansfo das atividades do BNH nfo se deu, todavia, como mero resultado do cumprimento de dispositivo legal. A experiéncia dos primeiros anos tinha mostrado que nfo bastava apenas construir casas: era preciso doté-las de infra-estrutura adequada. Os conjuntos habitacionais eram alvo de criticas precisamente por lhes faltarem tais requisitos. O abandono, a inadimpléncia e os atrasos se multiplicaram tanto em resposta 4 corre¢fo monetdria como em protesto contra a inexisténcia de condig6es m{nimas de infra-strutura. Nao foram poucos os conjuntos ope- térios que cedo comegaram a apresentar sinais de répida deteriorag4o das casas e do ambiente. Antes de tomar as primeiras medidas que o levariam a entrar mais decididamente na politica de desenvolvimento urbano, havia jf o BNH ultrapassado os limites estritos do territério da politica habitacional. Em 1967 tinha sido criado o FIMACO — Programa de Financiamento de Material de Construg4o, com o qual se pretendia superar os pontos de estrangulamento gerados pela oferta insuficiente de materiais de construgio. OQ FIMACO compreendia os seguintes subprogramas: a) “RECON — financiamento e refinanciamento do consumidor de materiais de construgfo0; 126 b) REGIR — financiamento e refinanciamento do capital de giro de produtos de materiais de construgio; c) REINVEST — financiamento ou refinanciamento do investimento do ativo fixo das empresas produtoras, transportadoras e distribui- doras de material de construcfo; d) REPAT — financiamento ou refinanciamento de projetos de assis- tencia técnica, objetivando a ampliacfo, racionalizagéo das empre- sas” Concebido para eliminar os entraves da politica, representados pelo déficit de materiais de construg4o, o FIMACO termina por se converter na prdtica em benesse de construcdo civil. Com os recursos dos 8% do Fundo de Garantia reduzem-se ao minimo os riscos e incertezas que poderiam afetar as operag6es no setor, tornando-o, sob este aspecto, mais atraente e rentavel. Em 68 é institu{do o primeiro programa na drea de saneamento, o FINASA — abrangendo os seguintes subprogramas: a) “FICON — financiamento suplementar para controle da poluig&o hidrica; b) FIDREN — financiamento para implantag4o ou melhoria de sistemas de drenagem que visem ao controle de inundagdes em niicleos urbanos; c) FISAG — financiamento suplementar para abastecimento de dgua; d) REFINAG — financiamento ou refinanciamento para implantag4o, ampliagao ou’ melhoria dos sistemas de abastecimento de dgua; e) REFINESG -— financiamento ou refinanciamento para implantag4o ou melhoria de’ sistemas de esgotos que visem ao controle da polui- 40 hidrica”.? Tais programas foram justificados n&o porque desejasse (0 BNH) “ampliar suas atividades ou porque julgasse que havia resolvido o problema da casa prépria”. . . mas porque de “pouco serviria estar financiando a cons- truco de casas sem que os Estados tivessem recursos pata doté-las de insta- lagdo de d4gua e saneamento adequados. Além disso, é preciso nfo perder de vista que o BNH tem. necessidade de fazer girar o seu dinheiro, o que pode levéto a ansiosamente catar novos programas. O FINASA seré o embrifio do PLANASA — Plano Nacional de Saneamento, criado em 1970. 3. O BNH de hoje As mudangas que iria experimentar a politica habitacional no periodoy de 71 em diante dariam seqiiéncia aos tragos principais das alterag6es insti- tuidas de 67 a 70. 127 No tocante aos aspectos operacionais, 0 fato de maior relevo seria 0 abandono da tabela Price e a adogo do Sistema de Amortizagao Constante para 0 cdlculo das prestagdes. Completava-se assim a série de medidas inicia- das em 67 e que visavam atenuar os efeitos mais indesejdveis da correg4o monetéria. A virtude do novo sistema estava na eliminago da capitalizago a juros compostos. Além disso, sob a nova sistemdtica as prestag6es teriam valores decrescentes, 0 que, esperava-se, contribuiria para desanuviar as criticas ao BNH. Outros inconvenientes eram, no entanto, gerados: a prestag4o inicial era substancialmente mais elevada do que sob a sistemdtica da tabela Price. A saida encontrada, de vez que os financiamentos sfo concedidos tendo em vista a renda, e esta é calculada em raz4o da primeira prestagdo a ser paga, foi ampliar os prazos do financiamento. A mudanga de maior significado foi, entretanto, a transformag4o do BNH em banco de segunda linha. A experiéncia dos primeiros anos tinha deixado o BNH exposto a criticas e a represdlias dos adquirentes de casa prépria. Se as primeiras ndo alcangavam ressonancia politica, e nfo chegavam a constituir ameaca 4 politica adotada, o mesmo no ocorreria com a repre- slia dos adquirentes. Por ser banco, isto ¢, por ter necessidades de remunerar © capital investido, era o BNH vulnerdvel a saida encontrada pelos mutudrios: abandono do imével, atraso de pagamentos e desisténcias. Onde 0 voice falhara, pelas caracteristicas autoritérias do regime, 0 exit mostrava ser a tesposta eficiente.'? A transformago do BNH em banco de segunda linha significou ‘precisamente isto: a transferéncia do Gnus externo da politica. Os recursos passavam a ser repassados diretamente aos agentes, assumindo estes total responsabilidade junto ao BNH. Em contrapartida pela transfe- téncia do risco, receberam os agentes direitos a processar 0 mutudrio inadim- plente, recalcular a divida para revenda de iméveis ¢ até mesmo alugé-los. A expansfo das atividades “urbanas” do BNH recebeu, por outra parte, impulso expressivo a partir de 71. Em 72 é criado o projeto CURA — Comu- nidade Urbana para Recuperag4o Acelerada — que se propde a racionalizar © uso do solo urbano, a melhorar as condigdes dos servicos de infra-estrutura das cidades e a corrigir as distorg6es causadas pela especulago imobilidria. Tais metas deveriam ser atingidas mediante a realizagdo de numerosas medidas visando a: i, eliminar a capacidade ociosa dos investimentos urbanos; ii. racionalizar investimentos de infra-estrutura; iii. promover o adensamento da popula¢4o urbana; iv. integrar a execug4o de obras urbanas. Através de medidas fiscais, de planejamento e programa de obras buscava o projeto reduzir os custos dos servigos urbanos, onerados por falhas 128 criadas na malha das cidades pelos terrenos desocupados, 4 espera de valori- zagAo imobilidria. Para tanto sua mecdnica exigiria a ordenaco das diversas dreas a que, sucessivamente, 0 programa se aplicaria, num mesmo municipio, dando-lhe caréter plurienal. Nas dreas beneficiadas, os lotes vagos seriam taxados pro- gressivamente, de tal forma que o imposto territorial fosse elevado, a partir do primeiro ano apés 0 término das obras até o quinto ano, gradativamente, até atingir 1% do valor de mercado do imével. ' Tal condigfo assenta-se no dificil pressuposto de maquinaria adminis- trativa local eficiente, que proceda com regularidade, em pequenos inter- valos, 4 reavaliagdo dos iméveis. A experiéncia tem mostrado, entretanto, que o imposto sobre propriedade imobilidria é dos mais ineficientes, precisa- mente pela atualizagdo, que exige mdquina administrativa pesada para ser efetivada, e leva, nfo raro. pela propria natureza da avaliag4o, a inequidades. ~ O que se pode prever, e alguns exemplos iniciais da aplicag4o do projeto © sugerem fortemente, é que: a) poucas municipalidades terfo condig6es de embarcar em programas CURA plurienais, como suposto na “l6gica” da politica, pois o retorno dos investimentos via tributagfo é duvidoso; b) os efeitos anti-especulativos sfo também incertos, pois a recente valorizagio'* de terrenos nas grandes cidades brasileiras, que seria com grande probabili- dade muito acrescida nas dreas privilegiadas com o CURA, pode tomar bom negécio a retengfo de lotes para fins especulativos: 0 provdvel aumento do, imposto territorial, mesmo com atualizagao cadastral e avaliagdo efici- entes, seria Gnus insignificante para o especulador, diante do valor adquirido pelos lotes. Além disso, o projeto tem servido, também, a outros propésitos. Atraidas pela possibilidade de contarem com recursos para obras, muitas prefeituras se véem levadas pelo BNH a aderir ao PLANASA — Plano Nacional de Saneamento —, como condig&o para ingressarem no projeto CURA. Tal tequisito, aliado 4s pesadas condigGes de financiamento que envolvem corre¢do monetéria, tornam o CURA nem sempre vantajoso, especialmente para os municipios pequenos, que no dispdem de base industrial de arrecadacao. Em 73, reconhecendo talvez o fracasso dos programas de habitagfo para populagdes de renda baixa, tem inicio o PLANHAP — Plano Nacional de Habitacfo Popular, que se propde o ambicioso objetivo de “no prazo de 10 anos, eliminar o deficit de casa prépria, com infra-estrutura urbana e comunitdria, das familias com renda entre 1 e 3 saldrios minimos e resi- dentes em cidades de 50 mil ou mais habitantes ou em outras de alta taxa de crescimento demogréfico”.15 Apoiava-se o PLANHAP no recém criado SIPHAP — Sistema Financeiro de Habitag4o Popular —, constituido por recursos do préprio BNH e governos 129 estaduais ¢ municipais, Fundos estaduais - FUNDHAPs — sao institufdos em cada Estado “com a finalidade de garantir permanentemente recursos indispensdveis 4 oferta continua e adequada de habitagSes populares”.! A maquinaria da politica habitacional expande-se vigorosamente no periodo, caracterizando-se pelos seguintes tragos: i. a cada novo organismo central corresponde sempre um similar estadual; ii. em cada Estado busca-se sempre centralizar os contatos em torno de um unico interlocutor, via de regra, uma instituigfo nova, de Ambito estadual, com especialidade numa faixa especifica da poli- tica; iii, requer-se sempre contrapartida financeira dos Estados, 0 que se efetiva com a criagfo de fundos especiais, administrados em moldes BNH; iv. os financiamentos concedidos, qualquer que seja a sua aplicagfo, est&o sujeitos compulsoriamente a sistemdtica da correg¢fo mone- taria. Tal maquinaria, conforme se verd mais adiante, tem virtudes e defeitos e nem sempre facilita a consecug4o dos objetivos da politica. A centralizagfo alcangada, se assegura universalidade de critérios, funciona, nfo raro, como camisa de forga, levando a soluc4o de figurino unico que nfo leva em conta as “medidas” das populag6es ¢ Estados. 4. O balango da politica: o BNH na berlinda Avaliar uma politica é tarefa drdua, de dificil soluggo. Uma politica busca, muitas vezes, a realizag4o de mais de um objetivo, serve a numerosos propésitos e leva, com freqiiéncia, a efeitos e resultados nfo antecipados. As metas perseguidas nfo tém, usualmente, a coeréncia pretendida, nem horizontal, com outras politicas, nem vertical, através do tempo: objetivos sfo contraditérios, nfo complementares entre si e podem ou nfo variar ao longo da politica. Além disso, o que é explicito nem sempre tem corres- pondéncia em comportamentos. Nao raro, as metas sfo a retérica da politica. Metas e objetivos nfo constituem a tinica fonte de incerteza para a avaliago, Ainda que se pudesse resolver as quest6es de quais sfo as metas efetivamente buscadas com a politica, como devem ser ordenadas entre si, € que peso deve ser distribuido a cada uma delas, restaria ainda o problema crucial de como se distribuem os custos e beneficios. Ndo basta apenas ‘comparar objetivos propostos com realizac6es alcangadas para ter a avaliago da politica. Comparag6es de antes e depois, simples na aparéncia, envolvem 130 problemas de dificil superag4o. E preciso assegurar-se de que os resultados alcangados se devem as medidas tomadas. A causalidade das politicas tem de ser demonstrada. Por outra parte, os meios utilizados para implementar os objetivos formam um filfo rico para medir o acerto das politicas: é a solugfo adotada a resposta que melhor atende aos objetivos pretendidos? Que constrangi- mentos traz em termos de custos e acesso aos beneficios? No tem o instrumental das politicas o cardter de neutralidade que freqiientemente se Ihe atribuem. Ao contrdrio, constitui ele locus eminente- mente politico. E na definigfo do “como” que se fazem as escolhas bdsicas das politicas. A avaliag4o nfo pode, pois, deixar 4 margem a questdo dos meios, sob pena de se restringir a constatagdes empiricas: o quanto das metas foi atingido. As consideragdes aqui expendidas nfo tém pretengOes a avaliar a politica habitacional no sentido acima descrito. Constituem, antes, apre- ciagdo impressionista, espécie de balango critico da politica. Trés conjuntos de indagaces servem de guia para o balanco das reali- zag6es da politica habitacional. O primeiro diz respeito 4s escolhas da politica, as relagdes entre objetivos e a ligagfo destes com a estratégia maior de desenvolvimento. Como tém sido cumpridas as “promessas” da politica? Como se tém “resolvido” na prdtica as tensGes entre “casa prépria para populacdes de renda baixa” e “mais casas para mais emprego”’? Que ligagdes hd entre o sentido da politica e0 “estilo” do desenvolvimento imprimido ao pais? O segundo tem que ver com as adaptagGes sofridas pela politica habita- cional: como “aprende” um 6rgfo como o BNH? Como reage as mudangas na conjuntura politica? Que fatores penetram a carapaca da politica e pro- duzem mudangas? O terceiro, finalmente, trata do impacto da politica habitacional sobre outras politicas de bem-estar: que conseqiiéncias traz para outras politicas a difusio do “‘paradigma” BNH? O que é bem piblico e bem privado, apés a politica habitacional? O Saldo da politica O confronto de promessas com realizages na politica habitacional nfo deixa margem a diividas; o saldo é negativo. N&o quer dizer que nfo se tenham alcangado resultados positivos, mas, a0 contrdério, que nfo tiveram eles 0 efeito necessdrio para 0 éxito dos objetivos a que se propunha a poli- tica. Em 11 anos de BNH construiramse 1.143.450 habitag6es, contra 131 120.000, de 1939 e 1964. Tais cifras, apontadas muitas vezes como evidéncia da superioridade da solugao BNH, poderiam pender a balanga em favor da politica habitacional pés-64, nfo fora as qualificagdes a que est4o sujeitas para efeitos de uma comparacfo adequada. O montante das habitag6es construidas, per se, nfo € evidéncia de que se tenha resolvido mais ou menos do problema habitacional, nos perfodos de 39-64 e 64-75. O que importa nfo sfo as quantidades absolutas, mas a telagdo entre oferta-unidades construjdas e demanda. As diferengas de popu- lagfo, o grau de urbanizacfo e o préprio tamanho das cidades nos dois perio- dos poderiam perfeitamente contrabalangar a vantagem numérica. A inexis- téncia de dados sobre a demanda atendida nos periodos torna, entretanto, impossivel qualquer comparac4o. Além dessas considerag&es, passou-se com o BNH da solug4o da casa subsidiada — em que o Estado assumia o papel de corretor de desigualdades — 4 solugdo nfo diversa da de mercado com as distorgSes que esta acarreta. Tal é 0 quadro do BNH em contraste com o que existia antes dele. Que dizer, entretanto, quanto ao seu desempenho em relacfo aos seus proprios objetivos? Foram estes alcancados? O que predominou: o econé- mico ou social? Nao foi o objetivo social o vitorioso, conforme se pode depreender do Quadro’ 1. Perto de 70% de todas as unidades construfdas com recursos do sistema BNH, até o final de dezembro de 1974, destinaram-se 4s camadas de renda alta da populac#o. Tais unidades foram edificadas através dos programas RECON, SBPE e Médio, que atingem apenas a populag4o de renda superior a 8 salérios minimos. A distorg&o é ainda maior se considerarmos que os dois primeiros programas tém exigéncias de renda e envolvem investimentos substancial- mente mais elevados que as do Médio. O primeiro refere-se a financiamento de materiais de construgdo, enquanto que o segundo compreende as unidades construidas pelo setor privado, empresas ou pessoas fisicas. Por outra parte, a mudanga de énfase da politica habitacional estd claramente configurada nos dados. A faixa de habitagfo popular, onde se concentrava 0 grosso das construgGes em 67, perde rapidamente posi¢ao. Em 72 € jé inferior em numero as construg6es via SBPE; ao final de 74 cons- titui menos da metade do ntimero de habitag6es construidas pelo setor privado para as classes de renda elevada. Tal fato tem paralelo na mudanga da retérica da politica observada anteriormente. Enquanto os primeiros documentos do BNH — especialmente © que antecedeu a sua criag4o — davam énfase a casa propria para as popu- lag6es menos privilegiadas, os dltimos ressaltavam o papel econémico da politica: “A op¢fo Revolucionéria: Habitagdo, meio e nao fim”.'” 132 €€l Quadro 1 BNH: UNIDADES CONSTRUIDAS, 1967-1974 Até 1967 % Até 1948 % Até 1969 % Até 1972 % Até 1974 % Popular 108.993 66,5 74.528 44,5 62.902 36,9 183.393 22,1 205.537 18,6 Econémico 4.821 3,0 19,245 11,5 25.635 15,1 197.450 23,8 224.254 20,3 Médio 8.479 5,1 2.621 16 9.449 56 96.549 11,5 121.061 10,9 SBPE 40.994 25,0 67.398 40,3 63.514 37,3 | 286.355 34,5 441,529 39,9 RECON 551 0,4 3.553 21 8.618 5,1 66.962 81 112.975 10,3 Total | 163.789 | 100 167.345 100 170,118 100 830.709 1.105.356 | 100 100 FONTE: BNH Papa Milhdes (1967-1968-1969) e Boletim de Informagées de Resultados BNH (Dezembro 1972-1974) Entretanto, a énfase na habitag4o popular nos primeiros anos nfo quer dizer que se tinha atingido a meta social naquele periodo, vindo-se a perdéla posteriormente. Optou a politica por atuag%o em faixas de renda que excluia de uma s6 vez 50% de toda a populacgo do pais. A comparacdo do perfil da distribuigdo da renda com as exigéncias dos varios programas mostra bem o problema. . O programa de habitagio popular, o que exigia renda mais baixa, abrangia apenas populagSes de 1 a 3 sal4rios minimos. Conforme mostra 0 Quadro 2, somente 50% da populag4o brasileira satisfazia a tais condi¢6es em 1970. Sob o prisma social, a politica habitacional teve efeito perverso. Conce- bida para atenuar desigualdades sociais termina ela por acentud-las mais ainda, concorrendo para agravar a concentraggo da renda no pais. Vista em seus proprios termos, faltou 4 politica habitacional imagi- nagéo — ou deciséo politica, para encontrar solugao que melhor se amol- dasse 4s condigdes das classes baixas. Desconheceram-se os mecanismos espontaneos de que langam mido elas para atender suas necessidades habi- tacionais. Em conseqiiéncia, limitou-se a politica 4 agdo “tapa-buraco”, construindo aqui e ali conjuntos populares, arranhando mais que enfren- tando o problema, Quadro 2 PORCENTAGEM DA POPULACAO INCLUIDA E EXCLUIDA DOS FINANCIAMENTOS DO BNH — 1970 Renda Familiar do da Populacdo com Relacdo Percentil (Cr$ por més) Poni ee rancomento do BNA 109 51,59 209 81,20 . 309 114,60 Populaggo Exclufda 409 152,85 509 188,80 609 260,30 ° 2 | ORs rh “909 924,50 1009 2.500,00 * Salario Mfnimo em 1970 — Cr$ 187,50 FONTE: Censo Demografico — Brasil 1970 — FIBGE 134 Nao cabe dividas de que a correg4o monetéria e o modelo empresarial tiveram peso ponderdvel no fracasso da politica. Os juros mais baixos, os prazos mais longos e o financiamento maior no tiveram, entretanto, 0 efeito desejado na resolug4o do problema. A quest&o nfo era simplesmente a de encontrar “dosagem étima” de componentes, mas a de desenvolver “feitios” novos de solug4o, mais apropri- ados as populag6es alvo. O fracasso se deveu, em larga medida, a rigidez do modelo BNH. Por que casas e nfo lotes? Por que construir por empresa e nao por mutirao? Faltou sensibilidade social 4 politica habitacional. Nao se pode argu- mentar que solugGes diversas das em prdtica esbarrariam fatalmente nos interesses dos empresérios do setor. Estes so orientados fundamentalmente para o mercado de classe média e alta, nfo percebendo vantagens em operar no de classe baixa. Quanto ao regime, é duvidoso que tenha sido ele a fonte tinica da rigi- dez da politica. A explicago talvez esteja na propria burocracia do sistema habitacional, onde predomina tecnocracia de engenheiros, com arraigada mentalidade financeira e ideologia empresarial. A faléncia da politica de habitagdes populares pode ser melhor aquila- tada pela expansfo do chamado mercado informal, paralelo ou clandestino, formado pelas moradias construfdas sem licenga das prefeituras, pelas popu- lagGes de renda baixa. Ainda que os dados apresentados no Quadro 3 refiram-se apenas a uma cidade — Belo Horizonte —, mostram bem a gravidade a que chegou o problema. . Em primeiro lugar, chama a ateng4o © fato de as construg6es clandes- tinas serem quase o dobro das licenciadas, compreendendo estas tiltimas as construidas com ov sem recursos BNH. Em segundo, realga o préprio Quadro 3 MORADIAS CONSTRUIDAS — BELO HORIZONTE — 1967-1972 Construgdes Licenciadas Construgdes Clandestinas Total BNH, Empresas e Usudrios Vilas e Bairros Favelas Sub-total 21.061 41.801 1.587 43,388 64.449 FONTE: Orientag@o para uma Politica Habitacional, Plano Metropolitano de Belo Hort- zonte, PLAMBEE, pag. 25. 135 montante das edificagdes clandestinas. Foi mostrado anteriormente no Quadro 1 que todas as moradias populares edificadas de 67 a 72, via sistema BNH, atingiam a cifra de 183.393 unidades. Em igual perfodo, em uma sé das grandes cidades do pais, construiram-se, fora do esquema BNH, perto de 25% deste total. Em Belo Horizonte, segundo pesquisa realizada pelo Plano Metropolitano, pelo mercado informal construiram-se oito vezes mais uni- dades residenciais para classe baixa do que via sistema habitacional: 5.974, pelo BNH, contra as 43.388 construg6es em vilas, bairros e favelas. Frustrada em seus objetivos sociais, a politica habitacional teria sorte diversa no tocante ao emprego. Ndo quer dizer que se tenha logrado com- pensar os magros resultados obtidos do lado dos objetivos sociais. Tampouco se pode afirmar tenham sido atingidos na escala desejavel as metas de emprego a que se propunha a politica. Estas nfo chegaram a ser definidas, ficando ao arbitrio subjetivo a sua avaliacao. Sob duas condigSes poder-se-ia configurar o éxito da politica: primeiro, se através desta se atingisse novo patamar na participagfo da construgdo civil no emprego industrial ou total; segundo, se em situag6es de recessfo da economia a expans4o do emprego na construc4o civil se desse de tal forma que permitisse absorver contingentes de mfo-de-obra liberados de outros setores, Com a primeira condigfo, testase o sentido de arma permanente contra o desemprego que a politica habitacional teria; com a segunda, a sua utilizagfo para objetivos tdticos: o combate ao desemprego gerado por crises ou localizado regionalmente. Para se atingir a primeira, é preciso que se aumentem os niveis de construgdo no pafs; para a segunda, que recursos possam ser mobilizados e canalizados pronta e rapidamente para a constru- ao civil. Uma avaliagfo adequada da politica exigiria, portanto, nfo apenas considerar o prisma do emprego, mas também o da construc4o civil, antes e depois da politica. Os dados disponiveis nfo permitem avaliag4o to refi- nada da politica. Conforme se pode observar no Quadro 4, é dificil estabelecer de forma incontestavel a primeira condi¢ao. A inexisténcia de dados para o perfodo entre as décadas toma a série histérica falha e de dificil comparag4o. Aumentou significativamente a parti- cipagdo da construg4o civil no emprego industrial nos anos de BNH. Tal fato é contrabalangado pelas flutuagdes das taxas: a diferenga entre o ano de pico o de baixa atinge a expressiva cifra de 17%. Os anos mais recentes, por outro lado, mostram niveis de participagio bem mais préximos dos alcangados em 50 e 60. Se o ntimero destes anos é reduzido para inferir tendéncias, é suficiente, no entanto, para negar forca 136 Le Quadro 4 EMPREGO INDUSTRIAL PARTICIPAGAO % 1940! | 1950! | 1960' | 1967? | 1968? | 1969? | 1970? | 19727 | 19723 | 19734 Extragdo Mineral 80 501! 1705] 1,54) 3,82) 2,88] 3,60] 6,27] 2,77 | 06769 Indistria de Transformagdo 74,26 | 69,67 | 59,62 | 68,60) 63,82 | 56,04 | 63,01 | 64,81 | 73,14 | 77,69 Indistria de Construgao Civil 17,74 | 25,32 | 23,33 | 29,86 | 32,35 | 38,09 | 33,39 | 28,92 | 24,09 | 21,62 TOTAL 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% | 100% a a FONTE: 1 Paulo Singer ? Flutuacdo de Mdo-de-Obra — Ministério do Trabalho e Previdéncia Social — DNMO 3 Dados do PNAD — 99 Trimestre 1972 4 Boletim Técnico - Composigao e Distribuicdéo da Mdo-de-Obra (lei dos 2/3) — 1974. 4 hipétese de novo patamar de participagéo da construg4o civil no emprego industrial. As flutuagdes observadas poderiam, por outra parte, encontrar melhor explicaggo 4 luz do sentido tético da politica. Para ter tal alcance, seria preciso calibrar a oferta de habitages inversamente ao ritmo do crescimento econdmico do pais: quanto menor a taxa de crescimento econdmico, maior deveria ser a oferta de habitagdes para maior expansdo do emprego. A dificuldade de sincronizar emprego e taxa de crescimento econédmico decorre da existéncia de lag na politica: toma tempo até que decisdes de mobilizar recursos na construc4o civil venham a se refletir sob a forma de novos empregos. Assim, as altas taxas obtidas em 68, 69 e 70 talvez se devam ainda 4 ressondncia da recessfo anterior. A queda observada nos anos seguintes reflete, por outro lado, a retomada de crescimento da economia, tornando desnecessdrio 0 estimulo da politica habitacional. A virtude do BNH nfo esteve em construir mais do que antes, mas em permitir resposta mais pronta e imediata a crises. Ao invés de tentar impul- sionar a economia através das n + 1 agéncias que anteriormente lidavam com habitagdo, tem agora 0 governo apenas um interlocutor, um tinico processo administrativo, através de sistema centralizado de habitagdo. E portanto mais facil acionar tal mecanismo. A contrapartida pela rapidez da resposta é onerosa e nem sempre vanta- josa. Leva a privilegiar as camadas de renda alta e termina por tirar da polf- tica a possibilidade de controlar precos. Ainda que no existam dados refe- rentes ao impacto do BNH sobre precos de habitages, h4 fortes indicios de que tenham crescido mais do que se poderia esperar com as taxas de inflago existentes. Em conseqiiéncia, hd sinais de estrangulamento que levam periodi- camente a necessidade de rever prazos e financiamentos como medida para esticar ainda mais o mercado. BNH paradigma de politicas: exportando Know-How O “balango” ficaria incompleto se confinado apenas a andlise dos objetivos conscientemente reconhecidos pela politica habitacional. Nao raro, os efeitos antecipados das politicas tém alcance maior que a realizag4o dos objetivos a que elas deliberadamente se propdem. Além disso, uma politica € mais que os resultados que consegue: é também um paradigma para outras politicas. Ao longo de seus 11 anos de existéncia tem a politica habitacional se expandido para outras dreas, extravasando de muito o territério que lhe fora inicialmente assinalado. O fendmeno nfo teria maiores implicag6es se refle- tisse apenas um caso de “imperialismo organizacional” ou de ocupacfo de 138 “vazios” criados por ineficiéncias. Ndo é este o caso do BNH, que exporta know-how. A anexac&o da 4gua e saneamento 4 faixa de atuag4o do BNH se res- ponde a necessidades sentidas do planejamento habitacional, leva, por outra parte, a privatizagfo de bens piblicos, restringindo 0 acesso a estes das camadas de renda baixa. Tradicionalmente, 4gua ¢ esgoto tém sido subsidiados pelas prefeituras municipais. As tarifas nfo cobrem nem os custos dos investimentos, nem os de manuteng4o. Com o PLANASA, que nfo tem tarifas diferenciais, os custos para o consumidor sfo substancialmente elevados. Estima-se que perto de 65% da tarifa reflitam apenas custos financeiros, ou seja, juros e corregfo monetéria. A importancia estd em que a tarifa representa, para as populag6es de salério minimo, proporg4o expressiva da renda. Além disso, nfo se pode descurar das implicag6es que acarreta para outras politicas a privatizagio dos bens ptblicos. E sabido que nos paises subdesenvolvidos parcela ponderdvel das doengas transmissiveis se deve 4 inexisténcia de 4gua de boa qualidade e esgotos sanitdrios. A exportag4o da corregfo monetdéria para tais dreas traz Gnus Obvios. A expansio do BNH para novas dreas com a repercusso direta que traz para as politicas de satide e bem-estar coloca algumas indagag6es bdsicas: © que é hoje um bem piblico? o que se compra com 0 imposto pago? Tem prevalecido a solug#o empresarial que privilegia os aspectos finan- ceiros — protegfo a capacidade de investir das instituigSes provedoras dos servigos, em detrimento dos de bem-estar. Esquece-se que se 0 subsidio leva a ineficiéncia, o “empresarialismo” da politica traz a inequidade. 5, Os novos rumos da politica Mudangas na conjuntura politica nacional, trazendo uma certa renas- cenga a politica, deixam entrever possibilidades de novos cursos para a politica habitacional. A vitéria da oposi¢do nos grandes centros, nas eleig6es de 74, a saliéncia que o tema BNH assumiu na campanha eleitoral, 0 peso que 0 voto passa a ter numa conjuntura de “distensi0” podem levar a reorientag6es de objetivos e redefinigdes de prioridades. Os sinais de mudanga jd sfo visiveis: a redug4o da corregfo monetéria com a devolugfo de 12% das prestagSes pagas, o inicio de um programa de lotes urbanizados, e, por fim, a criagfo dos chamados centros sociais urbanos. Ressurge com vigor a ideologia que presidiu a formulagfo da politica urbana nos seus primeiros dias. Fala-se de novo na grande cidade como um 139 barril de pélvora, na habitacgéo como medida balsdmica, nas migragdes como. um movimento desagregador. Se h4 razGes para otimismo, hd outras também para ceticismo. A fragili- dade da “distenséo” pode nfo ser garantia suficiente — como jd nao o foi no passado o populismo udeenista para a implementago de novas metas. A crise que ameaga a economia do pais pode perfeitamente fazer com que as promessas que de novo se fazem na politica se tornem mera pega de retérica. A necessidade de estimular a construgdo civil pode comprometer os objetivos sociais, como ja o fez antes. Finalmente, nfo se pode subestimar as dificuldades que advém da propria maquinaria da politica. Hé uma “tecnocracia” criada no desdobrar do processo politico autoritdrio e senhora hoje do “espago” da politica urbana. Qualquer mudanga que nfo pretenda apenas arranhar a superficie do problema ter4 forgosamente que enfrenté-la. O outro elo da politica urbana é constituido pelo planejamento das cidades. Nao chegou este, no entanto, a constituir policy space independente e auténomo do brago habitacional da politica. Conforme se ver mais adiante, foram numerosos os problemas para implantar a politica de planejamento urbano como tradug#o da visio abrangente da problemdtica das cidades, em teoria requisito para o enfrentamento dos aspectos setoriais, entre estes, a propria habitagdo. Fatores diversos, desde os associados ao predominio de 6tica habitacional até a fragilidade institucional dos organismos das cidades, encarregaram-se de fazer da politica das cidades érea pouco dindmica, sujeita a marchas e contra-marchas e a decisSes arrastadas. O planejamento das cidades Idealizado para ser um conselho, andlogo na politica urbana ao Con- selho Nacional de Petréleo e a outros érgfos normativos de nivel superior, © Servigo Federal de Habitag#o e Urbanismo (SERPHAU) terminaria sendo engolido pelo predominio da vis4o habitacional na politica urbana. A lei que © criou, juntamente com o BNH, subordinava-o a este ultimo, em nitida inversao de papéis. O populismo udenista da politica urbana dos primeiros dias faria dele uma espécie de “Cohabao”, no dizer de um de seus superintendentes, “cons- truindo casas adoidado”."* A idéia inicial era a de articular sua atuago com o BNH, de tal forma que este ultimo, pelo incentivo dos recursos, induziria os municipios 4 adogdo do planejamento urbano. Assim, s6 seriam concedidos financiamentos pelo BNH, se dispusessem as municipalidades de plano diretor ou pega equivalente de planejamento.!9 140 Outro ponto da concep¢fo inicial do SERFHAU, e que veio a ser imple- mentado, era o reforgo do setor privado de planejamento. Nfo se fariam fi- nanciamentos a 6rgfos da administrag4o direta. N4o era, pois, meta da poli- tica do érgfo criar, pelo menos para todas as etapas de planejamento, setores especializados no poder piblico local. Transformado em “Herdeiro da Fundagfo Casa Popular’,? o SERFHAU se converteria, na expressfo de um estudioso da polftica urbana brasileira, em “apéndice improdutivo do BNH”. Em 67, 0 6rgfo é tomado de assalto pela tecnocracia ligada ao entfo Ministro do Planejamento, e de novo ressurge a idéia que antecedeu sua criago. A essa altura, a batalha j4 estava vencida, transformado o BNH em ponta de langa da politica urbana, alimentado pelos recursos vultosos do Fundo de Garantia. Planejamento urbano nfo era idéia nova no Brasil. Suas raizes tinham sido langadas nos meados dos 50 e¢ nos principios dos anos 60. A construg4o de Brasilia, sem falar na de Belo Horizonte e na de Goidnia, muito antes, a necessidade sentida e promovida, nos tempos da Casa Popular, particular- mente por grupos de arquitetos a ela vinculados, de planejar as cidades para poder construir casas, a aceleragfo da urbanizagfo e a visibilidade cres- cente das favelas, tinham criado campo propicio para o planejamento das cidades. A criagfo do SERFHAU nfo teve, portanto, o mérito de introduzir © planejamento urbano no pais. Téo pouco representou a sua implantagado sinal de que tivesse havido visio compreensiva da problemdtica urbana na origem da politica. Conforme se ressaltou, teve ela em seus primeiros anos orientag4o nitidamente caudatéria da politica habitacional. Em trés fases distintas pode ser dividida a atuag#o do SERFHAU. A primeira, da criagfo até 67, ¢ marcada pelo predominio da visio habita- cional: o érgfo é mais um Cohab do que agéncia de planejamento. A segunda, de 67 a 69, € caracterizada pelos planos de desenvolvimento local integrado, © primeiro esforgo de planejar as cidades no periodo pés-64. O terceiro, de 69 em diante, corresponde a mudangas na escala dos planos com o PAC — Programa de Ag4o Concentrada — e com as dreas metropolitanas. Do Plano Local Integrado & Regiio Metropolitana Com a criag4o do Sistema Nacional de Planejamento para o Desenvolvi- mento Local Integrado, SPNDLI, em 1967, passa o SERFHAU a exercer 0 papel de coordenador da politica de planejamento urbano. A drea de atuagéo é constitufda dos municipios de mais de 50.000 habitantes; o instrumento principal ¢ o Plano de Desenvolvimento Local Integrado, elaborado em duas etapas: o estudo preliminar e o plano propria- mente dito. 141 Numerosas raz6es levaram ao fracasso da experiéncia. Primeiro, depen- dia o esquema fortemente do setor privado de planejamento, a quem com- petia de fato elaborar os estudos preliminares e os planos. Separava-se, assim, planejamento de implementag4o, fazendo do primeiro um processo externo A municipalidade e desligado de decisao local. Em segundo lugar, nfo se logrou fazer dos planos ponto de referéncia para as decisOes tomadas por érgfos federais e estaduais no tocante aos muni- cipios: “os planos nfo foram sequer integrados com os préprios processos de decisio do BNH”.4 Finalmente, tinham os planos viés nitidamente fisico. Pretensamente integrados, apenas anexavam, mecanicamente, proposig6es de ordem social e institucional — satide, educag4o e administracao. Com o Programa de Agdo Concentrada tem inicio nova sistemdtica no planejamento urbano do SERFHAU. O modelo dos planos locais integrados é parcialmente reformulado para dar lugar a trés outros tipos de planos. Modificam-se, por outra parte, os critérios até entdo utilizados para a escolha das cidades a serem planejadas. 457 municipios sfo selecionados para implantacdo do Programa com base nfo apenas no tamanho, mas também no papel que desempenham para o desenvolvimento da regifo. Aos municfpios de pequeno porte corresponde o chamado Relatério Preli- minar; aos médios, o Plano de Ac&o Imediata; aos de grande porte, os consi- derados pelos regionais, corresponde um novo e melhoraifo Plano de Desen- volvimento Local Integrado. Tanto o PAI como o PDLI teriam um termo de referéncia como etapa preliminar. A nova estratégia ndo conseguiu remover os obstdculos que haviam comprometido o éxito da politica no periodo anterior. Continuaram os planos a refletir 0 “bias” fisico e territorial que thes era transmitido pelos arquitetos-planejadores. Esta distorgo se traduz na redugfo das cidades a um “mapa de locali- zag6es, reservas de dreas, rede vidria que deverfo guiar as decis6es piblicas e privadas num determinado lapso de tempo (médio e longo prazo)”. . . En- tretanto, “as cidades nfo sfo apenas localizagSes e estruturas fisicas, mas comportamentos coletivos, sistemas de atividades, a que as unidades espa- ciais servem de receptéculo”.”* A este blueprint planning se acoplavam projecSes de populagfo, dados mais dindmicos de tipo demogrdfico e econémico, de demanda de equipa- mentos urbanos, de sistema vidrio e de transporte, sem contudo alterar o modelo bdsico em que as varidveis sfo sempre pertinentes 4 estrutura_fisica. Quanto 4 estrutura social, as relagdes de classes, 4 apropriag&o dife- rencial do espago fisico pelos diversos estratos, ou se supunha que se rearran- jariam a partir das definig6es fisicas, ou simplesmente eram ignorados, Por 142 que nfo inverter a ordem das prioridades e das varidveis escolhidas para intervenc4o? Por que nfo planejar a partir do social e do econémico: do emprego, do treinamento da m4o-de-obra, da utilizag4o criativa de tecnologia social? Por que no tirar partido dos mecanismos sociais esponténeos de utilizagdo de espago, de solug&o do problema habitacional, de associag4o em geral? Atribuir ao sistema politico a nfo exploragao das alternativas que estas indagag6es colocam é explicagdo insatisfatéria, pois a experiéncia de planejamento internacional também mostra a constancia deste “viés”, s6 muito recentemente posto em cheque com o advogacy planning e de modo geral com a énfase no planejamento social para as cidades. Além disso, a sistemdtica trouxe novas e pesadas necessidades do acompanhamento dos planos, levando a burocratizag4o excessiva e onerosa da politica e do SERFHAU. Este, para “‘proteger” as prefeituras das empresas de consultoria privada, via-se na contingéncia de policiar passo a passo 0 desdobrar dos planos, exigindo relatérios minuciosos para cada etapa do processo. Certamente em conseqiiéncia dos fracassos acumulados, foi o SERFHAU reduzido recentemente a uma simples carteira do BNH, 0 que, tendo em vista as ambig&es que alimentaram a sua origem, equivale a sua virtual extinggo.”* © desdobrar do planejamento das cidades, inaugurado no periodo pés-64 com o SERFHAU, desembocaria por fim nas dreas metropolitanas. Sua institucionalizagfo fora prevista na Constitui¢4o de 67, que, no entanto, em lugar de ja lhe dar forma definitiva adiou a solug4o para lei complementar que s6 viria alguns anos depois, em 73. Entretanto, a nog4o de regifo metropolitana era ji bastante antiga. Ainda na década de 50, as conurbagGes, particularmente em Sao Paulo e Rio de Janeiro, haviam tornado visivel o problema metropolitano em sua forma cldssica nos paises em desenvolvimento: o das cidades- -dormitorio, sem recursos para financiar servigos, o de transportes coletivos suburbanos, o da pobreza das periferias, o da dependéncia de solucdes comuns. A idéia chegou a ganhar cunho popular na expressio ABC, usada para designar a conurbacdo entre Sdo Paulo, Santo André, Sdo Bernardo e Sdo Caetano. Planos anteriores haviam diagnosticado o problema, nfo apenas para Sfo Paulo e Rio. A SAGMACS — Sociedade de Andlises Grdficas e Mecano- grdficas Aplicada aos Complexos Sociais — ligada a0 movimento Economia e Humanismo do padre Lebret, j4 em fins de 58 chamava a ateng4o para 0 problema e recomendava a adogdo de solug4o metropolitana para Belo Hori- zonte: “toma-se necessdrio, portanto, complementar o atual Plano Diretor 143 com a criagfo de um sistema de integragfo efetiva dos poderes piblicos dos municipios interessados. A mesma preocupacfo que determinou a elabo- rac¢Zo do presente Plano procurando prever para solucionar, exigird essa integrag¢fo, .. a recomenda¢4o mais importante que podemos fazer ao apre- sentar o presente relatério, 6 a de que o poder publico municipal de Belo Horizonte inicie, imediatamente, as gestOes para complementar o seu Plano Diretor pelo entrosamento orginico e efetivo com os demais municipios que se integrarfo na drea metropolitana da Capital”.* Se a idéia* de drea metropolitana difundiu-se sem encontrar muitas resisténcias, 0 mesmo nfo se deu com sua implantag4o. Numerosos tém sido os seus impasses, muitos deles ainda a espera de solugdo. O primeiro, e talvez o mais importante, é 0 institucional. Que minis- tério teria a lideranga do problema? Como se coloca a érea metropolitana diante do escalfo estadual de governo? Como instituir uma drea metropoli- tana, sem ferir a autonomia municipal? Tais questdes nfo foram dirimidas pela Lei Complementar n9 14/73 que institucionalizou as regiSes metropolitanas no pais. O préprio atraso da Lei Complementar, adiada por seis anos, € bem uma mostra das dificuldades que enfrentou e enfrenta ainda a politica metropolitana. Os problemas institucionais comegam no préprio nivel federal. O Minis- tério do Planejamento e do Interior disputam a primazia da politica, aquele, através do IPEA, este, através do SERFHAU, hoje extinto e do préprio BNH. A criag4o da Comissfo Nacional de Regides Metropolitanas e Politica Urbana — CNPU — nfo teve ainda 0 efeito de aparar as arestas ao nivel federal, por lhe faltar, precisamente, status politico. Concebida para ser uma comiss#o interministerial a CNPU terminou sendo localizada no Ministério do Planejamento, um dos protagonistas do conflito. As fungdes que lhe foram assinaladas — “propor as diretrizes da politica nacional de desenvolvimento urbano, as normas e os instrumentos de ago necessérios ao desenvolvimento urbano do Pais, e “articular-se com Ministérios, Superintendéncias de Desenvolvimento Regional e demais érgfos governamentais” — exigiriam o nivel de ministério, sem o que faltaria a ela posigdo institucional e forga para tratar com os organismos envolvidos no problema urbano, muitos deles poderosos e com imagens favordveis junto 4 administragao federal. Como poderia um érgo recém-nascido, localizado em Ministério — ainda que seja este a Secretaria de Planejamento — coordenar 6rgfos como o BNH, o Geipot e o DNER, entre outros, se so estes érgZos fortes, consolidados e com suas clientelas bem estabelecidas? Mas sfo estes os Srgdos que decidem o relevante para as cidades. . . Nao é menor o impasse no tocante as relag6es com os Estados. Qual o arranjo institucional das regides metropolitanas: um quarto escalfo de go- 144 verno? uma associagfo de municipios? um érgio central de coordenago das politicas comuns, de interesse metropolitano? Tais quest6es continuam ainda pendentes, irresolvidas pela Lei Comple- mentar 14/73. A solugdo de um governo metropolitano parece nfo encon- trar viabilidade, pois esbarra na resisténcia de governadores e prefeitos. Os primeiros, receosos de que venha a regifo metropolitana a esvaziar‘o proprio Estado, por se constituir ela das cidades de maior peso econdmico no Estado. Os ultimos, reagem contra a ameaga 4 autonomia municipal, que inevitavel- mente teria de ser sacrificada na hip6tese de um governo metropolitano. A alternativa de uma associagdo de municipios é solug4o fraca. Seria extremamente duvidoso que se conseguisse coordenar municipios de dife- rente porte e com diferentes graus de burocratizacdo. Ressaltaria nesta hip6- tese o inescapdvel conflito do municfpio central contra os periféricos de menor porte. A terceira alternativa, a de criar 6rgZos com fung4o metropolitana, tem contra si a propria interdependéncia dos problemas, que exigem por isso mesmo solugao integrada, além de n4o eliminar o conflito entre os municipios acima mencionado. Por outra parte, nfo ficaria claro quem deveria fazer 0 que; muitos desses 6rgfos simplesmente duplicariam atividades hoje desempenhadas pelo Estado e pelos préprios municipios. Ao impasse institucional acrescenta-se ainda o dos recursos: de onde vém eles? quem contribui com quanto? Uma das dificuldades que uma politica de regides metropolitanas enfrenta é que as grandes metrépoles, para terem viabilidade e desempenha- rem as suas fung6es macro-econémicas — lugar central, pélos de desenvolvi- mento e centros de irradiacao exigiriam solugdes de grande escala, com ele- vados custos para ter economicidade. Para tanto se requer recursos que nfo podem ser providos pelas fontes locais tradicionais. Tanto o imposto territorial como o predial tem sabida- mente o inconveniente de baixa elasticidade de renda, expandindo-se quase sempre a taxas menores do que as necessidades de servigos. Quanto ao Im- posto sobre Servigos — ISS — tem ainda sua implementag4o bastante precdria e é, por outra parte, duvidoso que pudesse sozinho concorrer com os recursos para fazer face as necessidades metropolitanas. De fato, as fontes flexiveis de recursos sfo federais e a tendéncia é nfo ter dinheiro “a fundo perdido”, pondo-se o governo federal na posic4o de grande banqueiro, o que fora os municipios ou a nAo investir, ou a passar os custos para o usudrio, sob a forma de tarifas, cada vez mais altas. O impasse dos recursos continua, ainda que se notem sinais de afrouxa- mento na politica de empréstimos federais. As eleigdes de 74, 0 novo clima politico, e as perspectivas das novas elei¢Oes tém levado o governo federal a 145 agir mais generosamente no tocante aos financiamentos dos servigos metropo- litanos. A sucessfo de impasses na politica de regides metropolitanas tem trans- formado os 6rgios de planejamento metropolitano em meros “grupos de estudo”, “ocupados com pesquisas mais ou menos refinadas e proposigdes de cardter genérico”. Conforme chama aten¢4o um estudioso do problema, “tal situagdo agrava os riscos ora de fazer dos planos vGos estratosféricos, com sugest6es de ambito demasiado amplo, assentados em interligagSes tedricas, porém ignoradas pelos agentes metropolitanos, ora de tornar os planejadores pouco exigentes, satisfazendo-se com homenagens retéricas a seus planos quando de alguma decisfo concreta”.?” Concluséo Do desenvolvimento recente da politica urbana no Brasil, ressaltam alguns aspectos de relevo, que convém reiterar. Primeiro, o sentido social que a inspirou nos primeiros dias e que de novo parece ganhar momento com 0 projeto de distensdo politica e social, com as eleigdes de 74 e com as perspectivas do voto macigamente oposicio- nista, nos grandes e médios centros, em 76. Segundo, a égide habitacional que norteou a politica urbana, levando até ela o rigido modelo empresarial do BNH, com a conseqiiéncia de “priva- tizar” bens piblicos. Terceiro, a n4o-decisio na drea metropolitana causada por sucessivos e no-resolvidos impasses que vio desde o formato institucional até a crucial questo dos recursos. Finalmente, a andlise da politica urbana revelou ainda a existéncia de modelos de solugo fortemente associados a paradigmas profissionais, dos arquitetos e engenheiros, dando 4 politica visdo nitidamente parcial e envie- zada. As perspectivas de mudanga, discutidas anteriormente, se dao lugar a otimismo, com igual raz4o justificam ceticismo. A rigidez dos modelos encon- trados na solugdo dos problemas urbanos requer mais do que o sopro ainda fraco da participa¢do popular que hoje se tem. NOTAS (1) A grosso modo uma politica urbana sempre existiu no pafs. No perfodo anterior a 64 esté diluida nas agdes dos varios érgdos encarregados de habitagdo (Fundagao Casa Popular, Institutos, Caixas de Peciilio e outros), como efeito de impostos 146 @ @) @ 6) 6) a” (8) (9) (10) di) (12) (13) a4) (is) (16) an (18) (19) (20) Qy (22) — (23) e em conseqiiéncia direta das leis que regulavam o inquilinato, O que nos leva a consideréda politica nova, a partir de 64, é 0 fato de se tornar ela uma politica deliberada, central aos interesses do novo governo. Citado in Urbanization in Brazil, James A, Gardner, International Urbanization Survey, The Ford Foundation, pag. 129. Transcrita in O BNH e a Polttica do Governo, Berenice Guimaraes Vasconcelos de Souza, Departamento de Ciéncia Politica, Universidade Federal de Minas Gerais, 1974, tese de Mestrado, pags. 157-159. Berenice Guimardes Vasconcelos de Souza, op. cit., pag. 157. Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva, in Habitagdo e Desenvolvimento, Mario Trindade, Petrépolis, Vozes, 1971, Prefacio, pag. 12. Plano Nacional de Habitagdo, vol. 2, Seminario promovido pelo Instituto de Engenharia de Sao Paulo ¢ pelo Banco Nacional de Habitagdo, BNH, 1966, pag. 20. Trindade, Mdrio, “Um Modelo Genuinamente Brasileiro”, in Habitagdo e Desen- volvimento, Trindade Mario, op. cit., pag. 22. ‘Transcrita in O BNH e a Polttica do Governo, op. cit., pag. 159. Acompanhamos a divisdo sugerida por Berenice Guimaraes in O BNH e a Politica do Governo para uma visio mais técnica da politica habitacional. O Trabalho é Tico em informagées e andlises. Para uma viséo da origem dos recursos do BNH, veja-se Schulman, Mauricio, Pronunciamento no Senado Federal, BNH, 1975, pag. 69.. Banco Nacional de Habitagdo, Rio de Janeiro, Solugdo Brasileira de Problemas Brasileiros, Rio de Janeiro, Sec. de Divulgagéo do BNH, pag. 31. Banco Nacional de Habitacdo, Solugdo Brasileira para Problemas Brasileiros, op. cit., pag. 31. Exit e Voice esto sendo empregados no sentido proposto por Hirschman, A. O., em Exit, Voice and Loyalty Cambridge, Harvard Press, 1971. Recente matéria publicada no Jornal do Brasil — 16/11/75 — apontava a tripli- cagfo do valor do terreno urbano em Minas Gerais no prazo de trés anos, 0 aumento de 800% em Recife. Em Sao Paulo, na regido metropolitana, a valori- Zagdo teria atingido, nos tltimos quatro anos, entre 500 © 1000%, segundo a mesma reportagem, : Banco Nacional de Habitago, Solugdo Brasileira . . ., op. cit., pag. 6. Idem, pdg. 25. In Trindade, Mario, op. cit., pag, 159. Entrevista de Harry Cole a Antonio Octavio Cintra que gentilmente nos permitiu a citagdo. Valemo-nos, para a reconstituigdéo da atuagfo do SERFHAU, além dos docu- mentos e publicag6es disponiveis e do trabalho de Gardner, Urbanization in Brazil, de numerosos dados e informagées passadas por A. O. Cintra, Gardner, James A., op. cit., pag. 133. Gardner, James A., op. cit., pag. 134. Cintra, A. O., “Nota sobre os Condicionantes Politicos do Planejamento Urbano”, Cadernos DCP, n° 2, Departamento de Ciéncia Politica, Universidade Federal de Minas gerais, Belo Horizonte, Dezembro, 1974, pag. 119. Para uma avaliag¢go da atuagéo do SERFHAU veja-se Fonseca, Marilia S.R., “Pla- nejamento Urbano”, in Diretrizes Gerais para uma Politica de Desenvolvimento Urbano, Projeto Miniplan/PNDU, contrato IPEA 642/73. 147 (24) (25) (26) Qn 148 SAGMACS — Relatério do Plano Diretor de Belo Horizonte, pag. 29, 19 volume, 1961. Os gedgrafos urbanos de h4 muito falavam de regiao metropolitana. O plano de Eletrificagdo de Minas Gerais, de 1951, no capitulo referente A geografia fazia mengao ao problema. Para a politica metropolitana foram-nos particularmente relevantes as numerosas conversas e discusses com A. O. Cintra, que se acha presentemente elaborando tese sobre o assunto. Cintra, A. O., op. cit., pag. 135.

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