Você está na página 1de 39
CAPITULO II A DROGA, O DIREITO E O SABER 1. Droga e sociedade. A problematica suscitada em torno da droga comporta miltiplas questdes que, cada vez com maior pertinéncia, vém sendo colocadas, introduzindo anilises ¢ debates, gerando estudos e investigagées. Trata-se, com efeito, de uma tematica que, embora nio seja de recente surgimento, sofreu um novo e mais amplo impulso no decurso das quatro ultimas décadas, implicando necessariamente uma torrente infindavel de interrogagées, dividas e angistias, solitaria ou colectivamente assu- midas, indiciadoras da tomada de consciéncia por parte das comunidades para 0 que a droga, enquanto fendmeno social e cultural, representa. Assim, desde 0 mero con= sumo privado, nas suas componentes juridica e psicoldgica, até ao tema de maior complexidade para os Estados, que reside nas causas e consequéncias da produglio © Irdfico de produtos estupefacientes, muitas e diversificadas tém sido as tentativas de debelar uma crise que permanece em aberto, parecendo renovar-se a cada momento, ‘Todavia, os esforgos prosseguidos neste sentido nem sempre foram sincrénicos com @ pesquisa de conhecimento cientifico sobre o uso de estupefacientes e psicotropi- cos, passando-se durante muito tempo 4 margem dessa vertente: tentou-se assimilar © problema enquanto questiio do foro politico, sem 0 equacionar como objecto do saber, Ora, sem embargo das campanhas que se realizam em ordem a desestimular 0 consumo e aniquilar 0 comércio internacional de droga, verifica-se que esses esforgos sio sempre insuficientes, nao tendo conduzido ainda ao abrandamento do ciclo mercantil da dependéncia. De facto, apés cada confronto que oferece a imagem de um triunfo, dé-se conta, acto continuo, que tudo nao passou de uma efémera vitéria e, metamorfoseando-se face a cada adversidade, de maneira sistemitica e per= sistente, escolhendo originais e sofisticados meios de transito e penetragilo, eis a droga, sempre rejuvenescida, recobrando 0 Animo e fossilizando a intimidago penal, disposta a ganhar outros espagos, transformada em ameaga constante da convivéncia social, ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS ‘As drogas j4 no so apenas parte integrante do imaginario do longinquo Oriente, enredo privilegiado de lendas de mandarins: as drogas e o seu mundo esto ‘aqui, a beira de todos e de cada um de nés, sem que ninguém saiba ao certo o que fazer. Ao longo do século XX e, em especial, apds 0 decénio de Cinquenta, 0 con- sumo de droga instalou-se na América ¢ no Velho Continente, pondo em causa a eficdcia dos mecanismos disciplinares, provocando a desordem: e o surto tornou-se susto, receando-se que 0 pé magico espreite as criangas a saida das escolas, temendo- “se que a overdose de um consumidor seja endémica. A reacgfo dos Estados pre- tendeu, numa primeira fase, salvaguardar a satide ptblica, cumulando-se, num momento posterior, com a defesa da tranquilidade dos cidadios. Tratou-se de uma transigdo entre a esfera sanitaria e a seguranca, determinada fundamentalmente pela desestabilizacdo que a droga produziu no corpo social, evoluindo na mesma pro- porg%io em que 0 consumo de produtos proibidos alastrava, arrastando miltiplos atentados ao patriménio. Daj 0 incremento de esquemas repressivos que se notou nas décadas subsequentes, desfilando também varias versdes do denominado combate a droga, focalizando-se quer 0 consumo quer 0 trafico, construindo-se sucessivas arquitecturas juridico-penais e clinico-psicolégicas, através das quais se expressaram ‘as ldgicas legislativas. Estas modalidades de intervengdo politico-juridica apresen- taram sempre como denominador comum a vigilancia, a nivel profilactico do uso de drogas, e no plano da perseguic&o do seu comércio ilicito, restaurando, de certo modo, a concepgao panéptica preconizada por Bentham: o Legislador tem-se socorrido com insisténcia de instrumentos de disciplina que procuram garantir 0 controlo das reas de risco de molde a impedir que a utilizagdo de estupefacientes e psicotrépicos prossiga ao ritmo das décadas de Oitenta-Noventa, apelando ao concurso das sociedades em ordem ao reforgo das medidas de prevengo. Porém, no decurso do presente século a Optica oficial de apreciagao da droga comegou por justapor o senso comum com uma orientag&o afectivo-emocional, descaracterizada e cientificamente dosestruturada, ela mesma desestabilizadora e, por conseguinte, incapaz de captar a compreensio desta fenomenologia; do mesmo passo, entrecruzam-se praticas e dis- cursos politicos eivados de principios morais, tentando reordenar-se, a partir do caos, um sistema de controlo com capacidade para fornecer respostas. A droga esta, pois, no seio das sociedades contempordneas e os mecanismos de controlo parecem ter fracassado nas fungdes de vigildncia, cabendo agora a droga © dominio de parcelas acentuadas de poder na comunidade, donde deriva a imposigao de regras. No fundo, tudo foi posto em causa, tudo reclama agora novas € diferentes perspectivas de abordagem, comprovando-se que a produco, 0 comércio © 0 consumo de estupefacientes atingiram o centro nevrdlgico do corpo social, mostrando-se convincente e confortavelmente instalados. 100 ADROGA, O DIREITO E 0 SABER Entretanto, a intranquilidade instalou-se na sociedade civil, agitando-a ¢ exigindo punigdes severas, a0 mesmo tempo que se regista a criagao de plirimas organizagdes privadas, cujas finalidades compreendem a luta contra o trifico ¢ 0 apoio a toxicémanos, visando cooperar com a administrago e, em alguns casos tomar a dianteira do processo. Tentam-se as novas cruzadas rumando em demanda da libertagdo das comunidades face ao crescendo do problema — porém, também aqui © Sagrado Graal fica sempre mais além, algures onde ninguém sabe. Langam-se campanhas, reforcam-se dotagdes orgamentais, criam-se comiss6es especializadas ¢ departamentos, piblicos e particulares, e sem prejuizo dessa azéfama, depara-se todo o momento com o recrudescimento do fendmeno com uma voraz epidemici- dade. As instancias oficiais, impotentes para a gestdo desta nova desordem, hesitam entre o implemento dos esquemas punitivos e 0 didlogo: e determinados aconte~ cimentos ainda frescos na meméria dos povos certificam como alguns Estados, reconhecendo-se incapazes para sustar a escalada da droga, se viram compelidos negociago com os narcoempresérios, acatando-lhes as reivindicagdes (0 caso Escobar, na Colémbia, é suficientemente elucidativo). Quer dizer: 4 droga ja no bastam as formas subtis de se subtrair 4 fiscalizagao, entregando-se agora ao supres mo requinte de influenciar padrées legislativos, negociando com os Estados 0 que a forga destes ndo consegue solucionar. Desprovido de condigdes para resolver esta crise, apesar de dispor de todas as armas a si mesmo consentidas, 0 Poder iniciou & aprendizagem da coabitacdo com a droga, gerindo-a como um assunto cujas eoordes nadas escapam aos esquemas tradicionais de controlo — dai o recurso a medidas penais progressivamente mais severas, utilizando-se no dominio da droga métodos de uso corrente em Areas especificas da delinquéncia, como 0 terrorismo ¢ a crimi- nalidade altamente organizada. A war on drugs generalizou-se, achando-se implan= tuda em muitos Estados e ocupando lugar de relevo na cena internacional: todos con tra a droga parece servir de lema 4 politica vigente nesta «aldeia global», 2. A droga e o Poder: os paradigmas penais no ambito do Direito da Droga. Na trajectéria histérica da criagio legislativa a droga implicou, por vezes em regime de simultaneidade, a existéncia de varias posturas e formas de observagilo; passou-se, com efeito, de um prisma predominantemente aduaneiro para outro onde prevalecia a componente repressiva, € depois a outro ainda, mais vulnerdvel & in- terferéneia do conhecimento cientifico sobre 0 comportamento humano e, em 101 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS, conformidade, mais vocacionado para a andlise do actor das infracedes do que para a mera valoragao do acto transgressivo. De certo modo reproduziu-se 0 percurso ensaiado pela penalidade ao longo da Histéria (a que aludimos no capitulo III), passando-se da concep¢&o fundamentalmente punitiva para a busca da compreensio do agente do delito. Esta evolugao, contudo, nio foi feita sempre em termos univo- cos, revelando momentos de ruptura e descontinuidade, desenhando-se um trajecto em que tém sido frequentes as oscilagdes entre politicas onde se privilegia um pen- dor mais repressivo e outras acentuam as vertentes clinica e psicolégica. Durante esta sucessio de ciclos penais tem-se extremado os campos, radica- lizando-se as posigdes discursivas: debate-se, com vivacidade, se a primazia deve ser concedida as policias ou aos técnicos da satide; enfatizam-se os discursos sobre os drogados, apelando-se por vezes a concepgdes de cariz moral, hesitando-se, por outro lado, se o vector principal se acha na oferta ou na procura, nao faltando a nogao nefelibata de que o exterminio da oferta implicaria o fim do uso de drogas. No fundo, 08 Estados tém buscado pistas para uma resolucdio desta questo, que elevaram jé ao estatuto de drama e flagelo, nio sé social mas sobretudo politico, constatando a exiguidade de meios para promoverem uma atitude que permita isolar o problema e erradicé-lo; por isso, num primeiro momento, a solugdo foi procurada na drea do Poder, acreditando-se que o eixo fulcral residiria nas instituigdes policiais e penais; depois, num segundo tempo, remeteu-se o fenédmeno para 0 dominio do Saber, admitindo-se que ai radica a andlise das suas linhas explicativas, podendo ser reen- viado para a esfera politica, depois de elaborado e apto a receber tratamento defini- tivo, Subjazendo a todas as diligéncias efectuadas sao plirimas as interrogacdes que se equacionam, renascidas umas, outras suscitadas pela primeira vez, todas se perfi- Jando nos horizontes cientificos e gerando incertezas. Contudo, os Estados tém assumido gradualmente uma convicedo: a da inviabilidade de se superar a espiral do consumo e trafico de droga. Assim se operou, embora lentamente, 0 abandono do curso repressivo que, em determinada época, fora erigido em padréio e modo prefe- rencial de ace4o, rumando-se para um plano onde se realcam as vertentes pessoais de cada consumidor-transgressor. Na realidade, a droga deu origem 4 emergéncia de um esquema de pluridisciplinaridade direccionado para uma abordagem do Homem como «totalidade biopsicossociolégica» (Morin, E., 1973, p. 18). O surgimento da droga e o crescendo da toxicomania vieram concitar a aten- gilo das sociedades para a imprescindibilidade de se proceder a andlise da sua dimen- silo auténtica, heterogénea e multifacetada. Nesta sequéncia, podera afirmar-se que a droga arrastou a altercacdio do conformismo social, agitando a pacatez das comu- nidades, colocando praticamente tudo em causa, arrasando mitos e conceitos enquis- tados, despertando a consciéncia semi-adormecida do amorfismo e proclamando a 102 A DROGA, O DIREITO E O SABER necessidade urgente de se reequacionarem questées de h4 muito dadas como imutiveis ¢ catalogadas. Para o universo do Saber a droga carreou novos problemas, pro= duzindo um espago mais amplo de comunicagdo entre os conhecimentos médico, psicolégico e sécio-cultural, renovando em outra escala o cruzamento que aconteceu no século XIX entre o biolégico ¢ o social (Da Agra, 1982, p. 539). A droga tornou- -se causa proxima da desordem das disciplinas do comportamento, suscitando inter feréncias reciprocas e hibridagées, funcionando como entidade catalisadora das diversas unidades cientificas. Por isso se interinfluenciam, com preméncia crescente, conceitos provindos da Biologia e da Psicologia, da Medicina e da Sociologia, trazendo-se para um plano imediato o reordenamento do conhecimento cientifico. ‘Ao nivel do Poder, por seu turno, verificou-se a necessidade de se repensarem ‘0s modelos tradicionais de vigilincia e controlo, incluindo a prépria punibilidade: comegou entio a esbogar-se uma nova configuragaio da penalidade, vocacionada para 4 natureza humana, que se sabe assimétrica. Nesta conformidade, os discursos do Poder e as significdncias do Direito fizeram-se receptivos aos saberes, iniciando-se uum percurso de permeabilizagdio e de confluéncia juridico-cientifica. ‘No campo da criminalidade geral os Estados realizaram j4, como vimos, 0 {fil» jecto dos paradigmas penais, passando desde a conceptualizacao da omnipoténcia do Direito (paradigma criminal) até a introdugdo de vectores bioldgicos ¢ psicossociis, cada um destes elementos sendo cerne estruturante de um novo modelo paradigmitico, Face A droga ensaiou-se trajectéria idéntica, igualmente progressiva ¢ direecionada para uma perspectiva plena e integrada do cidadio toxicodependente, encarado primeiramente como delinquente, adquirindo, depois, o estatuto de enfermo ¢ des viante, em suma, de um ser diferente cuja causa de diferenciagiio radica nos foros clinico e psicossociolégico. Aludimos no capitulo antecedente 4 transformagao gradual do Direito Penal de uma dptica centrada no castigo severo e na vindicta para outra, daquela qualitati+ vamente diversa, matizada por intuitos de compreensio e ressocializagao: da hiper= trofia da punigdo A valoragdo personalizada, tomando como referéncia 0 sujeito transgressor, um longo caminho que foi percorrido durante centirias de leis ¢ priti+ cas judiciais. A propésito da droga, porém, o tragado legislativo-aplicativo tem sido simétrico, assistindo-se nas ultimas duas décadas a tentativa de substituir os resquly cios do excesso penalizador por um espago de assimilagdo tolerante das condutas ¢ de formulagiio consentinea das reacgdes institucionais. Na verdade, numa ¢ noutra das manifestagdes penais, tomando como objecto a delinquéncia em geral ou a droga, constata-se que a civilizagdo contempordnea tem preferido a alternativa de suportar © crime ao ambiguo exterminio da realidade criminal, que comporta sempre 0 acen tuado risco de punir inocentes (Popper, K., 1992, pp. 12-13). Assim, o fendmeno 103 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. droga serviu de entidade congregadora dos espacos juridico e cientifico, acarretando a emergéncia de um discurso transjurfdico. Dai que as experiéncias legislativas aplicativas do Direito e da penalidade sejam cada vez mais de indole pluridiscipli- nar, cindindo o transgressor nos miltiplos segmentos que o formam e lhe dao vida: © Direito, enquanto expresso normativa do Poder, aspira a cientificidade, para 0 que recorre aos saberes do biolégico, do psiquismo e do social, suscitando-se junto destas unidades do conhecimento a indagagiio sobre as possibilidades de uma estruturagao cientifica do juridico. E nao é, para o Direito, de temer um tal rumo de desenvolvi-, mento; com efeito, como diz K. Popper (1992, p. 93), o Saber ndo é mera acumu- lagtio de conhecimentos, mas fruto de «... ideias ousadas e revolucionarias, poste- riormente objecto de critica e de verificagao rigorosas». A grande demonstragao do tempo presente, consentida, porventura, pelo aparecimento do uso de droga, é de que nos universos cientifico ¢ juridico nada é liminarmente catalogavel, nada constitui um dado definitivamente adquirido: neste sentido, a droga tem representado, no decurso das décadas mais recentes, a fora propulsora da comunicago entre 0 Direito e a Ciéncia. 3. A droga como objecto desestabilizador do discurso judicial. A droga provou ja que possui extraordindrias mobilidade e capacidade de adaptago aos esquemas de controlo e face aos mecanismos classicos de normaliza- gilo, determinando a transformacao dos sistemas punitivos e das estruturas do saber (cfr. Da Agra, 1982-1986, p. 470); 0 consumo de drogas é 0 étomo introduzido no corpo social e que abalou de forma sismica os esquemas cientificos e normativos, implicando que se repensem quer os saberes comportamentais quer a configuragfio ético-juridica da penalidade; a droga funcionou, por conseguinte, como o elemento desestruturante das arquitecturas do Direito e do Saber. Mas esta desestruturacao tem produzido a ruptura e a reordenagdo desses sistemas, dando origem ao redimensio- namento dos critérios de vigilancia, de controlo e de exercicio da punibilidade, con- jugados com as vertentes médica e psicossocial do fendmeno, numa busca conjunta de um novo paradigma juridico-psicossociolégico, justificada pelo fracasso dos modelos vigentes. Efectivamente, tem-se assistido a ineficiéncia dos meios classicos da disciplina e do Saber, ilustrada pela frequéncia com que os toxicémanos realizam © périplo dos hospitais, comunidades terapéuticas e prisdes, a uns e outros retor- nando, cedo ou tarde: trata-se de um reiterado envio-reenvio inter-institucional que demonstrou ja a fragilidade dos instrumentos tradicionais de gestio da desordem. 104 A DROGA, O DIREITO E O SABER Aparece, entiio, a encruzilhada, o regresso ao labirinto em que todos os cami- nhos parecem conduzir ao crescimento do uso de droga. Foi justamente nessa encruzilhada que as comunidades e o Poder descobriram que nao ha panaceias sus- ceptiveis de resolver a crise, sabendo-se que a vantagem pende para o florescimento do narcotrafico. Nesta degeneracao social e civilizacional por que as sociedades ¢ os detentores do Poder passam, pretende-se obter um ponto de equilibrio que permita a reposigao da autoridade piiblica, que sai mal-ferida da contenda. Renovam-se, pois, as interrogagdes, avolumam-se as ditvidas: perante uma situa¢do tao avassaladora como 0 uso de drogas, que fazer? Prevenir ou remediar? Recuperar ou reprimir? E como ressocializar e curar drogados que delinquam e delinquentes que se drogam? Quais os limites por que o Estado deve balizar o jus puniendi? Como devera exercé- -lo, de molde a que a cura ndo mate mais celeremente do que a maleita? Por outro lado, o que deve ser atacado com prioridade — a oferta ou a procura? Serd que o arrasamento da oferta (se se atingisse um ponto éptimo) solucionaria de vez a questo? Ou sera que este raciocinio esté eivado de nefelibatismo, como se se conclufsse que 0 encerramento das farmicias seria meio idéneo a eliminagiio das doengas? Sera que a puni¢ao dos toxicodependentes nao arranca do mesmo equivoco que algumas leis do passado que mandavam enforcar os suicidas frustrados? No fundo, os homens do Poder (de todos os poderes) debatem-se com um problema de magna relevancia, consistente em saber qual 0 comportamento institucional apro= priado em presenga da toxicomania, quando é exacto que todos os caminhos per= corridos, desde a Conferéncia da Haia até aos nossos dias, nao sé nao resolveram 0 problema como serviram de cendrio ao seu recrudescimento. Naturalmente que nao tém faltado sugest6es: rareiam, contudo, solugdes, tem falhado a exequibilidade num espago em que abunda a disparidade, quer ao nivel do juridico, quer no plano politico, tal como acontece nas areas do biolégico ¢ do psi- colégico: «o campo do tratamento tomou-se pois baldio, esta aberto a quem nele queira vir semear e ceifar 0 que bem entender...» na medida em que o fenémeno toxicomania induz em simultaneo, agonia e nascimento — «agonia da configuragilo clinica e dos dispositivos tradicionais de disciplinarizacao; nascimento de uma nova configuragao no terreno onde se cruzam os poderes politico-administrativos ¢ as ciéncias da informag&o, da comunicagao e dos sistemas bioantropossociais» (Da Agra, 1982b, p. 544). Efectivamente, o consumo de droga tem assumido a fungiio de entidade reprogramadora da penalidade, através de experiéncias sucessivas desti+ nadas a testar hipoteses que o Legislador e os técnicos da satide e da justiga vio sis- tematicamente colocando. ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS 4. A droga e a Economia. A drea econémica tem manifestado crescente interesse pelo problema da droga, procurando interpretd-lo a luz de mecanismos econdmicos € mediante o recur- $0 a conceitos utilizados a propésito de outros fenémenos (alcoolismo, tabagismo, consumo excessivo de farmacos) ou incidentes sobre a andlise econémica do Direito Penal: trata-se da economics of drugs de que sao exemplos mais significativos os trabalhos de Hellman (1980), Simmon Witte (1982), Luksetich & White (1982) e de G. Becker (1987), sobre os efeitos da legalizaao das drogas, e, em colaboraéo com K. Murphy (1988), expondo a theory of rational addition, bem como as obras destes investigadores com M. Grossman (1991), acerca da "teoria da adig&o racional” e da sua relag4o com o efeito dos precos junto dos consumidores; de igual modo, o econo- mista norte-americano M. Friedman tem-se pronunciado sobre a questo (Amado da Silva, 1994, p. 293), quer em alguns estudos quer, mais recentemente, no Congresso de Atenas promovido pela LIA (1990). Estas investigagées, que se situaram, de ini- cio, nos Estados Unidos e na Gra-Bretanha, passaram a ser prosseguidas também em outros paises do continente Europeu, designadamente em Franca, na Espanha e em Portugal. A légica que tem presidido as consideragées econémicas sobre 0 uso de dro- gas no se aparta, no fundamental, da matriz jé conhecida a respeito do consumo de tabaco, segundo a qual devero ser os fumadores activos a suportar os custos sociais que o tabagismo acarreta, no que se reporta 4 reposicao das condigdes de higiene e satide no trabalho (que imp6em normas de arejamento e ventilagdo) e no concernente is quebras de producdo decorrentes do absentismo laboral que o fumo provoca, ¢ aos inerentes encargos no sistema de satide; assim, os promotores dessas despesas estio socialmente obrigados a tornarem-se financiadores prioritérios, sendo economica- mente penalizados em fungio dos énus financeiros gerados pelo tabaco e, por con- seguinte, tributados de modo mais acentuado, através dos impostos cobrados na venda de produtos tabagicos (cfr. Sousa, J.,1992b, p. 93). ‘A nivel do alcoolismo tém sido preconizadas solugdes proximas das descritas para o tabaco, registando-se, um pouco por todo o mundo, a produgo de normas punitivas da condugao sob os efeitos do alcool, decerto o nivel em que os custos deste abuso sto mais evidentes; neste sentido ocorrem experiéncias diversas, desde a aplicagaio de inibigées de condugao por periodos longos, de condenagao em penas reclusivas ou de outras modalidades penais, designadamente a prestagao de dias de trabalho em favor da comunidade, em regra junto de instituigdes de beneficéncia ou de voluntariado (casos do Canada e dos Estados Unidos). O agravamento da carga fiscal, em termos progressivos, de acordo com 0 teor alcodlico das bebidas, tem constituido outra das vias utilizadas na pedagogia anti-alcodlica. 106 A DROGA, 0 DIREITO E 0 SABER No campo do uso de drogas G. Becker apresentou uma proposta segundo a qual se deveriam instituir pesadas sang6es patrimoniais, desta maneira se intervindo em ordem a diminuigio de ampla gama de transgressdes motivadas pela adi¢ao de toxicos (Shiray, M. 1991, p. 166); porém, a aplicagio deste modelo poderia produzir ressondncia no dom{nio da segunda geracao de infrac¢Ges, ori inando o aumento da delinquéncia conexa, destinada agora & satisfac das multas com que os drogode- pendentes fossem punidos — ou seja, instalava-se, por comando legislativo, a vicia- go do sistema. ‘A teoria da dependéncia racional formulada por Becker, Grossman e Murphy (1991) assenta na convicgao de que o prego mais alto das substAncias no pas- sado ou a expectativa de que sofrer4 aumento no futuro induz 4 diminui¢ao da procura no presente; por outro lado, o custo global do consumo corresponde a0 valor da aquisig4o (prego) acrescido do montante que sera dispendido por forga dos efeitos previsiveis do uso de drogas (por exemplo, no referente aos trata- mentos médicos, perda de dias de trabalho e eventuais perdas patrimoniais). Da elaboragdo desta teoria pode extrair-se a conclusao que o custo global do con- sumo privado (CP) = preco do produto (P) + danos emergentes (D) + lucros cessantes (L); assim, se CP=P+D+L, a previsibilidade de aumento dos danos emergentes determinaré a elevacao do custo; porém, em situagdes em que os lucros cessantes derivados do uso de drogas apre= sentem crescimento, implicando o aumento do custo global, o prego do produto pode baixar: com efeito, ocorrem casos em que 0 sujeito-consumidor sofrera, com 0 con- sumo, um agravamento dos lucros cessantes (nomeadamente no que se reporta a perda de trabalho), © que pode conduzir a que o prego da substincia desga, de modo a que a elevagao do custo global nao seja tao sensivel. Nesta sequéncia, o prego do produto, variavel que integra a formacdo do custo, pode oscilar de acordo com a evolugdo prevista dos danos emergentes € dos lucros cessantes, sendo que essa flu tuagao do prego resultara da extensdo desses custos indirectos, desde que o vendedor os possa prever (cfr. Amado da Silva, 1994, pp. 294-299). Todavia, a formulacao de teorizagdes econdmicas sobre as alteragbes de pregos dos produtos s6 tem sentido enquanto o consumidor mantém capacidade de opgao entre usar ou nfo usar as drogas; a partir do momento em que se constitui como drogodependente deixa de se Ihe representar a varidvel lucros cessantes, con= finando-se apenas 4 componente prego e, hipoteticamente, aos danos emergentes, s¢ atender a possibilidade de ser preso e contabilizar a perda da liberdade como dano 107 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. decorrente da conduta ilicita (seja 0 consumo em si mesmo, seja a pratica de actos delituosos como forma de assegurar 0 auto-abastecimento de droga). A concepgao proposta por G. Becker e seus co-autores suscita também a questo de que a descida dos precos derivada da legalizacao das drogas conduziria ao aumento do consumo, em particular junto de sectores de menores recursos, como € 0 caso dos jovens, pelo que a politica de prevengao da toxicomania devera con- templar a oneragio fiscal e o reforco da vertente informativa, indirectamente sub- sidiada pela populagao utente, através dos impostos que tributariam o circuito comer- cial das drogas. O agravamento da carga fiscal sobre as substéncias implicaria necessariamente a elevaco dos seus precos de venda ao ptiblico, abrindo-se caminho ao desenvolvimento de actividades criminosas, como meio de compressao dessa espiral - 0 que redundaria novamente na viciago de todo 0 esquema econémico con- cebido como fundamento da legalizagio. Na verdade, o aumento dos pregos provo- caria 0 crescimento correspondente da delinquéncia associada. Este modelo, uti- lizado para o tabaco ¢ para 0 alcool, possui virtualidades nesses dominios, porque se trata de fendmenos que nao geram o desenvolvimento de situagdes criminais, pelo menos com as caracteristicas conhecidas no concernente 4 droga; neste caso, a abstinéncia por caréncia econémica engendra, frequentes vezes, o recurso A crimi- nalidade de subsisténcia, pelo que a subida dos pregos é susceptivel de degenerar em aumento dos delitos mais comuns entre os consumidores (em especial, atentados contra o patriménio). A solugao de debitar aos consumidores as facturas inerentes a0 consumo, em sede de droga, é falaciosa, sendo que esses custos acabam por recair novamente sobre a comunidade, traduzindo-se na violacio de bens juridicos de natureza patrimonial e ainda na lesiio de valores como a seguranga e a ordem piiblica. Aqui reside também o cardcter inovador da toxicodependéncia, na medida em que os custos sociais resultantes do uso de drogas acabam sempre por ser reenviados 4 sociedade. O estudo econémico do Direito da Droga, mais nitidamente que outros seg- mentos da penalidade, pressupée uma abordagem integrada e pluridisciplinar, procu- rando definir o ponto éptimo da politica de satde publica face ao surto de substan- clas estupefacientes € psicotrépicas, construindo uma tecnologia de saberes em ordem a optimizagdo da politica criminal (Santos Pastor, 1986, pp. 225-229). Uma das componentes que tem constitufdo objecto preferencial de analise econdémica do consumo das drogas é justamente o respectivo custo social, de acordo com a nog¢aio que lhe é atribufda, nesta area, por M. Friedman (1972, p. 104); assim, na Gri-Bretanha e nos Estados Unidos, alguns autores tem-se dedicado a esta inves- tigagtio desde 0 decénio de Setenta — por exemplo, J. Holahan (1970), A. Leslie (1972) e R. Gillespie (1978), estabelecendo-se a dicotomia entre os custos explicitos A DROGA, O DIREITO E 0 SABER ou directos, que implicam a afectagdo de recursos e a realizagfo de um pagamento pecuniario ou em espécie, e os implicitos ou indirectos, em que nao ocorreu um pagamento formal, ou seja, recursos que ndo foram objecto de transacg4o, como sucede com o tempo dispendido por um toxicémano em tratamentos que, se nao fora © contacto com as drogas, poderia ser aproveitado em termos de maior utilidade social, por exemplo na laboragaio (Rufener et al., 1976; Garcia-Pablos, 1986, p. 376), Actesce que se revela como custos ndo mensuraveis 0 desprestigio dos servigos de justica e de satide ante a repetigao constante dos casos de droga e de delinquéncia por ela motivada, custos esses que incidem também sobre a capacidade de o Poder criar normas cujo cumprimento possa garantir; com efeito, o facto de as leis sobre droga apresentarem indices de violabilidade excessivamente sensiveis traduz-se na pro- gressiva representagiio negativa que é feita dos érgdos de soberania: estas externali- dades, que os consumidores no representam, constituem o custo social do consumo (CS), que é formado pelo custo global privado (CP), acrescido dessas externalidades, em que se incluem os denominados custos indirectos (CI); assim: CS=CP+CI. Simon & Witte (1982) procuraram fornecer um quadro de ambas as categos rias de custos, incluindo entre os custos directos: a assisténcia € o tratamento médico» -psicolégicos, directamente decorrentes do consumo (sobredosagem, desintoxicagdes fisicas e psicolégicas) ou indirectamente (casos de doengas associadas, v.g. tubercu- lose, SIDA, hepatites); 0 custo de aplicago das leis, destringando-se também aqui 03 dispéndios financeiros inerentes as normas objectivamente produzidas em relagio 4 droga (uso e trafico) ou a ela associadas (legisla¢ao sobre furtos, roubos, burlas, etc.) — nesta componente compreendem-se todos os custos relacionados quer com a cria- gio normativa quer com o trabalho das instancias formais de controlo, de reinsergio social e de profilaxia; integram-se também no nivel de encargos directamente repor- tiveis A droga as situagdes que decorrem da corrupgiio, do branqueamento de capi- tais e da fiscalizagao aduaneira. No dominio dos custos indirectos, Simon & Witte referem a perda de condigdes de trabalho por parte dos toxicémanos, quer por inca- pacidade objectiva quer por razSes extrinsecas: internamentos, prisdes, 0 absten- cionismo laboral e a morte precoce — trata-se de custos clinico-sociais, todos se encontrando no contexto de quebra de responsabilidade e de utilidade social dos cidadaos toxicodependentes. Ora, quer os custos directos quer os indirectos no se representam aos toxicodependentes, com excepgaio do risco de enclausuramento, @ (inica realidade que nao surge diluida no contexto de uma situag%o em que sujeito (consumidor) e objecto (droga) se fundem. 109 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS Na andlise econémica da droga ressurge parcialmente a concepgao utilitarista desenvolvida a partir do século XVIII, através das obras dos tedricos liberais. Da mesma maneira que com 0 alcoolismo e diversas enfermidades se suscitou a reflexiio sobre os custos econdmicos decorrentes desses fendmenos, a droga trouxe de novo a ribalta tal componente, o que se deve as enormes somas que, em ritmo crescente, os Estados vém dispensando na prossecugio de politicas criminais e sanitdrias; de facto, é sobre a sociedade civil que incide o financiamento dos custos da droga que oneram os orgamentos nacionais, pelo que os cidadaos contribuem anualmente com parte dos gastos afectos a essa 4rea. Neste sentido, o discurso econémico procura definir prio- ridades com vista 4 diminuic&o dos encargos produzidos pelas drogas, e pelo seu custo social, razio por que se tem verificado um apelo mais frequente por parte dos economistas em ordem a legalizagao do consumo e comércio dessas substAncias: de certo modo, o principal bem juridico tutelado transfere-se da satide para as finangas piiblicas, existindo em ambos os casos uma titularidade comum — a propria socie- dade (v. Ruiz Antén, 1986, pp. 333-335). Aquele valor é imanente 4 convivéncia humana, «...intimamente unido ao objectivo de uma melhor qualidade de vida» (Carbonell Mateu, 1986, p. 338), que aos Estados democraticos cabe promover e salvaguardar: dai que se acentue nova- mente a necessidade do intervencionismo estatal, recolocada a propésito da droga ¢ situando-se no auge da época de crise dos modelos de Estado social interven- cionista. Todavia, como sustentam alguns autores (Garcia-Pablos, 1986, pp. 373 e s.), por detras do valor satide publica, mesmo na vertente mais abrangente da qualidade de vida, evidenciam-se outros valores e bens juridicos, nomeadamente diversos inte- resses sociais legitimos dos cidadaos, como a integridade, a seguranga e o patriménio. A transgressio juridico-social que a droga , acaba por degenerar em duas valéncias criminais, distintas mas interligadas: de um lado, a delinquéncia organizada, de natureza econémica, muitas vezes associada a outras actividades subterraneas, con- figurando-se como uma nova modalidade da white collar criminality, em que os agentes intervém sempre — e cada vez mais — com crescente sentido de lucro (Carbonell Mateu, 1986, p. 348; Garcia-Pablos, 1986, p. 398); e, de outro lado, a criminalidade do pé-descalgo, movida pelo exército da procura, fruto da abstinéncia ¢ da necessidade de custear o produto, segunda geracaio delituosa decorrente do con- sumo de drogas, sendo exacto que, como referiu Lano de Espinoza, 0 toxicémano nao é um delinquente por consumir droga — faz-se criminoso quando nao a toma. O toxicodependente dos tempos actuais nao ¢ j4 o profissional que, manuseando as substancias, acaba por as utilizar, nem é sempre 0 doente a quem foi ministrada mor- fina e que se tornou morfindmano: a droga vulgarizou-se, democratizou-se, arras- tando nesse trajecto uma vaga delinquencial (G. Romero, 1986, pp. 404 e 413). 110 A DROGA, O DIREITO E O SABER A perspectiva econémica das drogas realga que o proibicionismo tem sido causa da elevada extensio da criminalidade, origindria e associada, através dos precos exorbitantes que os produtos atingem no mercado clandestino — onde se tem de pagar caro o risco que a actividade comporta — ¢ dos acentuados custos sanitarios directos, resultantes das adulteragdes dos produtos que nao s4o objecto de qualquer controlo de qualidade, agravados ainda em presenga das habituais condigdes de promiscuidade em que o consumo se verifica (por exemplo, com a troca de seringas entre heroinémanos); para além destes factores desestabilizadores criados pela politica proibicionista emerge ainda, da imperfei¢do deste mercado, a abundancia de vantagens econémicas que 0 negécio rende e que sao disponibilizadas para actos de corrupciio dos poderes, pondo em crise a idoneidade e o prestigio das instituigdes ¢ permitindo o recurso a economias de escala no circuito de produgio e distribuigao de drogas: trata-se dos denominados custos evitaveis, desde que se opte por um regime legal de consumo e comercializagao das substancias (Santos Pastor, 1986, pp. 236- -237). Contudo, outros custos existem cuja superagiio nao se afigura possivel com a liberalizagdo, em especial os encargos de tratamento, reinser¢do social profilaxia: os investimentos oficiais (na cultura, produgdo e circulagdo dos produtos); os custos psiquicos e sociais dos terceiros envolvidos (familiares dos toxicodependentes € cidadaos em geral), e as consequéncias fisicas e psicolégicas que o recurso as dro- gas implica para o utente. Naturalmente que o prego excessivo de venda de estupefacientes ¢ psi- cotrépicos resulta, em larga escala, dos elevados custos de produgao inerentes is actividades ilegais: produzir e distribuir bens proscritos por lei acarreta um forte acréscimo dos encargos respectivos, dado que se torna necessdrio remunerar mais generosamente a mao-de-obra quando se conhecem os riscos que essas acgdes com= portam, no sendo despiciendos os factores perda do produto, fruto de capturas ¢ apreensdes, e a necessidade de dispender maiores quantias em corrup¢ao: so 0s cus tos marginais deste sector econémico, determinando a elevagao dos pre¢gos e, conse- quentemente, dos indices de criminalidade conexa. Com efeito, quanto mais rigorosa for a proibig&o e mais duras as penas cominadas mais caros serao os factores de produgiio e, por decorréncia, os pregos de venda. Ora, a reaccao politico-social, definindo punigdes mais severas ¢ afectando meios de fiscalizagdo e controlo mais, sofisticados faz subir os custos marginais e, por conseguinte, os pregos de venda aos consumidores, 0 que se reflecte necessariamente no aumento da inseguranga e da delinquéncia funcional protagonizada pelos toxicémanos ~ é 0 circulo vicioso que s¢ instala nas sociedades contempordneas, por forca da droga (cfr. Simon & Witte, 1982, pp. 128 ss.). 4 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS Santos Pastor (1986, pp. 240-242) definiu um quadro de estratégias de pregos da heroina, referindo a procura elastica e a procura rigida, concluindo que a conduta do vendedor tenderé a ser diferente, consoante o comprador seja um toxicodepen- dente ou um consumidor ocasional: no primeiro caso, podera vender 0 mesmo pro- duto por um prego mais elevado (0 cliente ja nao pode fugir da teia), ao passo que, na segunda hipétese, importa transformar o consumidor fortuito em dependente, pelo que o prego deve baixar ou ser mesmo oferta gratuita. Os estudos promovidos pelo Departamento de Justiga dos Estados Unidos demonstram esta asserg4o, tendo-se comprovado através de inquéritos que, nos finais dos anos Setenta, na cidade de Nova Iorque, 67% dos drogodependentes tinham sido gratuitamente iniciados na heroina: esta politica de marketing estratégico gera a socializag4o dos consumos, tor- nando-se pedra angular da contaminagao social. Os resultados desta teoria de oferta da droga provocam duas realidades: o incremento da criminalidade, por parte dos toxicodependentes, como modo de sustentar a dependéncia, e 0 rapido ingresso dos utilizadores ocasionais nas fileiras dos toxicémanos, fazendo-os, portanto, potenci- ais delinquentes. Importa também prever, segundo o prisma criminal, qual a influéncia que a adopgao de medidas punitivas (pessoais ou patrimoniais) desempenhara na oferta e na procura de drogas. Havera que distinguir se as sangdes sdo aplicaveis contra os vendedores ou contra os adquirentes, uma vez que os efeitos divergem consoante os destinatarios. No dominio dos traficantes, as penas corresponderao mutatis mutandis, ‘a um imposto sobre as vendas, que acabara por ser pago pelos compradores, 0 que leva ao aumento dos precos e a menores porgdes de droga no mercado, suscitando o implemento da criminalidade funcional. Incidindo as penalizagées sobre os consumi- dores, estaremos em presenga de situag4o idéntica a um imposto sobre 0 consumo, podendo aligeirar, num primeiro momento, a procura, e conduzindo a diminuigao dos pregos e das quantidades em circulagao; no entanto, a baixa inicial da procura tenderd a ser atenuada a curto ou médio prazo, uma vez que a intimidago penal serd por si s6 insuficiente para arredar os consumidores dependentes dos produtos — e, logo que a procura recupere aproximativamente o nivel antecedente, os pregos apon- taro para a estabilidade, o mesmo acontecendo com a criminalidade associada. Alguns economistas chegam a conclus4o que a repressao sobre os utilizadores de droga proporcionaré a vaga delinquencial, quer proveniente dos toxicémanos, dado que os pregos s40 mais acessiveis, quer originada pelos traficantes, quer ainda, decorrente dos consumidores ocasionais, pois estes sabem que os riscos do uso de drogas (= prego + sanges) s4o maiores. Nesta linha de entendimento «...o rigor na aplicagio das normas punitivas vigentes ou o aumento do castigo do consumo tem efeitos dissuasivos e pode ser um instrumento eficaz de politica criminal » (Santos 112 A DROGA, 0 DIREITO E 0 SABER Pastor, op. cit., p. 247), sem embargo de 0 mesmo autor admitir que esta concepedio é susceptivel de pecar por parcialidade. Ora, sendo certo que a puni¢ao do consumo, consubstanciada no juizo de censura ético-social, pode constituir uma barreira penetraciio de potenciais consumidores nos meandros da dependéncia, parece-nos, contudo, de menor verosimilhanga admitir que os drogodependentes se afastarfio do consumo por se lhes fixarem penalizages mais rigorosas; com efeito, a elevagao de dosimetrias penais nem sempre se traduz num instrumento de despersuasio. Assim, se 0 indice de procura nao for sensivelmente afectado pelo incremento da punigio, os pregos nfo apresentardo descida digna de registo, 0 que ndo corresponderd a diminuigao da criminalidade associada. Poder ocorrer até um surto de novas situa- Ges de resposta por parte da comunidade drogada, procurando criar mecanismos de defesa contra a persegui¢ao criminal, o que tenderé a acentuar a tendéncia gregaria dos consumidores, potenciando comportamentos de risco, como a partilha de seringas. Todavia, a andlise economicista das drogas aponta maioritariamente os peri- gos do proibicionismo, na medida em que favorece a introdugdo dos drogados nos terrenos da criminalidade e facilita a propagagdo de doengas. M. Friedman (1990) sustenta que a proibigo produz esse fendmeno: «les toxicomanes sont obligés de s'associer a des organisations criminelles pourvu de se procurer la drogue; ils devi- ennent eux aussi des criminels pour pouvoir financier leur dépendance, ils risquent continuellement d'attraper des maladies, ils jouent avec la mort. Pour les "autres", le risque existe du moment que la drogue est interdite. Les toxicomanes commettent aux Etats-Unis quasiment tous les "crimes de rue". [...] Légalisez la drogue et les "crimes de rue" diminuieront trés fort [...]». Assiste-se, portanto, a interligagdo entre as vertentes econémica, criminal e sanitaria do surto das drogas, o que tem permitido que se desenvolvam teorias de sentido despenalizador do consumo, tomando como objectivo tiltimo a diminuigdo da delinquéncia aquele associada. Quando aludimos & delinquéncia associada, ha que ponderd-la desde uma dupla perspectiva: os delitos funcionais ou de subsisténcia dos consumos e a criminalidade do "colarinho branco", fruto da actividade econémica calculada e estruturada dos empresarios de narcéticos, em relagdo aos quais a filosofia penal devera assentar em pressupostos idénticos aos aplicdveis a delinquéncia econémico-financeira, uma vez que as penas patrimoniais © pecunidrias mais nao sao, neste dominio, do que riscos do negécio devidamente previstos e objecto de rapido ressarcimento. Na verdade, as organizagdes de pro- duglio e distribuigtio de drogas ~ empresas transnacionais — operam no mercado com uma légica empresarial, pelo que a reacdo penal ter de ser adequada. Punir pecu niariamente o trafico de droga é, em dltima insténcia, agravar a situag4o, que tenders para © aumento dos pregos dos produtos e, consequentemente, para 0 incremento de delitos funcionais, este, alids, 0 cruzamento de discursos entre a Economia ¢ 08 113 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. outros saberes sociais, visando a atenuago da criminalidade, 0 que comprova que, nesta drea, « o Direito Penal por si sé é insuficiente, inadequado e injusto » (Carbonell Mateu, op. cit., p. 353), pondo em crise, do mesmo passo, a conceptual- izagao de autores como Feurbach, que acreditam que se podem resolver problemas de indole social 4 custa de medidas proibitivas: como defende A. Garcia-Pablos (1986, p. 357), a conversdo desta questio ao plano criminal, com a inerente encomenda de solugdes a "cirurgia penal", é excessivamente redutora e simplista, confinando-se a uma reac¢fo social que tem primado por ser tardia, desorganizada e diletante — numa palavra, naif: «a pena chega sempre demasiadamente tarde», quedando-se pela sintomatologia e desprezando a etiologia. Por isso, aquele crimi- ndlogo preconiza a imprescindibilidade de uma perspectiva interdisciplinar e inter- -profissional devidamente coordenada, rumando em direc¢io a uma estraté; global, pluridimensional, omnicompreensiva, susceptivel de induzir 4 consensu: dade cientifica, (id., pp. 361-364), na qual o raciocinio econémico assume especial preponderancia. Esta é, em grande parte, a ratio que preside a formulagao da «teoria do comér- cio passivo», de F. Caballero (1989, pp. 126 e ss.), consistindo num modelo comercial desprovido de atributos tipicos do comércio activo, regido por normas apropriadas 4 perigosidade das mercadorias comercializadas, visando obstar ao estimulo da pro- dugdio, da venda e do consumo, teoria a que aderiu, entre nés, Pegado Liz, autor de um projecto legislativo que nao chegou a ser apreciado no Parlamento (1990). Assim, 0 comércio passivo fundamentar-se-ia em pressupostos como a constituigao de um monopélio do Estado para os sectores produtivo, importador e distribuidor de drogas, a derrogagao ou restri¢&o das liberdades de estabelecimento, de comércio e inddstria, a proibi¢&o da publicidade ¢ a tributagdo agravada das drogas, propor- cionalmente aos seus perigos e custos sociais. Retomar-se-ia em parte 0 espirito que levou a definigo de sistemas de distribuigao de drogas em Macau, nos anos Vinte, ¢ em algumas possessdes francesas. 5. Incriminagao. ‘Na realidade, os planos de observag4o da fenomenologia da droga e de esbo¢o de uma resposta social tém vindo a assentar numa légica invertida: nao se partiu da etiologia e da dinamica da toxicodependéncia, mas da sua sintomatologia mais evi- dente, isto 6, a delinquéncia conexa e, em tempos mais recentes, a transmissio de enfermidades infecto-contagiosas: procurou-se "agarrar" os efeitos, esquecendo-se 114 A DROGA, 0 DIREITO E O SABER as causas e abrindo-se caminho ao seu recrudescimento, estabelecendo-se compo- nentes de intervengdo que privilegiaram nogdes de utilitarismo social em nome da promogio e da defesa da satide piiblica — conceito erigido em trave-mestra do dis- curso politico. Ora, a droga entrou no espago de valoragao sécio-cultural e juridico na Europa ena América, no dealbar do século XX, enquanto fenémeno associado a desvio, no que concerne aos valores comportamentais: a divergéncia em relagio & padronizagiio social transformou o uso de drogas em crime, 0 que foi feito em nome de conceitos de moral politica; o surto que se iniciou na década de Sessenta, com 0 haxixe e os Acidos e, mais tarde, com a herojna, veio introduzir um novo dado no programa ~ a delinquéncia que emergiu das drogas, como causa e efeito, produzindo a grande alteragiio das sociedades contempordneas. A incriminagdo constante € acelerada do consumo e do trafico de estupefacientes e psicotrépicos foi gerada a partir de um sub-fenémeno: a segunda geragiio de actos transgressivos, os crimes funcionais. Esta tendéncia enfatiza os prejuizos sociais derivados do desvalor que a desrazio das dro- gas cria — por isso, nos tempos recentes, a puni¢%o das condutas que afectam abjec- tivamente as comunidades é mais elevada do que a decorrente do desvalor inicial, em fungdio do qual se vem apelando apenas ao simbolismo de uma mensagem repro- vadora. Daf resultou a visio neo-utilitarista do Direito da Droga, cuja fase inaugural da actividade judicial é mais directamente dirigida 4 reparago de danos patrimo- niais do que a ressocializagdo, valor que s6 a partir das conven¢des internacionais dos anos Sessenta passou a ser considerado como fundamental, ¢ ainda aqui em obe~ diéncia A nogao de utilidade inerente ao individuo socialmente integrado. De todo este prisma de apreciagao resulta como corolério a constatagiio de que 1 motivagtio dos Estados para os assuntos da droga (a sua problematizagao politico- sjuridica) nasceu da preocupagdo pelos progressivos indices de inseguranca que se notaram nos grandes centros urbanos e, tempos volvidos, também na periferia ¢ em onas rurais — donde se pode extrair a conclusao de que a sociedade sofre mais com 4 desvidincia “utilitéria" do que com a “expressiva", segundo a terminologia de I, Taylor, P. Walton & J. Young (1973). A droga carreou, com efeito, um universo de conflitualidade latente, tornando-o visivel nao sé através das imagens que 0 seu con- sumo comporta, mas sobretudo pela forga das externalidades reveladas por esse uso ~ nilo é 86 0 jovem que se injecta, mas os furtos de que sao vitimas os cidadaos para que esse jovem se possa injectar. Por isso a associagao que se estabeleceu, nos anos Sessenta, entre droga e juventude — binémio que h4-de perdurar nas legislagbes nuclonais durante todas as décadas subsequentes, como uma unido que os discursos do Poder reputam indissociavel; por isso, também, o tragado paralelo entre as men= fugens enderegadas a juventude e as linhas da filosofia relativa ao uso de droga, 116 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. parecendo, com frequéncia, que nao existe limite nem fronteira entre uma e outra, denotando-se, subjacentes as referéncias a satide (publica ou particular), conceitos de natureza moral, que visam reforcar valores que se receia estarem afastados da popu- lagdo juvenil. Nesta sequéncia, de um fendmeno que as legislagdes criminalizaram e que se situava originariamente no plano dos crimes sem vitima (ou de auto-viti- magiio), 0 consumo de substancias estupefacientes e de psicotrépicos foi transferido para o nivel de crimes que afectam a sociedade globalmente considerada — dai o apelo mais recente a responsabilizagdio dos drogados; 0 consumo de drogas prejudica nao s6 0 utente e os seus familiares, mas também toda a comunidade, quer pelo exemplo, quer pela desresponsabilizagao, que merece censura, quer, ainda, pelos ele- vados custos com que vem onerar as finangas publicas (sistemas de satide e segu- ranga social e de justica). Por isso a droga passa a ser encarada como um flagelo social, causa da perturbagio da vida colectiva nas sociedades actuais. 6. A relagado droga-crime. A droga constitui, conjuntamente com o terrorismo e a delinquéncia econémica, o principal fenémeno criminal da segunda metade do presente século: entre nés, um antigo Director da Policia Judicidria, Marques Vidal (1989), desabafou que «a droga é pior que 0 terrorismo». Na realidade, 0 consumo de estupefacientes psicotrépicos verificado até ao fim da Segunda Guerra no possufa dimensio que o posicionasse como um grave problema sanitario ou judicial, confinando-se a deter- minados sectores sociais demarcados, em regra bem colocados em termos econémi- 0s, no provocando qualquer espécie de criminalidade por arrasto. Em Portugal, até ao decénio de Setenta, foram inexistentes ou episdicos os casos processados por crimes decorrentes do uso de drogas; e as suas primeiras manifestagdes situaram-se a0 nivel da apropriagdo de medicamentos utilizados como sucedaneos, através de assaltos a farmacias. Contudo, a partir de entdo a droga assumiu propor¢des de uma questo criminal, ja no pelo desvio que o seu consumo representa, mas por forga de outros comportamentos a que induz, quer na fase de distribuig&o, quer como meio de angariagao dos fundos necessarios a subsisténcia. E nesta etapa que os Estados e a Comunidade Internacional revelam elevados indices de preocupagiio face a esta nova realidade: a droga ameaga a coesio dos poderes e das instituigdes, pondo em xeque a transparéncia que os sistemas democraticos deles exigem e suscitando um percurso criminal sem precedentes nos circuitos da oferta e da procura, transformando os seus agentes em transgressores das regras da convivéncia humana. Assim, os Estados 116 ‘A DROGA, 0 DIREITO E 0 SABER yéem-se confrontados com duas modalidades especificas de crime: do lado dos vendedores e das organizagdes em que se integram, assiste-se a uma reformulagao da criminalidade econémica — uma nova white collar criminality —, enquanto que do lado dos consumidores se assiste 4 multiplicagao de formas j4 conhecidas de delitos contra a propriedade, utilizados como instrumentos para assegurar a manuten¢ao do poder de compra das substéncias. As politicas delineadas com vista 4 superacdo desta fenomenologia repartem~ -se entre o incremento da repressdo (contra os traficantes e/ou contra os toxicd- manos) e a adopgao de posturas de tendéncia mais flexivel em relacdo ao consumo. Por isso, 4 medida que a trajectoria da racionalidade legislativa evolui do paradigma criminal para concepgdes que atendem de modo mais acentuado & personalidade do infractor (paradigmas clinico-psicossocial ¢ biopsicossociolégico), o Direito tem procurado adquirir uma perspectiva cientifica do problema do uso das drogas, aban- donando as atitudes repressivas que durante tanto tempo erigira em predominantes; ¢, no decurso desse trajecto, cimentou-se uma légica penal nova, que prescinde cada ‘vez mais do exercicio do direito de punir como reacgio social, preferindo o recurso 4 medidas terapéuticas e ressocializadoras. Nesta sequéncia, a consagragao legal da possibilidade de nao incriminagiio dos toxicodependentes pela pratica de crimes associados ao consumo inscreve-se no Ambito de um processo de continuidade de opgilo clinico-ressocializadora, visando que a puni¢do niio entrave a recuperagilo, 0 que é feito em nome da satide particular de cada consumidor ¢ da sua (re)utilidade social. Ora, a ocorréncia nas sociedades contempordneas da criminalidade de droga potenciou a emergéncia da toxicodependéncia como factor criminégeno, correspon dendo a trés tipos delinquenciais: os crimes funcionais ou conexos, que constituem consequéncia directa do sindroma de abstinéncia; os delitos derivados da desini- bigilo causada pela intoxicagao; e, enfim, os crimes resultantes da situagao de mar- ginalidade social para que as drogas remetem os seus consumidores (cft. Jiménez Villarejo, 1986, pp. 166-177). ‘A delinquéncia funcional ou conexa situa-se no plano dos efeitos directos imediatos da toxicodependéncia, sendo uma manifestaco da dependéncia fisica ¢ paiquica: o consumidor tem absoluta necessidade das substdncias e, 4 medida que a tolerincia progride, de doses cada vez maiores e, por conseguinte, de verbas mais elevadas, Por isso, quando o patriménio préprio ou familiar esta exaurido, o recurso A pniticn de crimes é frequente, correspondendo a um dos estdios do percurso adicto, podendo revestir a forma de atentados a propriedade, ou burlas, ou de exercicio da prostituigllo, A droga, transgress%io inaugural, gera novas infracgdes juridicas © is, estabelecendo-se um inacabivel ciclo evolutivo. Com efeito, a criminaliza- V7 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS ¢4o do uso das drogas tem provocado o surgimento de segundas geragGes criminosas, envolvendo os vendedores e os compradores das substéncias. Os crimes suscitados pela desibinigio a que a droga conduz apresentam alguma similitude com 0 quadro criminolégico da intoxicagao alcodlica; de facto, admite-se que o consumo excessivo de Alcool e de drogas possa actuar de forma desi- binidora no sujeito, criando condigées para a pratica de actos que, sem essa adico, Ihe estariam vedados. Alcool e droga funcionariam, portanto, como fertilizantes quimicos do terreno biolégico (0 corpo do agente), facilitando a adopgao de com- portamentos desviantes. Alguns crimindlogos consideram que a intoxicagio alcodlica apenas é sus- ceptivel de afectar superficialmente o sujeito, pelo que 0 comportamento que viesse a ser assumido nao se apartaria em demasia da sua auténtica personalidade (Mezger) ~ a demonstrago do principio in vino veritas. Porém, ainda que assim seja, existem varios autores que entendem que a embriaguez favorece a perigosidade latente da personalidade do sujeito que nao interiorizou suficientemente os parimetros de con- trolo fornecidos pela socializacao (Jiménez Villarejo, 1986, p. 168); e, no dominio das drogas, procura definir-se uma situagao andloga, pelo menos no que se refere & desinibigdo induzida por algumas substdncias, que facilitario 0 cometimento de determinados actos criminais. As legislacdes penais prevéem, desde h muito, os casos de delinquentes que sio consumidores abusivos de bebidas alcodlicas ou de drogas, equiparando os regimes aplicaveis. O proibicionismo norte-americano estabeleceu, quase em simul- tineo, a proscri¢ao do dlcool e dos estupefacientes, em nome da satide e dos bons costumes: € conhecida a mensagem puritana e, ao mesmo tempo, segregadora, con- tida quer na Lei Seca quer na proibi¢do das drogas, que os dignitarios dos Estados Unidos nos fora internacionais, Brent e Porter, reclamaram no inicio deste século; ¢ © segregacionismo subjacente a esse discurso pretendia isolar as comunidades irlan- desa e chinesa, aquela no que toca ao Alcool, esta no respeitante ao dpio, mas dispondo em ambas as situagdes de um capital moralizador que favorecesse a justi- ficagdo de tais decisées. De facto, como sublinhou J. Fatela (1989, p. 17), «..cada sociedade segrega a suas préprias toxicomanias». A lei penal portuguesa, a semelhanga de muitas outras, introduziu os consumi- dores de drogas e os alcodlicos num espago comum de apreciagaio da responsabili- dade criminal e de sujeicfo a medidas de seguranca. Assim, 0 Cédigo Penal de 1886 atribuia A embriaguez, verificadas certas circunstancias, o cardcter de atenuante (artigos 39°, 21 e 50°, 1°); e, nesta ultima disposig&o, era possivel incluir 0 uso de estupefacientes ¢ psicotrépicos no contexto da privagdo voluntaria e acidental do exercicio da inteligéncia; ja 0 artigo 71°, relativo & cominag&o de medidas de 118 A DROGA, 0 DIREITO E 0 SABER seguranga, procedia ao paralelismo entre drogados e alcodlicos (§ 2°). O Codigo Penal de 1982, por seu turno, remeteu os drogados para o regime aplicavel aos alcodlicos, no que tange 4 pena relativamente indeterminada (artigos 86° a 88°). Ora, ao longo dos séculos, o alcool constituiu um factor criminal dotado de extrema relevancia, aparecendo frequentemente associado a condutas violentas (homicidios, crimes sexuais, fogo posto) e A vagabundagem (Fagan, J, 1990, pp. 241 e 257). Seliger realizou um estudo sobre alcoolismo e delinquéncia, nos Estados Unidos, concluindo que certos delitos eram projectados em bares ou tabernas, onde se recrutavam os climplices, servindo as bebidas de estimulante para a pratica dos actos anti-sociais, sendo ainda nesse cendrio que se procedia a divisio de produtos de roubos e assaltos: a taberna, e a sua versao mais recente, o bar, eram 0 ponto de partida e de chegada de muitos dos agentes da transgressio, concep¢ao que nao deixou de ter influéncia na edig&o das politicas anti-alcodlicas (a Liga anti-saloon foi um exemplo). Assim, a adicZo de drogas e, em especial, no que respeita 4 heroina, 4 cocaina ¢ ao haxixe, produziria efeitos estimuladores da delinquéncia idénticos aos decor- rentes do abuso de alcool, pelo que se deveriam aplicar quadros penais equivalentes; acresce que, em casos de mistura entre drogas e alcool, a relagao entre 0 consumo ¢ o crime é mais forte. O terceiro tipo criminal gerado pela toxicomania — os delitos fruto da mar+ ginalizag&o social -, deve ser perspectivado fora de um quadro redutor das subeul= turas & marginalidade e desta a transgressdo penal. Na verdade, a opcdo de um sujeito em se enquadrar num contexto subcultural especifico nao o torna necessariamente incurso em condutas criminais; tratando-se de um drogado surge, no entanto, e desde logo, a infracgao inicial (o proprio consumo), ocorrendo com frequéncia os crimes da segunda gerag&o (delitos funcionais). Jiménez Villarejo (op. cit. pp. 172-173) admite que, dada a pluricausalidade dos fendmenos sociais, nao é estranha a exis- téncia de dois percursos paralelos, um no sentido delinquéncia-marginalidade, € outro de sinal contrario. Esta correlagao afigura-se demasiadamente redutora, em particular se desenhada fora do Ambito das toxicomanias — as criminalidades do “colarinho branco" ou do "colarinho azul" nao degeneram habitualmente em mar- winalidade, pelo menos na acep¢4o mais corrente que o termo comporta. No espago das eondutas adictas poderd esbogar-se 0 transito tipico do consumidor com 0 seguinte sentido: Consumo —*® Crime (acto de consumir) —* Marginalizagao social Crimes (funcionais) —» Consumo ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS A penetragdo pelo drogado dos terrenos da marginalidade surge, por con- seguinte, como resultante directa do uso de drogas, podendo desenvolver-se de ime- diato ou através de um processo de aproximagées sucessivas, 4 medida que vai per- dendo as ligagdes com o meio afectivo e social origindrio e alargando contactos com a subcultura dos toxicémanos (cfr. Horton, P. & Hunt, C., 1981, pp. 112 ss.); e essa vivéncia subcultural pode tornar-se causa da pratica de crimes embora nao pareca que tal mutago suceda em todos os casos. Efectivamente, existem drogados que per- manecem durante muitos anos, ou até toda a vida, social e economicamente integra- dos, no se afastando para zonas de marginalizagao: os cocainémanos e os depen- dentes de anfetaminas séo um bom exemplo, revelando-se como utilizadores-tipo desses produtos individuos hipersocializados ¢ inseridos em espagos de projec¢iio intelectual, sécio-econémica ou profissional (Jiménez Villarejo, op. cit., p. 174). ‘Trata-se, afinal, de uma aristocracia da toxicomania, que nao sofre na integra os efeitos estigmatizadores das drogas (a menos que surja um percal¢o clinico, como a overdose, ou 0 cruzamento com as instancias judiciais). Nestes casos, o transito do consumidor limita-se ao sentido Consumo —# Crime (acto de consumo) — Actos preparatérios do consumo (obtengao do produto) —» Consumo Verifica-se, pois, que a associagao entre toxicomania, marginalizacao social e criminalidade procede especialmente no dominio da heroinomania, provocando a denominada delinquéncia de pé-descalgo, com incidéncia privilegiada no trafico para consumo e em outros comportamentos favorecidos pela subcultura da droga. ‘Tem-se entendido que os individuos que consomem drogas caras (herofna, cocaina) possuem maior predisposi¢fio do que os ndo consumidores para a perpetragdo de delitos, que decorrem do préprio estilo de vida adoptado, onde abundam as activi- dades ilicitas, desde os furtos e roubos até ao jogo e a prostituicao (Hunt, D.E., 1990, pp. 159 e ss.). A violagdo de um comando juridico como a proibigdo de uso de dro- gas poderia dar origem a um ciclo de crime continuado (aqui nao utilizado segundo © seu rigoroso conceito penal), que seria formado por sucessivas metamorfoses do delito inaugural. Os estudos realizados nos Estados Unidos, pelo National Institute on Drug Abuse (1987) conclufram que do recurso aos téxicos néo resulta, como causa directa e necessdria, o crime. Ora, nao existe ainda uma definigdo precisa da relagdo entre o consumo de narcoticos e o crime, encontrando-se as investigagdes em fase pouco propicia a extrairem-se conclusées: em Portugal, por exemplo, o primeiro estudo sobre droga e criminalidade foi encomendado apenas em 1991, pelo Gabinete de Planeamento e de Coordenagtio do Combate A Droga, do Ministério da Justiga, ao 120 A DROGA, O DIREITO E O SABER Centro de Ciéncias do Comportamento Desviante, da Faculdade de Psicologia e de Ciéncias da Educag&o da Universidade do Porto, aguardando-se a sua ultimagio; ¢ mesmo em paises onde estes problemas so objecto de pesquisa desde hé muito mais tempo nao é ainda possivel apurar resultados definitivos (cfr. Chaiken, J.M. & Chaiken, MR, 1990, pp. 203 € ss.). Algumas referencias podem, porém, ser feitas em relagio aos crimes executa- dos por toxicémanos, uma das quais parece bem expressiva: os drogados tém acen- tuado indice de detengdes subsequentes aos actos delituosos, o que poderd revelar a sua inabilidade para prosseguirem carreiras delinquenciais: trata-se de uma nova modalidade de delitos por necessidade (de persisténcia do uso de drogas). Por outro lado, é no dominio da heroinomania que os crimes funcionais surgem com maior evidéncia, o que é explicado pelos elevados pregos do produto e também pela sub- cultura gregaria potenciada pela heroina. J. M. Chaiken & M. R. Chaiken (1990, pp. 234 e ss.) defendem que a adigdo de drogas nao é, por si sé, causa de criminali- dade predatéria, tese esta que outras pesquisas tendem a infirmar, adiantando que cerca de 50% dos consumidores-delinquentes enveredaram pelo crime antes de se tornarem toxicodependentes; fica, deste modo, em aberto uma outra questo, que ¢ a de saber se a vivéncia delinquencial é tributaria do uso de téxicos. O Conselho da Europa, em Relatério de 1974, concluiu que est4 provada a relagdo entre 0 uso abuso de drogas e o crime apenas no que conceme a infracgdes de posse de estupe- facientes psicotrépicos e & condug3o rodoviaria, nao dando como demonstrada a ideia de que a droga agravou a delinquéncia. Muitos inquéritos efectivados em varios paises referem que elevadas percentagens de toxicodependentes tem problemas com ‘1 justiga penal, 0 que nao exclui a hipétese, que parece tender a afirmar-se, de que em muitos desses casos a iniciagio dos sujeitos no circuito punitivo ocorreu por forga do consumo ou respectivos actos preparatérios. 7. Tendéncias proibicionistas e liberalizantes. A internacionalizagao do proibicionismo determinou o desvio do comércio das drogas para os mercados subterréneos, porventura mais rentaveis do que os cir cuitos legais, A proibigdo do consumo foi concretizada sem que os Estados tivessem previsto as consequéncias dessa decistio, que o tempo veio demonstrar serem de extrema gravidade, a nivel da delinquéncia, quer do lado da oferta quer ao nivel da procura, A criminalizagao do uso de t6xicos teve alcance mais abrangente do que 08 Logisladores haviam admitido, provocando o surgimento, por arrasto, de novos 124 ae ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS, delitos e o implemento de diversas infracg6es: a incriminago nao s6 no cumpriu os seus objectivos (a diminui¢ao do recurso a estupefacientes), como veio trazer colacdo outras dimensées transgressivas, pondo em causa a validade do direito de punir e o prestigio dos Estados, e abrindo caminho, do mesmo passo, a auto-repro- dugdo das ilicitudes. Poderd dizer-se que a opgéio criminalizadora assumida pelas instancias nacionais e internacionais, nos primérdios do século XX, se revelou con- traproducente em relagdo aos propésitos que a animaram, constituindo, por con- seguinte, um erro de calculo juridico e social. As vicissitudes ocorridas no decurso das tiltimas décadas, no 4mbito da pena- lidade das drogas, vieram comprovar a existéncia de um percurso sobreposto entre a utilizagao de estupefacientes e psicotrépicos e a delinquéncia, acarretando o surgi- mento de novos fendmenos delituosos (v. g. 0 branqueamento de capitais). Ora, tem vindo a sustentar-se que nos decénios mais recentes 0 consumo de substancias t6xicas parece fazer parte da normalidade e dos ritos das camadas juve- nis em paises desenvolvidos (Botvin, G. J., 1990, p. 461), surgindo glorificado quer nos media, quer no imaginario de certos sectores da populagao, por via directa e indi- recta. Com efeito, a civilizagao e a cultura actuais tém entronizado mitos que sao, ao mesmo tempo, paradoxais com a realidade quotidianamente vivida: é a mistificagao do sucesso e da fortuna, das conquistas adquiridas pela forca do dinheiro e do status social; numa época em que parte significativa dos cidadios de todo o mundo se debate com o subemprego e com o desemprego, é erigido como modelo gratificante a hipervalorizacao de horarios sobrecarregados dos titulares de altos cargos, pibli cos e privados, criando-se 0 mito do executive, como elemento fulcral do éxito, do enriquecimento e do elevado padrao de vida. A imagem e a expectativa de sucesso, que os meios de comunicacio veiculam, torna-se susceptivel de produzir angtistias profundas quando o sujeito enfrenta quadros reais bem diversos, podendo conduzir a situagdes propicias ao uso das drogas — se nao como alternativa, pelo menos como paliativo e meio de auto-camuflagem ou despiste das expectacdes goradas. Nesta perspectiva, o fenémeno da toxicodependéncia é uma disfungdo social interiorizada pelo sujeito. Na verdade, desde a década de Setenta que o abuso de drogas vem crescendo «... em relagdo directa com a agitagdo, procura e criacfio de novas formas de relacionamento social e de sucesso pessoal em concorréncia acelerada e com a resposta quimico-farmacéutica diversificada e sofisticada as necessidades sociais em explosao crescente » (Marcelo Curto, F. , 1993, p. 7). A toxicomania tornou-se, por- tanto, doenga civilizacional. Ao longo dos séculos pregressos assistiu-se & sucessio de comportamentos desviantes e enfermidades, vindo uns ocupar o lugar pouco tempo antes deixado vago por outros, substituindo-se quase de maneira ritmada: a lepra, depois de controlada, 122 cea nate A DROGA, O DIREITO E O SABER cedeu a vez a loucura, confinando-se os doentes mentais ou as embarcages enviadas para o alto mar, ou as antigas leprosarias, sempre, porém, em regime de exclusio social e apartamento; no seguimento das revolugdes industriais, a tuberculose passou a deter uma posi¢ao importante no universo das doengas indomaveis, encarada ora como face visivel do castigo divino, ora como manifestag3o da presenga diabélica —e sobre 0s tisicos de Oitocentos e do inicio da nossa centiria abateu-se novamente a exclusdo, derivada nao sé do cardcter infecto-contagioso da doenga mas também da representago social dos enfermos, olhados com lumpén (subnutridos, sem abrigo, promiscuos) e seres sexualmente viciosos e predispostos aos crimes sexuais; e, de maneira idéntica, as enfermidades venéreas tornaram-se também causas exclu- sivas, sobre esses doentes recaindo os andtemas das comunidades. Doenga e desvio foram durante séculos expressées sindnimas, ambas implicando o apartamento coac= tivo dos sujeitos do meio social. Enfermo e desviante constitufam parcelas de um mesmo pecado capital a abater. Assim, a cominag&o de penas de desterro para deter- minados crimes entronca-se também na mesma racionalidade sécio-politica: excluir e eliminar as diferengas, de molde a purificar 0 corpo social, mantendo-o impoluto, © Evangelho fala-nos dos pecadores para quem os templos permaneciam cerrados até A remissao das faltas: o Direito impés expiagdo equivalente, porém definitiva, nos mares onde navegavam os navios dos alienados, nas ilhas povoadas por delinquentes desterrados, nos hospicios, leprosarias ¢ sanatérios onde os doentes aguardavam © cumprimento da peniténcia vitalicia. No século XIX 0 alcoolismo apareceu como fendmeno objecto de estudo por parte da Psiquiatria, recebendo também tratamento juridico e penal, como ja referi+ mos. Para além da intoxicagiio alcodlica ser encarada como eventual circunsténcia tenuante (ou, por vezes, agravante) das condutas imputadas, a lei civil revelou pre~ ‘ocupaciio com a salvaguarda de bens materiais que o alcodlatra poderia delapidar. O desvio produzido pela etilizagao habitual tornou-se, pois, nicleo de especial atengiio por parte dos Legisladores, apesar da assimilagao social que, progressivamente, foi ‘obtendo na civilizagéio ocidental, sem embargo dos perfodos de intolerncia de que ‘4 Lei Seca norte-americana foi exemplo. Perante os desvios j4 conhecidos, as estruturas de Poder aprenderam como geri-los, assimilando-os ou excluindo-os, mas dispondo de condigées que permitiam intervir com um minimo de eficdcia e seguranga; e, em face da criminalidade, houve sempre ensejo de reagir, punindo com suplicios, desterros, prisdes — ¢ as comu nidades pacificaram-se, acabando por acolher a coabitaco com a delinquéncia =, jubendo que existem policias ¢ leis, cadafalsos ¢ cadeias — em suma, que ha um apa~ wlho de Estado, um sistema judicidrio penal — para assegurar a ordem; ante a loucura © degenerescéncia, o Poder possuiu sempre mecanismos bastantes de intervengilo, 123 ee ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. pelo menos para salvaguardar os sos do contégio social, através da instituigdo mani- cémio, ou da prisdo, enclausurando em qualquer dos casos — e as comunidades podem respirar aliviadas (Foucault, 1987, pp. 45 e 493-496). Destarte, delinquéncia, loucura e alcoolismo foram sendo integrados nos poderes de administracdo dos Estados, que cri- aram meios de defesa social (prisdes, asilos, hospitais), fazendo reinar a paz no mundo dito da normalidade, abrigado das indesejaveis contaminagées. A problematica do consumo de drogas ¢ a sua penalizagSo inscreve-se na mesma genealogia dos comportamentos desviantes, herdeira da doenga mental e do alcoolismo, mas alcangando uma postura autonomizada: como notam V.-N. Grappe & J.-J. Yvorel (1992, p. 197) «... il faut noter que, tant au plan des sources que sur celui des problématiques, il semble qu'une rupture déterminante dans les maniéres de penser a la fois les conduites et les matériaux se soit produite a la fin du XVIII siécle: 'imaginaire des "drogues" se différencie & ce moment de celui de livresse alcoolique, et petit & petit, la question de la "toxicomanie" tendra & acquérir une autonomie et une problématique spécifique, dans les catégories de descriptions des "états de conscience modifiés", dans sa prise en compte théorique, thérapeutique et social». Dai que a Histéria da criminalizagdo (tedrica e pratica) da utilizagdo de drogas deva ser reatada no contexto mais amplo da incriminagao e da "biopolitica", abrindo-se caminho a uma vasta multiplicidade de atitudes que, temporal ou geo- graficamente, receberam a estigmatizacio criminal, Nesta sequéncia, V.-N. Grappe & J.-J. Yvorel (op. cit., p. 208) preconizam como eixo de investigagiio 0 estudo em paralelo das historias comparadas da tipificagdo criminal de algumas praticas, v.g. a masturbag&o, a homossexualidade, o suicidio, 0 alcoolismo ¢ a toxicodependéncia, procurando descortinar se 0 movimento criminalizador esta a atenuar-se ou a ampliar-se e como se processa esse desenvolvimento no ambito das regras juridicas e morais e do pensamento médico. Trata-se, com efeito, de planos de observag4o de condutas em que o papel desempenhado pela Medicina, pela Economia e pela ideo- logia politica sao determinantes: o proprio conceito de toxicémano foi definido pelo discurso médico, em 1880, substituindo os termos eterismo e morfinismo, trans- formando-se, portanto, numa nogio mais abrangente; e dai nasceu a rotulagem, o estigma como o definiu Becker (1963), a segregagio: «l'exclusion du toxicomane débute avec sa nomination comme tel; I'exclusion ne réduit rien au phénoméne, elle assure plutét sa reprodution. Le déchet s'élimine, mais non sans reste; une regression l'infini assure la persistence, le retour réel dans les interstices du texte. Le toxicomane n'existe pas: c'est un nom pour I'innommable, I'indice de I'indicible» (Kaminski, D., 1990, p. 184). Ocorre entdo um processo de auto-reprodugao ideolégica do sistema em que a droga € objecto, ¢ no qual a reac¢o social criminalizadora ¢ marginali- zadora gera a realidade que a legitima (Baratta, A., 1991, pp. 157-158 e 165-171). 124 A DROGA, 0 DIREITO E O SABER E é ainda o poder médico que tem relevante influéncia na elaboracao das politicas de droga, partindo da definic&o de uma substancia como estupefaciente e de um con- sumidor como toxicémano, n&o sendo despiciendas as contribuigdes de lobbies econdémicos € 0 jogo de bastidores por parte dos titulares do Poder (v. Cesoni, M., 1992, pp. 141-146). ‘A realidade toxicomania enraiza-se no vasto dominio dos comportamentos desviantes, relativamente aos quais nao se produziram ainda vacinas nem se conhecem terapéuticas infaliveis: se a tuberculose, ¢ a lepra, ¢ as doencas venéreas possuem hoje elevados meios de cura, nao se podendo falar de epidemias, pelo menos nas zonas do globo que nao vivem em subdesenvolvimento econémico ¢ sanitério, a toxicomania continua a ndo apresentar tendéncias decrescentes, pare- cendo evoluir continuamente, sendo exiguos todos os meios de preven¢io, trata mento e reinsereo até agora testados a escala universal; e, a medida que se constata © incremento das linhas de oferta e procura, os Estados continuam a busca de uma solug&o, que se sabe j4 n&o se situar preferencialmente no plano criminal. Com efeito, ha varios anos que o Relatério Stewart-Clark, elaborado no seio das insti- tuigdes comunitarias e aprovado pelo Parlamento Europeu (1986), proclamou que a tendéncia para punir os drogados parece ser de todo em todo contraproducente, O combate a droga, centrado ao nivel da oferta, néio deu até ao presente resul= tados entusiasmantes, nem mesmo nos Estados Unidos, onde se langou ha muito 0 programa war on drugs (1971) e onde sao anualmente disponibilizadas verbas ‘stronémicas em ordem a eliminag&o dos mercados clandestinos; e, pelo contriirio, ‘as quantias dispendidas permitiram engrossar um auténtico exército burocritico, cuja ¢ficiéncia é ja posta em causa: como referem algumas correntes de opinido, o proibi- clonismo transformou-se também num negécio rentavel. A problemitica da droga impée aos Estados ¢ 4s instancias internacionais duas vertentes da realidade que no podem ser desatendidas: por um lado, os coman- dos legais, por mais imperativos e pretensamente "invioléveis" que sejam, nao bas- tam para a resolugao da procura de toxicos, uma vez que os elementos que con- tribuem para essa procura no sao soluciondveis a partir de um quadro normativo, ainda que revestido da forga inerente a proteccao coactiva. Desta assergao emerge a constatagtio de que a politica de combate a droga, para ser minimamente eficaz, deve fusentar sobre um plano factorial e pluridisciplinar, englobando abordagens de Indole psicologica, pedagégica, econémica e sécio-cultural, sem esquecer que & droga, sendo um facto cultural, modela a cultura (Fatela, J., 1989, p. 19). Na repro= dugilo do circuito da droga, os diversos actores sociais so interdependentes ¢ condi- clonamese reciprocamente, estabelecendo-se planos de interferéncia entre todos (of, Baratta, A., 1990, p. 161). Por outro lado, ha que racionalizar os sistemas de 125 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS regula¢ao da oferta e de luta contra o trafico, que nao podem continuar a ser mais onerosos do que os sistemas de educaco, de satide ou de seguranga social (Marcelo Curto,. F., 1993. pp. 9-10). O proibicionismo tem ocasionado a exaustao das financas publicas e, correlativamente, a subida dos precos de venda a retalho, provocando, como efeito imediato, o implemento das delinquéncias directa e funcional, desen- volvendo um ciclo inacabavel de aumento dos custos sociais das drogas. Aqui reside 0 fracasso dos programas denominados de luta contra a droga, acarretando também a fragilizag4o e o desprestigio dos érgaos oficiais, incluindo diversas instancias do Poder; e, do mesmo passo, a légica repressiva dimanada da criagdo legislativa con- tamina até o proprio discurso médico (Kaminski, D., 1990, p. 196). Estas razdes tem motivado a opgao de alguns autores e movimentos interna- cionais no sentido de se despenalizar ou liberalizar 0 uso das drogas, apelando-se que o Estado abandone a perspectiva meramente repressiva e se assuma como entidade reguladora do mercado de psicotrépicos e estupefacientes (¢ 0 caso da CORA — Coordenation Radicale Antiprohibitionniste). Assim, A. Baratta (1990, pp.164 e ss.) considera que os efeitos secundarios das drogas (relativos 4 incrimina¢ao) sao negativos, dando lugar a que se refiram os “custos sociais" da criminalizacao, que resultam da prépria criminalizagio oficial e da reacgao informal, ou seja, da atitude negativa da opinido publica, determinada também pelo processo incriminador e mantida pela acco dos meios de comunicacao social. Ora, prosseguindo nesta Idgica nao surpreende que investigacdes realizadas ha duas décadas permitam concluir que o contacto inicial de muitos consumidores com a policia acaba por facilitar o inicio da "carreira da toxicodependéncia" — quer dizer, 0 toxicodependente é "fabricado" também pelas instancias de controlo, enti- dades que, com os media, so propicias a aplicagdo do estigma desviante ou de delin- quente. A critica do proibicionismo considera que os custos sociais inerentes 4 pena- lizagao esto repartidos por cinco 4reas — os consumidores, o meio social, o sistema de justiga penal, os sistemas alternativos e o mercado —, em todas elas se projectando efeitos prejudiciais (Baratta, A., 1990, pp. 164-171). No dominio dos consumidores as consequéncias negativas sao constataveis a partir da marginalizagao a que sao votados, por forga da ilegalidade do uso de dro- gas, compreendendo o processo estigmatizador, acentuado pelo relacionamento da populagao utilizadora com as instdncias policiais e judiciais, e agravado 4 medida que 0 discurso politico-juridico endurece. Ora, a segrega¢io inerente a pratica incriminatéria repercute-se também no meio social dos toxicémanos, envolvendo os familiares e as pessoas que constituem © seu niicleo mais préximo. 126 A DROGA, O DIREITO E 0 SABER Também o aparelho penal sofre os efeitos perversos da criminalizacao, prin- cipalmente no tocante a erosfo a que se expe, resultante da comprovada ineficdcia dos instrumentos penais para a contengdo do mercado subterraneo das drogas; com efeito, é consabido que o crivo fiscalizador das policias nado apreende sendo uma {nfima parte das substdncias em transito, o que representa para as empresas de nar- cotrfico um risco econémico devidamente calculado e compensado ja pelos pregos de venda. Verifica-se, portanto, que o sistema judiciario é impotente para dominar 0 problema, no dispondo de condi¢ées para influir activamente na oferta e na procura de toxicos. A ineficiéncia e a desnecessidade de actuagiio das instancias formais de controlo é posta em evidéncia pelos adversarios da proibig&o, que destacam o facto de as experiéncias descriminalizadoras efectuadas na Holanda e em alguns Estados norte-americanos n&o terem conduzido ao agravamento do consumo — 0 que vem sendo discutido. Por outro lado, ao nivel das policias e, por vezes, dos tribunais, as interven- es realizadas ameacam os direitos fundamentais dos cidadios, nao raramente pre- teridos face a outros objectivos processuais (celeridade, economia, necessidades de prevengiio), o que concede estatuto privilegiado a institutos de excep¢ao, 4 semelhanga do utilizado nos casos de terrorismo e da criminalidade altamente organizada. Esta fiwe da realidade foi j4 objecto de andlise por parte de um organismo internacional ~ © Instituto de Pesquisa em Defesa Social das Nacdes Unidas (UNSDRI, Roma, 1988), que concluiu existir tendéncia das leis nacionais para se arredarem das regras yerais de Direito, colocando em xeque varias garantias indissocidveis do Estado democritico de Direito, (vg. os principios da legalidade, da proporcionalidade e ade- «unglo, ¢ da subsidiariedade). De todo 0 exposto decorre a ideia expendida pelos criticos do proibicionismo de que a incriminag&o expée o sistema penal a uma multiplicidade de contra internas, abrindo caminho a eventual crise de legitimidade e credibilidade, que se reflectird nao apenas em matéria de drogas, mas no 4mbito mais vasto da delinquén- ola em geral. No que tange aos sistemas alternativos existem também reflexos negativos da politica criminalizadora, o que passa, desde logo, pela dependéncia orginica e estru- tural em que alguns desses sistemas (terapéutico, ressocializador) se encontram face ‘ho penal, A terapéutica surge, por vezes, como op¢ao "negociada" com 0 toxicodepen- dente-arguido, nfo raramente recluso, negociag’o essa que pode inscrever-se num contexto de chantagem ( «ou aceitas o tratamento ou és preso!») ou, pelo menos, de pressilo ¢ sob coagiio moral (cft. Marcelo Curto, F., 1993, pp. 11-12). Por outro lado, ‘4 excessiva dependéncia dos servicos terapéuticos em relag’o aos departamentos de 127 ae ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS. justica pode propiciar condigdes desiguais, que se tornam susceptiveis de afectar a liberdade de tratamento, uma vez que 0 toxicémano acaba por ser transformado em sujeito passivo das praticas clinico-terapéuticas ¢ judiciais de entidades que se subs- tituem no processo sem sequer Ihe darem o direito de se pronunciar. Estabelece-se entio um mecanismo vulgar na instituigdo hospitalar, consistente na infantilizagdo do paciente, que passa a ser encarado como um ser diferente mas inferiorizado, dis- pensando-se-Ihe modalidades pretensamente paternalistas de cuidados. A nivel do mercado sobressai na concepgio critica 0 discurso econémico das drogas, que tivemos jé ensejo de apreciar, cabendo apenas referir que os defensores de politicas liberalizadoras poem o acento ténico no facto de a proibigdo introduzir uma varidvel artificial no jogo da oferta e da procura, distorcendo toda a estrutura do mercado e provocando a multiplicagao dos pregos dos produtos, o que determina a consequente elevagao dos custos sociais. A. Baratta (1988, p. 39; 1990, p.171) sus- tenta que o consumo de drogas esta inquinado pelas regras basicas do modo de pro- dugdo capitalista, que tornam o homem um mero instrumento de acumulagio de capital no interesse da reprodugao do sistema econdmico global e nao o seu sujeito: daf os efeitos desestabilizadores no que se reporta «...a0 consumo cultural e higieni- camente idéneo de certas drogas», agravado pelo intervencionismo penal: por isso, a procura dos t6xicos é convertida em condi¢io suficiente para a perpetuagdo de um processo criador de enormes lucros e de acumulago capitalista; e o quotidiano entre vendedores e compradores consagra a dependéncia destes em relagio Aqueles, que podem beneficiar das vantagens de uma situag%o de superioridade fisica e psiquica, impondo as regras préprias de um comércio de primeira necessidade: Algebra da Necessidade, como Ihe chamou W. Burroughs (1959, pp. 9 ¢ ss.). Uma questo desenvolvida com particular acuidade, quer por defensores da liberalizagdo quer por correntes que preconizam a manutengdo do proibicionismo, consiste na perspectivagdo da droga como um meio que os seus utentes entendem apropriado a libertagdo das angiistias da realidade, quando se frustraram os padrdes de éxito pessoal e econémico que a civilizagao contemporénea erigiu em valores fun- damentais; nesta sequéncia, a superagdo do problema da toxicodependéncia passa pela construgao de uma sociedade mais justa e mais humana, ou seja, uma sociedade menos autista ¢ onde o homem exista para ser e no para ter, como frisou Sophia de Mello Breyner. Esta consideragao colhe maior justificag4o se se tiver em conta que is ndo integrados a droga torna-se um simbolo de protesto e de demarcagao hostil face a cultura prevalecente, funcionando como contra-peso cul- tural ¢ instrumento de resisténcia politico-econdémica (v. Szabo, D., 1988, p. 126), ou familiar (Fréjaville, s./d., pp. 243 e ss.); porque, para além de tudo quanto subjaz a problematica da toxicomania, a droga é também uma disfungdio cultural. 128 A DROGA, 0 DIREITO E O SABER Analisando estes argumentos, é crescente 0 nimero de autores para os quais a definigo de uma politica de controlo da drogodependéncia pressupée a auténtica despenalizacao dos consumidores, aceitando como validas todas as rupturas com os tabus, que se mostrarem convenientes, optando-se por um sistema substitutivo do penal; surgiria, pois, no uma politica de combate a droga, mas uma politica alter nativa ao controlo penal, nos sectores de produ¢ao, distribui¢éo ¢ consumo: trata-se no de uma desregulamentagiio, no da aceitagao do principio laissez-faire, laissez~ -passer, mas da estipulagio de medidas de fiscalizagdo dos circuitos das drogas, traduzindo-se na supressao parcial do modelo de controlo pelo Direito Penal, cuja eficdcia parece irremediavelmente comprometida, abrindo-se novos horizontes nas valéncias informativo-educacional e terapéutico-ressocializadora. Nestes termos, subsistiria a interven¢ao punitiva nos dominios da produgdo e comercializagio das subst{ncias, porventura transferida para o regime contraordenacional (sangdes administrativas, adequadas e proporcionadas a gravidade das infracgées), desti- nando-se a assegurar a qualidade dos produtos e as condi¢des de higiene do seu uso. Esta postura sobre as drogas, que vem ganhando adeptos (A. Baratta, M. Friedman, G. Becker, pelo menos em parte, F. Caballero, ¢ entre nés, Pegado Liz e Marcelo Curto), reputa necessaria a existéncia de regras precisas que disciplinem o mercado, obstando a constituig&io de monopélios privados e a interferéncia das organizagbes de criminosos, que prosperam A custa da proibigdo. Este esquema implicaria também reestruturag’io da racionalidade internacional, de molde a promover a criagio de alternativas no dominio das produg6es agricolas, confinando-se 0 cultivo das drogas ‘is regides que a ele esto cultural ¢ tradicionalmente afectas — o que corresponderia também a uma medida de justiga para com as populagdes pobres do Terceiro Mundo, que se dedicam A cultura dos produtos proscritos e que véem prosperar as actividades transformadoras que dependem dessas exploragdes, bem como as poderosas indtis- trias ocidentais dos tabacos, das bebidas alcodlicas e dos farmacos. E provavelmente dificil explicar a esses camponeses, que vivem em situago de quase miséria, que 0 Ocidente pune os circuitos produtivo e distribuidor da cannabis, da papoila e da coca, € que enriquece a custa de substancias consideradas licitas, cuja fungao reside também em intervir na corrente da consciéncia, como sucede com 0 alcool ¢ com os tranquilizantes e antidepressivos. Porque, com efeito, em ambos os casos 0 intuito consiste na atenuagiio da dor e do sofrimento, e também em ambos os casos esto em Jogo muitos milhares de postos de trabalho: no fundo, como acentua Denis Szabo, as drogas sto omnipresentes (1988, p. 109), cada sociedade historicamente definida inventa e gere as suas drogas. A dimensao criminal das drogas constitui o reduto em torno do qual se debatem posigdes quase sempre inconcilidveis e que esto no primeiro plano das 129 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS, teorizagdes, 0 que decorre do facto de a criminalizag&o representar uma das faces mais visiveis do problema. A incrimina¢4o do consumo ( ou de actos com o mesmo conexionados) traduz a imposigao do valor da lei relativamente a uma pritica em que prevalece a auséncia de leis ou a inverso das normas dominantes. Porque o desig- nado mundo dos drogados compreende também um conjunto de leis de convivéncia, materializado num cédigo especifico cujas significincias ndo s4o suficientemente apreendidas do exterior, A estigmatizago que envolve os toxicodependentes, her- metizando-os num circulo de dificil acesso, engendra outras solidariedades e uma outra postura, que nao é identificavel com o conceito de anomalia. A sociedade, excluindo os drogados, remete-os para um espago de convivialidade peculiar, cons- truido nos antipodas da estruturago sécio-juridica vigente, mas assente em padrdes e valores prdprios — 0 valor do desvalor com que a droga é observada. A partir desse apartamento, o sujeito-drogado recebe e assimila 0 desvio: «o individuo passa a ser desviante a partir do momento em que é visto e tratado como tal por aqueles que tm 0 poder de o fazer» (Fréjaville, J.-P,, s./d., p. 236). O membro do grupo de toxicode- pendentes, anatematizado pela comunidade, obedece aos seus ritos, as sua praticas, aos seus lideres — e a segregagdo grupal desenvolve-se por duas linhas de forca, uma endégena e outra exdgena, aquela hipervalorizando os participantes do grupo, esta desvalorizando-os. E nesta dialéctica que sobrevém a criminalizacdo, em nome da salvaguarda da satide publica, dos bons costumes, da moral e da organizacio social. A droga, entidade perturbante ¢ perturbadora, surge associada, no imaginario popular e na representacdo legislativa, 4 delinquéncia: droga e crime aparecem, pois, identificados, como o verso e o reverso de uma mesma realidade (Szabo, D., 1988, pp. 133-135). Foge-se dos territérios psicotrépicos, na terminologia de L. Fernandes (1991, pp. 32 e ss.; 1995, pp. 22-23), porque os seus habitantes (= drogados) sao criminosos (pelo menos potenciais), ndo s6 — nem principalmente — por consumirem drogas, mas porque cometem furtos, roubos, esticées. O desvio psicossocial é assim reconduzido ao desvio criminal — 0 que foi factor contribuinte do paradigma crimi- nal, como teremos oportunidade de analisar (Parte B). Os discursos predominantes (educacionais, politicos e familiares) utilizam, por vezes em sinonimia, as ex- pressdes droga e crime: a relagdo de causalidade entre ambos os fenédmenos, ainda que nao esteja devidamente investigada nem comprovada, esta difundida na opiniao publica, é veiculada nos mass media, é elevada a slogan politico: Nixon, Ford, Bush ¢ Clinton glosaram 0 tema nos respectivos mandatos; qualquer candidato a Primeiro- -Ministro ou Presidente da Republica, na Europa ou nas Américas, despende parte assinalavel dos tempos eleitorais a comentar a droga eo crime. O consumo de t6xi- cos fez-se ilicito-criminal a partir do desvio aos modelos padronizados que repre- dade individual ou colectiva que recebe essa tipificagao, 130 A DROGA, 0 DIREITO E 0 SABER a qual decorre da desconformidade de certos actos em relagaéo @ norma social; a lei penal mais no faz do que punir a diferenca entre.o:padrao e a conduta, seriando'o8 dissidentes. Na verdade, € no seio das sociedades que se desenrolam as atitudes des+ viantes e criminais, sancionadas pelos usos ¢ costumes sociais,'e pelas disposigdes juridicas. E da colisao entre as regras sociais ¢ do Direito que advém.as formulagdes penais, fruto das contradigdes entre valores, principios ¢ postulados, imprimindo & vida da comunidade a dindmica inerente ao, movimento de criminalizagdo-descrimi- nalizagfio. Ora, os Estados, quando legislam sobre drogas tendem. a prestar, maior atengdo A componente criminal, o que traduz 0 intento de amenizar a, opiniao publica; causticada por trés décadas de associagiio. entre, toxicodependéncia ,¢\ delinquéncia — e nesse afa olvida-se nao raramente que o.conceito de toxicomania deve. ser, des, multiplicado em pelo menos duas vertentes: a da toxicomania ¢omo modo de;vida, por livre op¢ao do sujeito, seja um vagabundo que vive nos jardins publicos ou um, dirigente hipersocializado; ¢ a toxicomania-enfermidade, incluindo-um, vector, de, desespero, mas cuja natureza parece permanecer compulsiva e insuperavel (cfr, Garcia, J. A., 1988, p. 113). Colocada neste contexto, a fenomenologia do abuso, de drogas concentra sobre si mesma as atengdes dos discursos politico-sociais ¢ crimi- nais: as sociedades actuais parecem possufdas de uma dependéncia da toxicode- pendéncia, o que as leva a busca de solugGes, arrancando das componentes saniléria ¢ judicial, perspectivando o drogado ¢omo um criminoso, em primeiro lugar, um doente, num segundo momento, ¢ enfim, um délinquente-enfermo: «de drogué est un délinquant et un malade situé 4 mi-chemin entre l'appareil judiciaire et les institutions médicales» (Szabo, D., 1988, p. 138). Contudo, esta simbiose entre 0 Direito ¢ a satide ‘acaba por acentuar o deSfasamento entre a realidade e os esteredtipos sociais, 0 mesmid ¢ dizer que entre as vidas Concrétas é os normativos penais. E, neste percurso feito dé contradigSes, constata-se que, quando enviado para o enclatisuramento, 'o toxicde” pendente vé muitas vezes agravar-se'o seu estado, do mesmo passo que sé acentua a drogodependéncia: a prisdo; que M.'Foucauilt designou fabrica de delinquéncia, corre um sério risco de se‘assumir, ‘na recta final do'século XX, como a'fabrica’ da toxi+ codependéncia. t 1i ol A criminalizagao em matéria de drogas reparte-se ‘pelos niveis delinquenciais observaveis env raziio 'do’sew uso'e trafico: daf as ‘sucessivas incriminages do con’ sumo, comércio»e ‘distribuigdo,’e,:por ‘tltimo, dos’ delitos’ funcionais, enquanto unidade categoridl especifica. Todavia; se em presenga da comercializagao ilicita dow produtos naloselevantam objecgées a'puni¢ao, variando tio-s6 a intensidade'dos'cas~ tigos, j4 novdominio:da-utilizagao! pessoal'e dos’crimes’conexos'ndo existe unanimi> dade, equaciénando:se'a legitimidade'dos Estados para exercerenv'o direito de punir contra :constimidoresy ¢ d:evolug&o desta racionatidade’ vem determinando'tambérh 131 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS, que se ponha em causa a puni¢o de condutas que, sendo desconformes aos coman- dos legais, constituem a resultante de um desvio que se situa ao nivel psicossocial. Mais do que em qualquer outra Area da ilicitude, avolumam-se as interrogagées acerca da justeza e dos efeitos do castigo sobre os toxicodependentes, argumentando- -se que se trata de crimes sem vitima, devendo reconhecer-se a cada cidadio o direito de, por si mesmo, caminhar livremente em busca daquilo que considera ser 0 seu bem-estar, de ser infeliz 4 sua maneira, pelo menos em nome do espaco de liber- dade pessoal que 0 Estado nao pode restringir e em relac&o ao qual nem a prépria Comunidade Internacional é licito interferir. M. Cesoni (1992, pp. 151-153), abor- dando o problema da defini¢o do uso de t6xicos como um crime sem vitima ou um crime de auto-vitimag4o, traz 4 colagZo um aspecto relevante nesta tematica, que respeita a compreenso de mecanismos e principios aplicdveis 4 toxicomania: o direito a disposig&o do proprio corpo, afirmado, por exemplo, a propésito da rejeigio da incriminagao da tentativa de suicidio. Nesta conformidade, 0 abuso de téxicos (como 0 tabagismo, 0 alcoolismo ou as violagdes as regras basicas da alimentagao racional) n&o deveria ser objecto de censura penal, desde que se confinasse a esfera pessoal do agente, s6 recaindo sob a algada do Direito se existisse instigagao ao con- sumo de terceiros ou se se pusesse em risco a satide piblica (através, nomeadamente, do abandono de seringas). Remetida para o quadro da moral individual, a utilizagao de droga mereceria apenas a exprobragio social, nao acarretando qualquer retaliagao juridica. Inscrevendo-se nestes limites, a apreciag4o do consumo de téxicos enqua- drar-se-ia «...4 I'interieur des principes juridiques régissant ces types de comporte- ments et d'en évaleur I'éventuel statut actuel de droit d'exception, non seulement au niveau de la procédure comme il I'a été fait jusqu'a présent, mais aussi au niveau du droit substantiel» (Cesoni, M., 1992, p. 151). A quest&o da criminalizagao do abuso de drogas torna-se terreno fértil para vivéncias dramaticas e violentas, onde abundam subprodutos criminais de extrema gravidade, v.g., a chantagem e a extorsdo, a explora¢4o econémica e sexual, 0 trafico de influéncias, a corrup¢io e a criminalidade elaborada; e, como referem Figueiredo Dias & Costa Andrade (1984, p. 413), «acresce, a agravar o cardcter iatrogéneo ou disfuncional destas leis incriminatérias, que as autoridades formais, para além de expostas ao perigo de corrup¢ao, acabam frequentemente por ter de recorrer a prati- cas ilegais, violando direitos fundamentais como tnica forma de penetracdo no circuito fechado da ilegalidade e da obtengio de provas». Ou seja: as consequéncias da incriminag&o correm o risco de se tornarem elas mesmas crimindgenas, procu- rando impor atitudes em sujeitos com os quais falhou a interiorizagao da norma; abre-se ent&o caminho, com a perseguig&o e puni¢Ao de toxicémanos, a frustragZio da 132 A DROGA, 0 DIREITO E O SABER ressocializagiio, que sé se mantera, na aparéncia exterior, enquanto persistir 0 con= trolo coactivo sobre o transgressor (Rodrigues, A., 1982, pp. 112 ¢ ss). Na civilizagdo actual cada sociedade define e proscreve as suas préprias drogas: 0 Ocidente ergueu como alvo do proibicionismo os estupefacientes e psi« cotrépicos; os pafses isl4micos, 0 Alcool e, por vezes, 0 tabaco; 0 que permite delim tar a toxicomania é, acima de tudo, a legalidade ou ilegalidade com que é encarada pelo Poder (Olievenstein, 1978, p. 239), a maior ou menor margem de tolerdncia com que o Direito perspectiva as atitudes dos cidadaos. 8. Da droga-crime 4 droga-problema: complexidade biopsicossocial. A abordagem do consumo de drogas nas sociedades contemporaneas ¢ um acto politico-cultural, como vimos, nele convivendo nogdes dos foros clinico- -psicolégico, sociolégico, econémico e juridico-criminal. A droga tornou-se um problema. A problematizagao de um fenémeno pressupée desde logo a superagiio de um modelo ja definido: «une chose devient problématique lorsqu'elle dépasse les critéres de la normalité, pratiqués dans une culture» (Szabo, D., 1988, p. III). Porém, a existéncia de um problema faz supor a busca de uma solugdo; donde, 08 estudos sobre a droga (problema) visam alcangar o conhecimento do problema con- creto e a respectiva solugdo. A droga veio produzir a alteragdo e a altercagiio dos dados sociais; e, no mundo da penalidade, estabeleceu-se uma relacdo dialéctica entre os pélos criminalizagao e uso de drogas, da qual adveio a ruptura, a descon- tinuidade e a sucesso de paradigmas — a continuidade da descontinuidade. A droga fez-se problema a partir do caos que impés e da desestruturagiio social que originou; depois, 0 Direito, procurando gerir esse novo dtomo da desor- dem, cuja configuragao contém divergéncias em relac&o aos comportamentos des- viantes, optou por o transformar em questo criminal — 0 desconhecimento é sempre bom conselheiro da penalizagao; por isso, se nao se compreende um fendmeno, se niio se Ihe apreendem as linhas reitoras, a incriminagdo afigura-se como tinica alter= nativa, pelo menos por forga da mensagem intimidatéria de que é portadora. Esta postura punitiva derivou, fundamentalmente, de o consumo de toxicos se ter convertido em protagonista do quotidiano de todas as sociedades, sendo identifi cado com um séquito de outros dramas sociais: delinquéncia, inseguranga de pesos © bens, insucesso escolar, em suma, crise. Assim, a droga passou a flage/o © enti mutagiio legitimou toda a sorte de reacgdes institucionais repressivas ¢ de exeepylo} 133 ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS, ovabuso ide drogas ¢ as, consequéncias ao-mesmo:associadas, pelo menos no ima- ginario politico-social; reeeberam dos Estados, rum momento inicial, resposta exclu- sivamente penal, com:-frequéncia impregnada de conceitos de senso comum e dominada por interpretagdes em que predomina um sentido afectivo-emocional, vis- lumbrando-se por vezes algum psitacismo. ‘Toda-a problemitica reportavel a droga e & toxicodependéncia tem aparecido, no decurso das ‘trés: tiltimas décadas, assente‘riuma’ matriz pluridisciplinar, congre- gando factores sécio-politicos, econémicos, culturais:e:morais, requerendo vasta multiplicidade de investigacao, repartida por diversas areas de intervencao. Os dis- cursos fragmentarios que a toxicomania tem suscitado demonstraram alguns factos que se oferecem incontroversos: a toxicomania tem natureza universal, atravessando cronologicamente os diferentes perfodos histéricds, com intensidade varidvel; cada sociedade, temporal e geograficamente delimitada, legitima determinadas drogas e proscreve outras, definindo-lhes ritualidades imanentes; a emergéncia, de substancias que, em cada ciclo da Histéria, sao utilizadas como drogas é a resultante da procura constante de elementos aditicios, através dos quais se pretende obter equilibrio entre as vivéncias humanas e 0 ecossistema (cft. Rodriguez Lopez, 1986, p. 143). Sendo um produto cultural, reconduzivel a tessitura da comunidade,. os érgios, de Poder tendem a tolerar as drogas, que s4o mais identificaveis, coma tradicao do sistema social vigente, segregando as demais, ou seja, rejeitando neste dominio os elementos de. aculturaco,, exponencialmente perturbatérios da. tranquilidade (Carbonnier, J., 1979, pp..246-259)..; Por todas estas raz6es, 0) abuso de estupefacientes,e psicotrépicos implicou, no século XX e, em especial, na sua segunda\metade, o alarme e.a agitagdo que,se lhe reconhecem, dando origem ndo;s6 a tipificagao criminal do fendmeno como tam- bém ao persistente endurecimento das medidas utilizadas. é Progressivamente; contudo, as' comunidades detectaram na mutagdio'compor- tamental que-a‘adigao dé drogas consubstancia’ um Segmento biolégico eum outro dé 'Hiatureza psicolégica!’e’ comegou'a'atender-sé nao $6 "a0 ‘acto “de “constimir stibs! tincias estupefacientes mas também ao seu actor, ao sujeito tranSgressor, observado agora sob um prisma biopsicolégico — construiu-se o paradigma clinico- -psicossoci ul, 4 partir do, qual 0 propdsito da Lei penal. dos julgadores deixa de. consistir na punigao intimidatéria, curando, de ver mais, além do que, consente, a mera,conduta ineriminada. Nascia, portanto, a andlise pluridisciplinar. da toxicomania, inscrita num, percurso. de tuptura com. paradigma criminal até,entio, prevalecentey masiem,con> tinyidade.com a trajectéria-que vinha-sendo -esbogadaiem presengaydaidelinguéncia 134 A DROGA, 0 DIREITO E O SABER em geral. E esta mudanga surgiu como consequéncia da descaracterizagao da estrus tura social, em particular das camadas juvenis, e da constatag4o da necessidade de adequar a reaccfo institucional a realidade concreta. As sociedades promoveram sempre, como vimos, a seriagao dos elementos dissidentes em relago A padronizacao social: a estruturacdo da disciplina gerou a patologia da desviancia, cujos intuitos foram, em larga escala, defensivos. Aos com- portamentos divergentes era reservada a exclusdo, 0 afastamento, a confinagio a espagos fechados e controlados, que impedissem o alastramento do virus. A Lei penal e a institui¢do de hospitais psiquidtricos, de asilos e de prisées funcionaram como vacinas com que o Poder precavia as populagdes das contaminagées indese- jiveis. E, em outros casos, criaram-se reservas para acolhimento dos desvios, como © jogo e a prostituigo, remetendo-os para zonas de que as comunidades ditas sis estariam sempre protegidas. As sociedades industriais e p6s-industriais erigiram como valor inquestiondvel a utilidade social — 0 que agravou os processos segre- gadores de todos quantos, j4 ou ainda, nao so liteis: e proliferaram os infantarios ¢ 08 lares de terceira idade, areas reservadas que se destinam a aguardar, sem prejuizo para as comunidades, que os seus ocupantes adquiram utilidade econémica e social ou que sejam definitivamente excluidos. A tevelacio do surto de toxicomania veio afectar justamente as parcelas populacionais que se situam no limiar das expectativas de utilidade ~ ¢ instalou-se & desordem, por auséncia de perspectivas de compreensio do problema. O surgimento do paradigma clinico-psicossocial na droga correspondeu a primeira fase em que s¢ desenhou uma tentativa de conhecimento do fendmeno e da sua ulterior explicagio, acolhendo os érgios de Poder o contributo prestado pelo Saber. A evolugio de paradigmas a propésito das drogas proveio da sucesstio de abordagens cientificas que ue foi consumando, em favor das quais as legislagées foram cedendo a t6nica crimi- nal, prosseguindo objectivos mais permeaveis as Ciéncias do Comportamento e da Vida. A droga adquiriu ento o estatuto de doenga e de delinquéncia, cujo agente é em simultaneo um enfermo e um criminoso, oscilando as leis entre uma e outra das Yertentes, muitas vezes aparentando indisfargAveis titubeagdes. Contudo, nesta enfermidade delinquente em que a droga é representada, falharam as vias profildcti- ens, do mesmo modo que se frustraram as medidas terapéuticas e repressivas = 0 drogado subtrai-se aos tratamentos, ilude as vigilancias penitenciarias, furta-se aos eontrolos ressocializadores, e todos os princ{pios do Direito Penal parecem gorados fice a este sujeito transgressor da convivéncia social — dai a ruina da concep¢lo omnipotente do juridico e a correlativa necessidade de apelar ao Saber. Na realidade, 135 ee ANALISE PSICOCRIMINAL DAS DROGAS o Direito Penal provou ser impotente para protagonizar 0 combate a droga, colo- cando-se a questio de averiguar se nao ter sido, ele mesmo, um elemento crimogé- neo assinalavel (Rodriguez Ramos, 1986, p. 293). Desta convic¢ao resultou a ideia de que uma politica contra a droga deverd articular-se através de medidas de politica social e nao de caracter penal, preferindo a etiologia do consumo dos téxicos a sua sintomatologia: ou seja, socializar em vez de penalizar, concedendo-se particular énfase 4 passagem do Direito Penal a uma intervencdo minima, subsididria e fragmentaria, obedecendo aos principios de preservagdo da esfera intima de cada cidadao. Garcia-Pablos (1986, p. 396) propde como vertentes indissociaveis de uma politica criminal da droga a racionalidade e a eficdcia, de molde a que a toxicode- pendéncia seja analisada sob um ponto de vista social, em detrimento do penal; donde, a «cultura negativa» da toxicomania, que assenta no medo e no desconheci- mento dos contornos intrinsecos do fenémeno, determinando formas repressivas de reacgdo penal, deve dar a vez a uma «cultura positiva», fundada no «poder da raziio» ena liberdade dos cidadaos, ou seja, uma ldgica que possua repercussio etiologica e niio simplesmente sintomatolégica: por outras palavras, os Legisladores deverdo ser mais atentos a razfo do que ao coragdo, elevando a busca do conhecimento a primeiro plano e deixando de actuar sob o efeito de consideragées afectivo-emocionais. Uma politica criminal assim concebida ter como linha definidora, em cada caso concreto que se apresente, nao o acto em si mesmo, mas 0 actor social que cada toxicodepen- dente é, procurando compreendé-lo como sujeito activo, na sua plenitude pluridi- mensional, em que se integram os elementos bioldgico, psicolégico e sociolégico, todos aportando ao Homem, essa «totalidade indivisivel» (Lima, S., 1958, p. 59), analisando-o a luz de um critério compésito, forjado em Areas especializadas da Ciéncia — aqui radica o paradigma biopsicossociolégico. 136

Você também pode gostar