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cc—rr_e_—e—— BULVSI52 Louk Hulsman Jacqueline Bernat de Celis Af DWERBDIRNINA é SS) 7 ocr eunen oct Louk Hulsman Jacqueline Bernat de Celis PENAS PERDIDAS O Sistema Penal em Questao Tradugéo de MARIA LUCIA KARAM ! LUAM 28 Edigéo | op” 3° ay . \y ye 2 v w : 4 b 90 28 edigdo - 1997 “y. re, 6 © Copyright we Louk Hulsman 2 Jacqueline Bernat de Celis CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Hulsman, Louk. Celis, Jacqueline Bernat de. K27d Penas Perdidas. O sistema penal em questao/ por Louk Huls- man e Jacqueline Bernat de Celis 1. Direito Penal e Justia Criminal. 2. Abolicionismo Titulo Original: Peines perdues. Le systéme pénal en question 1982:Editions du Centurion, Paris ‘Trad.: Maria Licia Karan 91-0738 CDU - 343(81) Capa: Natali Tubenchlak Editoragao eletrénica: Pablo A. Ribeiro, Glauco A. Ribeiro a € Cleide Machado da Rocha / tel.: 284-1700 Proibida a reprodugio total ou parcial, bem como a reprodugao de apos- tilas a partir deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio eletronico ou mecanico, inclusive através de processos xerogréficos, de fotocdpia e de gravacao, sem permissao expressa do editor (Lei n° 5.988, de 14.12.73). Reservados os direitos de propriedade desta edigao pela LUAMEDITORA LTDA. Av. Ary Parreiras, 432 - Niterdi - RJ - Tel.: (021)710-7847 - Cep.:24.230-322 Impresso no Brasil Printed in Brasil Biblioteca Central unaem TOMBO SUMARIO Prefacio, por Ester Kosovski, . 1.6... eee eee ee 9 Primeira Parte Conversas com um abolicionista do sistema penal Situagdes e acontecimentos ..... 2.0... eee ee 17 Experiénciasinteriores. 6... eee ee ee 31s Segunda Parte A perspectiva abolicionista: apresentagio em dois tempos Qual aboligao? 1-Opinido publica... 6... eee eee 55 2- Os bons e os maus oar or . 56 3-Améquina .... eee ee eee 57 4-Burocracia 2... ee ee 58 5 - Um filme espantoso 60 6 - Olhando de dentro . . 61 7 - Relatividade 63 8-Cifranegra ... 64 9 - Oculpado necessério . 66 10 - Filha da escoléstica. 1.2... 0.200005 68 Louk Hulsmane J. B. Celis 11- Oestigma 69 12-Excluséo .. 69 13-Impasse .. . 71 14 - Repercussdes eae aes 71 15-Acidentes? ....... or rn? 2 16 - Poucos remanescentes fas 74 17- Pré-selegio .. 6... eee 74 18-Deixarpralé ..... en 76 19 - Distancias siderais ........ sees 16 20 - O jogo de propostas discordantes ....... 77 21- A reinterpretagao 80 22-Os filtros ....... an sees 80 23-Ofoco ..... 81 24-Amargemdoassunto ..........006 82 25 - Esteredtipos O00 sane 83 26-FicgSes 2. ee ee ee 84 27-Apena legitima....... 0.0.0.0 0 ee 86 28-Oimpacto ...... eee eee eee 88 29 - Noutro lugar e de outraforma ......... 90 30-Libertagio 6... ee ee eee eee 91 Qual liberdade? 31 - Solidariedades 93 32 - Circulo vicioso 94 33-Vocabulétio 2.6... . ee ee ee 95 34 -Uma outralogica. 2s. eee 96 35 -Cincoestudantes .. 1.0... . ee ee eee 99 101 102 103 Penas Perdidas 40 - Estruturas paralelas 41 -Ea violéncia?. . . 42 -Estatisticas .... 43 - Liberdade e seguranga .... 44 - O lado das vitimas: autodefesa . . 45 - Vitimas e processo penal . . . 46 - As vitimas: suas espectativas . —V 47 - A dimensio simbolica da pena 48 - Eos colarinhos brancos? . . . 49 - Um olhar através da histori 50 - Leviata e sociedade . 51 - Os caminhos da concérdia 52 -Companheirismo . . 53 - Em volta de uma churrasqueira 54 - Retribuigdo e sistema civel . . 55 - A organizagao de encontros “cara: 56 - Proximidade 57 - O crime impossivel . 58 -Desdramatizar ..'. 59 - Por um tecido vivo . 60-Renovagio ......- Posfécio, por Louk Hulsman’ , * — Tradugdo de Fétima Cristina da Silva, PREFACIO Louk Hulsman é um pensador critico, arguto e inovador, além de uma personalidade fascinante que cativa desde intelec- tuais 4s pessoas mais simples. Jé fez varias viagens ao Brasil, onde segundo afirma “se sente em casa”, participando de Con- gressos, proferindo conferéncias em Universidades, sempre des- pertando muito interesse por sua proposta abolicionista e facil comunicabilidade. Apés visita a uma favela no Rio de Janeiro, onde houve em- patia imediata com os humildes, saiu carregado de presentes que incluiam especial cachaga e fumo de mascar. Em compensagiio, excepcional fotdgrafo que é, fotografou o povo que tao carinho- samente o recebia e enviou ampliagdes das fotos a cada um dos fotografados com palavras de amizade e agradecimento que os sensibilizaram. Assim é Louk, que além de tudo tem dois filhos - Lodweg e Jehana - que divulgam a misica brasileira na Europa através dos seus conjuntos e motivaram sua primeira vinda ao Brasil. Q livro, com o sugestivo titulo “Penas Perdidas”, é de ine- gavel ‘oportunidade quando se questiona 0 sistema penal por ino- perante e até contraproducente e em todas as partes do mundo se buscam alternativas, As propostas de Louk nos oferecem alterna- tivas e principalmente uma nova visdo do crime, da pena ¢ de toda a estrutura penal. 10 Louk Hulsman e J. B. de Celis Tenho tido o privilégio de assistir nos mais diversos foros internacionais - das Nagdes Unidas, do Conselho da Europa, das “Sociedades de Direito Penal e Criminologia e em ambientes aca- démicos - as suas destemidas criticas que cada vez tém recebido mais aceitagao, ampliando-se 0 circulo de abolicionistas em to- dos os continentes. Louk Hulsman reside em Dordrecht, na Holanda, em uma antiga e enorme casa a qual acrescentou moderna e original cons- trugdo, para sede do seu Centro Abolicionista, onde promove se- minarios, cursos e estudos sobre abolicionismo, aberto a quem quiser se aprofundar na matéria. Explica que no seu pais nao usa a denominacao “abolicionismo” porque nunca tiveram 14 a expe- tiéncia de aboligao da escravidio que nés no Brasil conhecemos bem e por isso, afirma, nos sendo familiar 0 termo, podemos me- lhor entender o seu significado basico. A presente obra, escrita em co-autoria com Jacqueline Ber- nat de Celis, compde-se de duas partes./A primeira, “Conversas com um abolicionista do sistema penal”, transcreve um didlogo entre os autores, em que sio telatadas situagdes e acontecimen- tos, ‘bem como as experiéncias i interiores que levaram Hulsman a désenvolver as suas idéias, pois segundo Jacqueline B. de Celis “iii Bensamento tao singular e tao radical néo surge ‘por acaso”; é também um mergulho na trajetéria’ pessoal de um sincero e co- tajoso desbravador. 2/ A segunda parte apresenta “A perspectiva abolicionista”, também em dois tempos: Qual aboli¢do? e Qual. liberdade? quando é é desenvolvido o pensamento de Hulsman, com coerén- cia, desd andlise da opiniao publica, passando por temas como a“cifra negra”, “o estigma”, “os esteredtipos”, “a pena legitima”, “a “a libertagao”, no primeiro tempo; “solidariedades”, “circulo vi- close”, “uma ‘olitra Logica”, “chaves de leitura®, “e a violéncia?”, *Jiberdade e seguranga”, “as vitimas - auto-defesa, o processo enal e expectativas”, “a ‘dimensio simbdlica da pena”, “os cami- nh sda concérdia™, até a “renovacdo”, no segundo tempo. Penas Perdidas 11 A concisao da abordagem nao lhe tira a profundidade, ao contrario, a acentua como um convite a reflexaéo sobre opgées di- ferentes e caminhos alternativos sem preconceitos paralisantes, em que democraticamente a comunidade possa participar mais da resolugéo dos problemas que envolvem a complexidade do ser humano em sua interacdo social, e ndo apenas alguns repre- sentantes, nem sempre legitimos, tomem todas as decisdes. Este livro inspirou ao conhecido crimindlogo latino-ameri- cano_ nformista, Eugenio Raul Zaffaroni, o tema e o titulo de ‘seu “Em busca das penas perdidas”, que dedicou a Louk Hulsman. A presente edigdo brasileira, em magnifica e cuidadosa tra- dugio de Maria Licia Karam, vem enriquecer.a bibliografia das ciéncias sociais ¢ humanas tio escassa em pensamento original e fecebeu um “postfacio” do autor que a torna mais completa, ex- plicita e atualizada que as publicagdes anteriores em outras lin- guas, homenagem que fez questdo de prestar a este pais que tanto aprecia. Devemos agradecer 4 Editora Luam e ao empenho pessoal de James Tubenchlak, por esta contribuigdo tao importante, leitu- ta obrigatéria e instigante para gyem deseja amplia os horizon- tes? Tepensando o estabelecido J onsiderando possibilidades nao convencionais para problemas cruciais que a tradicional dogma- tica nao mais soluciona. Rio, Setembro de 1993. Ester Kosovski Primeira Parte Conversas com um abolicionista do sistema penal Estive com Louk Hulsman varias vezes em Louvain, Siracusa, Colimbari, Paris... por ocasido de reunides internacionais, onde se discutiam, sob titulos diversos, os meios, os limites, as origens, a legiti- midade do direito de punir; também o escutei, em assembléias mais restritas, na Faculdade de Direito de Paris, e em um grupo de refle- xao.” Fiquei fascinada com suas idéias. Sua perspectiva me parecia ainda mais digna de atengdo, pelo fato de ser ele professor de direito penal! Era preciso que Louk Hulsman estivesse convencido de ter che- “gado a uma verdade absoluta, para poder questionar sua atividade funda- mental e, de sua cdtedra na Universidade, lancar aquele apelo insistent ‘para abolir um sistema, que muitos dos estudantes, destinados a ativida- des judicidrias, um dia seriam chamados a. fazer funcionar. O desejo de penetrar mais profundamente neste pensamento ino- vador mé levou a convidar Louk Hulsman a explicar alguns pontos que permaneciam obscuros para mim e responder ds objegdes que me vi- nham a mente. A segunda parte deste livro é 0 resultado destes escla- recimentos, Mas, eu também queria saber como L. Hulsman se tornara um. abolici nista do sistema penal. Um pensamento tao singular e tdo ra- dical nao surge por acaso. Quem é Louk Hulsman? De onde fala? Com que autoridade? Perguntei isto a ele, durante as conversas que vém @ seguir e que constituem a primeira parte deste livro. Jacqueline Bernat de Celis * Louk Hulsman dirigiu uma reuniio da Associago Droits de l'homme et solidarité, em 18 de maryo de 1981. 18 Louk Hulsmane J. B. Celis Durante mais de dois anos, através deste Ministério, participei, em Paris, dos trabalhos do Comité Interino para a Comuriidade Européia de Defesa, de. modo que, ha muito tempo, eu ja havia adquirido uma boa pritica.em relagdes internacionais. - Estas primeiras fung6es, sem divida, nada tinham a ver com os problemas do sistema penal... - Sim, sem, cuivida. Trabalhei, em Paris, num projeto de Cédigo Militar Europeu e na preparagéo de um Regulamento Europeu de Ajuda Mutua Judiciéria, que, na verdade nao deram em_nada, pois a Franca se recusou a assind-los... Me engajei neste trabalho, the dediquei muitas energias,' e fiquei. bastante frustrado na época, ao ver que tanto esforgo, tanto vaivém entre Paris e os Paises-Baixos, nao tinham servido para nada. Sem dik vida, foi essa uma das razGes que me fez passat para o Mi- nistério da Justiga. - Trabalhei em meu pais, durante trés anos, no Servigo Ju- tidico do Ministério da Defesa. O mais curioso, quando penso nisso, é a espécie de vocacdo que, desde 0 comego, levou a que eu_me _me insurgisse contra.a m: desumana com.que.se_apli- cam_as decisdes penais. De.imediato, tive que me ocupar com questGes as ao.Direito Penal Militar. O Servigo onde eu estava, dentre outras atribuicdes, se pronunciava sobre pedidos de graga e livramento condicional e eu me sentia muito mal em ter que responder a estas demandas sob as orientagGes de meus chefes, que me pareciam incrivelmente severas. “Nao, nao”, di- ziam eles, quando eu queria conceder a graga ou livramento; “vocé deve recusar”. Q Departamento Pessoal também tomava decisées disciplinares, algumas das quais me revoltavam. E, jo- vem ¢ como era, eu ndo hesitava em correr atrds e cobrar dos res- onsaveis. A um deles, que decidira revogar um beneficio com efeito retroativo, interpelei sem ceriménia: "O que vocé faria se fosse pessoalmente atingido desta maneira?” Enquanto isso, eu procurava um, meio de conseguir uma evolugao da politica de ramentos condicionais que fossé favordvel aos condenades. Penas Perdidas 19 ~ Naturalmente, era um sonho impossivel... ~ Néo totalmente. Com o tempo, consegui dar uma inclinagao mais liberal politica de livramentos condicionais. Aprendi muito cedo - e esta foi uma das grandes descobertas da minha vida - que, mesmo.de certos pastos hem madestas, é possivel sacudir as. burog clas, Yesde que, naturalmente, haja um.empenho profun. do €'se esteja bem preparado. tecnicamente, Sem dhivida, também fui favorecido pela sorte. Eu_estava num _posto bastante interes- sante. Ao meu Servico vinham, para consulta, todas aS questdes econémicas ou as ndo.estritamente militares. Por outro lado, to- dos os projetos elaborados pelos outros Departamentos passavam pelo Ministério da Defesa antes de ir para o Conselho de Minis- tros. Quando cheguei, tados os outros membros da equipe estavam absorvidos com o problema da Indonésia. Nesta €poca,. havia a guerra da Indonésia e era preciso Preparar a transmissa iia. Isto lava um trabalho e1 a modo que era a mim, o recém-che; questdes “corriqueiras”... que, nem sempre, eram banais! Eu estava no Servigo, hd niio mais de dois meses, quando chegou, por exem- plo, um projeto de lei sobre energia nuclear. Ora, eu nao sabia nada sobre energia nuclear! Me Pus, entao, a trabalhar neste proje- to com o maior cuidado. Meu trabalho foi apreciado e comecaram a ter consideragao por mim. Isto, de certa forma, me.deu uma da de troca: precisavam de nic balho considerado importante na tra Iga i do Se: om. isso, chegada a hora, pude reinvindicar menos restrig¢des na concessio de livramentos condicionais. Além disso, aprendi outros pequenos truques, através dos quais também pude exercer minha influéncia: Por exemplo, na ocasiao das notas trocadas pelos Ministérios, Para ie ume Materia passasse_no Conselho de Ministros, era preciso ee Os Ministérios se pusessem. Ag,acordo. Assim, se um Ministé- HO quisesse ganhar tempo, o meu poderia ser exigente, o.que leva- tla © primeiro a ter interesse em aceitar -0-que -reivindicdévamgs, Para due @ matéria passasse. Com este poder de retardar ou acele- 20 Louk Hulsman e J. B. Celis Tar © processo, eu podia obter certas coisas... De certo modo, no Ministério da Defesa, tive, antes da consciéncia, uma espécie de pratica abolicionista... - Estas suas explicagées mostram uma imagem bastante in- quietante da forma de aprovagao de projetos de lei! - E de sua elaboragao! Durante este periodo da minha vida, vi muito claramente como as leis sio produzidas: geralmente fei- tas por reles funciondrios e emendadas precipitadamente e por mpromissos politicos; nao tém absolutamente nada de demo- craticas e, dificilmente, sfo fruto de uma coeréncia ideoldgica. Pi ior ainda: s&o editadas na ignorancia da diversidade de situag6- ‘es sobre as quais vo influir... Mas, este desnudamento de uma tealidade sem correspondéncia com os principios ensinados nao passou de uma etapa na descoberta de que, em_nossas socieda- des, no fundo, nada funciona segundo os modelos que nos foram em minha histdria pessoal... - Se vocé pudesse fazé-lo seria interessante, na medida em que sua experiéncia poderia ser reveladora para outras pessoas. - Talvez seja. Pois bem, durante longo tempo, acreditei que aquilo que se ensinava era a realidade: uma determinada teologia « moral, por exemplo; ou a ideologia do Estado protetor da pessoa. pombe ~ By cresci numa regiao dos Paises-Baixos onde teinava, de forma absoluta, a doutrina catdlica oficial - aquela pré-Vati- cano ) Ty Inculcavam- nos a estranha idéia de que havia_umas eleitas e outras nao. Na ideologia escolastica, tudo é or- denado por ’ Deus e quaisquer definigdes sao dadas de uma vez pot, todas, Entao, ha -pessoas escolhidas por Deus, que perten- cem ao Corpo ) Mistico de Cristo, ao Povo Eleito; e ha Os outros, que esto de fora. ‘Para explicar isto, porém, seria preciso voltar bem _ Penas Perdidas 21 i a ; - Vocé ndo esta exagerando? A gente lé no Evangelho: "Eu vim buscar e salvar o que estava perdido"! - De forma alguma. Sempre me ensinaram que somente aqueles que sao batizados estéo com Deus. E certo que a nogéo de batismo ampliou-se um pouco. Consideram-se como batiza- dos aqueles que tiveram’o desejo de sé-lo. Também se inventou batismo de sangue. Mas, foram extensdes de um principio es- trito, pelo menos no que se refere ao ensinamento que recebi. Nio falo do Evangelho; falo de_uma certa corrente da Igreja, a corrente_especificamente. Juridica, aquela.que forjou a formula fora da Igreja, nao ha salyagaéo. Um homem como meu santo padroeiro, por exemplo, a quem acho até bem simpatico - Luis, rei de Franca - nao queria fazer a guerra... Mas, fez a de Tunis. Quando se lé o que ele escreve, fica-se confuso, Segundo ele, nao se deveria fazer a guerra contra os ingleses, porque os ingle- ses também sio seres humanos. Mas, era preciso fazer a guerra contra os dtabes, porque eles nfo séo nada, nao pertencem ao Corpo Mistico... Dizia-se: “é pena, mas é assim; eles sdo perdi- dos”. Eram pessoas que, de todo modo, nfo podiam compreender © sentido das coisas... Porque as coisas tinham um sentido que apenas os eleitos podiam compreender; alids, em graus diversos, conforme sua posigdo hierarquica, entendido que somente o Papa via toda a verdade, em fungao de seu vinculo direto com Deus... E eu vivia inquieto, sempre me perguntando se nao iria para o inferno, pois, durante muito tempo, acreditei no inferno. Seré que eu nao iria parar 14? Eu queria, ao menos, sabé-lo, e inventa- va umas espécies de jogos para obter uma resposta: se eu chegar ao cruzamento antes de ter contado até tanto, vou para o inferno; se no, ndo vou... Todo o juridico jé estava ali! Falei publica- mente disto ha ndo muito tempo. Mencionei alguns problemas de nsciéncia que tive por causa de peniténcias que podiam ser tas e que valiam um tempo a menos no purgatorio, para si me: MO. ou para outra pessoa qualquer. Era possivel ganhar 60 dias, rezando tal oragdo; e, indo a igreja no Dia de Todos os Santos, ! aA 2, Louk Hulsman e J. B. Celis . ™ ae ’ ” a4, : Ne ; , qualquer um poderia ser totalmente perdoado... Ainda me lembro de um certo 1° de novembro... Fazia um tempo lindo! Sera que eu poderia ir-brincar, ou deveria cumprir esta peniténcia que dava a absolvicao total? Tantas almas gemendo no purgatdrio! Como passear nos bosques, se eu poderia salvé-las? - Como vocé, finalmente, saiu dessa inquietude? ~ Durante meu iltimo ano de internato - vivi muitos anos num colégio interno - estudei teologia moral, por minha propria lativa, pois nao fazia parte do programa. Entéo, comecei a nao acreditar mais no que contavam. Havia, de fato, uma grande distancia entre o que ensinavam e minha experiéncia, Aj, come- cei-a forjar minha propria religiao. A principio foi extremamente dificil obter informagées diferentes daquelas que a Igreja trans- mitia. Num dado momento, consegui me apoderar da Biblia. Tal leitura foi como dinamite. Subitamente, encontrei ali, inclusive nos Evangelhos, toda espécie de material contrario ao sistema e mesmo 4 liturgia que nos faziam seguir e que, alias, me agrada- va... De fato, era dificil sair dos marcos impostos, pois, nao sé nado davam livros criticos na classe em que eu estava, como, além disso, no contexto catdlico da regiao onde eu vivia, ndo havia a menor possibilidade de encontrar noutros lugares, seja em biblio- te ou livrarias, qualquer literatura contraria as idéias da insti- tuigao Igreja. Nesta etapa da minha vida, realmente senti a dominago totalitdria de um sistema institucional que fechava as portas a qualquer outro modo de pensar. Entretanto, a diivida ia comegar a me desalienar. 7 -Comoassim? ve 0 ihe - “ - Escapar do conformismo permite 0 acesso a um universo de liberdade. Mas, nem sempre é facil largar o establishment, embora, as vezes, isso dé prazer. Alguns acontecimentos me aju- daram. A guetta civil espanhola, por exemplo, foi uma etapa im- portante. Na regiéio onde eu vivia, os jornais eram todos franquistas. Com uma tal imprensa, eu também acabava ficando interiormente contente quando Franco tomava mais uma cidade, quando seu exército avangava, Mas, em 1938, comecei a ter Penas Perdidas 23 acesso a outras fontes de informagao e, de repente, me vi muito pouco orgulhoso de meus sentimentos. Percebi que tinha sido to- talmente enganado pelo sistema onde eu_tinha estado encerradg. “Agora que lia os livros dos republicanos e¢ daqueles que, na Fran- ga € ios Paises-Baixos, tinham participado da luta contra Franco, me dava conta do erro profundo em que eu.hayia mergulhado e minha vergonha crescia... Jamais fui 4 Espanha antes da morte de Franco, pelo trauma profundo que vivi naquela época. Este epi- sédio me marcou bastante. - Também foi neste momento que vocé come¢ou a se inter- rogar sobre os principios legitimadores do Estado? - Foram a ocupagao, a resisténcia e a guerra que, para mim, desmistificaram o Estado. Num dado momento, como eu usava uma identidade falsa para no ir trabalhar na Alemanha, fui preso pela policia holandesa - a policia de meu pais! - e enviado para um campo de concentragdo. Eu jé tinha constatado que todo o aparelho estatal holandés funcionava sob a ocupagio alema como se nada tivesse acontecido; os altos funciondrios permanecendo em seus postos e continuando a produzir leis. Agora, eu percebia que as leis e as estruturas teoricamente destinadas a proteger 0 ci- dadao podem, em determinadas circunstancias, se voltar, contra ele. Ou seja, descobri a falsidade do discurso oficial que, de um lado, pretende ser o Estado necessario 4 sobrevivéncia das pes- soas e, de outro lado, o legitima, revestindo-o da repre- sentatividade popular. Descobri que tinha sido enganado pelo discurso politico, da mesma forma que fora enganado por minha educacio escolastica e induzido a erro pelo meu meio a propésito uerra na Espanha. Um ceticistno profundo iria tomar conta finalmente me impedindo de admitir qualquer sistema lo de explicagdes gerais, que nado pudesse ser verificado. ~ Este tipo de filosofia deve ter feito de vocé um professor bem diferente do modelo convencional... - Evoluf neste sentido. Devo dizer que depois de aceitar, muito espontaneamente como jé disse, a responsabilidade da cé- tedra de Direito Penal que me propuseram em 1964, tive um mo- 24 Louk Hulsman e J. B, Celis mento de estupor. Como me posicionar? E bem verdade que, por ocasiaio dos encontros do Comité Europeu para Problemas Cri- minais, conheci especialistas das ciéncias criminais de imimeros paises; eu jd tinha uma idéia do que eram.os.sistemas penais em diferentes contextos, pelo menos na Europa, e jd tinha alguns contatos com crimondlogos avancados, Estas relagdes me ajuda- ram a ultrapassar o enfoque. juri ico dos problemas. Por outro lado, estive preso durante a ocupacao alema, e a condigdo de de- tento ficou gravada no mais fundo de mim como uma questéo em, aberto. Também € certo que aprendi com Van Bemmelen, meu professor na Universidade, a me posicionar criticamente em telagao aos sistemas existentes: numa época em que os ptofesso- tes de Direito Penal geralmente se limitavam a fazer desta disci- plina, estranhamente considerada, menor, uma simples técnica legalista, ele lhe dava um enfoque de crimindlogo e soube fazer com que eu me apaixonasse pelo que ensinava, a tal ponto que, com urso concluido, em alguns meses tornei-me seu assis- tente na Universidade... Mas, tudo isso que me impelia a aceitar © posto nao me dava os conhecimentos especificos para me transformar num docente, pelo menos na concepgo cléssica do cargo que eu ainda adotava. Ey_me sentia muito. pobre, muito mal preparado para esta nova tarefa. Eu niio sabia, por_exempla, nada de histéria do Direito Penal e nado via como me langar no ensino de um sistema sem ter uma idéia clara do que o havia pre: cedido, de. suas origens, de sua evolugdo. Eu também me coloca- va a questéo da metodologia: para chegar a dar o que eu acreditava ser um ensino digno deste nome, seria preciso repen- sar todas as categorias. Me vi, assim, mergulhado na histéria e na pedagogia... Porém, uma surpresa me esperava. A medida que eu lia as obras mais importantes sobre o ensino em geral e sobre o conceito de humanidade no ensing, ia descobrindo que eu tinha tido uma visio aprioristica totalmente falsa sobre o papel do pro- fessor. Ha uma obr. Bloom bastante esclarecedora sobre os diferentes niveis das atividades cognitivas. No que concerne ao Penas Perdidas 2 : / 25 aspecto cognitivo do ensino, ele distingue cinco niveis: nivel 1 — conhego o texto, posso repeti-lo; niy 1 2 — compreendo o texto; nivel 3. — posso aplicar os conceitos; nivel 4 — analiso; niyel.5 — posso fazer a sintese. Entdo, disse para mim mesmo: se clarifico e organizo, me encontro neste nivel superior de andli- se e sintese; mas, se_dou tudo Pronto para os pobres estudantes, eles ficarao sempre no nivel do “conhecer’ ou do “compreender” ~ o que estou me dispondo a fazer é totalmente aberrante. Decidi, assim, no dar aos estudantes as idéias prontas e acabadas, claras € compreensiveis, que tinham se tornado as minhas, mas apenas lhes fazer chegar elementos de reflexdo que lhes permitissem en- * contrar seus proprios caminhos em situagdes complexas. Seriam eles que fariam as andlises, procurariam a sintese e tirariam suas conclusGes pessoais sobre os problemas que evocariamos... ~ Ao tomar posse em sua cdtedra na Universidade, vocé jd era abolicionista? ~ Nao propriamente. Na realidade, foi na Universidade que a idéia mesma do abolicionismo tomou corpo em mim. Percebi que, a nao ser por um acaso excepcional, o sistema penal jamais funciona como querem os principios que pretendem legitimé-lo. ~ Pois, como professor da Universidade, vocé teria que jus- tificd-lo? : - Ecerto que, em grande parte, a Universidade tem uma ati- vidade de justificagao do sistema estatal. Mas, ao mesmo tempo, ela favorece uma atividade critica, A Universidade me pés em contato com a pesquisa empirica e com enfoques outros que nao © juridico, Neste sentido, foi exatamente ela que. me.. permitiu chegar a uma nova visao global do sistema penal e afirmar minha posigao abolicionista... Eu diria ainda que, afinal de contas, se as ciéncias sociais me levaram a esta posigao foi porque, praticando-as, descobri que elas nao davam o tipo de resposta que eu esperava. Elas me ensinaram que o “saber” cientifico, em ultima instancia, passa sempre pelo “vi- 26 Louk Hulsman e J. B. Celis vido", que, em nenhuma hipétese, pode ser substituido, ao con- « trario do que eu erroneamente acreditava. Neste sentido, foram as ciéncias sociais que me revelaram a importancia do vi igialmente, me levaram a pensar que, ao favorecerem ut Thor cOmpreensao deste mesmo “vivido", podem ter uma feliz in- cidéncla_sobre ele, Paralelamente, elas foram, pouco a pouco, fazendo aparecer diante de meus olhos Q.nonsense do sistema pe- nal, no qual justamente o vivido quase nao tem lugar, nonsense este que s $ Pesquisas empiricas iriam me ajudar mais diretamente A vegiebin ye Melos tk o - Vocé péde demonstrar o nonsense do sistema penal? -.. - Vocé verd em que medida. No comego do meu curso, me mantive dentro de uma perspectiva mais ou menos tradicional, tratando de colocar limites racionais para a experimentagéio. Mas, ao mesmo tempo, eu queria dar espaco para minha visao global do social, da vida, para as conclusées que eu havia verificado pessoalmente. ativo Nc Qperacionalizar os prin- Cipios nente aceit juristas.e crimindlogos, segundo os quais é possivel proferir uma sentenga “justa” (proporcionalidade entre a pena ¢ 0 delito, subsidiariedade do sistema penal, infor- macéo exata sobre o imputado, etc.). Um dos meus colaborado- tes colocou éste modelo ‘no computador e, quando tesolvemos trabalhar com ele em cima de problemas concretos, chegamos a uma experiéncia assombrosa - perguntévamos: “em tal caso... € neste outro... qual é a pena correspondente?” E a maquina sem- bre respond : i jue o sd slsteigal Isto foi em 1970. lao foi no ano em que’ Denis Chapman publicou, na In- glaterra, seu famoso "esteredtipo do delingitente"? Vocé foi in- Sluenciado por ele e pelos crimindlogos americanos? - N&o, ev ainda nao os conhecia. Eu_fazia, pot conta prd- pria, experiéncias de sociologia empirica,que-comecaram, um Penas Perdidas 27 pouco por toda parte, de maneira independente. So mais tarde conheci os trabalhos de Denis e convidei-o a se juntar a meu gru- po de pesquisa sobre descriminalizagéo no Conselho da Europa... Entio, | através daquele, estudo em torno do sentencing, percebi ssivel que uma ‘pena legitima possa sair do siste- ma, a penal, dada a maneira como ele funciona. Saltava aos olhos que tal sistema ope opera com "base na irracionalidade, que ele é to- talmente aberrante. Neste momento, descobri ter a solugdo para uma indagacao profunda, que eu me fazia desde a juventude e que fora deixada sem 'Tesposta. Desde minha adolescéncia, eu me per; perguntava, a propdsito da civilizagéo romana, por que aquelas as faziam depender suas decisdes do véo dos passaros, ou * do aspecto das entranhas de aves sacrificadas. Esta indagagao nao tinha me abandonado nem mesmo depois da obtengao do ba- charelado. Tratei de esquecé-la, dizendo que, afinal de contas, os romanos estavam muito longe de nds. Mas, a diivida tinha ficado guardada num canto de mim e reapareceu, ‘por ocasifio de um es- tada de algumas semanas em Roma. A imagem que eu tinha construido da civilizagéo romana tetornou.ao meu espirito.e tive a_sensagao de nfo ter decorrido mi também, um tanto paradoxalmente, tive a ‘sensagaio de a poderia ser de outra forma num momento dado, de que o tipo de civilizagéo na qual vivemos poderia ser detido um dia... Entretanto, ainda no tinha conseguido respon” der a lancinante questéio sobre as aves e suas entranhas... Universidade, naquele momento de_revelacio. Mb nonscae ae sistem: ‘penal, que encontrei_a resposta para a pergunta.que.me mpreendi, de repente, que o que fazemos.com.o.Di- ce_com © que os romanos faziam com seus passaros a teologia moral, a interpretacio. » ne fundo, funcionam.da mesma-for- tpteet 17) a 28 Louk Hulsman e J. B. Celis : b rag ; = um destes sistemas, dizia eu, fazem-se depender as respos- le signos que nada tém a ver com as verdadeiras questées da- des Para nds, a resposta esta no Direito; para os romanos, estava nas’ éhiranhas; pata onttos,.ela se yacha na astrologia, mas 0 méc nismo &0 mesmo... No me curso, costumo comparar 0 pensa- aces mento _Jjur Seidental aos. Slippers, estas méquinas..que existem nos bares e fazem brilhar todos os 3 tipos de luzes... Este jogo tem sua légica prépria. Naturalmente, se é livre para dizer: se der 1000, eu me caso; se der 800, aceito aquele trabalho... po- demos tirar na sorte as decisdes que vamos tomar, mas nao hos enganemos: é preciso que estejamos bem conscientes de que es- tamos obedecendo a uma ldgica especia “I Foi neste exato momento que vocé aise é preciso abolir este sistema irracional? 21 (7.2 ¢.0 + 1m Aore - N&o houve um momento espetacular e1 em: que a idéia brus- camente brotasse. A necessidade do abolicionismo foi se impon- do’ gradualmente. Paralelamente—as--.minhas-~experiéncias empiricas-na-Universidade,-eu~recebia informagdes de~outros pensadores-e~pesquisadores.que me-ajudaram.em certos pontos Notadamente com a leitura de algumas obras de hists- ria, percebi que, em toda parte, se manifesta uma espécie de mo- vimento circular de onde nao se sai, Os sistemas se encontram, aqui e acolé, em diferentes estagios, mas sempre voltam ao mes- mo ponto,.¢ isto ocorte de forma semelhante em todos os pai- SES... jue_se_movem... O livro. de Thomas Mathiesen, Politics of abolition, teve um um gtande papel nesta eta- pa de minhas teflexoes, qua quando eu jé estava totalmente maduro. Ha muitas coisas impressionantes neste livro, escrito de um jeito todo pessoal... E um pouco como a Biblia. Também é inacabado , para mim, este aspecto conta muito. Eu tinha também o grande Relatério em quatorze volumes da Presidential Comission dos Estados Unidos: challenge of crime in a free society. Para quem quer compreender o que € 0 sistema penal e no que ele est4 se Penas Perdidas 29 ¥ convertendo, este informe é luminoso, Entre todos os aspectos considerados pelas intimeras pesquisas que compdem este enor- me documento, trazendo uma combinagdo de dados sobre o sis- tema penal’ sem precedentes, hd uma andlise_que mostra claramente como se forma.a cadeia de decisdes. Esta leitura tam- bém"me provocou um.turbilhio. Devo muito ainda a Ortega y Gasset, mesmo tendo que retroceder. bem longe para reencontra- lo, aos tempos de minha juventude. Guardei uma imagem impor- fante: a de que construimos sistemas abstratos para nos sentirmos em seguranga como civilizagao e trabalhamos para aperfeicoar estes sistemas; mas, os elaboramos com tantos detalhes e as con- digdes para as quais foram criados mudam tanto que, com o tem- Po, toda esta construgdo néio serve mais para nada. A distancia entre a vida e a construgao te torna-se > tao Brande que esta acaba desmoronando... faa if % fleet at eat - Vocé esta sugerindo que 0 sistema penal é uma constru- ¢do abstrata tao distante da realidade ¢ que deverd desmoronar sozinha? Na realidade, infelizmente, este sistema ndo dé nenhum sinal de queda. Dd até mesmo vontade de dizer: ao contrério! Diante da avalanche de novas leis, cada vez mais repressivas, que vém sendo promulgadas no mundo inteiro, diante de tantas "Comissoes de Revisdo do Cédigo Penal” que, um pouco por toda Parte, se prestam a revigorar o sistema, talvez se devesse, ~ Do ponto de vista pessoal, nao sou radicalmente pessimista. Quero dizer que, sem ser de um otimismo irreal, tenho razées para ter esperanga. Mas, para apreender estas razes e, ao mesmo.tempo, compreender como pude realizar esta minha travessia para o.aboli- cionismo, talvez seja preciso que eu trate de informar o que se pas- sou comigo num nivel mais profun po. dos. fatos, dos acontecimentos que marcaram minha , para tentar alcangar as experiéncias interiores. Determinadas circunstancias levaram a que eu me interessasse mais especialmente pela justica penal e assumisse tesponsabilidade neste campo. Isto foi o que acabamos de ver. Mas, 30 Louk Hulsman e J. B. Celis certas experiéncias profundas - evidentemente ligadas aos acon- tecimentos que teceram a trama da minha vida - influiram sobre toda a minha maneira de ser e de pensar. Sao estas experiéncias as fontes ocultas de minha verdadeira atitude em relagao ao siste- ma penal. Apés uma determinada crise pessoal, atravessada ha uns quinze anos, tomei consciéncia do fato.de que minh: cago do mundo e a explicagdo que dou de mim mesmo cessos ‘paralelos, como duas faces de uma mesma m« deve s set verdadeiro para cada um de nds -.0 acesso a nossas pré- pias angustias e a nossos prdprios desejos influi sobre nossa compreensao do mundo e vice-versa: utilizamos 0 que. aprende- mos do exterior para decodificagao das experiéncias interiores. - Vocé quer dizer que, para assumir sua posigao abolicio- nista do sistema penal, vocé mergulhou no mais profundo de si mesmo? - Sim, é isso!: A evolugao da minha visio de mundo - e, portanto, do meu olhar sobre o sistema penal - é necessariamente paralela 4 minha evolugao pessoal interior. - Nesse caso, teremos que marcar uma segunda conversa, para partirmos rumo a descoberta das insténcias mais secretas de sua posi¢do abolicionista. 2 Experiéncias Interiores E Corl a UES Ay , 55 7 vam ty ponte ape < EDR AG ce, ~ Louk Hulsman, acredito que vocé se defina melhor pelas experiéncias que teve, ndo? - De fato. E sempre através de uma determinada combina- go de experiéncias, tinica ou rara.enquanto combinagdo, que é possivel ‘apreender uma pessoa. O que esta pessoa viveu; as si- tuag6es enfrentadas; ias cientificas abstratas que rece- beu; os modelos que ouviu de explicagéo de si mesma e do mundo, as praticas que experimentou - é 0 cruzamento de tudo isso que a explica, muito mais do que os tragos de carater que a definiriam. Bri tiem Aiding Ke LO - Quais foram as experiéncias marcantes em sua vida? - Jé mencionei algumas de passagem. Mas, para efetiva- mente fazer compreender o que me mobiliza interiormente, serd preciso retornar a elas. A experiéncia do internato, sem duvida, foi uma das que mais.me marcou; eu poderia até dizer que me traumatizou, Fui posto varias vezes io interno, A ultima fol numa escola secundaria mantida le onde fugi aos, 13 anos. Embora meus pais naturalmente justificassem sua deci- sao de outra forma, eu acreditava que eles me mandavam para o colégio interno para me punir, pois minha mae freqiientemente dizia que eu era uma crianga dificil... Fui muito infeliz naqueles anos, Eu ndo conseguia suportar a disciplina, a atmosfera repres- siva reinante no internato. E, como os outros se acomodavam, eu 32 Louk Hulsman e J. B. Celis acabava sem amigos. Ficava isolado, numa espécie de marginali- zagao que. duplicava © sentimento de tejeigio ja experimentado em relagao 4 minha familia. Eu era uma crianga que no corres- pondia’ ao que dela se esperava. Dey Depoi dessa, as 3 experiéncias mais significativas foram as que. vivi na ‘guerra e.na resisténcia. Ja falei delas. Mas, gostaria de mencionar algumas coisas que ainda nao disse e que me parecem fundamentais. Quando eu era crianga, morévamos numa rua onde, na calcada em frente, come- gava a Alemanha. Faziamos nossas compras em Aix-la-Chapelle e conheciamos bem os comerciantes e todas aquelas pessoas que viviam do outro lado da rua. Quando veio a guerra e durante a ocupacao, vi surgir - e eu mesmo vivi - comportamentos extre- mamente maniqueistas em relagdo aos alemées.. Em.um.dado momento, eu talvez pudesse maté-los todos. Quando foram der- rotados, percebi que, no fundo, eu nao tinha nada contra eles e pude olhd-los sem ressentimentos... Jé mencionei que fui captu- rado; preso-e jogado num campo de concentragéo..Mas, agora que me tefiro-as experiéncias interiores, devo dizer que, na reali- dade,~suportei- muito melhor esse periodo de detengao --que, -aliés;foi-ourto.-.do aoe os-anos de i internato. - Sério? : - Pareoe-eipiiGok MA, reso ‘politico nao perde a-au- toestima-nem.a-estima.dos.outnos. Ele sofre em todas as dimen- sdes de sua vida, mas permanece um homem que pode olhar de frente. Nao esté diminuido. Esta experiéncia foi fundamental para mim, ae-mostrar a importéneia-de néo-se-ser estigmatizado quande-se-é-colocado-d-margem... Mas, ainda em. relagdo.A face oculta dos acontecimentos, cc como _os s interiorizei, eu-diria que as circunstancias da liberagao igualmente me permitiram viver algu- i ‘campo ¢ de esta primeira 4 gO. - = como fugira do colégio int experiéncia tendo, sem dtivida, facilitado ‘altei_de um trem que ‘me levava para a Alemanha, quando - ja tendo os americanos liberado o sul dos Paises-Baixos - os alemies, em re- Penas Perdidas 33 tirada, transferiam os prisioneiras do campo de Amersfoort, onde i eu estava, para o interior, Foi.em setembro de.44. Eu estava no | norte do pais, onde tive que ficar escondido durante sete meses, ' na casa de uma familia amiga, até o dia em que, numa cidadezi- nha do norte também jé liberada, reencontrei alguém do meu grupo da Resisténcia, que se tornara exército regular apds a en- trada dos americanos nos Paises-Baixos. Este_companheiro. ia uma identidade falsa e um uniforme, co! is pI Voltar para casa.no sul .sem problemas, apesar,da. ge atravessar o rio temporariamente imposta aos holandeses das ‘duas zonas, Aderi, entdo, a esta unidade militar recém-saida da clandestinidade, desequipada, que. roubava,. sem. culpas,. tudo aquilo de que precisava. E ai que se situa a experiéncia - a dupla periéncia - de que eu queria falar; nds, roubavamos,. pegdva- ios fuzis dos americanos, roupas dos ingleses, como eu peguei uma bicicleta dos alemies, com a mais limpa das consciéncias! .Por outro lado, em uma semana, passei da condigéo de quem vive na clandestinidade ao status oficial de militar das forgas.de ) ocupagao na Alemanha! Creia, isto é um convite para nao, mais telacionar o valor de um homem 4 sua condigao juridica ou so- \oial.. Sebel ny a w WE BL ba Ay ~ Serd que poderiamos tentar descobrir, agora, como todas ~ ») estas experiéncias juntas fizeram de vocé o que vocé é e, final- mente, definir o que o caracteriza? ze, as - Me parece que trés-idéias-chave poderiam Simbolizar ° que viyj em profundidade &9 que continuo tentando ser: estar aberto; ‘viver solidariamente;/estar apto a uma permanente con- versio, ~ Admitindo-se, como vocé propée, que. nossas ecodificagdes valem tanto para nos revelar, quanto para revelar o mundo, seriam estas também as idéias-chave de um determinado humanismo? ~ Sim, ¢ isso, - Como, entdo, elas agem em vocé? oe nee oe fa. +. CEUB-BIBLIOTECA 3) rafo at ’ hao 34 Louk Hulsman e J. B. Celis - Experimentei, pela: primeira vez, & _sentimento_de_me abrir - ou, se vocé preferir, de sair de um fechament = Togo que, jue, tendo definitivamente recusado o colégio interno, entrei no externato ¢ do liceu. Fui para uma turma onde nao éramos mais que seis © todos nos entendiamos muito bem. Finalmente, tinha amigos; no estava mais sé... Organizamos um monte de coisas fieas. Depois, 2. Dosé- fora da programagio, comecando por debates filos montamos um jornal que chamamos de alternativo, ontestadores. ~ Eontestadores em relagdo. aque? - Contestévamos a situacdo dentro da escola, mas também, indiretam: ente, a instituicdo Igreja, pois o liceu era administrado por_pac . Talvez tenha sido. a partir desta época que passei a ver a vida como uma continua. Gescoberta, co! uma. yma liberacao... Sim, um de meus sentimentos interiores | fortes € o de viver a vida como uma liberagao... ~~ Bis um sentimento-pouco-difundido! - Nao é difundido porque a educagao, o discurso. dominan- te, apresentam a vida.e a.sociedade de um modo distante.das-ex- periéncias. pessoais. EB, neste. sentido, so .alienantes. Mas, combater esta “alienacdo, justamente ficando.aberto... Al- jas de minhas leituras ja tinham contribuido para que e jetividade. D Descarta,a pessoa,.o.sujeito, e nega a importa sfeivided, ou, melhor, dizendo, nao. d4_a.esta.uma. lnguagem Mas, eu-tinha ade es ice ‘universo-intelectual.~ que nao. dei- i ia_lugar para os senti- idéia de ir dancar.© as ¢ 5 cartas de amor, que em_determinada para a minha mie, pareciam-me_inconvenientes. Minha ¥ visio de Penas Perdidas fo PHO 35 hoe ok 2 Viele eT mundo era inteiramente ees Lembro-me-do.desejo-cnorme que.eu tinha de poder-responder.é.pergunta-“o.que.6.0-saber?” do particular interesse que dediquei a um livro.de-Merleau-Per- ty.que-mostrava_o.que.hd.de.subjetiyo-no-cenhecimente. Desde aquele momento, compreendi que c-ate-de-conhecer-encerra-um_ vinculo, 9 vine conhece, ¢ que aquilo, que. chamamos.de. "realidade esta inte- Efe: parti_para a descoberta smo ~ ¢ este € um processo que se obertas fazemos, mais.longe.e,mais rapi- Este processo, de abertura para.o. mundo foi se acentuando depois. Paralelamente,a meu, curso universitario - eu fazia Direito na Universidade de, Leyden. - me engajei no grande movimento questionador que sacudiu a Igreja dos Paises- Baixos a partir dos anos 46/47 e que foi um dos gu © Vaticano II. Junto com politicos e Br institucionalizagao. ‘da Igreja, que, alias, teve grande repercus- sao nos Paises-Baixos. - Vocé trabalhou na desinstitucionalizagao da Igreja antes de trabalhar na do Estado? - Meu trabalho de desinstitucionalizagéo do Estado é, na verdade, uma réplica daquele trabalho em relagao a Igreja. Alids, algo espantoso se passou. No.comego, eu pensava que-sé. havia realmente institucionalizacao-na Igreja e que a secularizagdo se- ria uma-espécie-de-liberagao:.. - E-isto-ndo.é verdade! ~ Claro que nao! Foi uma experiéncia bastante interessante €, a mesmo-tempo, decepcionante descobrir-que-o-mesmo-me- canismo combatido no seio da-Igreja-reaparecia-ne-eontextordito secular. Reconheci muitas vezes seguidas, e sempre com a mes- ma surpresa, esta-notavel semelhanca-entre-as-estruturas estatais eas ’ 36 Louk Hulsmane J. B. Celis estruturas-da-Igreja-instituigao..De todo. modo, minha atividade a seryico. da .desinstitucionalizacao da Igreja. me deu uma.étima idéia do mecanismo que deveria ser combatido em todos os ca- /= Isto.iria-me permitir; mais tarde, fazer-titeis-aproximagdes entre os-prineipios que informam as instituigdes.do Estado, nota- damente o sistema-penal, e 0 sistema escolastico. - Em suma, quando vocé diz que é preciso estar aberto, isto significa que é preciso lutar sempre para evitar o isolamento, seja individual, seja coletivamente? - Sim,-é-isso. Se.nos fecharmos em nossos sistemas,-nas verdades que acreditamos-possuir, passaremos ao largo da vida e ngs-seré-inteiramente-impossivel exercer qualquer influéncia so- ‘bre.o.que-quer que-queiramos- fazer evoluir. Eu pude constatar diversas vezes que, quando queremos influir né re a conhecé-| ja tal como ela €, as coisas se voltam. contra. is. A principio, como muita gente, tive esta experiéncia com meus fi- lhos. Numa certa medida, mesmo sem querer, nés nos impomos as criangas e, quando procuramos planejar o que imaginamos ser bom para elas, raramente o resultado é o que esperavamos. Isto porque nao deixamos que a crianca concreta, que temos diante de se exptesse; nao a escutamos, da mesma forma que, n° - E tal atitude nos distancia da vida? - Ela.é constantemente questionada pela realidade. Fagamos um_parénteses: a desumanidade do sistema penal esta, em parte, na situacdo em que reciprocamente.se colocam _o_imp! 2€ 0 agentes que. tratam com ele. No~contexto deste. sistema,-onde aquele. que é acusado nao pode-verdadeiramente falar,.onde.nao tem.a-oportunidade-de-se expressar, 0 policial ou o juiz, mesmo que.queiram escuta-lo, naio-podem fazé-lo.-E 0 tipo mesmo de re- lagées instituidas por este sistema que cria situa » Voltando as minhas experiéncias pessoais, eu. 'poderia dizer que, num num dado momento, constatei que todas as espécies de teforma Te . ee OL fe bo PenasPerdidas . - 37 Ciba. Ate kee oN a concebidas para pér fim a determinadas injustigas - reformas tealizadas por mim mesmo ou por outros - se voltavam contra o projeto inicial; Griando ainda mais repressdo ¢ mais impoténcia. Qu.ainda,-que-todos-9s-esforges, dispendidos,.nio importa.quao intensos, restavam absolutamente ineficazes, como que absorvi- que_o. malogro, na verdade, yem do fato idéia da realidade das estruturas que procuramos manejar, con- fundindo legitimacdo e realidade. «4/2 G 97> fsa uo “= Escutando isso que vocé diz, surge uma posstvel obje¢ao: se antes de pretender transformar o que existe, é preciso saber como as coisas realmente se passam, no nos arriscamos a cair numa espécie de imobilismo? - Eu nao disse que é preciso se abster de qualquer agdo até © momento em que se saiba tudo! Mas, certamente, é necessario conhecer bem o terreno onde se pisa e estar atento ao que se pas- sa, ao longo de toda a acéio. E, pata-conhecer-a-materialidade-e-o funcionamento das-estruturas que-se-quer-mudar, é preciso de- senvolver uma pyatica, A verdadeira compreensio é resultado. ‘da pratica e da reflexéo sobre ela. Daf minha patticipacao esponta- nea em intimeras praticas, a que “normalmente”, dada minha po- sigéo na vida, eu nao teria tido acesso. ‘Participagdowou proximidade real. Assim é que quis conhecer pessoas nascida: noutras camadas sociais, ou pertencentes a outias sociedai como os indigenas da América e alguns povos da india; pessoas definidas como desviantes: Pesos, egressos, ‘criangas “proble- cas”, “doentes” mentais, minorias sexuais, drogados, squat- ters; re pecialistas de .outras disciplinas,.:.como.- socioléges, antropdlogos, historiadores, assim como os agentes-do sistema - policiais;.juizes, administradores de prisées, Participei de centenas de peunies, pertenci a toda espécie de comissdes, grupos de traba-. * Nida T.+ ocupantes ilegais de habitagdes abandonadas. 38 Louk Hulsman e J. B. Celis SPR YO BSA eatin agdo, que me abriram e mexeram comigo. As idéias-fatsas se-inerustam em.nds.porque-vivemos-em-comparti- mentos-que-nos-separam-da-experiénoia~de-outras: pessoas, que, i rimentes. PET fiz - Se vocé tivesse que resumir em algunas ‘frases 0 que vocé aprendeu em tantos encontros e trocas com pessoas, vivendo ex- periéncias tdo diversas, 0 que vocé diria? - Hoje.sei, com-certeza, que-muitas das pretensas verdades-ou pretensos conhecimentos-sao.falsos, Como a maioria das pessoas, fui educado para apreender, -o.sogial segundo u um, cédigo v voluntarista. Q:discurso. politico, a. Aiscurso.juridico nos-impelen-a-ver resumindo-se_a introdugao de uma certa intencionali- dade nos processos sociais ¢ sua conformidade com tal i dade. Ent Entretanto, acabei compreendendo que o enfoque a 86-funciona.onde:os-homens tém relagdes cara-a-cata, relativamente igualitdrias, e que o enfoque fenomenold foque n materia- lista - que partem das condigdes de vida mais apropria- dos _pe der a realidade social do gue _.enfoque normativo... . Todos.estes-encontros,-todos. estes.debates.de-que-parti- cipel; ouvir tantas pessoas diferentes; tudo isso também me levou a desmistificar a idéia de uma pretensa superioridade das sociedades industrializadas sobre as sociedades tradicionais. Hoje. -estou-conven- cido-qu que, em. certos: aspectos, deverfamos nos inspirar-em-ordena- \ mentos.existentes nas ‘sociedades tradicionais, que, alids, subsistem em nossas sociedades, embora 9 discurso oficial os ignore totalmen- te. Na realidade, ; sao estes.os.elementos mais vitais,em nossas socie- - Numa certa medida, nao seria essa uma proposigao ao mesmo tempo utépica e regressiva? - Da.forma-alguma! Em _primeiro.lugar,-ndo-prego-um-retor- no.xomantico as.sociedades-tradicionais. Por outro lado, é preci- so desconfiar especialmente desta idéia de regressiio que vocé Penas Perdidas 39 levantou e a que freqiientemente se costuma apelar..O-querse:vé aciedades? Nesenyolyeu-se_nelas portancia do, quantificavel.« fo nego que-este.enfoque.tenha sua utilidade.=permitiu-pér-fim a-uma certa pobreza. Mas, mesmo nos limites precisos da produ- go de bens materiais, ele nao deixa de ter picbleinas:E 3 quer estendé-lo a todos os dominios da vida: A satide, a educagao, a habitacdo, ao meio ambiente, e, até. mesmo, aos conflitos. inter- soais. B-ai, ele.¢ absolutamente nefasto.:Este.desenvolvimen- to da racionalidade propria da industrializagdo-nos-campos mais importantes e mais profundos da vida é-catastréfico. - De fato, muitos pensadores dizem que os fendmenos da vida sdo dificilmente observaveis apenas a luz desta racionalida- de de que vocé fala. ~ Vocé-tem-razao; -niio.estou .dizendo.nenhuma.novidade. Quase todo-rmunde-pereebe-ai-um-grande-problema. Mas,. geral- mente - ¢, as vezes, eu também - fala-se isso de forma abstrata. Mais-profundamente, no que diz respeito-a-minhas. experiéncias pessoais, vivo'esta onda de racionalidade-como-uma-espécie-de cancerizacao. Até na minha prépria participagao na vida social, percebo o quanto este enfoque, que se expande mais e mais, rapi- damente, cava um abismo cada vez mais profundo. entre, odo como se apresentam as coisas € a realidade. vivida, e. € confinado por este, processo_a uma sociedade de apa Oia, quando o que se diz é profundamente diferente. daquilo que verdadeiramente se. passa.e. daquilo. que-se. faz,. muitas»pessoas experimentam um forte sentimento-de-impoténeiare-se desinte- ressam do que ocotre na vida social; achande-que-esta-nfio-thes diz respeito. - Vocé acredita, entdo, que um certo retorno ds sociedades tradicionais nos seria benéfico? - Eu o afirmo. Os.paises industrializados, na-etapa:historica em que se encontram, sao chamados a revalorizar-prineipios tipi- 40 . - Louk Hulsmane J. B. Celis .00s das sociedades tradicionais. Estas conhecem. ordenamentos sociais que implicam em menos divisao do trabalho, E, onde ests existe, é aplicada muito mais com um carater comp! do que ‘num quadro institucional. Nas. sociedades tradicionais, ha iiends lugar para a.quantidade. Q aspecto qualitativo é que tem ai maior importéincia, A visdo analitica nao sufoca o enfoque In- tuitiv § slohalizante da, vida, que nelas predomina. E preciso : voltar aistos Cece OPA 1. DeSes Gta 2, - Como fazé-lo na prdtica? 92%i.<./ < - E preciso tentar desprofissionalizar, desinstitucionalizar, descentralizar. ‘ ~ Facil de dizer! ~ Excerto que pode parecer extremamente dificil sair disso. Nos - ou seja, as pessoas como eu, que recebemos uma formagdo 5 ional. ~ nds somos de tal forma colonizados pelo enfoque institucional que, mesmo quando queremos desinstitucionalizar e descentralizar, a toda hora recaimos no modelo de que tentamos fugir. Nés perdemos.o habito; a: capacidade, o modo de agir naio- institucional.sobre.o.plano.social. global. Ora, se quisermos reen- contrar os prine{pios do ordenamento social que presidem as so- ciedades tradicionais, ndo poderemos tentar reintroduzi-los no interior do modelo institucional, que, além do mais, é incompati- vel com eles. Dem s6i4« one : vo on - €omo fazer, entdo? “ - A meu ver, a unica maneira de deter a cancerizacio insti- j tucional para revalorizar outras prdticas de relacionamento social + é desinstitucionalizar na perspectiva abolicionista. - Todos-os caminhos levam vocé ao abolicionismo... i - E-verdade, As-outras-idéias-chave que mencionei - soli- ‘ dariedade, conversio - também me levam para 14, ao mesmo ; tempo que dao conta da minha identidade. - Vocé poderia-explicitar isso? a 7 gada 4 maneira pela qual percebo minha pi WE uma éspécie de motor interno. Creio que-meu sent -soli- dariedade esté profundamente-enraizade-num-forte-sentide-de igualdade.entre.os homen?Mas, aten: do: uma nogao de igualda- de totalmente oposta a que, em geral, propdem.o discurso oficial atica institucional de nossas.sociedades. Como assim? > * Vee pp dase A “A nogdo de igualdade mais comumente ee la pra- tica e pelo-discurso-institucionais exclui a diversidad =A nogio oficial de igualdade traz implicita uma simplificagdo da vida‘/As instituigdes, para tot as.coisas maledgveis, reduzem-nas.a.sua natureza institucional sto é ontradigée-com-snina nogao- de.igualdad e;-a-meu-ver,-é-sindnimo-de.diversidade. 3 ¢]Hé um-importante-livro-de-Van-Haersolte que esclarece bem esse ponto. E uma obra sobre a, personificacag dos sistemas sociai 271Van-Heersolte, que é ptofesser-de-Filosofia-do-Direito,-se-per- gunta-em que-nivel-poderia-se.situar-o-Estado, enquanto corpo social, considerando tudo o que existe: os homens, as plantas, as pedras, as instituigdes em geral. Para-ele,.a-pessoa se constitui de um_determinado nivel de-iniégtagaio de informagées:e sua-quali- dade depende deste seu-nivel.de.integragid, Admitindo a possibi- lidade de personalizar o-Estado. como coi cial, .ele.entia faz umn alerta contra a tendéncia de Ihe.conferir-o.status:mais.alta:.o Estad6; diz ele, do ponto de vista da.integragdo,:talvez.possa:ter com.uma De algum parentesco com um Verme, mas certamente.n pessoa humana! Fiquei muito impressionado com esta imagem. N&6“tiego que as instituigdes possam.ter uma certa utilidade; na medida em que fornecem marcos organizativos-para-tegulamen- tagiio. de-determinadas-atividades. Mas,-estou-convencido -que tém_uma vida bem inferior 4-do-homem..Q menas.inteligente dos homens: que maravilha de integracao ao nivel das tarefas que te ir! instituicao, ao nivel de suas.tarefas:.quao dos sao os papéis.que_pode.desempenhar! Bjem-:nessas-sa- cledades industrializades, ay istinuigbes; Estado, a2 . Louk Hulsmane J. B. Celis se-personificam-a-tal-ponto que de. um_verme fazemos um-deus! 7 esd 1os-a0 Estado e as instituigdes-em-geral-um esto €. lo, os seres manos, é.que sko.colo- cados em. ult sf, Os-seres humanos.sdo degradades, infe- Tiorizados. B-a-vida- _humane;-que é-de--uma- -Fiqueza-c: za-e-de-nma. pecieade aco im reduzida.é natureza sim- Fe i ire lames ecidartodade, talvez de- ers com que ou com quem nos_sentimos solidd- rigs... ~ Para:mim, solidariedade-jamais signifieara .comprometimento oenr-qualquer ordenamento-secial ou institucional. A solidariedade de que falo ¢ sempre uma solidariedade. vivida.com seres.qu grupos coneretos: pessoas, animais, objetos - Até-objetos? °2 st Ces ¢ - Quando-nos encontramos. numa Tegiae desértica ‘ou poueo pevoada, a-matéria - a-madeira, por-exemplo, ou-uma-pedra - adquire uma outra dimensdo, tornando-se “proxima”... Sim, eu vivo em lidariedade com cada elemento do mundo, mas nao com _as instituicdes ou.seus_simbolos, Em=nessas=sociedades, -auites-sentimentos-de -solidariedade-se-manifestam-em torno-de~ determinadas-instituicdes ou de-seus-simbolos, Ey tenho horror disso. Este tipo de solidariedade me, da arrepios. - A-esteponto? da juventude, Me: “lembro. bem. dos dis queen radio e das reagdes, das massas, antes. de Hitler chegar ao poder e principalmente. depois que 9 aleangou. Vitesta-espéeie. de-solidariedade, que execto, se expandir pela-Alemanha. En era, “erlanga e, como morévamos perto da fronteira, senti,.a.atrag&o,.o ‘magnetismo que esta forma de solidariedade exe sobre os outros, pressentindo, ao.mesmo tempo,.o.enorme-peri- iedade-de-que-falo-é-uma-neghe Penas Perdidas rn) elu sd Cli. Ca et pane bastante-sutil; que jamais poderé-ser-eompletamente-apreendida e de. que.difieilmente-nes damos-conta. E um sentimento | de e depen- déngia miutua, que, para mim, é, de rT gao_da vida. Foedes--nés~existim es--numa—espécie~de cemunhae-edsmica. Quando se tem consciéncia disso, « desenvol- ve-se uma espécie de respei fo implica num sentir atengao para | um-sentimente- ta-particularmente-feliz: “Vinde, Espirito Santo. vinde_a_nés, pai dos pobres... vinde, luz de nossos ¢ coragies,...purificai aqueles Ai que esto secos, curai os. que brandai que sao 9 Tigidos, aquecei Qs que tém frio, orientai aqueles que esti tdidos.,.” Esta seqiiéncia Sempre me to- Cou, bastante, porque, sei lima -me,fez-reconhecer-o-direita.4-vida:de-t toda interior. semelhante.ae.que forma-de existéncia. Nao se pode recusar a ninguém o direito de. yer 4. sua maneira, quando se_reivindica, para. este mesmo direito. Por conta. da-edueacéo.que- tecebemos-em:nessa-sociedade,-me-vi cenfrontado: com--uma: visao. de-mundo que: recusa-tal-direite, Ja, mencionei como, no terno, tentaram me convencer de que se ea ee or do que aque- e;-jamais~pude aeeitar isso-e, no curso-da-vida, i Tevado: a-tejeitar-tedas-as separe- es; todas as visGes-de:mundo que excluem.outras. formas de-vida, inc lusive a as que fazem do. homem_um ser completamente aparte. Ss € 0 que se chama de “natureza” estao incluidos opé-deve-se-sent bem-dentro da-proposta fran- ciseana... pd BR ASU RI ~ Se-nes-sitvermos-no-mundo -cristio. Mas, t também me identifico com, a experiéncia de.vida dos indigenas onas da América, Ow ai id wp “4 Louk Hulsman ce J. B. Celis - Vocé, ds-vezes, ndo é acusado de uma-certa-inocéncia.an- gelical? ~ Em que sentido? Nao ignoro que o social ni necessariamente se encontra em situagao ¢ de conflito, E, exatam to, n 0, minha linguagem é certamente ca do que a ghagem tradicional, notadamente a d penal,. que. se apdia em-um pretenso-consenso absolutamente irreal... - O que eu queria dizer é que poderia parecer irrealista o Sato de se contemplar passivamente todas as maneiras de ser, sem, as vezes e energicamente, tomar partido contra algumas delas, - Reconhego que-meu-modo.de falar de-solidariedade pode se-prestar-a interpretagdes de que-eu- jamais -sentiria~qualquer agressividade. Mas, isto.¢ totalmente falso, Os sentimentos de que fe excluem nem.o espitito.de_luta,nem_a agressivida- de, nem a eliminagio de determinadas situagSes ou maneitas de agit: Sou capaz de sentir rejeigdes extremamente fortes e apaixo- nadas. - Como é possivel viver numa intensa comunhdo com todas as formas de vida e, ao mesmo tempo, sentir paniade de destruir - um adversdrio? >, ee “ - Bu.nio confundo ~ ou-melhor; naé.confundo mais - meus adversdrios-com-aquilo que-eles-defendem-e que-acho que devo combater. Jamais cifista - isto é um fato. Foi a um brago armado da Resisténcia que pertenci durante a ocupagao e conti- nuo achando que era assim que eu tinha que participar daquela luta. E certo que, naquela época, eu ainda néo tinha a visdo clara de que o adversdrio nao deveria ser confundido com a guerra. Mas;-distanciado-no-tempe-e-a-pattir.das.experiéncias vividas:de- peis;-posse-dizer que.o.tipe-mesmo-de-solidariedade-que.experi- mente:no-mais:profundo.de.meusser me impede, pelo menos agora, de confundir as as envolvidas num combate com as egy AL Ae Me Ry ae Seder wee J 9 Penas Perdidas 45 situagGes ou os ordenamentos sociais contra.os. quais.me.levanto os quais estas pessoas se acham comprometidas. - Como vocé faz para conjugar seu lado que poderiamos chamar de "moralizante" com um sentido de solidariedade que quer dar a cada um a oportunidade de viver seu prdprio.modo de existéncia? - De fato, 4 primeira vista, isto pode parecer paradoxal. Mas, na minha pratica de vida, nio é. Fundamentalmente; née me-permito julgar,-avaliar- uma situagdo, sem antes tentar extrair um.modo. de vida de seu interior e de sua globalidade. Nao f parto mais da idéia de que uma outra forma de vida é, a priori, pior do que a minha. Além-disse;-tenho-uma-euriosidade.natural.que-me impele.a me-interessar-por tudo que é diferente-e-a-ter-prazer-em- descobri-lo. Para mim, a descoberta de um_ outro modo de ser no mundo, nao é uma experiéncia negativa, mas sim.esti ~- Mas, o que vocé faz quando, tendo avaliado uma situagao de seu interior e a colocado em seu contexto global, seu julga- mento é critico? - Sem duivida, é preciso fazer aqui uma distingdo importan- te. Pessoalmente, posso“considerar-nocivos;* maus-ou indignos um.determinade medo-de-vida ou uma determinada situagae na vida. Por exemplo, olugar. reservado a mulher.em. algumas socie- dades. Mas, se as prdprias interessadas nio véem ai um proble- ma, penso que eu jamais deveria impor meu ponto de vista. Num tal contexto, posso apenas procurar incentiva-las a uma mudanga, que devem realizar por si mesmas. Achistéria esta-cheia-de-pro- ‘eesses~de-mudanga: que provecaram: desgragas-imensasaexata- ‘Mente porque-se. quis:impor-aos-outres,-para-seu: bempumemede de-vida “melhor“;-sem-consultéelos. Este modo de aj profundamente contrario 4 igualdade fundamental dos homens, com« ntenda. Isto quer dizer que, para participar de um pro- cesso de mudanga num caso desses, meus meios sao limitados. Posso tentar convencer; posso desmistificar certas coisas; posso M6 Gk tN t Louk Hulsman e J. B. Celis Sie eee CRS eee bo nage ae apontar outros modos de agir - ftuma espécié de convite para que o outro empreenda ou participe de um processo de mudanga. ) Brestando-no:peder;procurarei-os.meios- de-proporeionar-eondi- g6es -que- permitam-a-este outro.cu:a-estes.outros-descobrir.m eutro-modo de-vida - sem jamais ignorar seu. direito fundamen- tal de viver segundo sua prépria visio das coisas JO outro-caso-é mais:simples: quando alguns submetem outrds a um modo de vida que acarreta danos ou injusticas., quando se,trata_da justica penal. A.este.respeite, nfio_se “questionam; sequer.j percebem © problema. Aceitam a concepgao que_fundamenta 0.sistema penal sem refletir, sem empenhar seu espirito ¢ seu coragao. E-uma idéia que.aceitam-e-transmitem-da mesma-forme-que - mesmo contrariando o-que-amanr-ou-eréem - maneire-ridicula, distante-de qualquer lucidez, que se-veieula uma: jastigerherdada A teologia doj uizo: ‘final, PO Oe ee Penas Perdidas _ 69 pl dee ae € star ML OESTIGMA eo nny @-sentimento-de. culpa-interior. que-4s-vezes-se~invoca-para vs ¢-sistema-penal - 0 gutor de um crime teria necessidade do castigo - nada tem ayer com a existéncia de tal sistema. Nao se trata-de negar que os-homens- Possam experimentar uma-pro- funda perturbagiio-a-propésite-de-alguns. de seus-atos-ou-comper- tamentos: Mas, é preciso afirmar com toda a convieeao que néio é a existéncia ou.a inexisténcia.do sistema penal que pravoca tal Ae-eontrdrio,-é. preciso-denuneiar-as-culpabilizagses-artifi- Ciais-que-este-sistema- predwe. Em imimeros casos, a experiéncia do processo e do encarceramento prod tigma que pode se tornar. profundo, F I r >-Felteradosy ostrands.que-as-definigses-legais-e- éial_por elas_produzida, podem determinar a_percey como realmente “desviant levar algumas pessoas a vi- ver conforme esta image! mente, Nas:vemos-de-novo.diante-da-constatagao. de-que-o sistema penat-eria.o delingiiente, mas, agora, num nivel muito mais in- quietante e grave: o-nivel-da-interiorjzags izagao; pel do-etiquetamento legal-c:social, ‘3 AE wv Ve CMigwee | 12. EXCLUSAO _ te Cece ne Bee mt eats Ve Ce i « ae ‘@-poder-repressivo do pensamento-burocrético é i ia-de-separaciio-e de: tejeigao aparece. sempre que as pessoas m escrever uma convengao, =, a. es . Poa © SSS Ce 70 : Louk Hulsman e J. B. de Celis. spiny we 4 Yiseher NG witeggam i hae @utro-dia;-os-preprietarios de-galerias-de-atte-da cidade onde-moro-souberam--que-tinham .a- -possibilidade-de- receber uma.subvengio-municipat. Para obté-la, era preciso que se.es- tabelecesse um “regulamento de subvencao”, ao nivel:da mu- de modo que, diante de. tal regulamento, os interessados pudessem m apresentar suas propostas, Braconteceu qilé;-perisando-ne-que-riam -proper, -aquelas-pesseasquexndo Sdosnomnalmente-repressetasy-tornaram=se-Feprescoras, “So- mente artistas profissionais poderfo expor...”, diziam. Nao se procurava mais a qualidade do quadro, mas a ! situago de seu autor! Este.é.um-exemplo-vivo-de-eome-atuam,=quande-se-tra- tade-regulamentar, as. idéiss de le selegao, de profissionaliza- ¢89,,de apattaciio,.. o rq ‘vey Buslecy ber:: aiasla,-qume-outrareportunidadey-e -espen- “taneidade- ‘ga-de~tal-pensamento. Fyiconvidado. pelos junkies? para uma de suas.reynides. Os-juakies. estavam come- gando a definir suas reivindicagdes a propdsito.dos diferentes ee 5 sistemas ue se ocupam, deles.-Formaram-um-grupe-de. agao - pe-eles.se- organizem, -que-exis- ta entre-eles: a de “am: ay A A reuniio, extrema- bre “queixavam da whee ede =a meu.ver,.com justa razio - tafabémi Sustentavam.a criminalizacao. Queriam que fosse-puni- da-é-e0) daqueles que-vendem-a-droga;-atirando sobre-eles tede-e-firia-daleie-do-sistema~penal. “Nio.somos nés, mas os traficantes que.devem set perseguidos...". Para_escapar_da tejei- ubscreviam a_rejeicfo de outros, ‘Pate-poder-viver-impunie- eome-desejavam,; .era--preeiso-que~se -situassem -'de-lado- bom", aceitande-a- acta um-"lado a ae ceriam, Ae § . A Los LAO 5 9 Nome dado a pessoas que se drogam com heroina, Penas Perdidas 1 13. IMPASSE =. PA MR Ce ides Be Bs Jessie 4 ee:condenades-i-ptisio-como-culpados que there- cem-um.castigoalimenta-a-seu-respeite-o-espiritode-vinganga. Algumas-pessaas.falam-da:prisie-come-se-fosse-um-hotelkqua- tre-estrelas, apresentando o preso como uma espécie de veranista as custas do Estado. Baf-surgem-os-protestos-des-que-levantam-a-¥oa, que estava Estas pessoas praticam esporte, enquanto vaqueles | que nada fizeram de reprovavel ganham o pao com o suor de seu resto? A mesma in- dignago se manifesta quando se coloca o problema do écio nas pri- sdes, A.administragao peniteneidria nfo consegue.assegurar trabalho a. todos.os. presos que gostariam deterumsalério? Nao hé 9 que Jas- timar! Numa época em que, existem legides de ae .que: foi-pego.: justica - um, mecanism 14, REPERCUSSOES — ardbsey ue Gestasiames-que aoe eausou umdanecoumrencat ee ‘pesar, eee oe néo aceita. ee mem_incompreendido, desprezado, massactado, poder tefletir sobre as conseqiiéncias.de, seu-ato na vida da pessoa-que.atingiu? 72 eta eee Adidgzqne:meios.teria-para-reparer-ou-atenuar-o-mal-que-causeu, se, preso, sem trabalho ou recebendo um infimo saldrio, 4 medi- da que.o tempo passa, vai se tornando mais e_ mais insolvente? “~~ .Rara-o encarcetado,-o sofrimento da. priséo-é.0-prego-a-set pego-por-um-ato-que-uma-justiga-fria colocou-numa-balanga de- sumana. E, quando sair da_prisdo, teré pago um, prego tio alto que, mais do que se sentir quites, muitas vezes acabard por abri- Bat novos sentimentos de édio e agressividade. @:sistema-penal-produz-efeitos-totalmente-contrérios ao que pretende.um-determinada-discurse-ofivial, que-fala-oredfavorecer asemenda-de-eondenado”. O sistema penal endurece 9 condena- do, jogando-o contra a “ordem social” na qual prete de_reintro- duzi-lo, fazendo dele uma outra Louk Hulsman e J. B. de Celis yt (Keay te Cc : ed Adin 86 OL Mars 15, ACIDENTES? SiGrowy Reto U& CocAeg tk wad »= Auexistincia.de-culpades-née-é-nem -um.pouco. indispensé- vel-para-a-reparagdo.de.danos.cat ~ aQ menos os danos.pe- los quais se interessam as leis, que nunca vao além dos prejuizos materiais. Todos.sabemos.que-os sistemas de-seguro se-baseiam na nogao de-risco-e-naéo-na-nogéie-de-culpabilidade. ‘Bmaravelanche;um-terremeto,-um-raio;-uma-inundagdia,.ou um-periode-de-seea - sic acontecimentos com os quais a coleti- vidade aceita arcar. Pot-que-niio.se-paderia assimilar-a-uma-ca- tastrofe. natural— Bos 6 Louk Hulsman e J. B. de Celis 18. DEIXAR PRA LA ~” @uando-voeé-se-contenta com ae-idéias que-sfo transmitides -sobreneysistema=penal-e-as-prisées!” ‘quendemocs~dé-decombres Pata.cettas noticias que, de. todo modo, eyentualmente,aparecem nos_jomais_- noticias assombrosas. sobre -problemas.penitencié- Hos, como eneareeramento. de_adolescentes. em. celas.de. isola: ne pris SS ee ernment: -estar-comprometi: do-eom-as: ‘atividadeswsoncretas.que-levam-e-tais-situagSes? 19. DISTANCIAS SIDERAIS ™Vecéacha a-prisio-um meio-normal de.castigar-e-excluir-al- guns-de-seus:semethantes? Entretanto, evitar o sofrimento alheio deve ser algo que.ocupa um dos primeiros lugares.em.sua.escala (@s-diverses-burocratae-anénimos-que-decidem-ou-eontsi- buem-para-que-seja.ditada.umea-condenagae-d -prisio tém-poucos iagren Firs fla. E a eidem, 0 policial, por sua educacio, seus gostos, seus interesses provenientes de um_meio_social_andlogo, talvez pudesse se sentir préxima.da pessoa presa. Masy-o-sentimento-de-respeito dexide-é-sua autoridade.cria-ontee ele.c.o-presomdistincia-que hd.entee-o-vencedos.e-o-vencide, Além disso, 9 ._policial so in- n| 1.processo de div do abalho, qu re po he Alin AG Foren oe bass Hy Ale ty Y Penas Perdidas 7 trata eee que-os-peliticos, que fazem.as_leis,-agem-no-abs- Se, uma vez ou outra, visitaram. uma prisdo, foi como tas. _Certame ite, foram bem escolhidos.o dia o lugar, para que HBO, tiv uma impresséo.tao.ma, Talvez tenha, a sido organizai um_banquete. uete./ Assin;-quando. estes-politicos + ipropsen ona. acorn -uma-nove-ineriminacao, sequer imaginam_suas, ~COMSE- qiiéncias na vida das pessoas.’ Os. juizes-de-carteira, \;-tanto-quanto~es-politicos-estdo psicologicamente--distantes~dos—home: pois_pertencem_a_usmacamada social -diversa daquela_da clientela normal dos tribunais repressiyos, Née~sestsateade tad-vontade=da=parte Sea hoe ‘Fentei-retomar-o-pont i x 7 esta.droga.n&o fosse criminalizada, tais problemas-ndo.existiriam. E evidente que, numa sociedade onde se produzem substancias psico- trépicas, determinadas pessoas teréio problemas com elas, como ou- tras tem com o dlcool ou com ci; A ishid,-de- comportamente-purivel que agrava asituacio.” ¢, oe igo-meu-fazia-zanesmecandlise. Unepsiquiatrerami . Ele obser- vava_que. nao convinha ..individualmente.¢. que tampouco se deveria lunkeis. Goema.médicaxo psiquiatra, ele via que.os problemas das junkeis derivavam de pi- cadas com agulhas nao esterilizadas. e.da ignorancia.da.quantida- de de doses assimilaveis pelo organismo. Para-ele.também,. a Iethor-polities: seria.a.da.desoriminalizagae, ressgltando que,.nao sendo a heroina, em si mesma, mais perigosa que outras substan- clas. que néo sao ilégais, a desorimialisagas permitiria..que. se ? Ba Ue rilica Mas, zada-de-problema. E, como-de-cestume; nao: saiu-deste-encontro qualquer deciso.conjunta, qualquer pratica diferente: as. Servigos interessados continuariam a desenvolver 9 mesmo tral partimentalizado, B/assim que o sistema-sempre-se-tefaz. ao Pr en 4 w O% oN 80 Louk Hulsman e J. B. de Celis 21. A REINTERPRETACAO Jamais conseguimos.apreender.o pensamento alheie. O sen- tido_pleno.da.que é dito nos escapa. Gemo;-portante; transmitir fielmente-umamensagem, -senrae-menes-tespeitar a-materialida- de-das palavras ouvidas? 9 Gea eS Le Qavie tC Em 14 de maio de 1981, o Papa Joao Paulo II foi atingido no ventre por trés tiros de revdlver. No domingo seguinte, 17 de maio - dia de seu 61° aniversdtio - da clinica onde se recuperava da opera- go, dirigiu aos fiéis, que tinham ido rezar na Praga de Séo Pedro em Roma, uma curta mensagem onde dizia: “Rezo pelo irmiao-que-me feriu-e-a quem sinceramente-perdeei*..Nem-a-imprensa-escrita,nem as.rddios.reproduziram. esses -termos. Podia-se ler e ouvir: o Santo- Padre perdoou seu agressor; Joao Paulo II perdoou o assassino... a palavra -“irméio"-era-muito-estranha;.chegava-mesmo. a.serineonve- niente Nao se emprega esta palavra em tal sit 22. OS FILTROS ) MS fe erie Cot ag Aries No sistema-penal;:niio: se-escutam-1 realmente as pessoas envol- vides. Nao se regi e elas dizem com.suas.proprias_palavras. iturecdos inquétitos.polieiais-éreveladara. Eotessdacumentos-recolhent declaragdes. e-testeraunhes..de pessoas.extremamente-diferentes: operdrios, estudantes, jovens e adultos, estrangeiros, militares, homens e mulheres. Mas;-ali se-en- gentram.sempre as-mesmas-palavres,.frases:feitas do género "X de- q wo Penas Perdidas ig : ns clarou que é francés, casado, com dois filhos, que tem instrugao, que prestou © servigo militar, que nao foi condecorado, que nfo tecebe penséo nem aposentadoria...”, “X reconhece os fatos...”, "X foi objeto das verificagdes usuais e das medidas de seguranca previstas no Regulamento...”. Na tealidade, sio formularios que a policia preenche. Tais-formu!: ies;-num tom-invaridvel;-menétene, impesseal, refletem os critétias, a ideologia, og valores sociolégicos deste corpo que constitui a das subculturas do sistema penal. ¢40_ num hospital Para_seu proprio y ;.pede-se. considerar itidadespenaleem- parte -atenuadaje Kad normalmente-sensivel.a-uma'sangdo.pengl...". Nos.autos que-chegam as mos. dos: que: vao proferir-a.sen- tenga-ha. outros-decumentes-semelhantes. Sda_outros tantos fil- tros que estereatiparam.o individua,_seu_meio e 0 ato que Ihe é reprovado; © as visGes assim manifestadas — as s.VisSes miopes e rigidas do sistema, - sig outros tantos mentos estabeleci- dos ‘4 margem do homem, do que ele verdadeiramente é, do que vive, dos problemas que. apresenta, Dee he, OA Caer 8 eet 08 23.0 FOCO Quando-o sistema-penal-se-interessa-por-um-aeontecimente, o.¥8.através. de um espelho Seformante. que o.teduz.aum_mo- mento, a.um_ato. De.um.ponto. a-autre-do-proeedimento, o,siste- CB oe Te ed Cn fata de BN: oN Louk Hulsman’e J B. de Cli bay wld ale idles co mawai-oonsiderar-o-acontecimento esse apeopaiorsobrotin- gulo-extremamente.estzeito.e tatalmente- artificial de-um-inico gesto.exeeutado-num-dado-momento pot unrdes-protagonistas. Esta forma de focalizar o acontécitiefito torna-se-aindatmis - absurda- -quando-os.protagonistas-se-eonheeome-tinham-um-rela- cionamente-anterior. Por exemplo, um casal que jé n&io-se enten- de e que chega as vias de fato. A mulher agredida denuncia o marido. @ sistema registra: raistnOra;-a0falar delesSes-corporais-—-que'é-a-qualificagao-penal-de-fate - a.sis- tema coloca o acontecimento sob.o Angulo extremamente limita- do do d forgo, fisico, vendo apenas.uma parte dele, dele, Mas, para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa ~ este des- forgo fisico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum? 24.4 MARGEM DO en ~ AP Social SALE RRA EM Se Q.sistema»penal-rouba~ -6-eonfl ito-ds envelvidas-nele. Quando.o problema cai, no aparelho judicial, deixa de pertencer : aqueles qu iquetados de uma ima Vez por ti todas como,"o del Tanto-quanto-o-autor do fato-punivel; que, no desenrolar. de processe,- nio-encontra-mais-o-sentido-do-gesto-que- praticouy 2 a pessoa atingida. pot.este, gesto tampouco con: inio do acontecimento que viveu, O Seifanr > A-vitima ‘nio pode mais fazer parar.a “ago publica”, -uma vezgue.esta “se-pos:em-mevimento”; nao lhe é permitido ofere- cer ou aceitar um procedimento de conciliagao que poderia the assegurar uma teparacao aceitdvel, ou - o que, muitas vezes, é mais importante - lhe dar a oportiinidade de compreender e assi- milar o que realmente se passou; elacniia.participa. -de. nenhuma forma.da busca da medida que-serd tomada.a respeito.do.auter”; ela nao sabe em que coridigdes a familia | dele estara sobreviven- a Bake be t 180 Louk Hulsman e J. B. de Celis bilizar outras fontes a lidar com situagdes problematicas. Quando usamos outra linguagem, ensinamos esta linguagem pata outras pessoas. Desta forma, nés os convidamos para também abolir a justia criminal. Para Jacqueline Bernat de Celis e para mim, escrever sobre a abolig&o da justiga criminal foi parte de um empreendimento emancipador que nio esta limitado unicamente a justiga criminal. Esperamos que nosso livro seja util pata outros que queiram se- guir esta estrada e que contribua para o desenvolvimento que nos trard a oportunidade de viver juntos ‘‘dans une convivialité plus saine et plus dynamique’’. Penas Perdidas . 179 A linguagem em que as alternativas foram executadas sio muito diferentes: A focalizagao é: - em situagées no lugar de comportamentos; ~ na natureza problemitica ao invés da natureza ilegal do crime; ~ na pessoa/instancia para quem algo é problematico (vitima) no lugar do agressor. Este sé entra em cena quando ura vitima define o ato de uma forma que o torna relevante. ~ na pergunta “‘o qué pode ser feito e ‘por quem" sob as insti- tuigdes. As atividades exercidas na base da organizagao social e cul- tural na justiga penal, a linguagem usada, as imagens, nao sio fa- miliares a quase todos nés porque nao séo parte de nossas percepgées, nossas atitudes e nosso comportamento. Também a este respeito o campo do “‘crime e dos criminosos"’ é bastante semelhante aos outros campos em que assuntos de ‘‘guerra e paz"’, temas raciais e de *‘género"’ siio debatidos. Espero que mi- nha detalhada descrigéio de algumas alternativas ajudem a com- preender como esta linguagem e estas imagens da justiga penal nos influenciam e nos constrangem. Neste sentido, entio, a justiga criminal existe em quase to- dos nds como “‘preconceito de género”’ e em certas dreas do mundo ~ *‘preconceito racial’’ existe em quase todas as pessoas. Aboli¢ao ¢, entdo, em primeiro lugar, a aboligao da justiga cri- minal na pessoa: mudando as percepgdes, atitudes, comporta- mentos. Tal mudanga implica na mudanga da linguagem e, por outro lado, a mudanga de linguagem sera um instrumento pode- Toso para fazer acontecer as mudangas nas percepgées e nas ati- tudes, Essa mudanga de linguagem ¢ algo que todos séo capazes de fazer: para nao-profissionais, em certo nivel, deve ser até mais facil que para profissionais. Estamos todos aptos a abolir a justiga criminal dentro de nés € usar uma outra linguagem com a qual possamos perceber e mo- 178 . Louk Hulsman e J. B. de Celis O maior impacto de nossas recomendagées era promover reorganizagiio social de forma tal que os estilos de vida pudes- sem integrar-se mais. O fato de que o comité da vizinhanga tomou a responsabili- dade pela situagao na vizinhanga, e de que a pesquisa funcionou desde 0 inicio como um “ritual reordenativo”’ indicaram que a reorganizago social seguia seu curso. Os problemas primérios diminuiram na freqiiéncia e intensi- dade enquanto que os problemas secundarios relacionados prin- cipalmente as intervengées da justica criminal, que agravavam os problemas primarios, deixaram de existir por cobertura jornalisti- ca negativa. Os moradores nao estio mais abandonando a vizi- nhanga. A relaco entre as diferentes instituigdes e os diferentes grupos na vizinhanga melhorou bastante. A pesquisa era uma contri- buic&o para a emancipagao de grupos diferentes na vizinhanga e a emancipagdio permitiu 4 vizinhanga lidar com a crise. » Uma pesquisa comparada com a que se usa em um meio mais rural que mostrou resultados singulares. 43. ‘‘Como’’ - aboli¢do. Os exemplos de alternativas dadas anteriormente foram des- critos em um segmento deste capitulo que tem o titulo ‘*Por que aboligéo”*. Eles queriam demonstrar que alternativas confidveis 4 justia criminal existem e que sua auséncia nao é motivo para continuar a ‘‘unir-se’’ 4 criminalizagdo. Mas a descrig&io destas alternativas nos mostram também meios de abolir a justiga penal e os diferentes atores que interpretam um papel neste processo. Isto nos ensina sobre 0 ‘‘como"’ da abolic&o do primeiro tipo. Ademais, esta descrigdo nos ensina sobre 0 ‘‘como”* da aboli¢ao do segundo tips (a maneira de ver o crime e a justia criminal). A forma vigente de ver a justiga penal esté na linguagem de sua propria légica: orientada pelo comportamento de um agressor, baseada na culpabilidade e na visio do julgamento final. Penas Perdidas 177 pessoas, instituicdes ou estruturas eles atribuiam os problemas por que passavam; (@) o que eles achavam que deveria ser feito sobre es- ses problemas, e (f) o que eles (préprios) fizeram sobre esses proble- mas. Da mesma forma (g) gostariamos de fazer um comentario de opinides de diferentes instituigdes (diferentes tipos de policia, dife- rentes tipos de trabalho social, o setor médico, autoridades de habita- g&0) que trabalham na drea segundo as questdes ¢ e f. : Usarfamos um método de pesquisa: (1) andlise documental de natureza histérica, (2) observagao e (3) entrevistas abertas, Aptesentariamos o “‘mapa"’, que seria o melhor resultado desta pesquisa para a discusséio na vizinhanga, adaptando-o a base de discussao, Finalmente, formulariamos certas recomenda- g6es sobre os meios como a melhoria seria alcangada. As coisas aconteceram segundo nossa proposta. Baseados na nossa informago, identificamos nove grupos diferentes de vizinhanga e descrevemos seus estilos de vida eas interagdes entre eles. Demos a cada um daqueles grupos nomes positivos (0 grupo que era visto pelos outros como os criminosos mais perigosos - chamdvamos de ‘thomem forte’), e em discus- sdes futuras aqueles nomes positivos foram aceitos por todos, A pesquisa mostrou muitas diferencas entre os grupos, entre as instituigdes, entre os grupos e as instituigdes sobre as quest6es: quais eram os problemas, a quem ou a que eles eram atribuidos, e o que deveria ser feito sobre eles, Havia, entre alguns grupos, integraciio nos seus estilos de vida. Eles estavam em integragdo direta didria. Entre outros gru- Pos no havia integragao como esta. Freqiientemente os mesmos problemas apareceram na interagéio “‘intergrupal’’ e na interagdo “intragrupal”, Quando esses problemas aparecerem nos meios intergrupal e intragrupal, com estilos de vida de sobreposig&o, os diretamen- te envolvidos seriam capazes de, eles prdprios, lidar com esses problemas. 176 Louk Hulsman e J. B. de Celis publicidade para chamar a atengdo para o problema da violéncia sexual, e para mostrar ao mundo e as outras mulheres que é real- mente possivel fixar o limite e findar com este problema. Pode- mos chamar a isto de efeito emancipador estrutural, considerando a combinagao do primeiro e segundo elementos aos quais nos referi- mos, o que cria um efeito emancipador individual. Também em outras dreas problematicas encontramos exem- plos interessantes das possibilidades da lei civil em preencher uma. fungiio emancipadora ao tratar de eventos criminalizdveis. Permite a integragio de atividades das comunidades e movimen- tos sociais de natureza legal e nio-legal, e combina os efeitos preventivos com os reparadores. (3) A agdo de pesquisa como forma de instigar e apoiar o envolvimento da comunidade na prevengdo Em uma vizinhanga de uma cidade holandesa de médio-por- te, ‘surgiu um sério problema: parte da populacdo se via seria- mente ameagada por outros grupos da area, e a qualidade de vida caiu. Dai surgiram intimeras alegagdes de criminalizacao e, ex- tensa e dramatica, a cobertura da imprensa. A crescente atividade policial na vizinhanga - do tipo criminalizante e de vigilancia - nao melhorou a situagdo; ao contrério, tornou-a pior. As pessoas comegaram a deixar a vizinhanga. Nés advertimos o comité da vizinhanga para tomar pro- blemas nas proprias mios, e nos oferecemos para ajudar com uma agao-investigadora (pesquisa-acao) no sistema da conceitua- lizag&o como desenvolvido neste trabalho. Nossa proposta era comecar por uma pesquisa inde- pendente sob os auspicios do comité da vizinhanga, dentro do qual tentarfamos fazer um inventério dos (a) diferentes grupos (“‘tribos’*) que habitavam a vizinhanga e sobre o seu estilo de vida; (b) as interagdes entre esses grupos; (c) as coisas boas e ruins que eles jé vivenciaram nesta drea; (d) a quais grupos, Penas Perdidas 175 Trés elementos tornaram a injungao do tribunal bastante ttil como meio (estratégico) de cuidar dos casos de violéncia sexual por advogadas feministas e suas clientes, Em primeiro lugar, es- ses tipos especificos de procedimentos basicos parecem ser bas- tante atraentes € acessiveis a pessoas que no possuem meios legais para lidar com seus problemas. Para a mulher na Holanda que depende do servigo social, por exemplo, significa um custo pequeno, facilmente compreensivel, de procedimento™ rapido e flexivel, com uma taxa relativamente alta de sucesso. Ao mesmo tempo, ela lida com a definigio vitimal de ameaga no seu dia-a- dia, Ela também mantém sob controle os procedimentos le- gais do principio ao fim. A qualquer momento ela pode deci- dir abandonar os procedimentos, e barganhar com o outro lado, a execugo ou nado da sentenga do juiz. Ela nao depen- de, exclusivamente, de outras instituigdes como, por exem- plo, no caso de um assunto da justia penal. Ela so precisa de um advogado, do tipo especializado nessas causas € que esteja altamente motivado e que dé apoio aos seus clientes. Isto faz lembrar a segunda razfo que torna a injungdo do tribunal to adequada para cuidar de casos de violéncia sexual. De uma vitima de violéncia sexual e de um estado de dependén- cia e de humilhaciio, ela se toma parte ‘‘ativa’’, uma reclamante em um caso de direito civil. Ao fazé-lo, ela néio sé mostra quem. a estd ameagando, mas a ela prépria e ao mundo Ié fora, que tem sua propria vida e identidade, e que esté apta a seguir seu ptdprio caminho. E somente isto aumenta a sua defensibilidade. Contu- do, ser um reclamante nos procedimentos civis significa que o crescimento pessoal traz consigo uma fungio emancipadora indi- vidual. O terceiro elemento a que queremos nos referir é a publicidade. No sé as vitimas da violéncia sexual, mas também os jornalistas acham que os procedimentos sumitios e, especificamente, a injun- ¢40 do tribunal civil, sejam uma agGo acessivel. Isto significa muita Publicidade, As advogadas feministas fizeram uso deliberado da 174 Louk Hulsman ¢ J. B. de Celis sibilidades positivas de responder aos eventos criminalizaveis de forma que encoraje um desenvolvimento maior do publico. Ao final de tudo, se vocé nao tiver conhecimento ou nao possuir idéias iniciais de como agir, ent&o se torna dificil, talvez desen- corajador, para que mesmo assim as pessoas ajam. Uma vez co- megado, 0 processo terd um momento préprio. E nossa firme convicgiio que o que estamos fazendo ao bus- car tal linha de agao é simplesmente reativar o potencial que jé existe na sociedade. O desenvolvimento desse potencial inde- pende de encontrar resposta para o problema do crime - os en- volvidos nfo possuem a percepgio de si prdprios ao se Ppteocuparem com tais assuntos, mas ao invés lidam com uma imediata situagao de crise que requer acdo. Entretanto, depende das atividades e atos do servico policial, pela sua posigao-chave como o ponto de entrada para o sistema de justiga penal, de um lado, e como fonte para os diretamente envolvidos, de outro. Foi a policia que tornou possivel meus préprios atos, de vez que, se nao tivessem esclarecido 0 caso, e me passado a informagao que possuiam, eu ndo teria visitado a familia. (2) Violéncia sexual e o uso da lei civil Desde margo de 1984 temos estudado um desenvolvimento nos Paises Baixos, no sentido de fazer mais uso da justiga civil em casos em que certo tipo de justia criminal poderia ser aplica- da. Um exemplo deste estudo é 0 uso dos procedimentos basicos civis pelas vitimas de violéncia sexual. Mulheres que esto sem- pre com problemas ou sfio ameacadas pelos ex-parceiros, ou mais recentemente, vitimas de assalto ou estupro, podem solicitar uma ordem judicial que profbe o homem de entrar no mesmo lu- gar em que a mulher more. Em nosso estudo empitico achamos que a possibilidade de uma injungao do tribunal civil era uma resposta muito melhor as necessidades das mulheres vitimizadas do que o sistema de justi- ga penal jamais deu. Penas Perdidas 173 da garota morta e os do assassino se encontraram e estabelece- ram um relacionamento que foi importante para eles e para 0 acusado, Pensemos também no exemplo do trem Molucano, no qual os reféns continuaram a proteger e a visitar seus seqiiestra- dores na prisdo. Esses exemplos sustentam a experiéncia em nosso caso, isto é, que, sob certas condigdes, em que se reage inicialmente aos fa- tos de forma tal que uma resposta mais coletiva e menos frag- mentada é dada a eventos criminalizdveis; entéo um enorme potencial é criado para os membros da comunidade para que haja agdes que sejam frutiferas, recuperadoras para os agtessores e para as vitimas da mesma forma, e que lhes permita, em suas re- lagées, ultrapassar a antitese vitima-agressor. Contrariamente, as respostas tradicionais para os eventos criminalizdveis proporcionam excelentes exemplos daquilo a que Nils Christie se referiu como ‘‘roubo de conflitos’’, visto que eles inibem a reuniao natural de pessoas ao redor da crise e evi- tam o conseqtiente desenvolvimento social e pessoal que ocorre nestes casos. Acreditamos que isto significa um dos aspectos mais importantes da nogiio de ‘‘envolvimento da comunidade’’ - uma idéia que muitos aprovam, mas que somente poucos tém algo mais que idéias vagas - ¢ um esforgo de recuperar a chance de as pessoas simples se tornarem diretamente envolvidas nas respostas sociais que sfio orientadas para as vitimas. Considerando por um momento o que Wilkins sugeriu, te- mos no micro contexto os processos de atribuigado de culpa - e a ago reparadora relacionada a este fato particular - e em contexto mais amplo os processos de agdo reparadora e de controle - a questio de como lidar com este tipo de caso e de como mudar a organizagdio social de forma tal que a torne mais facil. Reunindo ambas as esferas, é importante que todas as organizagdes que tem algo a ver com a justica criminal - a policia, os professores, os promotores ptiblicos os trabalhadores sociais, os tribunais ¢ os pesquisadores académicos - deveriam seguir e esclarecer as pos- 172 Louk Hulsman e J. B. de Celis Enfim, houve a audiéncia judicial, a qual, pensei, um evento emocionante. A promotora publica preparou o caso e disse que sabia, e aceitava inteiramente, a maneira pela qual os fatos esta- vam sendo conduzidos, e, que a tinica razao de prosseguir com a audiéncia era a intengdio de sublinhar a gravidade de furtos deste tipo; como uma parte importante de simbolismo. O juiz também, cteio eu, foi muito compreensivo e falou de uma maneira que to- dos puderem entender, mas também preservou uma nogiio de dignidade e estabeleceu medidas cautelares importantes; um fato interessante em si préprio. Tinhamos saido todos juntos de casa para o tribunal, um grupo de cito ou nove. Devido ao nervosismo geral, tomamos café e uns drinques antes para acalmar a tensio um pouco. Senta- Mos no mesmo banco na sala do tribunal, e, apesar de ser um. pouco surdo, pude ouvir perfeitamente, pois todos falavam clara- mente. Os outros queixaram-se, contudo, dos funciondrios, que falavam suave demais, e ficou claro que nfo entendiam, absolu- tamente, a maior parte do procedimento, talvez porque ainda es- tivessem tensos. Apesar das circunstancias favordveis - nds nos conheciamos bem e eu explicara o que iria acontecer - eles nao entenderam praticamente nada. Um dos rapazes disse que ficou nervoso por varias semanas por causa da audiéncia; logo, vé-se que nfo era falta de preocupagao. Um outro disse que quase co- chilou, e me lembrei que, quando tenho uma briga séria com mi- nha mulher, algumas vezes eu me sinto muito cansado - um tipo de valvula de escape contra ‘‘sobrecargas emocionais’’. Esta é a estéria que me ensinou muito sobre como o sistema de justiga criminal segmenta artificialmente nossas preocupagdes, Na- turalmente eu nfo espero generalizar indevidamente apés esta Uinica experiéncia, embora eu nfo acredite que foi tio especial; meramente parece ser assim, nestas circunsténcias, porque eu di- vidi com vocé alguns detalhes. Eu conhego exemplos comparé- veis na Holanda (nao é facil, é claro, chegar a saber deles). Aconteceu, por exemplo, um caso de assassinato em que os pais Penas Perdidas 171 uma experiéncia proveitosa para todos nds e ndo estou exageran- do, Se os fatos no tivessem tomado 0 curso que tomaram, nds ndo teriamos ganho em todos esses aspectos, mas eu nao organi- zei as coisas assim. Eu simplesmente as provoquei, ao ir, como vitima, ver os rapazes e suas familias. As coisas entio tomaram o seu prdprio rumo e a tinica parte em que atuei mais especifica- mente, foi resultado do meu conhecimento do processo de justica criminal. Seis meses antes de os rapazes serem julgados pelos furtos, € sete meses antes de irem ao tribunal, nunca recebi a visita neste tempo todo, das varias agéncias de servico social envolvidas no caso, Nao me aproximei delas porque estava interessado, do pon- to de vista do pesquisador, em ver o que poderia acontecer, As familias foram visitadas por grande nimero de pessoas do servi- go social, de diferentes agéncias, de acordo com o seu “‘status’” social. Foram-lhes dados conselhos e orientagao bastante contra- ditorios, e eles sempre vinham pedir a nossa opiniao sobre o as- sunto, Quando as acusagdes foram feitas, nem eu ou minha mulher imaginamos 0 que ganhariamos do resultado desta acgdo. Parecia nao fazer sentido algum ter uma audiéncia. Entio liguei para a promotora publica, que mora do outro lado da tua, e, visto que o prédio do tribunal também é proximo, fui falar com ela pessoalmente, néo como professor de Direito Penal e de Crimi- nologia, mas como vitima. Ela ficou tocada por conta dos fatos, mas insistiu que, com trés furtos e outros atos de vandalismo a serem considerados, teria de haver um processo criminal. Por ou- tro lado, depois de ter em mente uma sentenca judicial, ela entao disse que estava preparada para recomendar a liberdade condi- cional. Apesar dos meus argumentos, ela insistiu que a justica criminal nao é simplesmente um caso particular e que o interesse pliblico deveria ser considerado. Minha esposa comegou a rir; depois - a promotora publica e eu - nos juntamos a ela neste iso. 170 Louk Hulsman e J. B. de Celis ‘os uns dos outros de forma desnecesséria. Ao final de tudo, eles estavam envolvidos em assuntos comuns, como um grupo, o que nos uniu na minha cozinha. Os rapazes acharam a faca, e os pais, que eram mais habili- dosos do que eu, ajudaram a consertar as coisas na casa. O rela- cionamento entre pais e filhos melhorou bastante. Porém, os pais mencionavam o furto a todo momento, e os rapazes estavam sa- turados de escutar sempre a mesma est6ria. Por esta raziio, decidi que seria uma otima idéia se os rapazes saissem em férias para encontrar um novo estimulo; tinhamos estado engajados, pensei, por muito tempo em um debate infrutifero. Um dos rapazes era de classe média e os outros dois da classe baixa, e um deles esta- va desempregado e praticamente sem dinheiro. Sendo assim, eles nao tinham dinheiro suficiente para tirar férias. Sugeri, entéo, acampamento, que é relativamente barato, mas eles nao pos- sufam uma tenda; logo, nés emprestamos a nossa. E eles sairam de férias por pouco tempo. += Entio os pais nos ajudaram e os garotos vinham aos domin- gos, ou mais freqiientemente, para fazer jardinagem. Eles pare- ciam gostar de vir, e algumas vezes suas visitas se tornavam inoportunas porque nds tinhamos outras coisas a fazer! Uma das raz6es que os levaram a invadir as casas foi porque eles estavam cansados da escola - uma razio bastante comum - e comecaram a gazetear. Em uma das ocasiées, eles estavam brincando no ho- tel abandonado e notaram a nossa casa, que os atraiu pela varie- dade de objetos - uma mistura da Caverna de Aladin e de Ali Baba e os 40 Ladrées! Como um resultado da crise provocada pelas invas6es, alguns aspectos da relagao entre os jovens e seus pais ficaram mais claras, e eles se mudaram para uma escola onde se saissem melhor. O seguro cobriu os custos dos objetos danificados e nds nos tornamos uma espécie de tio e tia para os tapazes, e amigos dos pais. Para mim, aprendi muito sobre a vida das pessoas em situa- gdes das quais antes eu sabia muito pouco. No final, se tornou ee ee ane este eee Penas Perdidas 169 ele respondeu: *‘na verdade, nao”, aquilo criou um elo entre nds ° dois porque ele foi verdadeiro e auténtico. Pude entender sua res- posta, dada ao homem estranho que veio a sua casa. Perguntei sobre a faca - talvez um fato insifignificante em vista do volume dos danos na casa, mas essencial para mim - e este foi o marco inicial para um entendimento comum. Ele entendeu que eu que- tia a faca e que aquilo era algo sobre o qual ele poderia fazer al- guma coisa; ele tentaria achar a faca pata mim. Entio, todos nés saimos para encontrar os dois outros Tapazes e seus pais; e ai en- contramos o mesmo tipo de dificuldade na comunicacao. Final- mente, como um grupo, fomos para minha casa, onde os pais se sentaram conosco na cozinha enquanto os rapazes procuravam pela faca desaparecida num hotel deserto ao lado. Durante as discussdes eu disse: ‘‘Agora que vocés encontra- tam minha casa, vocés deveriam entrar pela porta da frente; esta é a forma de entrar’’. Senti muita satisfaciio ao dizer aquilo, En- tao me contaram uma histéria triste da outra familia. Neste mo- Mento importante, estava claro que o sistema de referéncia da justiga criminal estava certamente segmentando attificialmente a situago de todas as formas possiveis, Estava cortando os lagos entre pessoas que viviam juntas, e, de certa forma, tornando a si- tuagao irreal em um nivel social. Para os pais era um gtande dra- ma, ¢ eles falavam sobre isso o tempo todo, mas nao tinham uma imagem clara ou completa do que tinha acontecido. Eles pos- suiam fragmentos da informagiio, dados pela policia e por seus filhos, mas, ao final, nao possufam uma imagem coerente dos fa- tos. Somente apés esta reunido em minha casa é que, pela pri- meira vez, tiveram uma visio total da seqiiéncia dos fatos, que poderiam entao se tornar objeto de discussio entre eles e seus fi- thos. Foi neste ponto que toda a situagéio comegou a ter uma rea- lidade concreta. O envolvimento do sistema de justiga criminal resultou na tendéncia dos pais em dizer ‘‘naio é o meu filho, mas Os outros é que so os responsveis’’. Isto significa que eles ésta- vam inclinados a lidar com os jovens individualmente, isolando- 168 Louk Hulsman ¢ J. B. de Celis apenas uma pequena parte dos furtos na Holanda sao resolvidos com sucesso - (em Dordrecht seriam 25%) - a policia telefonou para dizer que identificara os culpados devido ao seu envolvi- mento num caso de vandalismo numa cidade vizinha. Disseram que alguns dos nossos bens tinham sido recuperados e me solici- taram para ir 14 identificd-los. Como se constatou, a policia en- controu um grande nimero de itens da casa, alguns dos quais eu nem sabia que tinham sido furtados. Aparentemente, todos os ob- jetos foram recuperados, com excegéio de uma faca, da qual fala- tei mais adiante. Nao é uma faca cata, mas é bem afiada e que eu trouxera recentemente da Finlandia, e que gosto de usar para co- zinhar. Ela tem um valor especial para mim. Dos trés jovens envolvidos, dois tinham 16 anos e 0 terceiro 17, é pedi para falar com eles. A policia me informou que se a fa- milia consentisse, no faria objegio. Conseqiientemente, os pais de um dos rapazes foram contactados e concordaram, e fui visita- log na mesma noite. Eu nio tinha idéia de como isto terminaria, visto que nao temos modelos para usar nestas ocasiGes. O pro- prio rapaz era também muito menor do que eu imaginava que 0 ladrao poderia ser; ele parecia tao pequeno, de dculos, quase um passarinho. Eu imaginava poder mostrar-Ihe como me senti e fazé-lo sentir remorso pelos seus atos, mas descobri que nao pude fazé-lo, e se tornou dificil conversar um com o outro. En- tretanto, foi mais facil a identificag&o com os pais, para quem toda a situacéo era horrivel. Apés a descoberta dos furtos, dois dos rapazes fugiram, e os pais gastatam muito tempo em vio procurando-os ansiosamente. Agora, eles tinham um drama real em suas vidas, similar em muitos aspectos ao drama que eu vi- via. Comparado ao que acontece com vocé, nestas circunstan- cias, como pai, o furto foi um fato menor e isto teve impacto sig- nificativo nos meus sentimentos sobre os fatos. Comecei a conversar com o rapaz tendo em vista que ele reparasse o que fez. Quando perguntei se tinha algo que ele gostaria de fazer, e Penas Perdidas 167 identificd-las. Desta vez nao quebraram muita coisa, mas quebra- ram ovos, mais uma vez, e furtaram alguns itens, A policia veio novamente e nos sentimos bastante chegados aos policiais! De- pois de cada um dos furtos, tomamos novas PrecaugGes para pre- venir a repetic¢ao. Mesmo assim, apés alguns dias, voltamos para casa e descobrimos que os intrusos tinham estado ld pela terceira vez. Desta vez, nada foi destruido e somente faltavam alguns ob- jetos. Por mais estranho que Possa parecer, comegamos a nos acostumar com as invasées e a sentir que podiamos delinear os culpados em nossas mentes, Sabiamos que eram, provavelmente, trés e comecei a imaginar o que eu diria se nos encontrdéssemos, coisa que desejava que acontecesse. Naturalmente, minha esposa estava apreensiva, de certo modo, quanto a situagao, Depois do terceiro incidente, comecei a Pensar que os crimi- nosos deveriam ter muita coragem para voltar ao mesmo local que invadiram apenas dois dias antes. Acteditei também que po- deria ser uma forte atrago, da parte deles, pela casa e uma fasci- nago pelos objetos estranhos dentro dela. Isto nos deu algo em comum jé que eu, naturalmente, me orgulho de minha casa e de minhas coisas. O fato de pouca coisa ter sido destruida nesta visi- ta mais recente, significa que, talvez, eles tenham vindo para ad- mirar o local de maneira nao muito diversa da minha, Ao dizer isso, nao pretendo negar que nao senti raiva anteriormente, mas, antes de tudo, enfatizar a elevada e complexa natureza dos senti- mentos que alguém experimenta em tais circunstAncias, Sempre tive interesse em refletir sobre as formas como eu mesmo e ou- tros reagiriamos aos fatos criminalizdveis e descobri que isso sempre serd um processo complicado e ambiguo para o qual existem muitas facetas diferentes. Visto que este caso néo era, evidentemente, diferente, e por- que acredito que nao se deve, como mencionei antes, ‘‘roubar’” os conflitos dos outros, indaguei da Policia que se, quando en- contrassem os responsaveis, eu poderia falar com eles, Umas duas semanas depois, e contra todas as. dificuldades, visto que 166 Louk Hulsman e J. B. de Celis entrar, vejo ovos quebrados em toda parte - (¢ nao tinhamos pas- saros em casa!) - e entdo percebi que uma pintura e alguns obje- tos foram quebrados e que havia pontas de cigarro no chao. Aos poucos, uma idéia da cena do que aconteceu mostrou-se para mim. Em tais circunstdncias, vocé anda pela casa imaginando cada cena, e vocé se zanga; por fim, fiquei com tanta raiva que seria capaz de quebrar os ovos na cabega da pessoa que fez aqui- lo e de pegar suas coisas e destrui-las, e lhe perguntar se gostaria que o mesmo lhe acontecesse. Mas, como vitima, notei que meus sentimentos eram mais complexos que isto, porque, ao divagar, eu também pensei: ‘*Gragas a Deus, eles nao destruiram aquilo!”* e me senti aliviado. Eles destruiram muito menos do que havia para destruir, a mostrarem tragos de moderagio, e ento, mais tarde, me senti até mesmo feliz, que nada mais foi furtado. En- t&o, ao lado da raiva, houve um alivio e curiosidade - porque eles fizeram isso ou aquilo - os ovos, as pontas de cigarros e es- sas outtas coisas estranhas? Entio a policia veio tirar as impressdes digitais, e repetiu isso alguns dias depois. O policial, que foi de grande ajuda, disse que, apesar de tirar as impressées digitais, isto nfo significava necessatiamente que uma ptisio seria feita, a partir do fato de que as impressées, geralmente, sao de péssima qualidade, e mes- mo nfo sendo esse 0 caso, os culpados deveriam ser jovens, cu- jas impressées ainda no estio registradas. Tem-se que dar uma chance a eles, sugeriu o policial, e concordamos plenamente com esta idéia. Em suma, foi como um ritual, mas foi bom ter conver- sado com a policia e fazer perguntas sobre como eles achavam que poderiam ser jovens os responsaveis. Desde que esse tipo de evento no acontece freqiientemente nas casas em Dordrecht, e tendo em vista a quantidade de coisas danificadas, poderia ser, talvez, a ago de alguém que guardasse rancor de nés? Alguns dias depois, minha mulher chegou em casa a tarde e ouviu pessoas dentro de casa. Era Sbvio que os intrusos estavam 14 novamente. Ela péde ver pessoas, mas nao o suficiente para Penas Perdidas 165 implicita no debate tradicional da justiga criminal. Porque so- mente 14 achamos uma normatividade na qual a justiga penal é a Tegra, e € sempre (inconscientemente) considerada também como ~ contrariamente a todo conhecimento cientifico - um fato esta- tistico. Agora apresentarei trés exemplos que jogarao alguma luz no mundo das alternativas ‘‘ocultas"’. Nao com a intengao de reivin- dicar que eu tenha dado - ou jamais fosse capaz de dar - uma descrigao concisa e representativa do que esta acontecendo no mundo. Estou firmemente convencido de que é completamente impossivel fazé-lo. O que comegarei a fazer com estes trés exem- plos é convencer minha audiéncia, na, medida do possivel, de que © esquema da justica criminal estd distorcendo a maneira pela qual *‘imaginamos"’ os eventos criminalizdveis, e mostrar cami- nhos possiveis de lidar com eles, a fim de que possamos ser ca- pazes de mudar nosso discurso e nossas praticas em relagdo a isso. As alternativas nao so utopias distantes, mas sao parte da vida didria, continuamente inventada pelos atores sociais, Vou desenvolver trés exemplos: (1) Estudo de um caso de uma ago reparadora coletiva por aqueles diretamente envolvidos (é a estéria de um furto no qual a minha familia foi envolvida); (2) Alguns resultados de uma pesquisa empirica no uso da lei ci- vil por mulheres que se sentem vitimizadas pela violéncia sexual; (3) Alguns resultados de uma pesquisa de agao como meio de Provocar e dar apoio ao envolvimento da comunidade no trato com situagdes problematicas criminalizdveis, (1) Estudo de um caso de a¢ao reparadora coletiva pelos diretamente envolvidos Alguns anos atrds, ocorreram trés furtos em nossa casa no espago de duas semanas. O primeiro deles, ao menos, foi um da- queles furtos desagraddveis em que, na verdade, pouca coisa é furtada, mas muitas coisas sao destruidas, Volto para casa e, a0 164 Louk Hulsman ¢ J. B, de Celis Talvez, no campo da criminalizagéo baseada no ‘‘policia- mento pro-ativo’’, a dificuldade para a policia tomar conheci- mento dos eventos, e os seus recursos limitados para tratar os evéntos conhecidos de forma administrativa, sejam a principal razio pela qual a ‘‘efetiva criminalizagéo"’ (trazendo um caso a um tribunal criminal ou aplicando uma outra sang&o formal) é um fato raro. A grande maioria dos eventos criminalizaveis (*‘graves** ou “‘leves’’) pertence, entio, a cifra negra. Todos esses eventos sio, assim, tratados fora da justiga criminal. Digo, intencionalmente, “‘tratados” porque nao devemos cometer o erro de pensar que o que ndo estd ‘in acto’ nao estd “tin mundo’’. Se nao sabemos como algo é tratado isto no significa que ele nao é tratado. Tudo na vida é de alguma forma processado por aqueles diretamente envolvidos. Desvendando o mundo de alternativas “he Quase todos os fatos problematicos para alguém (uma pes- soa, uma organizacao, um movimento) podem ser abordados com um procedimento legal, de um jeito ou de outro (justiga cri- minal, justiga civil, justiga administrativa), mas poucos deles séo assim abordados, como por exemplo os miimeros “‘negros*’ na justiga criminal, como também outras formas de justiga mostram. A maioria das alternativas para a justiga penal é de natureza pre- dominantemente ndo-legal. Estas alternativas geralmente nao sao “invengdes’’ das pessoas envolvidas com a politica criminal ou com a reforma legal em geral, mas sio aplicadas diariamente por aqueles envolvidos direta ou indiretamente em eventos proble- maticos. Abordagens nao-legais sao a regra, ‘‘estatisticamente’’ e também ‘‘normativamente’* (dentro da normatividade das pes- soas envolvidas); ‘‘legalizagéo’’ é uma rara excegao. Sempre foi assim, € agora, e sempre serd no futuro. Esta realidade é obscure- cida quando temos como ponto de partida a ‘‘normatividade’’ Penas Perdidas 163 dada em uma alternativa 4 justiga criminal é, portanto, uma res- posta a uma situagio que tem um ‘‘*formato’’ diferente e diferen- tes ‘‘dindmicas’’ em relagdo aos fatos como eles aparecem num contexto da justiga criminal. 5 ~ Em muitas discussées sobre as alternativas a justiga crimi- nal, somos confrontados com a incompreens&io de que o que se chama ‘‘prevengio do crime’ seja algo bom e desejada. Na mi- nha opiniao, nao é necessariamente assim. E por dua razées: ’m primeiro lugar, o que é chamado em uma certa fase do desenvol- vimento legal de ‘‘crime’’, néo é necessariamente uma ‘‘coisa tuim’’. Pode ser algo neutro ou indiferente. Pode ser até desejé- vel ou herdico. O direito penal e a pratica dos sistemas da justica criminal nao podem ser usados como um padrao essencialmente autoritdrio para julgar o ‘‘certo”’ e 0 ‘‘errado’” do comportamen- to, Em segundo lugar, mesmo quando o “‘crime”’ se refere a algo que, de acordo com todos os envolvidos, é definido corretamente como ‘‘problema”’, pode, para o desenvolvimento social e huma- no, ser prejudicial tentar erradicd-lo, - O Ultimo assunto para o qual queremos chamar a aten- ao, como sendo importante para uma discussio realistica sobre as ‘‘alternativas’’, é o fator conhecido como a ‘‘cifra negra’’ da criminalidade. Eventos criminalizdveis que ndo sao efetivamente criminalizados No campo da criminalizagéo baseada no ‘‘policiamento rea- tivo’’ (hd pessoas que se sentem ofendidas injustificavelmente em um fato e, na pratica, a policia somente age apds uma queixa ter sido feita), a principal razao pela qual os eventos criminalizé- veis nao sao criminalizados é porque as vitimas nao denunciam o fato a policia. Mas existem muitas outras razes. Talvez a policia néo te- nha tido tempo de cuidar de uma dentincia, ou ela nfo achou o criminoso, 162 Louk Hulsman e J. B. de Celis estd ligado ao debate da legitimidade, e, por isso, deverd ser de utili- dade para ir ao Amago da questo das altemativas neste estagio. Os criticos da justiga penal, ao falar sobre as alternativas, sempre caem na armadilha de falar como o profeta intelectual que diz as pessoas o que fazer, e que desenvolve sistemas alter- nativos especulativos para serem postos em prdtica. Um profeta intelectual como este é parte da mesma organizacao cultural como a da justica criminal. Uma agiio como esta nao é compati- vel com os valores e pressupostos que estipulamos acima. No meu entender as ‘‘alternativas confidveis’’ devem ser mostradas numa descrigdo cuidadosa; andlise e avaliago do que esta acon- tecendo, de fato, fora da justica criminal. Antes de darmos alguns exemplos de diferentes ‘‘alternati- vas’* devemos enfatizar que as discussdes sobre as alternativas a justiga criminal, freqtientemente, ocorrem num contexto no qual os pressupostos da justica criminal nao so realmente desafiados, como criticamos anteriormente. Em quase todas as discussdes, a éXisténcia do crime e de criminosos é considerada um fato natu- tal estabelecido, e nao o resultado de processos definidores, sele- tivos, que também estiio abertos 4 escolha social. Entretanto, gostariamos de formular aqui um certo ntimero de adverténcias contra esses etros freqiientes: - Ao falar em alternativas a justiga criminal, nfio estamos falando de sangdes alternativas, mas sobre alternativas para o processo de justiga criminal. Essas alternativas podem ser de uma natureza predominantemente legal ou predominantemente nio legal. ~ Freqiientemente, as alternativas a justiga criminal sao vis- tas como uma resposta alternativa para o comportamento crimi- noso. Ao considerarmos este aspecto, nao levamos em conta que cada aproximagiio legal é primeiramente um meio de construir (ou reconstruir) um fato. Buscar alternativas para a justiga crimi- nal é, antes de tudo, buscar definigdes alternativas de eventos que possam desencadear processos de criminalizagao. A resposta . Penas Perdidas 161 Os aspectos negativos da justiga penal (para os criminosos e aqueles que lhes sao chegados, para as pessoas que sofreram por engano nos eventos criminalizaveis, para os funciondrios dos ér- gaos e para o ptblico em geral) foram extensamente desenvolvi- dos no livro. Nao é necessério repeti-los aqui. Como conclusao, podemos resumir nossas criticas ao siste- ma de justiga penal como se segue: nossa mais profunda. Teprova- g&o a justiga penal é que ela tende a produzir uma construgao irreal do que de fato aconteceu; e, sendo assim, tende também a dar uma resposta irreal e ineficaz. Tende, além disso, a excluir as organizagées formais, como a policia e os tribunais, de lidar de maneira criativa com esses fatos e aprender com eles. A justiga penal parece estar em desacordo com todos os trés valores men- cionados acima. A “‘criminalizagdo”’ é injusta na medida em que, pela sua estrutura, nega as existéncias varidveis na vida social e os dife- rentes significados entdio produzidos, e porque é incapaz de per- cebé-los e combaté-los, Também é injusta - nestes termos - porque nao se pode lidar igualmente com criminosos e vitimas: a maioria deles nem sequer aparece diante da justiga penal (cifra negra); em regra, eles sdo tratados em outro lugar e de uma for- ma que nao é sequer conhecida pela justiga criminal. Avaliagdo da legitimidade da justiga penal e o debate sobre as alternativas As vezes, uma instituigdo que n&o produz, em absoluto, os efeitos externos que promete e cujo modo de funcionamento esta em desacordo com valores importantes aos quais as pessoas es- tao aderindo, pode, contudo, continuar a ser considerada legitima quando as pessoas nao vislumbrarem a possibilidade de uma al- ternativa confiavel." Desta forma, o debate sobre as alternativas 13. LP. Brodeur, op. p. 108, 160 Louk Hulsman e J. B. de Celis para proteger os direitos de outros. Implica que da petspectiva dos direitos humanos, a hipstese critica deve ser aplicada a justi- ca penal. Existem também muitas outras razGes para aplicar estas hipdteses. Muitos dos pressupostos que esto subjacentes aos de- bates acerca da justica penal nos dois wltimos séculos tornaram- se questiondveis. De um lado, pela mudanga social, e de outro, porque agora mais informagées cientificas confidveis sobre o verdadeiro funcionamento da justica penal e as reais conseqiién- cias do seu funcionamento tornaram-se disponiveis: por exem- plo, a seletividade dos processos de criminalizagéo primaria e secundaria, e os problemas secundarios criados pela politica con- tra as drogas. Como vimos antes, ao discutir o conceito de crime, existe uma grande variedade nos tipos de situages que esto abertas 4 criminalizagao. Esta variedade nas situagdes esté também natu- ralmente espelhada nos fatores que tém sustentago na (i)legiti- midade da justiga penal. Uma importante divisa, neste sentido, é a distingao entre fa- tos nos quais, em regra, as pessoas se sentem atingidas, de um lado, e de outro, fatos em que este nao é o caso. Em muitas situa- ges criminalizadas: no transito rodovidrio (como na alta veloci- ‘dade), no comportamento sexual consensual e no campo da posse e uso de drogas ilegais, as pessoas diretamente envolvidas nao se sentem prejudicadas. O tema da legitimidade revela-se di- ferente, nestas dreas, daquelas em que os individuos acham que foram tratados injustamente. No livro e neste capitulo focalizei a argumentagao relativa & legitimidade da justiga penal na rea em que existem vitimas individuais: a area da *‘criminalidade tradi- cional’’. Nao é possivel lidar com ambas as dreas de maneira sa- tisfatéria no espago disponivel. Em outro lugar - no campo da politica das drogas, do transito rodoviario e da politica ambiental - também testei a hipstese critica. Ela igualmente parece ser vali- da naquelas dreas, mas os argumentos para a sua validade nao s&o os mesmos. Penas Perdidas 159 Isto implica que as autoridades e as profissdes tém que ser- vir aos interesses dos clientes em suas diferengas para serem le- gitimadas. Pressuposto basico. As autoridades e as profissdes s6 sio capazes de servir aos interesses dos clientes em suas diferencas quando esses clientes tém o poder de orientar sua agdes. ¢. Validade da reconstrugdo Pressuposto basico, O menu nao é a refeicao. O mapa nao € o tertitdrio, Um fato que é objeto de um discurso ou de alguma forma na tomada de decisdes é sempre reconstruido. A reconstru- g&o nunca é idéntica ao evento, Valor. Ao examinar as praticas sociais, o primeiro aspecto a ser avaliado é a qualidade da reconstrugao de um fato ou de um “estado de coisas’’. E ‘‘vdlida”’ a teconstrugéo? A reconstrugao de fatos que pertencem (também) ao dominio de um mundo real 86 serd valida caso seja baseada nas percepgdes dos atores direta- mente envolvidos nesse mundo real. Este critério decorre direta- mente dos valores e dos pressupostos bdsicos mencionados nas alineas ae b. Avaliagdo da legitimidade da justiga penal Sobre a perspectiva da aboligéo do segundo tipo (abolicao como hipstese critica), os discursos dominantes (linguagem de- corrente em grande parte da criminologia critica) nao permitem formular e testar a hipstese critica. Todavia, tal formulagiio e tes- te parecem urgentes por muitas razées, das quais menciono so- mente algumas. Na construgao legal dos direitos humanos torna-se evidente que muitos aspectos da justica penal séio in- compativeis com os direitos humanos essenciais. Tal fato leva a derrogagées dos direitos humanos ao permitir atividades da justi- ga penal quando elas so necessérias num contexto democratico 158 Louk Hulsman ¢ J. B. de Celis uma instituigéo destinada a solucionar problemas publicos. O primeiro tipo de abolicgao ird, assim, ser legitimado. Refiro-me neste capitulo do posfacio, principalmente, ao segundo tipo de aboligao. Abolicionismo como uma hipétese critica.” 2. Por que aboligao? Valores e pressupostos bdsicos A avaliagao de uma instituiggio e suas atividades ird sempre se colocar contra um antecedente de valores e pressupostos bdsicos. N&o é possivel tornar explicitos todos esses valores e pressupostos basicos, mas é valido realgar uns poucos que, em determinado mo- mento histdrico, tenham papel principal no debate publico. Explana- tei o tema sob a forma de pequenas proposigdes: a. Respeito a diferenga Me Pressuposto basico. A preservagdo da vida depende do res- peito a diferenga e da solidariedade com ela. A diferenga entre e dentro das espécies esté ameacada hoje em dia pelos nossos ar- tanjos sociais e técnicos. A diferenga entre pessoas vivendo na mesma ‘‘sociedade** é subestimada no discurso publico. Valores. O respeito as diferengas entre individuos (e até num mesmo individuo durante a trajetéria de sua vida) e entre as coletividades. Solidariedade com essas diferengas. b. As profissdes e as autoridades devem servir aos clientes Valor. As profissdes e as autoridades existem para as pes- soas (nas suas diferengas). Nao sio as pessoas que existem para as autoridades e as profissdes. 12 J.P. Brodeur. “La ansie post modeme et I Ctiminologie™. Vol. XXVI Criminologie, Montreal. Penas Perdidas 157 poderiam ser tratados pelo sistema, sob que condigdes e de que maneira (sob esta categoria a fungdo de ‘‘vigia de porteira’’ da politica criminal requereria especial atengéo). 3. Pode emitir re- comendagées sobre a reorganizago social em outras areas da so- ciedade em relacdo a situagdes problematicas que se tenham tornado objeto de debate da politica criminal. Esta insténcia também rejeita as imagens da vida social forma- das na base dessas atividades nos diferentes segmentos da sociedade. Desta forma a justiga penal ndo é uma resposta legitima para situa- Ges problematicas, mas apresenta para si propria a caracteristica de um problema publico. Isto implica que estes abolicionistas tém de se langar a uma dupla tarefa: conter as atividades no modelo da justiga penal, mas também se preocupar em lidar com situagdes problemati- cas criminalizaveis fora da justica penal. Por outro lado, temos uma instancia abolicionista na qual nao é abolida necessariamente a justiga penal, mas uma forma de olhd-la, Esta forma de aboligdo focaliza as agdes de uma das or- ganizacdes subjacentes da justiga-penal: a Universidade e, mais especificamente, os departamentos de Direito Penal e Criminolo- gia. Referimo-nos a valores académicos que requerem inde- pendéncia académica das praticas sociais existentes, a fim de permitir uma avaliagéo mais objetiva destas praticas. A luz de critérios explicitos, esta forma de abolicionismo reprova os dis- cursos dominantes relativos a crime e justiga criminal, por falta da necessdria independéncia. Esses ‘‘discursos’’ dominantes apdiam implicitamente a idéia de ‘‘naturalidade’’ e **necessida- de** da justiga penal. Neste sentido, a abolicao significa a aboligdo da linguagem predominante sobre a justiga penal e sua substituigéo por uma outra linguagem que permita submeté-la a hipdteses criticas : em outras palavras, uma linguagem que possibilite testar a hipdtese de que a justiga criminal nao é ‘‘natural’* e que sua ‘‘constru- g&o"” pode no ser legitima. Caso esta hipdtese seja validada, a ‘ linguagem predominante sobre a justica penal devera ser abando- nada, e esta aparecerd como um problema ptblico ao invés de 156 Louk Hulsman ¢ J. B. de Celis ou ndo ser considerada como “‘criminalizagio’’. As atividades policiais dirigidas para a intervengao nas crises, a pedido das viti- mas, nao se realizam sob a égide da organizacdo social e cultural da justiga penal. Na verdadeira estruturacdo social e cultural das atividades de uma organizagao pode estar, mais ou menos, a chave da justi- ga penal. Ela permite acesso de tal modo que o ‘*comportamen- to’* da organizacao se desenvolve. Em suma, a justiga criminal consiste, de um lado, nas agdes de determinados 6rgiios, na medida em que eles séo o fruto da organizagao social e cultural descrita anteriormente, e por outro dado, na recepgio e legitimagao daquelas agdes nos diferentes segmentos da sociedade. A abolicao abrange ambas as dreas: as atividades da organizagiio e a sua recepgio na “‘sociedade”’. Politica criminal - E freqtientemente entendida como uma “politica que diz respeito ao crime e aos criminosos’’. A existén- cia de ‘*crime e de criminosos”* é geralmente considerada como uma ‘‘dddiva’’, como um fato social, nado um processo de defini- gao (seletiva); a responsabilidade é 0 objeto da politica. Seria um erro grosseiro definir em nosso debate *‘politica criminal’” desta forma limitada. Uma das condigdes necessdrias para a eficiente discussio sobre politica criminal é problematizar as nogdes de *‘crime e de criminosos’*. O nivel em que os **fatos e situagdes”” devem ser sujeitos a criminalizagéio serd um dos assuntos princi- pais de nosso debate. A “politica criminal’’ é, de um lado, parte da mais ampla politica social, mas, de outro lado, deve conservar cetta autono- mia em relacio’a este campo mais amplo. Uma aproximagao pra- tica neste sentido é considerar ‘‘politica criminal’’ como um *‘politica relativa aos sistemas de justica penal’’. Uma politica como esta, em relag&o ao sistema de “justiga criminal”, deve ser multi-focal: 1. Deve dirigir-se ao desenvolvimento das or- ganizagdes que formam a base material do sistema (a policia, os tribunais, as prisdes etc.) e os sistemas de referéncia que elas usam; 2. Deve dirigir-se a questées como: que tipos de eventos Penas Perdidas 155 pede - ou torna, de certa forma, especialmente dificil - que a vi- tima expresse livremente sua visio da situagao, ou entre numa interagéio com a pessoa que esta diante de si como um suposto ofensor no tribunal. Também nessa situagao ela é, antes de tudo, uma ‘‘testemunha’’, até mesmo nos sistemas legais nos quais se destine uma posigao especial para as vitimas, As avaliagdes que tém sido feitas, até agora, do resultado das mudangas nos proce- dimentos legais que tendem a teforgar a posigéio das vitimas den- tro do esquema da justica criminal, mostraram até agora um resultado desapontador."' Uma segunda caracteristica da organizagao social da justica penal é a sua extrema divisdo de trabalho, orientado por uma lei penal centralizada (lei escrita ou costumes). Isto torna dificil aos funciondrios direcionarem suas atividades para os problemas, como vivenciados pelos envolvidos diretamente. E torna-se ex- tremamente dificil para eles assumir a responsabilidade pessoal Por suas agGes neste sentido, Uma das principais caracteristicas da justiga penal é que ela preconiza em seu discurso a ‘‘responsa- bilidade pessoal’* para os “‘ofensores”’ e suprime a “‘responsabi- lidade pessoal’ para os que trabalham neste modelo de referéncia. Outra aproximagao abolicionista, a “‘criminalizagao"* (defi- nigdes de fatos e respostas destes fatos como os citados acima) tende, como veremos adiante, a ser tejeitada como irreal, injusta e ineficaz sob a perspectiva Pteventiva, controladora e reparado- ta. Nao implica que todas as agdes dos Orgiios - que siio defini- das formalmente como ages da justiga penal - sejam tejeitadas, A aboligao da criminalizacao pode dar-se sob o manto oficial da justia penal. Nao é o nome oficial mas a verdadeira organizacao, social e cultural das atividades que determina se uma agao deve {1 Par uma aplicagio concreta de urna politica criminal como esta, veja a 15' Conferéncia de Pesquisa Criminolégica (1984), especialmente as recomendapdes adotadas e a conclusto de Conferéncia. Conselho da Europa, “Sexual Behaviour and attitudes and their implication for Criminal Law", (Strasbourg, 1984), oe

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