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ino decidiu mudar-se. Em 324 d. C Jo foi para o Oriente en | 6 lider do maior império dc a capital de Roma para B uma velha colénia grega nas margens do M que rebaptizou, imediatamente, de Constanti nopla. Porqué abandonar Roma, a capital histérica do Império? Cons tantino disse que o fez «por ordem de Deus». E dificil contestar este tipo de argumento je € a ambigdo jogaram, aqui © seu papel. Con: antino queria desesperadamente deixar para a pos: teridade uma heranca grande além de genhar uma guerr que melhor meio de 0 conseguir sendo construindo uma nova capita A mudanga era também calculada, do p. a das suas consequé cias politicas. Constantinopla estav Tais € econdmicos desses tempos, co , Tessaldnica e Antioquia rasado). Constantinopl (Roma era considerada, entdo, um | era um ponto mais estratégico para de inimigos, principalmente as tribos d No século xiv, a Historia fazia-se no Oriente. Os imperadores no viajam com pouca bagagem e Constantino nao nao s6 a capital, mas transferiu dezenas de era exceprao. Ele mu 28 © FUTURO DA LIBERDADE milhares dos seus habitantes, tendo encomendado, para os alimentars, enormes quantidades de géneros e bebidas do Egipto, da Asia Menon: e da Siria. Enviou agentes aos quatro cantos do império para pilharr: obras de arte para a sua «nova Roma». Foi tal a pilhagem que 0 histox- riador Jacob Burckhardt escreveu «os maiores e mais despreziveis rouy- bos de objectos de arte de toda a histéria tiveram lugar com o propé+- sito unico de decorar (Constantinopla)»'. Senadores e outros notaveiss receberam incentivos substanciais para se mudarem para a nova capi~ tal. Replicas exactas das suas casas esperavam-nos a chegada & novar cidade. Mas embora tivesse levado a maior parte da sua corte, Cons~ tantino deixou uma pessoa para tris: 0 bispo de Roma. Esta separagaoy historica entre a Igreja ¢ o Estado teria consequéncias decisivas & benéficas para a Humanidade. Embora o bispo de Roma tivesse a dignidade de um principe: — porque Pedro, primeiro detentor da posigio, foi o decano dos apés— tolos de Cristo — o Cristianismo sobreviveu ao tornar-se uma religiéor descentralizada, congregando um conjunto de igrejas que se auto-admi— nistravam, De qualquer forma, se Roma estava agora distante da capi- tal do império, outros prelados importantes, como bispo de Bizincio: © 0s das cidades vizinhas de Antioquia, Jerusalém e Alexandria viviam’ na sombra do imperador ¢ rapidamente tornaram-se apéndices da auto- ridade do Estado. Porém, longe do poder e da intriga palaciana, a Igreja Romana floresceu, afirmando uma independéncia que eventual- mente Ihe possibilitou reclamar o manto da lideranga espiritual dos povos cristéos, Como o sublinhou o grande historiador classico brit: nico, Ernest Baker, o resultado desta separagao foi que o Oriente (Bizan- cio) caiu sob o controlo do Estado e o Ocidente (Roma) ficou sob a soberania da religiao. Sera mais correcto afirmar que no Ocidente o principio da soberania foi contestado; mais de 1500 anos apos a mudanga da capital do império efectuada por Constantino, a histéria europeia ficou marcada por conflitos permanentes entre a Igreja ¢ 0 Estado. Dos estilhagos dessa refrega surgiram as primeiras centelhas da liberdade humana. Liberdade, antiga ¢ nova Obviamente, é excessivo pegar num tinico evento para fazer dele 0 arranque de um processo histérico complexo — no caso, o desenvol- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA 9 da liberdade humana — mas todas as histérias tém o seu pio, E 0 desenvolvimento da Igreja Catolica é, na minha perspec- ‘a primeira fonte importante da liberdade no Ocidente — e por sua rno mundo. Ele ilustra a tese central deste capitulo, de que a liber- vyeio para 0 Ocidente séculos antes do surgimento da democracia, iberdade levou & democracia e nao o inverso. Ele ilustra, também, paradoxo que subjaz ao exposto: quaisquer que sejam as suas cau- estruturais, a liberdade nasceu no Ocidente de uma série de refre- pelo poder. As consequéncias dessas lutas —entre a Igreja © 0 , entre os senhores e o rei, entre protestantes € catdlicos, entre mundo dos negécios ¢ o Estado — influenciaram, profundamente, a social no Ocidente, introduzindo pressdes gigantescas para maio- liberdades individuais, particularmente em Inglaterra e, por exten- nos Estados Unidos Poderé contestar-se esta énfase na Igreja Catélica, apontando, de veemente, para a Grécia Antiga como o bergo da liberdade. se-4 na famosa orago fiinebre de Péricles, pronunciada em 1a. C,, dando uma visio da Atenas desses tempos, apaixonadamente icada a liberdade, 4 democracia ¢ 4 igualdade. Durante parte signi- ficativa do século xix, 0s programas das universidades britdnicas € ‘alemas assumiram que a mais proeminente expresso da civilizagio humana ocorreu nas cidades-estado da Grécia, & volta do séeulo v a. C. ‘(0 estudo da Grécia e Roma Antigas nas Universidades de Oxford Cambridge continua ainda a ser designado por «As grandes»). Mas a obsessio vitoriana com a Grécia era, em parte, fantasista. A Grécia Antiga foi uma cultura extraordinéria, fértil em obras filosoficas, cién- cia e literatura, Foi o bergo da democracia e de algumas das ideias a ela associadas, mas importa lembrar que estas nao foram praticadas Seno por um pequeno nimero de cidades-estado, por um maximo de em anos e acabariam com a conquista macedénica de Atenas, em 338 a. C. Um milénio depois, a experiéncia grega tornou-se uma inspi- Fagdio para os democratas, mas no intervalo nao teve qualquer influén- cia tangivel e institucional na politica da Europa. Ainda relevante para este argumento, a Grécia no foi o lugar onde nasceu a liberdade, como a compreendemos hoje em dia. A liberdade, ‘no mundo moderno, é primeiro e antes de tudo a liberdade do indivi- duo face ao arbitrio da autoridade, o que significou para grande parte da historia, face ao poder brutal do Estado. Essa liberdade implica alguns direitos humanos fundamentais: a liberdade de expressao, de 30 0 FUTURO DA LIBERDADE associagao, de religiio ¢ 0 direito a um julgamento justo. Mas a liber- dade antiga, como sublinhou o filésofo do Iluminismo, Benjamin Constant, era uma coisa diferente: que todos (na verdade, cada homem adulto) tinham o direito de participar no governo da comunidade. Em geral, todos os cidadaos participavam no poder legislativo ou, se isso fosse impraticavel, os legisladores eram escolhidos por sorteio, tal como 08 jiiris americanos, hoje em dia. As assembleias populares da Grécia Antiga tinham poderes ilimitados. Os direitos individuais nao eram, nem sagrados em teoria, nem garantidos na pratica. A democracia grega significa, normalmente, nas palavras de Benjamin Constant, «a sujei- ‘Gio do individuo a autoridade da comunidade»?, Lembremos que no século 1v a. C. em Atenas, onde era considerado a democracia grega ter encontrado a sua expressio mais pura, uma assembleia popular — por voto democratico — condenou & morte 0 maior fildsofo do seu tempo, em razio dos seus ensinamentos. A execugdo de Sécrates foi democra- tica, mas nao foi liberal. Se as raizes gregas da liberdade ocidental so, muitas vezes, exces- sivamente enfatizadas, as raizes romanas sao negligenciadas. Quando Herddoto escreveu que os gregos eram um «povo livre», ele quis dizer que eles no eram escravos dominados ou ocupados por estrangei- ros — uma situago que designariamos hoje por «independéncia nacio- nal» ou «autodeterminagao», (Aplicando esta definigo, os Norte-Corea- nos S40, hoje, um povo livre.) Os Romanos sublinharam um outro tipo de liberdade: todos os cidadiios so tratados de forma equitativa pe- rante a lei. Esta concep¢ao da liberdade esta mais préxima da concep- g4o ocidental contemporanea e a palavra latina que a qualifica, liber- tas, € a raiz da nossa, Enquanto a Grécia deu a0 mundo a filosofia, 4 literatura, a poesia e a arte, Roma deu-nos os pressupostos do go- verno limitado ¢ o Estado de direito. A Republica Romana, com a sua divisdo ternéria de poderes, a eleigao de responsaveis oficiais por um tempo limitado e a énfase na igualdade perante a lei subsistiu como modelo para os governos que a seguiram, designadamente na funda- ¢80 da Republica Americana, Até hoje, os conceitos ¢ termos politicos usados pelos romanos persistem no mundo ocidental: senado, repi- blica, constituigao, prefeitura. O direito ocidental esta tao marcado Pela heranga de Roma que até ao inicio do século xx os advogados tinkam de ser fluentes em latim. A maior Parte das leis ocidentais sobre contratos, propriedade, compra e venda, responsabilidade, difamacao, Sucessdes ¢ patriménio, bem como os procedimentos relativos a fixa- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA. 3 ‘so da prova sdo variagSes do acquis romano. Para Herbert Asquith, © historiador amador mais dotado que foi Primeiro-Ministro da Gra-Bretanha, 0 mais notavel legado de Roma para a posteridade foi © de ter «fundado, desenvolvido e sistematizado a jurisprudéncia do mundo» © ponto mais fragil do direito romano residia que, na pratica, nao se aplicava a classe dirigente, nomeadamente 4 medida que a Repiblica degenerou em monarquia, por volta do século 1 a. C. Imperadores como Nero, Vitélio ¢ Galba, sentenciaram rotineiramente @ morte pessoas sem qualquer julgamento prévio, pilhavam casas particulares ¢ templos e violavam e matavam os seus sibditos. Recorde-se que Caligula fez nomear senador 0 seu cavalo, um acto que seguramente violaria as regras implicitas, sendo explicitas, do Senado, entéo uma instituicio augustiniana. As tradigdes da lei que foram cuidadosamente construidas, durante 0 periodo republicano de Roma, desabaram com a decadéncia do Império. A ligdo da queda de Roma é que, para que 0 Estado de direito subsista, sao precisas mais que boas intengdes dos governantes, porque elas so vacilantes (tanto as intengdes quanto os governantes). Sao necessarias instituigdes dentro da sociedade que retirem a sua forga de uma fonte de poder independente do Estado. O Ocidente encontrou tal contrapoder na Igreja Catélica O paradoxo do catolicismo O legado mais concreto de Roma foi a Igreja Catélica Romana, em que 0 filésofo inglés Thomas Hobbes viu «o fantasma do defunto Impé- rio Romano troante, coroado sobre a sua tumbay*, A cultura de Roma tornou-se a cultura do Catolicismo. A Igreja transmitia um nimero incalculavel de tradigdes e ideias — ¢ naturalmente o latim que facul- tou as elites de toda a Europa uma lingua comum e possibilitow a consciéncia de pertenca a uma mesma comunidade. Até aos nossos dias, as ideias ¢ estrutura da Igreja Catolica —o seu universalismo, a sua hierarquia e as suas leis — guardam uma notavel semethanga com as do Império Romano, A Igreja Catélica pode parecer um ponto estranho para comegar a nossa historia da liberdade. Como instituigdo, ela nao significa a liber- dade de pensamento ou, até muito recentemente, a pluralidade das crengas. De facto, durante a Idade Média, & medida que ela cresceu em 2 0 FUTURO DA LIBERDADE poder, tornou-se, crescentemente, intolerante ¢ opressiva, exigindo uma submissio inquestiondvel aos seus dogmas ¢ usando os meios mais cruéis para esmagar os seus dissidentes — daf a Inquisigao espanhola. Até aos nossos dias, a sua estrutura manteve-se rigida ¢ autocratica. A Igreja nunca se viu a si propria como um paladino da liberdade individual. Desde 0 comego opés-se tenazmente ao poder do Estado e, ‘com isso, limitou o poder do Principe. Controlou actos sociais funda- mentais como 0 nascimento, o casamento ¢ os sacramentos da morte. Os clérigos e as propriedades da Igreja no se encontravam sujeitos a impostos — dificilmente uma questo menor, j4 que, no seu apogeu, a Igreja era proprietaria de um terco da superficie da Europa. A Igreja Cat6lica foi a primeira grande instituicgao independente da historia a desafiar o poder temporal. E ao fazé-lo, ela abalou o edificio do poder do Estado e foi nas suas falhas e esconderijos que se comegou a desen- volver a liberdade individual. As lutas entre a Igreja e 0 Estado comegaram apenas cinquenta anos depois de Constantino ter transferido a capital do Império. Um dos sucessores de Constantino, o imperador Teodésio, numa disputa suja com os Tessalénicos, uma tribo grega, convidou toda a tribo para Milio—e orquestrou a chacina sangrenta dos seus convidados: homens, mulheres ¢ criangas. O arcebispo de Mildo, um prelado pie- doso chamado Ambrésio, recusou-se publicamente a dar ao imperador a Santa Comunhao. Teodésio protestou, alegando um precedente biblico em sua defesa, Ele era culpado de homicidio — contrapés — mas nao foi um dos reis-herdis da Biblia, David, culpado nao sé de homicidio, mas de adultérie? Como lembra 0 historiador inglés Edward Gibbon, numa passagem célebre, o bispo mostrou-se inflexivel: «Tu imitaste David no crime, imita-o agora na peniténcia’.» Para surpresa de todos, durante os oito meses seguintes, o imperador, o homem mais poderoso do mundo de entio, vestido como um mendigo (como David o fez, na passagem biblica) manteve-se 4 porta da catedral de Milo, pedindo o perdio do arcebispo. A medida que no Oriente 0 Império Romano se afundava, cres- ciam a autoridade e a independéncia do bispo de Roma. Tomou-se 0 primeiro de entre os principes da Igreja, a chamar-se «ll Papa», o Santo Padre. Em 800, 0 Papa Ledo foi forgado a coroar o chefe franco Carlos Magno, como imperador romano. Mas ao fazé-lo, Ledo ini- ciou a tradigao da «investidura», através da qual a Igreja deveria consagrar 0 novo rei e, assim, conferir legitimidade ao seu reinado. UMA BREVE HISTORIA DA LIBEROADE HUMANA, 3 No século xit, 0 poder do Papa tinha-se reforgado e ele tornara-se um gctor-chave no complexo tabuleiro politico europeu. O papado tinha poder, legitimidade, riqueza ¢ até um exército. Ganharia, entretanto, tuma outra batalha simbélica contra o Santo Império, na pessoa de Hen- rique IV, quando este, em 1077, desafiou — sem sucesso — 0 mono- polio do poder de investidura do Papa Gregorio VII. Tendo perdido a batalha, Henrique IV foi forgado — segundo reza a lenda — a fazer peniténcia em Canossa, descalgo sobre a neve, pedindo 0 perdio do Santo Padre. Seja ou nio verdadeira a lenda, no século xi, 0 Papa tinha-se tornado, claramente, em poder € em pompa, um concorrente de todos os reis da Europa ¢ 0 Vaticano rival das suas mais sumptuosas cortes. A geografia da liberdade ‘A Igreja ganhou poder no Ocidente por uma simples razio: depois do declinio do Império Romano, nunca mais se veria obrigada a afron- tar um imperador europeu, Ao contrario, a Igreja Catélica soube jogar um principe contra outro, tornando-se na época o mais importante voto flutuante» nas lutas pelo poder. Se um monarca tivesse emergido € submetido 0 continente a0 seu mando, ele teria esmagado a indepen- déncia da Igreja, transformando-a num servidor do poder do Estado. Foi 0 que aconteceu com a Igreja Ortodoxa grega e, mais tarde, com a Igreja Ortodoxa russa (e, no que releva, na maior parte das religides do mundo). Mas nenhum soberano jamais conquistaria toda a Europa ou, pelo menos, grande parte dela. Ao longo do milénio, unicamente alguns o tentariam — Carlos Magno, Carlos V, Napoledo, 0 Kaiser Guilherme e Hitler. Todos foram contrariados e, a maior parte, bem depressa. © que explica isto? Provavelmente, montanhas e ris. A Europa € dividida por uma rede de barreiras naturais, alternando vales flu- Viais e cadeias montanhosas. Os seus rios correm para baias abriga- das e navegaveis, ao longo da extensa e recortada costa mediterra- nica — permitindo que pequenas regides possam subsistir e, na verdade, Prosperar por si préprias. Por isso, a longa historia da Europa € a historia de muitos paises independentes. Eles eram dificeis de con- quistar, féceis de cultivar e os seus rios e mares propiciavam rotas comerciais naturais. A Asia, a0 contrario, compde-se de grandes exter 0 FUTURO DA LIBERDADE “4 “as estepes 42 Rissa, 26 planicies da China — através 8828 Plas — eréreitos podiam marchar sem dificuldades. Sem sur- dos Biss os cas foram gpvernadas, dirante séculos, por impérios cen- Pr atttas fre, 7 tralia ey da Europ tornou possivel a criago de comunidades A ografyariavel — ¢idades-estado, ducados, replicas, nagées e de dim to 1500, a Eui0Pa tinka mais de 00 estados, muitos deles imp erm gue wma cifade. Esta variedade teve dois efeitos sar- NO Wires grimeiro, fV0FeCeU um certa diversidade, Personal p tes, Jarre e mesmo tecnologiis que ndo eram bem-vindas ou dades, ideias, numa regia Poderiam desenvolver-se noutra. Segundo, reCOM Ne cidas’ favoreceu MA competiglo Constante entre Estados, pro- 8 dive \ dade acao e eficencia na organizagio politica, nas técnivas oa inow economia Politica. Préticas bem sucedidas eram copia- rN es athados FIM posios de lado. O espectacular sucesso das? P\ocesspolitico da Furopa —o «ue 0 historiador econémico Eric Fo eS er uo Milage: Europeu» -- pode bem ter sido o resultado Joris e da suyPhamoatia singula’ Beogr: enh. res res ; ; A C. ¢ q histola combinara-se para ajudar a definir a es- geograca da Europ A queda de Império Romano ¢ 0 atraso das truly politinicas que | destrulram produziram no continente una trios." Fermpoder descatralizada, Nenhum soberano tinha a capzci- CaF tn decativa de OVeMAr un #PAGO to extenso e constituido be limi jutude de comunidades dependentes. Em contraste, no Pof i rna ma China do:Mings e do: Manchiis, a india dos Mongois set aN eeu lo Império ¢tOmano conFolaram vastas extensdes de terra £ Soe tultiosia diferente. Mas na Baropa, os senhores feudais e os sm) ~ s dsfornaa 18508 geografia, Apesar de sero segindo r & particles AS Rae i ra ma ar in de et, mar pare da ual € po é ots, tem, historicamente, pouco comércio. Os 'Neontingsosibiltar oper Panos. Assim. ts POU prof ue ou sio pou Profundos ou, sendo fundos, sio portua- rae a e x argo vegans, a : omaveg a Ys (ima paisgen cramatica convida a um come 6 ee 3, Asenga-se at0 0 calor topial eas doensas que 0 acompasham een ie = rian estrafal Pra subdeenvolvimento de Africa, (N. do.) UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA z militares que governavam os seus dominios desenvolviam lagos tos com os seus vassalos. Esta tornou-se a caracteristica distintiva ismo europeu, isto é, a criagio de uma classe de grandes jetdrios da terra, independentes. Da Idade Média até a0 século (0s soberanos curopeus continuaram criaturas distantes que exer= ‘um dominio mais tedrico que real sobre os seus paises. O Rei de por exemplo, era considerado um mero duque na Britania ante séculos, a sua autoridade sobre esta provincia foi limitada. pratica, se 0s monarcas queriam agir —iniciar uma guerra ou ir um forte — tinham de pedir um empréstimo e negociar tropas m os senhores locais, que se tornavam, em troca, condes, viscondes ques. Foi assim que a elite fundidria europeia se transformou em aristo- ia, conjugando poder, dinheiro e legitimidade — 0 oposto dos silos servis € complacentes de outras partes do mundo. Esta rela- @ de quase-iguais entre os senhores ¢ 0 rei teve um impacto pro- jo no caminho da liberdade. Como escreveu Guido de Ruggiero, grande historiador do liberalismo, asem a efectiva resisténcia de s classes privilegiadas, a monarquia nao teria criado sen’o um ovo de escravos»’, De facto, foi isso que fizeram os autocratas no sto do mundo. Na Europa, ao contrario, a medida que a Idade Média Waneava, a aristocracia exigia que os seus soberanos Ihe garantissem eertos direitos, que mesmo a Coroa nao podia violar. Para dar expres- silo orginica as suas exigéncias, ela estabeleceu corpos represen- tativos: parlamentos, estados gerais, dietas. Nestas negociagdes ou Pactos medievais residem as fundagdes do que hoje designamos pelo «Estado de direito». Assentes sobre as tradigdes romanas, estes direitos foram garantidos ¢ confirmados pelo poder da nobreza. Tal como 0 choque entre a Igreja e 0 Estado, o conflito entre a aristocracia e a monarquia é a segunda grande luta pelo poder da historia da Europa, que ajuda a dar, outra vez involuntariamente, a matéria-prima a liberdade. A aristocracia inglesa era a mais independente da Europa. Os senho- tes viviam nas suas propriedades, governando ¢ protegendo os seus Vassalos. Em troca cobravam impostos que os tornavam ricos e pode- Tosos. Era, na expressfio de um autor, uma «aristocracia laboriosay: mantinha a sua posi¢do, nao através de elaborados rituais da Corte, ‘Mas ao tomar parte na vida politica e no governo, a todos os niveis’. Os reis de Inglaterra, que consolidaram o poder mais cedo que 0s seus 36 0 FUTURO DA LIBERDADE correspondentes no continente, compreenderam que a sua forGa Tkepoy. sava no entendimento com a aristocracia — ou pelo menos com, yma parte dela. Quando os monarcas abusavam da sua sorte, proVoc‘ayam uma reacgiio fortissima da parte dos bardes. Henrique I, coroadig rei em 1154, estendeu 0 seu dominio a todo o pais, mandou juizes a lhocais recénditos para fazer cumprir os decretos reais. Procurou unifiicar o pais e criar uma lei comum, imperial. Para isso, era-lhe indispenjssye| despojar a aristocracia dos poderes e privilégios especiais. O Seu Iplano funcionou, até um certo ponto. Depressa a nobreza se sublevioy ¢ depois de quarenta anos de guerra, o seu filho, 0 Rei Joao, foi fOtreado a assinar, em 1215, uma trégua, num campo proximo do Castelys ge Windsor. Esse documento, a Magna Carta, era considerado, a0 tempo, uma carta de prerrogativas dos senhores ¢ bardes, onde se contitnhan 1s privilégios feudais. Continha disposigdes garantindo a liberdacje qe organizagao da Igreja e conferindo autonomia as cidades. Totmava posi¢ao (em termos Vagos) contra a opressio de todos os sibditays go fei, fossem eles quem fossem. Com o tempo, o documento foi intesrnre. tado de uma forma mais audaciosa pelos juizes ingleses, transfortynan do-se numa quase constituigao, protegendo certos direitos individjyaig Mas, mesmo no seu tempo, a Magna Carta era importante, tepre. sentando a primeira limitagdo escrita & autoridade real na Eutyong Enquanto tal, como escreve o historiador Paul Johnson: «Ela & jys. tamente classificada como a primeira das constituigdes inglesa;,’ go reino*, de onde se pode dizer que emanam as liberdades inglesias ¢ naturalmente, as americanas?» " Roma contra a reforma Depois da Igreja contra 0 Estado e do Rei contra os senhoress 4 grande luta pelo poder foi entre catdlicos ¢ protestantes, que setyig a mais longa e a mais sangrenta, tendo, uma vez mais, consequénycias acidentais, mas revolucionarias, no curso da liberdade. O seu instigegqor inesperado foi um devoto monge alemao que vivia numa pequyena recéndita cidade, chamada Wittenberg. No principio do século x\y,_¢ grassava por toda a Europa grande insatisfagdo contra um papado eXtre. mamente poderoso e corrupto. A pratica mais escandalosa de Roma, ra, * A colecgio de les inglesas que constituem a sua «Constituigio nio-eseritan. (Ndi, 4) UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA ” Comércio generalizado das indulgéncias: certificados papais absol- lo os scus compradores dos pecados, mesmo os que ainda nao sido cometidos. As somas recolhidas financiavam a grandio- je sem fim da Igreja, a qual mesmo pelos padres reluzentes do 10 era surpreendente. O seu projecto mais recente era a maior ¢ grandiosa catedral alguma vez construida — a Igreja de S. Pedro, “Roma. Mesmo hoje, quando erramos no Vaticano pelos acres de , maravilhados com os dourados, as jéias, as tapegarias © 05 s, de parede para parede, de tecto para tecto, é facil imaginar a piedosa de Martinho Lutero. - Winha havido apelos 4 reforma da Igreja antes de Lutero — Erasmo, + exemplo, pedira uma forma de culto mais simples, despojado de NWios — mas ninguém havia desafiado, frontalmente, a autoridade da ja. Lutero fé-lo-ia, em noventa e cinco teses, rigorosamente argu- 8, que pregou na porta do Castelo de Wittenberg, na manha de {de Outubro de 1517. Lutero poderia ter razio nos seus pontos de mas teve, também, sorte. A sua heresia surgiu num momento 10 na hist6ria da tecnologia. Ao tempo em que a Igreja Catélica iu e respondeu ao seu desafio, proibindo, peremptoriamente, a iso das suas ideias, as novas méquinas de impressio j4 haviam circular, por toda a Europa, o documento de Lutero, A Reforma ira. Cento e cinquenta anos mais tarde, apés intimeros banhos Sangue, quase metade da Europa era protestante, 3¢ Martinho Lutero visse o protestantismo de hoje, com a sua fina acomodaticia que exige pouco e tolera muito, ficaria, pro- -Yavelmente, horrorizado. Lutero nfo era um liberal. Pelo contratio, tinhia acusado 0 Vaticano de ser demasiado laxista na sua relagio Com a fé. Em muitos aspectos, foi o que chamariamos hoje um fundamentalista, reclamando-se de uma interpretagao muito literal da Biblia. As criticas de Lutero ao papado fazem lembrar as que so feitas, hoje, pelos fundamentalistas islimicos aos regimes corrupts © Sumptuarios do Médio Oriente que se afastaram da verdadeira via da f€ © da piedade. Lutero atacava 0 Papa pelo lado conservador do €SPectro teoldgico. De facto, alguem disse que choque entre cato- licismo e protestamtismo ilustra a velha maxima que a liberdade reli- Biosa é © produto de dois fanatismos igualmente perniciosos, anu- -s¢ um ao outro. _ A maior parte das seitas que surgiram na sequéncia da Reforma foram ainda mais muritanac ane a T a entre elas, © Calvinismo* professa uma doutrina particularmente stera pregando a completa privagdo do homem de tudo o que seja supérfluo € que existem poucas hipéteses de salvagdo das almas, salvo para ima pequena minoria de figis, eleitos antecipadamente por Deus. Mas as diversas seitas protestant vergiram em rejeitar a autoridade do Papa e, consequentemente, toda a hierarquia religiosa. Participa- am num combate comum contra a autoridade e, embora o ignorassem nstituem uma parte importante na historia mais geral da liberdade** Apesar destas querelas, estas pequenas seitas protestantes do Norte da Europa ofereciam a possibilidade de um caminho individual para a verdade, despojado da intermediagao dos elérigos. O papel que att buiam a um eventual clero reduz a de representantes eleitos por que se autogovernay a. Tratando-se, muitas vezes, de facgdes minoritérias dentro de comunidades mais alargadas, elas Luta- m pelo direito de todas as minorias & sua crenga e a praticarem a fé como 0 entendessem, No conjunto, abriram espaco para a liberdade iosa no mundo ocidental, Ajudaram a moldar as ideias modernas no s6 no que r eita a liberdade de consciéncia e de expresso mas também, quanto a liberdade de investigagao cientifica, quanto aos tex tos religiosos como a Biblia, e ainda em relaco a todas as doutrinas legadas pela tradigao. E é bem no processo constante de desafio a autoridade e de contestacao aos dog N nas vigentes que a cié se sentido, a ciéncia moderna tem uma divida invulgar em relagao 10s fanaticos religiosos do séculc © mais imediato efeito politico do protestantismo foi dar aos reis © a0 principes uma justificagao para conquistar poder mais arrogante Vaticano — projecto que alimentavam ha algum tempo © primeiro g ande assalto teve lugar no em defesa das ideias do protestantismo,'sjor umé harca desesperaésejava 1, 10 Papa Caste VII ae edi 4 10 poraéé nao fore \ de Ara } (Nao por falta ccativas: € cinco criancas'¢haviam abortos.) © Paptasou Ej proclamando-scve da Ie) Henrique a Ron‘ tinha m2\)) havia defendido Poa contr=4ij valido 0 titulo Defensor (iy estranhamente usam AW era doutrinalme:st6lica, <9 do Pap: i ji! \ Na sequéncia) safio de de uma série dioltas ren nie, toclll senio em 1648, 'z de V \os entre cerca de 150 ano! Guerra dos Trin de César, mais #b0a part Deus (isto é, na sencia, cuius regio ei Pligio (tall Estado) — segui4 qual «4 escolha, 0 que elit, na ve Bes por motivo ‘sessional Igreja e o Estadé Para o limbo crista. — «a Cri Catdlica e, no p © futuro pertencé a 0 FUTURO DA LIBERDSDE O Estado iluminado No século xvul, 0 desafio efectivo ao poder dos principes veio nio da religiio mas das autoridades locais: os principes, duques, bardes € condes. Mas ao longo deste século o principe venceria os seus rivais. Reforgaria a sua corte, criaria um governo centralizado —um Estado — que enfraqueceria os seus rivais locais. O Estado triunfaria por diversas razSes: mudangas tecnoldgicas, elevagdo da competigao militar, despertar do nacionalismo exacerbado ¢ capaci- dade de centralizar a colecta de impostos. Uma consequéncia merece, todavia, ser posta em destaque. O reforgo do Estado nfo foi bom para a liberdade. A medida que 0 seu poder cresceu, os soberanos encerraram a maior parte dos parlamentos, estados-gerais, assembleias © dietas medievais. Quando na Primavera de 1789 — na véspera da Revolugdo — foram convocados os Estados-Gerais em Franga, esta foi a sua primeira reunido em 175 anos! Os novos soberanos trata- ram, também, de abolir o sistema de privilégios aristocraticos, as tradigées regionais ¢ a proteccdo das corporagdes em beneficio de uma lei uniforme administrada pelo monarca. Uma excepgdo impor- tante a esta evolugdo foi a do Parlamento britfnico, que ganharia, aliis, a sua batalha contra a monarquia, depois da Revolugdo Gloriosa de 1688", Nao obstante os factos, 0 enfraquecimento da aristocracia pode parecer uma vitéria da igualdade perante a lei e ao tempo foi apre- sentada como tal. No século xvi, 4 medida que as ideias do Ilumi- nisno se espraiavam, filésofos como Voltaire e Diderot especula- vam acerca da «racionalizagdio» e da «modernizagdion do governo. Na pritica estas ideias significaram mais poder para © governo central © a estripagio da autoridade local e regional. «O absolutismo ilumi- nado», como seria mais tarde chamado, tinha alguns elementos rogressistas. Soberanos como Frederico Il da Prissia, Catarina II da Russia ou José II da Austria toleraram as dissidéncias religiosas, promulgaram disposigdes liberais e revelaram-se mecenas generosos em relagio a artistas, musicos e escritores (0 que explica, em parte, a sua aura nas gazetas da época). Mas este crescimento do poder cen- tral enfraqueceu 0 unicos grupos sociais capazes de contrabalan- garem a autoridade e 0 arbitrio real. A liberdade dependia, entdo, das vistas largas do soberano. Quando submetidos a uma pressio inte- rior ou exterior, mesmo os soberanos mais benignos —e os seus ja UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA a benignos sucessores — acabaram por renegar as suas ideias erais ¢ esmagar as oposigdes. No fim do século xvi, com guer- , revolugdes e rebelides internas a perturbarem a tranquilidade da .pa, 0 absolutismo iluminado tornou-se mais absolutista que ilu- lo. Em Franga a monarquia atingiu 0 seu apogeu com Luis XIV. feudalismo em Franga tinha sido sempre diferente do de Ingla- . Entalado entre vizinhos hostis, 0 pais vivia em situagao de mobi- Jo permanente para a guerra, 0 que tinha colocado a necessidade ‘um governo forte. (Dos cinquenta e quatro anos do reinado de iis XIV, trinta foram dedicados a guerra.) A monarquia explorava realidade geopolitica esforgando-se por manter os nobres longe ‘sua base de poder, que eram as suas terras. Prosseguindo a bri- te estratégia estabelecida pelo Cardeal Richelieu, Luis XIV afastou nobres das administragdes regionais e no seu lugar colocou fun- jiondrios seus. Ao mesmo tempo retirou poderes aos conselhos ¢ as bleias regionais. Luis XIV foi chamado o «Rei Sob» nao por a dos seus faustosos paldcios, como muitas vezes € percebido, pela sua posigo predominante no pais. Ele eclipsava todas as itras forcas. Impés a aristocracia que residisse permanentemente Paris, seduzindo-a com a Corte mais resplandecente da Europa. seu verdadeiro propésito era enfraquecé-la, As lendérias extrava- ‘Bincias da monarquia francesa — os jogos incessantes, os bailes, as ‘eagadas ¢ rituais da Corte, as maravilhas de Versalhes — tudo isso era, 20 fim e a0 cabo, um ardil politico para encerrar a nobreza numa ‘gaiola dourada, Por detrés das sedas sumptuosas e das perucas de penas, a aristocracia francesa tinha ficado sem poder e completamente dependente"’ ‘A Revolugdio Francesa (1789) trouxe muitas mudangas ao pais, mas No a estas tendéncias centripetas. Na verdade, ela centralizaria ainda mais o pais. Diferentemente da Revolugao Gloriosa inglesa (1688) que teforgou a aristocracia fundidria, a Revolucio Francesa destruiu-a. Debilitaria também a autoridade da Igreja Catdlica e enfraqueceria os obres locais, 0 clero e a finanga. Como observou o grande académico € politico do século x1x, Lorde Acton, a Revolugdo nao era sé contra um poder central, que pretenderia limitar, mas também contra a de todos os outros poderes que se pusessem a sua frente e que ela erradicou. Os franceses, observou Acton, tomaram por empréstimo dos america- NOs «a sua teoria da revOlucdo nao a ena tenria da anverns - 2 0 FUTURO DA LIBERDADE modo de cortar mas no o de coser». A soberania popular herdou toda a gloria do poder ilimitado da soberania mondrquica. «O Povo» era supremo e proclamou como sua finalidade: liberté, égalité et fraternité, Dependente noutro tempo da generosidade real, a liberdade dependia agora dos caprichos dos «cidadaos» e mais ainda dos que os represen. tavam, os chefes da Revolucio. Mas hé um outro modelo da liberdade e foi um francés que o vis- lumbrou, Montesquieu — aliés Charles-Louis de Secondat, bario de La Bréde © de Montesquieu — como muitos iluministas liberais do século xvitt admirava a Inglaterra pelo seu sistema de governo, Montes- quieu iria ainda mais longe, identificando 0 génio do sistema inglés — que prosseguia a liberdade na pritica, mais do que a proclamava em teoria. O exercicio do governo estava repartido entre 0 Rei, a aristo- cracia (a Camara dos Lordes) ¢ os comuns (a Camara dos Comuns), nenhum destes poderes podendo ganhar vantagem sobre os demais. Esta «separagdo de poderes» garantia que as liberdades civis seriam Fespeitadas e as diferengas religiosas toleradas. Montesquieu nao tinha uma f€ cega nos mecanismos do governo € nas constituigées como o mostra o seu trabalho maior que se chama, de forma significativa, o Espirito das Leis*. Na verdade, ao longo dos séculos, os poderes da Coroa inglesa tinham sido tio reduzidos que nos fins do século xix a Gra-Bre- tanha era uma monarquia no espirito, tendo-se transformado numa repblica aristocrética governada pela sua elite fundiéria. A inter- Pretagio lisonjeira de Montesquieu influenciou os préprios ingleses. O seu mais notavel jurista dessa época, William Blackstone, usou as ideias de Montesquieu para escrever os seus comentarios sobre a lei inglesa. O filésofo politico Judith Shklar néo deixou de sublinhar que na época da fundacdo da Repiiblica Americana «Montesquieu ra um ordculo», James Madison, Thomas Jefferson, John Adams e Outros procuraram, conscientemente, seguir os seus principios ao criarem 0 novo sistema politico. Eles citaram-no muitas vezes, mais do que a qualquer outro autor modemo (s6 a Biblia se Ihe sobrepés), Tio difundida era a atraccéo que exercia, lembra Shklar, que «quer os ue apoiavam a nova Constituigio, quer os que se Ihe opunham invo- cavam, sistematicamente, Montesquieu para esgrimitem os seus argu- ‘mentosy'?, ‘* Montesquieu, O Espirito das Lis, Editora Martins Fontes, 8. Paulo, 1997. (N de T) 1 F qui Mato, a produgio manufactureira € 08 servigos. Por 4 UMA BREVE HISTORIA OA LIBEROADE HUMANA a ‘éncias do capitalismo © xvi, a singular cultura politica da Gr Bretannaglil com uma outra evolusao devisiva: o capitalismo*. Se as a Igrcja ¢ 0 Estado, nobres ¢ reis, cablicos e protestane as brechas através das quais se insinuou & is rade dl 0 capitalismo fez ruir os restos da muralha. Nada ofa modemo de uma manest® mai poss sat como ele o fez, os milenares cial e politica. Ao longo dos séculos destruiu 0 faite, quismo com a sua referéncia rigida aos lagos seo 8 ento. Criou uma classe de empresirios — = + a m pouco 20 Estado ¢ que so hoje a forca dominante si Looks jedades avancadas do mundo. Fez da mudanga e do dinanistte is do que da ordem ou da tradigio — a filosofia dircarz 08 et a. O capitalismo eriou wm mundo novo muito difessite oo stiu até ai. E foi em Inglaterra que ele langou as su o firme. a O capitalismo comegou, contualo, noutro lugar, sob foes msis.g os embriondrias, No século XW, as trocas € 9 cemént MT al, congelados durante qurase toda a Wade MEtie, Buren” vez, em virios pontos da Evsrops. Uma revolugio nas 'ecnotasils olas produzia excessos de cereais que tinham de ser ou venus Oe trocados. Cidades mercantis € portuérias — Anmérpi, ETN’ meza e Génova — tomaram-se- polos da actividade snsmics. Co duco da dupla contabilidacde, dos numerais ral noe dos bancos, @ produgdo da smoeda deixou de ser ume ree dores para se tomar num megécio em larga escala, DEPTS Senvolvimento comercial se e=spalhou das cidades pomudnis aS © interior, nomeadamente nos Peaises Baixos e, mais tardt, eh TET emma, penettando nos diversas secstores da economia: agriculie™, Set 0 esté ainda em 4? A questo ett sinde em talismo se desenvolveu com estass actividades = gmicos con debate, mas a maior parte dios hiastoriadores econdmico: on. Us0- * Muitos livros tratam das diversas efinies de ecapitalismo>. soo mi CS ito basieo que coincide com a maior poate das defines dow dicionrion, ETN o Oxford Paperback Encyclopedia (10988): «Um sistema de organisa Sone a Seado na competi do mereado sab o » seal os meios ge Prog Hifocas s3o detidas ¢ dirigidas por imdividwuos ¢ sociedades...» “4 0 FUTURO DA LIBERDADE a existéncia de um Estado competente que protegia a actividade privada pode ter sido um factor importante nesta evolugao. Douglas North e Robert Thomas, dois dos mais eminentes especialistas na matéria afir~ mam que se o capitalismo triunfou isso «foi fundamentalmente devido ao tipo de direitos de propriedade assim criados»”, Pelo século xvi desenvolvia-se um consenso na Europa para sustentar que «a proprie- dade pertence 4 familia, a soberania ao principe ¢ aos seus magis- trados». Segundo um jurista espanhol do século xv «ao Rei é con- fiada, exclusivamente, a administragao do reino e aio 0 dominio sobre as coisas". Mas s6 a Inglaterra, contudo, iré a0 ponto de exe- cutar um rei (Carlos 1) por ter, entre outras coisas, langado impostos arbitrarios. A protecgio sistemitica dos direitos de propriedade transformou as sociedades e torna possivel a supressio da complexa teia de cos tumes ¢ privilégios feudais que constituiam obsticulos a0 funciona- mento eficaz da propriedade. A elite fundidria inglesa jogou um papel destacado na modernizagiio da agricultura. Através da generalizagio do sistema dos cereados, da afirmago brutal dos seus direitos sobre as Pastagens ¢ os terrenos baldios das suas propriedades, os aristocratas forgaram os camponeses ¢ agricultores que ai viviam a um trabalho mais qualificado ¢ produtivo. O comércio extremamente rentavel da 1a levaria & especializagio na exploragao dos ovinos. Ao adaptar-se 4 revolugao capitalista em curso, a aristocracia fundidria inglesa garantiu © seu poder e contribuiu, ao mesmo tempo, para a modemizagio da sociedade. A aristocracia francesa, pelo contrério, compunha-se de proprietarios de terra absentistas que pouco faziam para as tornar mais produtivas ¢, na verdade, continuavam a extorquir pesadas rendas aos seus rendeiros. Tal como muitos aristocratas continentais, desdenha- vam do comércio. Para além dos nobres economicamente empreendedores, o capita- lismo criou, também, um grupo novo de homens présperos e poderosos que deviam a sua riqueza no as rendas das terras concedidas pela Coroa, mas a uma actividade econémica independente. Tratando-se de Pequenos aristocratas ou de agricultores empreendedores estes yeomen ingleses formavam, nas palavras de um historiador, «um grupo de ambiciosos © agressivos pequenos capitalistas»'’. Eles foram os pri- meiros membros da burguesia, a classe industriosa de proprietérios que Karl Marx definiu como «os proprietirios dos meios de producao de uma sociedade ¢ os empregadores dos seus trabalhadores». Marx reco- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA 4s , de forma correta, que esta classe era a vanguatda da libe- 40 politica na Exopa. Os seus membros foram o8 principais Jarios do capitalimo emergente, do Estado de direito, da racio- io da economia > da liberalizagio das trocas, da ascensio do jonalismo ¢ da mritocracia, ndo podendo sendo apoiar as refor- graduais que favorceriam estes desenvolvimentos. Num estudo itica comparada, :gora lendario, 0 Professor de Harvard, Bar- sn Moore Jr., analiou a génese da democracia ¢ da ditadura no . A sua conclusticessencial contém-se em cinco palavras: «Sem ia, ndo ha demeracia!*» politica inglesa reolucionou-se & medida que a actividade em- ial se tomou 0 pricipal meio de ascensio social. A Camara dos ins, que tinha conqistado 0 poder das méos do Rei no século xvi fernava o pais, conava agora nas suas fileiras com mercadores © antes recentemeite enriquecidos. O nimero dos nobres titula- ‘em Inglaterra foi smpre reduzido: menos de duzentos no fim do xvi, Mas abako deles existia uma classe mais numerosa, ‘vezes chamada de gentry ou pequena aristocracia. A gentry ia-se, normalmente. das suas relagdes com a aristocracia para responsabilidades na administragao local, mas 0 seu prestigio nha da cficécia profssional, da habilidade para os negécios, ou de ficultura mais eficieste. Muitos destes homens entraram na vida fica e guardando una salutar distincia da velha ordem, fizeram es pela introdugio de reformas progressivas: a liberalizagao trocas ¢ do comério, os direitos individuais e @ liberdade de igiao. Os trés mais importantes primeiros-ministros da Gra-Bretanha no xix — Robert Pel, William Gladstone ¢ Benjamin Disraeli — das fileiras da entry. Esta nova e poderosa classe adoptava litos dos tragos disintivos da aristocracia — casas senhoriais, Iuetdes, tomeios de caga— mas era mais fluida. Os gentlemen walheiros) gozavam lo respeito geral ¢ ainda mais que os lordes ram-se os bastidesda sociedade. Assim, no século Xvi, © cava- inglés tornou-se uma figura quase mitica que toda sociedade Wa com inveja. Canta-se que uma.enfermeira que cuidava do i Jaime I pediu-the, uma vez, que fizesse o seu filho cavalheiro. Monarca ter-Ihe-4 repondido: «Nao posso fazé-lo cavalheiro, em- Possa fazé-lo lorde» Um visitante francés ridiculizaria a inclina- da aristocracia inglea em imitar a gentry: «Em Londres, 08 senho- 46 0 FUTURO DA LIBERDADE ‘res vestem Como os seus pajens € as duquesas copiam as camareiras'*»» Hoje o gentleman inglés € lembrado mais como um dandi, cujo estilo € estética so publicitados a uma escala planetéria por Ralph Lauren, ‘Mas as suas origens esto intimamente ligadas a0 nascimento da liber- dade inglesa Anglo-América No século xvi, apesar da ascensao do capitalismo, do governo imitado, dos direitos de propriedade e do constitucionalismo através da Europa, a Inglaterra ocupava uma posigao tinica. Ela era mais rica, mais inovadora, mais livre e mais estivel que qualquer outra sociedade do continente, Como escteveu Guido de Ruggiero: «As liberdades do individuo, sobretudo a seguranga de pessoas ¢ bens enicontravam-se ai solidamente asseguradas. A administragio era descentralizada e auténoma. As estruturas judiciais eram completamente independentes do governo central. As prerrogativas da Coroa eram muito limitadas [...] 0 poder politico estava concentrado nas maos do Parlamento. Que especticulo similar podia oferecer o continente?» Muitos observadores da época tiraram conclusdes semelhantes, elogiando a Constituigéo inglesa e 0 seu cardcter nacional. Alguns destacaram principalmente a economia, Para Voltaire « comércio & que enriqueceu os cidadaos de Inglaterra, auxiliando-os a tornarem-se mais livres j...] essa liberdade, Por seu lado, expandiu 0 comércio»*. Em vez de cultivarem os praze- tes decadentes da nobreza, anotava o pastor francés Abbe Coyer, 0 governo inglés tinha ajudado «a honesta classe média, essa parcela Preciosa das nagdes»"”. A economia de mercado havia contribuido para © enriquecimento da classe média, a qual apoiara a causa da liberdade. Um ciclo aparentemente virtuoso Os territérios que mais se assemelhavam & Inglaterra eram as suas colénias na América. Os colonos tinham. estabelecido sistemas de governo que se pareciam com os que tinham deixado para tris, na Inglaterra dos Tudors. Em 1776, quando se rebelaram contra Jorge III, apresentaram a sua revolugdo como um chamamento a devolugao dos seus direitos, como englishmen. Segundo cles, tinham sido despojados Guido de Ruggiero © RG. Clingvood, Hivor of European Liberati, Peter ‘Smith Pub., Nova lorque, 1977. (N. do T.) r mm 7 UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA, a1 jes que ha muito usufruiam por um soberano tirdnico, 0 que ara a declarar a independéncia. Num certo sentido, era uma da propria Revoludo Gloriosa inglesa, quando o Parlamento se contra um monarca arbitrario cujo maior pecado foi de ter impostos sem © consentimento dos governados — ou mais jente dos taxados. Os vencedores, quer em 1688 quer em 1776, ‘as elites progressivas, modemizadoras e vocacionadas para o rcio. (Os perdedores, para além do Rei, foram os velhos tories, continuaram leais & Coroa tanto na Inglaterra do século xvi como ‘América do século xvi.) fas se a Inglaterra parecia uma excepeo, a América representava ‘caso excepcional entre todos. Era Inglaterra sem feudalismo. Cer- ite, a América tinha familias fundidrias, com propriedades, mas no eram tituladas, néo tinham privilégios conferidos por nasci- to € no estavam investidas de um poder politico comparivel a0 membros da Camara dos Lordes. Para se compreender a América século xviii, € para se retomar a formula do historiador Richard ter, € necessirio imaginar 0 caso iinico de «um mundo de classe lian®. Os aristocratas se bem que presentes na economia ¢ na socie- raramente dominavam. No Norte, comegaram a diminuir na midanga do século xvut. O historiador Gordon Wood observou: «Na cada de 1780 podemos, na verdade, sentir a mudanga de uma socie- “dade pré-modema para uma modema, em que os interesses comerciais @ 0s gostos de consumo da gente comum se comegavam a afirmar como dominantes.» A Revolugao Americana foi, nas palavras de Wood, uma explosio do poder empreendedom alargando 0 fosso entre a América e a Europa”. A América era agora abertamente burguesa © orgulhosa de o ser. Dias depois da sua chegada aos Estados Unidos, em 1831, Tocqueville anotou no seu diario que na América «toda a socie- dade parece ter-se diluido numa classe média». ‘A via que conduziu a América & democracia liberal foi excepeional: a maior parte dos paises nio comegou a sua experiéncia nacional, enguanto sociedade nova, sem um passado feudal. Livres de centenas de anos de monarquia € de aristocracia, os americanos nio tiveram necessidade nem de um governo central forte, nem de uma revolugao social violenta para derrubar a velha ordem. Na Europa, 0s liberais. temiam o poder do Estado, mas este fascinava-os. Eles procuraram limita-lo, mas também instrumentaliza-lo por forma a modernizarem ‘as suas sociedades. «A grande vantagem dos americanos», escrevell 48 0 FUTURO DA LIBERDADE Tocqueville num apontamento famoso, «é que eles chegaram & demo- cracia sem terem de fazer uma revolugdo democratica... eles nasceram iguais sem terem de tornar-se iguais». No principio do século xix, na Gri-Bretanha ¢ nos Estados Unidos, a liberdade individual florescia para a maioria e a igualdade era garan- tida pelo Estado de Direito. Mas nenhum dos paises era uma democra- cia. Antes do Reform Act de 1832, 0 direito de voto era reservado a 1,8% da populagdo adulta da Gri-Bretanha, Depois da lei entrar em vigor, esse numero ascendeu a 2,7%, Depois do grande alargamento do yoto censitario, em 1867, 6,4% obtiveram esse direito e depois de 1884, 12,1%, S6 em 1930, quando foi reconhecido 0 direito de voto as mulheres, a Grd-Bretanha atingiu 0 padrio hoje estabelecido para um sistema se considerar democratico: o sufrigio directo ¢ universal”, Contudo, é considerada 0 modelo do Estado liberal constitucional, isto &, um Estado que protege a liberdade ¢ & governado pela lei Os Estados Unidos eram mais democriticos que a Gra-Bretanha, se bem que a diferenga nao fosse to evidente quanto se eré. Durante as primeiras décadas da jovem repiiblica, s6 os proprietérios brancos do sexo masculino eram admitidos 2 votar — um sistema muito semelhante ao do pais cujo dominio havia sido derrubado. Em 1824 — quarenta e oito anos apés a independéncia — s6 5% dos americanos brancos do século masculino colocaram o seu voto na uma, numa eleigao presidencial. Esse niimero subiria espectacularmente & medida que a revolugao jacksoniana se espalhou e as qualificagdes relacio- nadas com a posse da terra foram, em grande parte, eliminadas, Mas foi preciso esperar até as vésperas da Guerra Civil para que todos 9s brancos nos Estados Unidos fossem autorizados a tomar parte no escrutinio. Os negros encontravam-se, em teoria, em 1870, em con- digdes de poderem votar, mas de facto isso s6 aconteceria um século depois, no Sul dos Estados Unidos. As mulheres sé obteriam o direito de voto em 1920. Apesar deste défice democrético, durante grande parte do século xix 05 Estados Unidos foram a inveja do mundo pelo seu sistema de leis e direitos. E com tempo, o liberalismo consti- tucional levou & democracia, que levaria a mais liberdade ¢ por ai fora, O resto da Europa seguiu um caminho mais tortuoso para a demo- eracia liberal que a Gra-Bretanha ¢ os Estados Unidos, mas acabaria or ld chegar. O que se produziu na Gra-Bretanha ¢ nos Estados Uni- dos de forma gradual e (em geral) pacificamente, aconteceu no conti- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA ~ num modo irregular e sangrento— como veremos no proximo Jo. No fim dos anos 40 do século xx a maior parte das nagdes jias tomaram-se democtacias liberais ¢ as restantes, depois de }, com uma consolidagio répida e estivel. A razio é clara: todos s ocidentais partilharam, apesar de algumas variagdes, uma historia, a que serviu de cadinho a tradigao constitucional libe- © caso inglés & 0 que os académicos chamam um «tipo ideaby 0 ‘© toma iitil para tomar como paradigma. Mas no século xix, mesmo is retrogrado poder europeu era um regime liberal quando com- com os seus homélogos na Asia e em Africa. Os cidadaos am de direitos poderes inimaginaveis noutras partes do . O poder dos monarcas era limitado por leis € pelas tradigdes. sociedade civil florescia com as suas empresas privadas, igrejas, jversidades, corporagdes e associagdes sem interferéncia maior do ). A propriedade privada era protegida e a livre empresa pros- ra. Estas liberdades eram muitas vezes mais s6lidas em teoria na pritica € os monarcas autocréticos tinham muitas vezes tendén- a abusar do poder. Mas comparado com o resto do mundo, 0 Oci- te era, realmente, a terra da liberdade. A cultura como destino Esta breve historia da liberdade pode parecer um guia desencorajante, Ela sugere que nenhum pais aspirando a tornar-se uma democracia liberal deveré provavelmente reorientar-se pelo Ocidente, E sem som- bbra de davidas que a pertenga ao mundo ocidental — mesmo se 0 é na periferia — constitui uma vantagem politica. De todos os paises que conquistaram a sua independéncia depois da queda do império sovié- tico, os que partilharam o que poderiamos chamar «a experiéncia oc dentaby — os antigos territérios dos impérios austriaco © alemao foram os que tiveram mais sucesso sob os auspicios da democracia liberal, A fronteira que em 1500 separava a civilizagao crista ocidental da oriental divide hoje os regimes liberais que triunfaram dos regimes iliberais que fracassaram. Polénia, Hungria e Repiblica Checa, que pertencem incontestavelmente & Europa, tém um considerével avango na consolidagao do respectivo sistema democratico. Os paises balticos seguem-nos de perto. Mesmo nos Bales, a Eslovénia e a Crodcia, que se encontram no lado ocidental entre a linha de demarcagao entre 50 © FUTURO DA LIBEADADE Ocidente ¢ Oriente, conhecem uma evolugio mais favoravel que q Sérvia e a Albania (no leste) € cuja transigao & mais conturbada, Significa isto que a cultura é destino? Este poderoso argumento tem sido apresentado por académicos eminentes, de Max Weber a Samuel Huntington. E, neste momento, uma ideia em moda. Desde os consul- tores de empresas aos estrategas militares quase toda a gente brande a cultura como a explicacao facil para muitos puzzles. Por que razio os Estados Unidos conheceram uma tal expansio nas iltimas duas déca- das? £ obvio: a nossa singular cultura empresarial. Por que razio a Riissia ¢ incapaz de se adaptar ao capitalismo? Também dbvio: é uma cultura feudal antimercado. Por que razio a Africa se atola na pobreza? Uma vez mais a cultura. E por que razio 0 Mundo Arabe gera terro- tistas? Outra vez a cultura. Mas estas respostas so demasiado simplistas, Apesar de tudo, a cultura americana também produziu a estagnagao e a Grande Depres- sio dos anos 30 do século xx. E as culturas outrora feudais do Japao e da Alemanha parecem ter-se adaptado bem ao capitalismo, tendo-se tornado, respectivamente, 0 segundo ¢ 0 terceito paises mais ricos do planeta. O mesmo pais pode triunfar ¢ fracassar em periodos distintos da sua historia, o que sugere que alguma coisa, para além da cultura — que é relativamente imutavel — esta aqui em jogo. Lee Kwan Yew, o brilhante patriarca de Singapura, explicou-me uma vez que se se quiser compreender como a cultura funciona, compare-se o desempenho dos trabalhadores alemaes e dos seus homé- logos zambianos, em qualquer ponto do mundo. Rapidamente se chega & conclusio que ha algo muito diferente nas duas culturas que explica os resultados dispares. Os académicos produzem argumentos idénticos: no seu interessante trabalho Tribes, Joel Kotkin defende que Se Se quiser ser bem sucedido economicamente no mundo moderno, a chave é simples — € necessario ser-se judeu, indiano, mas sobretudo chinést Lee e Kotkin esto obviamente certos na sua observagao de que certos grupos — chineses, indianos ou judeus — triunfam, magnifica- mente, em todo o tipo de cenarios. (De facto acho esta variante da teoria da cultura extremamente apelativa, ja que sou de origem indiana.) Mas se ser indiano ¢ a chave do sucesso econémico como explicar 0 deprimente desempenho da economia indiana nas quatro décadas que se seguem a independéncia de 1947 — ou, para beneficio do argu- mento, durante centenas de anos antes dela? Quando se nasce na india UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA. st idera, certamente, os indianos bem sucedidos do ponto de ondmico*. Na verdade, lembro-me do dia em que um famoso 9 do Parlamento indiano, Piloo Mody, colocou a seguinte ques- ira Gandhi, no periodo antes da ordem do dia: «A Primeira- a pode-nos explicar porque & que os indianos parecem triunfar os os governos do mundo, com excepgao do seu?» eremos por a mesma questo a respeito da China, outro pais sultados econdmicos foram mediocres durante centenas de anos, das duas altimas décadas. Se o que era necessério era ser-se a China tem milhares de milhdes de chineses. Quanto aos judeus, ‘tenham triunfado em muitos lugares, o pais onde séo a maioria lago, Israel, distinguiu-se até ha pouco tempo pelo marasmo mico. Dever observar-se que 0 desempenho econdmico destes ses (India, China e Israel) melhorou muito durante os anos 80 sulo xx. Mas isso ocorreu nfo porque eles inventaram novas 5, Mas porque os seus governos mudaram de politicas e criaram mbiente mais sintonizado com a economia do mercado. A China hoje de forma mais rapida que a india, mas tal tem mais a ver ‘0 facto de a China estar a reformar a economia mais extensiva- do. que haja uma qualquer suposta superioridade da ética lana sobre a mentalidade indiana. estranho verificar que Lee Kuan Yew seja um téo ardente defen- argumentos culturais, na medida em que Singapura, por muito s0 seja enfatizado, no € culturalmente muito diferente do seu finho, a Malisia. E mais chinés e menos malaio mas comparativa- te ao resto do mundo os dois paises partilham muito em comum. J que distingue Singapura dos seus vizinhos tem sido um governo ciente que tem prosseguido uma politica econdmica sagaz. Por outras s, a chave do sucesso de Singapura é Lee Kuan Yew © nao onfiicio, Longe de mim afirmar que a cultura nao é importante. Pelo rio, ela importa muito. Representa a experiéncia histérica de um OVO, tal como cla esta embebida nas suas instituigdes nacionais & la as atitudes das pessoas ¢ as suas expectativas. Mas a cultura ode mudar. A cultura alema em 1939 eta muito diferente daquilo em ela se viria a tomar em 1959, isto é, vinte anos depois. A Europa, utro tempo 0 coragao de um hipernacionalismo, & agora pds-nacio- * Na india encontra-se um tergo dos pobres do mundo, segundo estimativas da ONU, dor) 2 0 FUTURO DA LIBERDADE nalista, com os seus Estados dispostos a ceder parte da sua soberania ‘a entidades supranacionais por formas que os americanos dificilmente podem compreender. Os Estados Unidos foram em tempos uma repi- blica isolacionista muito reticente a ideia de intervengao externa. Hoje, dominam 0 mundo e tém guarigdes militares nos quatro cantos do planeta, Os chineses foram em tempos camponeses atrasados; hoje, sio negociantes natos. As crises econémicas, as guerras, a classe politica no poder — tudo isso muda a cultura. Ha cem anos, quando a Asia Oriental parecia inevitavelmente po- bre, muitos investigadores — designadamente Max Weber — defende- ram que as culturas de base confuciana desencorajavam todas as qua- lidades indispensiveis ao sucesso do capitalismo®. Ha uma dezena de anos, quando a Asia Oriental conheceu um sucesso econémico especta- cular, os académicos viraram do avesso esta explicagao e vieram contra- por que o confucionismo, na verdade, inculeava os valores essenciais a0 dinamismo econémico, Hoje a roda mudou outra vez € muitos deles véem nos «valores asiaticos» todos os ingredientes de um nepotismo que gangrena 0 capitalismo na sua versio oriental. No seu estudo, Weber estabelecia uma relagdo entre o sucesso econémico da Europa do Norte ¢ a sua «ética protestanter. Ele predizia também que o Sul catélico continuaria pobre. De facto, nos iiltimos cinquenta anos, a Itdlia e a Franga cresceram mais rapidamente que a Europa protestante. Pode alguém recorrer ao esterestipo dos latinos manhosos adeptos de «deixar para amanha 0 que se pode fazer hoje» para explicar o desem- penho modesto de alguns paises; mas entdo como explicar 0 Chile? ‘A sua economia rivaliza com as mais fortes dos tigres» asifticos. O seu sucesso ¢ muitas vezes atribuido a um outro conjunto de valores tipi- camente latinos: familias coesas, ligagao A religido voluntarismo. Na realidade, ndo se pode encontrar uma simples resposta & questo porque € que certas sociedades tém sucesso, em certos momentos. Retrospectivamente, quando uma sociedade triunfa parece-nos, muitas VezeS, que esse sucesso ¢ inevitavel. Examinemos as sociedades de ‘sucesso € procuremos dentro das suas culturas as razées do sucesso. Mas as culturas sio complexas; cada um encontra 0 que procura. Se se quiser procurar uma predisposigao cultural para o trabalho arduo e a Poupanga nos paises da Asia Oriental, ela esté ld. Se se quiser encon- ‘tar, pelo contrario, uma tendéncia para a obediéncia cega ¢ 0 nepotismo, eles também esto li. Se se olhar com cuidado, encontraremos estes tragos em muitas outras culturas, UMA BREVE HISTORIA DA LIBEROADE HUMANA 3 ‘Accultura é um factor crucial, pode ser um estimulo ou um travio, indo ou atrasando a mudanga. Pode ser solidificada em institui- € praticas, que representam, muitas vezes, os verdadeiros obsta- 5 a um sucesso completo, A cultura indiana pode comprometer ou as possibilidades de crescimento econémico do pais, mas isso nio provado, A burocracia indiana fé-lo certamente. A verdadeira van- do Ocidente € que a sua histéria levou & criagdo de instituigdes ticas que, embora ndo estejam inscritas nos genes ocidentais, so is de reproduzir, da estaca zero, noutras sociedades. Mas dificil € impossivel modelo da Asia Oriental Yhando para muitas das transigdes néo-ocidentais para a democra- liberal nas iltimas trés décadas conclui-se que os paises que evo- para uma democracia liberal seguiram uma versio do padrio 1: capitalismo e Estado de direito, primeiro e, depois, democra- Coreia do Sul, Taiwan, Tailandia ¢ Malasia foram paises governa- durante décadas por juntas militares e regimes de partido tinico s regimes liberalizaram a economia, o sistema legal, concederam liberdades de opinido, de religifio, de circulagao ¢ ent&o, algumas s mais tarde, realizaram eleigGes livres. Eles coneretizaram, talvez talmente, 0 dois principais atributos de um bom governo como Madison sublinhou nos Federalist Papers*. Primeiro, 0 governo ‘ser capaz de controlar os governados; depois controlar-se a si . A ordem mais a liberdade. Estas duas forgas produzirio, @ prazo, um governo legitimo, a prosperidade ¢ uma democracia . Com certeza, mas é mais facil dizé-lo que fazé-to. Nos anos 50 € 60 do século xx, muitos intelectuais do Ocidente figmatizavam os regimes da Asia Oriental como reaccionérios, iando, pelo contririo, os lideres populares da Asia e da Africa que lizaram eleigdes e proclamaram a sua fé no povo — por exemplo no nna Tanzania e no Quénia. A maior parte destes paises degenerou ditaduras enquanto a Asia Oriental se moveu, precisamente, na oposta. O facto de as democracias mais sélidas da América * Alexandre Hamilton, James Madison ¢ John Kay, O Federalista, Edigbes Colibri, 2003. (N. do T) ‘4 0 FUTURO DA LIBERDADE Latina ¢ da Asia Oriental —o Chile, a Coreia do Sul e Taiwan — terem sido durante muito tempo governadas por juntas militares deve- ria deixar perplexos estes mesmos académicos ¢ intelectuais. Na Asia do Sul, como na Europa Ocidental, as autocracias liberais estabelece- ram as fundagdes para democracias liberais estiveis Em quase todos os casos, as democracias abriram lenta e parcial- mente a economia, processo que conduziu a uma liberalizagao progres- siva do governo. «Uma caracteristica tipica da Asia Oriental desde a Segunda Guerra Mundial», escreveu um eminente especialista da Asia Oriental, Minxin Pei, & 0 processo gradual de institucionalizagao da autoridade [...] No centro deste processo encontra-se o lento emergir das insttuigdes politicas moder- ‘nas exercendo um contrapoder formal ¢ informal através de partidos domi- nantes, burocracias, de cleigdes parcialmente livres e de um aparetho judi- cial que adquire progressivamente o seu espago de autonomia, O processo produz um duplo resultado positivo — um elevado grau de estabilidade € de garantia dos direitos de propriedade (devido a limitagdes crescentes que as forcas de mercado ¢ as novas regras politicas impoem aos gover- nantes)» A Asia Oriental é ainda uma regio muito atingida pela corrupgao, pelo nepotismo ¢ pela fraude eleitoral — mas assim 0 eram muitas democracias ocidentais, ha cinquenta anos atrds. As eleigdes em Taiwan, na actualidade, nio sio perfeitas mas provavelmente so mais livres que as da América do Sul, nos anos 50 do século xx (ou de Chicago, nos anos 60 do referido século). Os grandes grupos econémicos sul-coreanos (chaebols) tém uma influéncia desproporcionada na politica do seu pais, mas esse também era 0 caso dos seus equivalentes na Europa nos Estados Unidos, hd um século atrés. Os caminhos de ferro, as empresas siderirgicas, as construtoras navais ¢ os grandes financeiros do passado cram sem diivida mais poderosos que actualmente qualquer tycoon as 0. Eles dominaram a América durante a Era do Ouro, no fim do século xix. (Pode-se citar 0 nome dos politicos contemporaneos de J. P. Morgan, E. H. Harriman e John D. Rockefeller?) Ninguém pode julgar as novas democracias por padres que teriam, excluido a ‘maior parte dos paises acidentais ha apenas trinta anos. A Asia Orien- tal com a sua mistura de liberalismo, oligarquias, democracia, capita- lismo e corrupcdo lembra muito a situacdio que existia no Ocidente. vor UMA BREVE HISTORIA OA LIBERDADE HUMANA ee emplo em 1900, Mas a maior parte dos paises da Asia Oriental ¢ sideravelmente mais liberal e democritica que a vasta maioria de itros paises ndo-ocidentais. ‘Uma outra prova ainda mais impressionante de que um passado iberal ¢ constitucional pode produzir uma democracia liberal foi ecida pelo cientista politico Myron Weiner, em 1983. Ele afirmou , desde entiio «todos os paises do Terceiro Mundo que sairam do gime colonial depois da Segunda Guerra Mundial, com uma populagao , pelo menos, um milhdo de habitantes (e, também, quase todas as olénias mais pequenas) com uma experiéneia democratica continua, antigas colénias britinicas»™. O dominio briténico nao quer dizer emocracia —o colonialismo ¢, por definigao, ndo-democratico — sim liberalismo constitucional limitado e capitalismo. Existem, fora, outras democracias no Terceiro Mundo, mas 0 argumento prin- sipal de Weiner mantém-se valido. Afirmar isto nao é defender o alonialismo. Tendo eu erescido num pais pés-colonial néo preciso de er lembrado do racismo institucionalizado e do abuso de poder que a parte do legado imperial. Mas nao se pode negar que o Império itinico deixou para tras um legado de leis e de capitalismo que aiudou a consolidar as forgas da democracia liberal em grande nimero § suas antigas colénias —embora ndo em todas. A Franga, pelo rio, encorajou pouco o desenvolvimento do constitucionalismo e economia de mercado nas colénias, mas é verdade que emancipou gumas das suas populagdes coloniais no Norte de Africa, Mas qual- quer que tenha sido 0 processo, a democratizago precoce, em todos 8 casos, conduziu a tirania. A via ocidental levow a democracia liberal para além dos limites do Mundo ocidental. De qualquer forma, como o mostram todos estes sos, a sequéncia e o ritmo da democratizagao so cruciais. Muitos aises do Terceiro Mundo que se proclamaram democracias logo apés @ independéncia, quandio eram pobres e instaveis, tornaram-se dita- duras no decénio seguimte. Como anotou Giovanni Sartori, 0 grande * Fim muitas das coldnias que os ingleses tardiamente conquistaram ma er escolonizaram algumas décadias mais tarde — em Africa e no Médio Oriente, pot exem- lo— eles ndo se preocupararm em constuir instituigSes e erigir um Estado de direito. ragaram fronteiras aberrarntes, legando as jovens nagSes, aquando da sua independén- graves problemas étnicos e teligioses. Mas na Asia do Sul, nas Carafbas e seguramente olénias de poveamenta (Cianada, Austiliae Nova Zelindia) a relagdo entre legislagio fitfinica e democracia ¢ inegawel. (N. do 4.) © FUTURO DA LIBERDADE que «o itineririo nao & reversiveln®, M ‘padrio i ona padrio anglo-americano — constitucion es capitalismo, primei fete demosraia — foram muito menos bem sucedidas na sug ee ‘ocracia liberal. Para compreendermos as compli pce pe: Produs uma democratizagio precoce, € bem 30 corsedo dl A jue teremos que regressar — 1 é stl Pampas cegmes ave regressar — viajando no tempo até og CAPITULO 2 Um caminho tortuoso jena no virar do Ultimo século era uma metrépole cintilante, cosmopolita nos scus gostos, vanguardista na arte ¢ aventurosa na politica, Foi nessa cidade dnica que Richard Strauss e Gustav ler compuseram, que Gustav Klimt e Egon Schiele pintaram, que Musil e Arthur Schnitzler escreveram, que Theodor Herzl pu- va os seus artigos, que Sigmund Freud praticava psicandlise ¢ que ‘Trotsky mobilizava multiddes e fazia discursos nos terragos dos . Viena era famosa pelos seus cafés, que ofereciam a intelligentsia Europa uma mistura singular de bebida, tabaco e discussio. Num es cafés — provavelmente no Landtman — na Primavera de 1895, Sigmund Freud acendeu um dia um charuto, Como se poderia esperar da parte de Freud, esse charuto era mais que um charuto. Era a cele bragdo da liberdade — contra a democracia’. Naquele més de Margo, Viena acabava de eleger um ultranacionalista, Karl Lueger, para presidente da cimara. As ideias politicas de Lueger eram detestaveis, Ele comparava frequentemente os judeus a gafanho- tos, exigindo que fossem esmagados ¢ usados como estrume ou empa- cotados e embarcados em navios e langados ao mar. O Imperador Francisco José 1, da Casa dos Habsburgos, decidiu que a eleigio de Lueger constituia uma ameaga as liberdades civis da cidade ¢ num gesto sem precedentes recusou-se a empossi-lo no cargo. Decistio =* Ver Giovanni Sartori, 72 Der tri, Teoria de la Dem yen 'ocracia, Alianza Editorial, Madrid, 2 vol, CAPITULO 1 Uma b 0 comegou quando ¢ o decidiu mudar-se, Em 324 d. C a capital de Roma para Bizancio, uma velha colénia grega nas Targens do Mar Negro que rebaptizou, imediatamente, de Constanti nopla. Porqué abandonar Roma, a capital histérica do Império? Cons fantino disse que o fez «por ordem de Deus». E dificil contestar este tipo de argumento © seu papel. Con: fetidade uma heranca grande e que melhor meio de o conse A mudang cias politicas. C yesmo se a vaidade e a ambigao jogaram, aqui antino queria desesperadamente deixar para a pos: além de ganhar uma guerr era também calculada, do pi stantinopla estav ndes centros cultu: Tais € econémicos desses tempos, como Atenas, Tessalénica e Antioquia. (Roma era considerada, entéo, um | rasado). Constantinopl era um ponto mais estratégico para defender o império contra os seus inimigos, principalmente as tribos dos bé No século xiv, a Historia fazia-se no Oriente. agem e Constantino no nao 86 a capital, mas transferiu dezenas de Os imperadores no viajam com pouca bag: era excepcao. Ele mu 28 © FUTURO DA LIBERDADE milhares dos seus habitantes, tendo encomendado, para os alimentars, enormes quantidades de géneros e bebidas do Egipto, da Asia Menon: e da Siria. Enviou agentes aos quatro cantos do império para pilharr: obras de arte para a sua «nova Roma». Foi tal a pilhagem que 0 histox- riador Jacob Burckhardt escreveu «os maiores e mais despreziveis rouy- bos de objectos de arte de toda a histéria tiveram lugar com o propé+- sito unico de decorar (Constantinopla)»'. Senadores e outros notaveiss receberam incentivos substanciais para se mudarem para a nova capi~ tal. Replicas exactas das suas casas esperavam-nos a chegada & novar cidade. Mas embora tivesse levado a maior parte da sua corte, Cons~ tantino deixou uma pessoa para tris: 0 bispo de Roma. Esta separagaoy historica entre a Igreja ¢ o Estado teria consequéncias decisivas & benéficas para a Humanidade. Embora o bispo de Roma tivesse a dignidade de um principe: — porque Pedro, primeiro detentor da posigio, foi o decano dos apés— tolos de Cristo — o Cristianismo sobreviveu ao tornar-se uma religiéor descentralizada, congregando um conjunto de igrejas que se auto-admi— nistravam, De qualquer forma, se Roma estava agora distante da capi- tal do império, outros prelados importantes, como bispo de Bizincio: © 0s das cidades vizinhas de Antioquia, Jerusalém e Alexandria viviam’ na sombra do imperador ¢ rapidamente tornaram-se apéndices da auto- ridade do Estado. Porém, longe do poder e da intriga palaciana, a Igreja Romana floresceu, afirmando uma independéncia que eventual- mente Ihe possibilitou reclamar o manto da lideranga espiritual dos povos cristéos, Como o sublinhou o grande historiador classico brit: nico, Ernest Baker, o resultado desta separagao foi que o Oriente (Bizan- cio) caiu sob o controlo do Estado e o Ocidente (Roma) ficou sob a soberania da religiao. Sera mais correcto afirmar que no Ocidente o principio da soberania foi contestado; mais de 1500 anos apos a mudanga da capital do império efectuada por Constantino, a histéria europeia ficou marcada por conflitos permanentes entre a Igreja ¢ 0 Estado. Dos estilhagos dessa refrega surgiram as primeiras centelhas da liberdade humana. Liberdade, antiga ¢ nova Obviamente, é excessivo pegar num tinico evento para fazer dele 0 arranque de um processo histérico complexo — no caso, o desenvol- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA 9 da liberdade humana — mas todas as histérias tém o seu pio, E 0 desenvolvimento da Igreja Catolica é, na minha perspec- ‘a primeira fonte importante da liberdade no Ocidente — e por sua rno mundo. Ele ilustra a tese central deste capitulo, de que a liber- vyeio para 0 Ocidente séculos antes do surgimento da democracia, iberdade levou & democracia e nao o inverso. Ele ilustra, também, paradoxo que subjaz ao exposto: quaisquer que sejam as suas cau- estruturais, a liberdade nasceu no Ocidente de uma série de refre- pelo poder. As consequéncias dessas lutas —entre a Igreja © 0 , entre os senhores e o rei, entre protestantes € catdlicos, entre mundo dos negécios ¢ o Estado — influenciaram, profundamente, a social no Ocidente, introduzindo pressdes gigantescas para maio- liberdades individuais, particularmente em Inglaterra e, por exten- nos Estados Unidos Poderé contestar-se esta énfase na Igreja Catélica, apontando, de veemente, para a Grécia Antiga como o bergo da liberdade. se-4 na famosa orago fiinebre de Péricles, pronunciada em 1a. C,, dando uma visio da Atenas desses tempos, apaixonadamente icada a liberdade, 4 democracia ¢ 4 igualdade. Durante parte signi- ficativa do século xix, 0s programas das universidades britdnicas € ‘alemas assumiram que a mais proeminente expresso da civilizagio humana ocorreu nas cidades-estado da Grécia, & volta do séeulo v a. C. ‘(0 estudo da Grécia e Roma Antigas nas Universidades de Oxford Cambridge continua ainda a ser designado por «As grandes»). Mas a obsessio vitoriana com a Grécia era, em parte, fantasista. A Grécia Antiga foi uma cultura extraordinéria, fértil em obras filosoficas, cién- cia e literatura, Foi o bergo da democracia e de algumas das ideias a ela associadas, mas importa lembrar que estas nao foram praticadas Seno por um pequeno nimero de cidades-estado, por um maximo de em anos e acabariam com a conquista macedénica de Atenas, em 338 a. C. Um milénio depois, a experiéncia grega tornou-se uma inspi- Fagdio para os democratas, mas no intervalo nao teve qualquer influén- cia tangivel e institucional na politica da Europa. Ainda relevante para este argumento, a Grécia no foi o lugar onde nasceu a liberdade, como a compreendemos hoje em dia. A liberdade, ‘no mundo moderno, é primeiro e antes de tudo a liberdade do indivi- duo face ao arbitrio da autoridade, o que significou para grande parte da historia, face ao poder brutal do Estado. Essa liberdade implica alguns direitos humanos fundamentais: a liberdade de expressao, de 30 0 FUTURO DA LIBERDADE associagao, de religiio ¢ 0 direito a um julgamento justo. Mas a liber- dade antiga, como sublinhou o filésofo do Iluminismo, Benjamin Constant, era uma coisa diferente: que todos (na verdade, cada homem adulto) tinham o direito de participar no governo da comunidade. Em geral, todos os cidadaos participavam no poder legislativo ou, se isso fosse impraticavel, os legisladores eram escolhidos por sorteio, tal como 08 jiiris americanos, hoje em dia. As assembleias populares da Grécia Antiga tinham poderes ilimitados. Os direitos individuais nao eram, nem sagrados em teoria, nem garantidos na pratica. A democracia grega significa, normalmente, nas palavras de Benjamin Constant, «a sujei- ‘Gio do individuo a autoridade da comunidade»?, Lembremos que no século 1v a. C. em Atenas, onde era considerado a democracia grega ter encontrado a sua expressio mais pura, uma assembleia popular — por voto democratico — condenou & morte 0 maior fildsofo do seu tempo, em razio dos seus ensinamentos. A execugdo de Sécrates foi democra- tica, mas nao foi liberal. Se as raizes gregas da liberdade ocidental so, muitas vezes, exces- sivamente enfatizadas, as raizes romanas sao negligenciadas. Quando Herddoto escreveu que os gregos eram um «povo livre», ele quis dizer que eles no eram escravos dominados ou ocupados por estrangei- ros — uma situago que designariamos hoje por «independéncia nacio- nal» ou «autodeterminagao», (Aplicando esta definigo, os Norte-Corea- nos S40, hoje, um povo livre.) Os Romanos sublinharam um outro tipo de liberdade: todos os cidadiios so tratados de forma equitativa pe- rante a lei. Esta concep¢ao da liberdade esta mais préxima da concep- g4o ocidental contemporanea e a palavra latina que a qualifica, liber- tas, € a raiz da nossa, Enquanto a Grécia deu a0 mundo a filosofia, 4 literatura, a poesia e a arte, Roma deu-nos os pressupostos do go- verno limitado ¢ o Estado de direito. A Republica Romana, com a sua divisdo ternéria de poderes, a eleigao de responsaveis oficiais por um tempo limitado e a énfase na igualdade perante a lei subsistiu como modelo para os governos que a seguiram, designadamente na funda- ¢80 da Republica Americana, Até hoje, os conceitos ¢ termos politicos usados pelos romanos persistem no mundo ocidental: senado, repi- blica, constituigao, prefeitura. O direito ocidental esta tao marcado Pela heranga de Roma que até ao inicio do século xx os advogados tinkam de ser fluentes em latim. A maior Parte das leis ocidentais sobre contratos, propriedade, compra e venda, responsabilidade, difamacao, Sucessdes ¢ patriménio, bem como os procedimentos relativos a fixa- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA. 3 ‘so da prova sdo variagSes do acquis romano. Para Herbert Asquith, © historiador amador mais dotado que foi Primeiro-Ministro da Gra-Bretanha, 0 mais notavel legado de Roma para a posteridade foi © de ter «fundado, desenvolvido e sistematizado a jurisprudéncia do mundo» © ponto mais fragil do direito romano residia que, na pratica, nao se aplicava a classe dirigente, nomeadamente 4 medida que a Repiblica degenerou em monarquia, por volta do século 1 a. C. Imperadores como Nero, Vitélio ¢ Galba, sentenciaram rotineiramente @ morte pessoas sem qualquer julgamento prévio, pilhavam casas particulares ¢ templos e violavam e matavam os seus sibditos. Recorde-se que Caligula fez nomear senador 0 seu cavalo, um acto que seguramente violaria as regras implicitas, sendo explicitas, do Senado, entéo uma instituicio augustiniana. As tradigdes da lei que foram cuidadosamente construidas, durante 0 periodo republicano de Roma, desabaram com a decadéncia do Império. A ligdo da queda de Roma é que, para que 0 Estado de direito subsista, sao precisas mais que boas intengdes dos governantes, porque elas so vacilantes (tanto as intengdes quanto os governantes). Sao necessarias instituigdes dentro da sociedade que retirem a sua forga de uma fonte de poder independente do Estado. O Ocidente encontrou tal contrapoder na Igreja Catélica O paradoxo do catolicismo O legado mais concreto de Roma foi a Igreja Catélica Romana, em que 0 filésofo inglés Thomas Hobbes viu «o fantasma do defunto Impé- rio Romano troante, coroado sobre a sua tumbay*, A cultura de Roma tornou-se a cultura do Catolicismo. A Igreja transmitia um nimero incalculavel de tradigdes e ideias — ¢ naturalmente o latim que facul- tou as elites de toda a Europa uma lingua comum e possibilitow a consciéncia de pertenca a uma mesma comunidade. Até aos nossos dias, as ideias ¢ estrutura da Igreja Catolica —o seu universalismo, a sua hierarquia e as suas leis — guardam uma notavel semethanga com as do Império Romano, A Igreja Catélica pode parecer um ponto estranho para comegar a nossa historia da liberdade. Como instituigdo, ela nao significa a liber- dade de pensamento ou, até muito recentemente, a pluralidade das crengas. De facto, durante a Idade Média, & medida que ela cresceu em 2 0 FUTURO DA LIBERDADE poder, tornou-se, crescentemente, intolerante ¢ opressiva, exigindo uma submissio inquestiondvel aos seus dogmas ¢ usando os meios mais cruéis para esmagar os seus dissidentes — daf a Inquisigao espanhola. Até aos nossos dias, a sua estrutura manteve-se rigida ¢ autocratica. A Igreja nunca se viu a si propria como um paladino da liberdade individual. Desde 0 comego opés-se tenazmente ao poder do Estado e, ‘com isso, limitou o poder do Principe. Controlou actos sociais funda- mentais como 0 nascimento, o casamento ¢ os sacramentos da morte. Os clérigos e as propriedades da Igreja no se encontravam sujeitos a impostos — dificilmente uma questo menor, j4 que, no seu apogeu, a Igreja era proprietaria de um terco da superficie da Europa. A Igreja Cat6lica foi a primeira grande instituicgao independente da historia a desafiar o poder temporal. E ao fazé-lo, ela abalou o edificio do poder do Estado e foi nas suas falhas e esconderijos que se comegou a desen- volver a liberdade individual. As lutas entre a Igreja e 0 Estado comegaram apenas cinquenta anos depois de Constantino ter transferido a capital do Império. Um dos sucessores de Constantino, o imperador Teodésio, numa disputa suja com os Tessalénicos, uma tribo grega, convidou toda a tribo para Milio—e orquestrou a chacina sangrenta dos seus convidados: homens, mulheres ¢ criangas. O arcebispo de Mildo, um prelado pie- doso chamado Ambrésio, recusou-se publicamente a dar ao imperador a Santa Comunhao. Teodésio protestou, alegando um precedente biblico em sua defesa, Ele era culpado de homicidio — contrapés — mas nao foi um dos reis-herdis da Biblia, David, culpado nao sé de homicidio, mas de adultérie? Como lembra 0 historiador inglés Edward Gibbon, numa passagem célebre, o bispo mostrou-se inflexivel: «Tu imitaste David no crime, imita-o agora na peniténcia’.» Para surpresa de todos, durante os oito meses seguintes, o imperador, o homem mais poderoso do mundo de entio, vestido como um mendigo (como David o fez, na passagem biblica) manteve-se 4 porta da catedral de Milo, pedindo o perdio do arcebispo. A medida que no Oriente 0 Império Romano se afundava, cres- ciam a autoridade e a independéncia do bispo de Roma. Tomou-se 0 primeiro de entre os principes da Igreja, a chamar-se «ll Papa», o Santo Padre. Em 800, 0 Papa Ledo foi forgado a coroar o chefe franco Carlos Magno, como imperador romano. Mas ao fazé-lo, Ledo ini- ciou a tradigao da «investidura», através da qual a Igreja deveria consagrar 0 novo rei e, assim, conferir legitimidade ao seu reinado. UMA BREVE HISTORIA DA LIBEROADE HUMANA, 3 No século xit, 0 poder do Papa tinha-se reforgado e ele tornara-se um gctor-chave no complexo tabuleiro politico europeu. O papado tinha poder, legitimidade, riqueza ¢ até um exército. Ganharia, entretanto, tuma outra batalha simbélica contra o Santo Império, na pessoa de Hen- rique IV, quando este, em 1077, desafiou — sem sucesso — 0 mono- polio do poder de investidura do Papa Gregorio VII. Tendo perdido a batalha, Henrique IV foi forgado — segundo reza a lenda — a fazer peniténcia em Canossa, descalgo sobre a neve, pedindo 0 perdio do Santo Padre. Seja ou nio verdadeira a lenda, no século xi, 0 Papa tinha-se tornado, claramente, em poder € em pompa, um concorrente de todos os reis da Europa ¢ 0 Vaticano rival das suas mais sumptuosas cortes. A geografia da liberdade ‘A Igreja ganhou poder no Ocidente por uma simples razio: depois do declinio do Império Romano, nunca mais se veria obrigada a afron- tar um imperador europeu, Ao contrario, a Igreja Catélica soube jogar um principe contra outro, tornando-se na época o mais importante voto flutuante» nas lutas pelo poder. Se um monarca tivesse emergido € submetido 0 continente a0 seu mando, ele teria esmagado a indepen- déncia da Igreja, transformando-a num servidor do poder do Estado. Foi 0 que aconteceu com a Igreja Ortodoxa grega e, mais tarde, com a Igreja Ortodoxa russa (e, no que releva, na maior parte das religides do mundo). Mas nenhum soberano jamais conquistaria toda a Europa ou, pelo menos, grande parte dela. Ao longo do milénio, unicamente alguns o tentariam — Carlos Magno, Carlos V, Napoledo, 0 Kaiser Guilherme e Hitler. Todos foram contrariados e, a maior parte, bem depressa. © que explica isto? Provavelmente, montanhas e ris. A Europa € dividida por uma rede de barreiras naturais, alternando vales flu- Viais e cadeias montanhosas. Os seus rios correm para baias abriga- das e navegaveis, ao longo da extensa e recortada costa mediterra- nica — permitindo que pequenas regides possam subsistir e, na verdade, Prosperar por si préprias. Por isso, a longa historia da Europa € a historia de muitos paises independentes. Eles eram dificeis de con- quistar, féceis de cultivar e os seus rios e mares propiciavam rotas comerciais naturais. A Asia, a0 contrario, compde-se de grandes exter ISTORIA OA LIBERDADE HUMANA 38 M © FUTURO DA LIBERDADE Breve 4 yam os seus dominios desenvolviam Lagos eras 8s sstpes da Rissa, as panies sda China — a ie yocas egies devas fora ann sem difficuldades. Sem aie assalos. Esta tornou-se a caracteistica distntiva ttalizados*. as, durante séculos, por impérios g Meropes, isto é, a criagho de uma classe de grandes ‘A topografia da Europa tomou possivel a Hema, independentes. Da Idade Média até ao século QE tenia ivaridvel — cidedes-eondo, ducsdoa i a europeus continuaram criaturas distantes que exer fiopérios. Em 1500, a Europa tinha mais do 300 eoteeiee cece Mo mais tebrico que real sobre os seus paises. O Rei de no’maiores que uma cidade, Esta variedad: ae muitos emplo, era considerado um mero duque na Britania Tiiidenies..Primciz. favorecen am cor dvi, al sua autoridade sobre esta provincia fot limitada Esbidcioe ae c meuno texologias que nlo thes too il Gg monarcas queriam agi — iniciar uma guerra ou reconhecidlas numa regito, poderiam desenvolverr ne n bem-vin aifinham de pedir um empréstimo e negociar tropas versidade favoreceu um dexenvolvert-se noutra, Seg s locals, que se tornavam, em troca, condes, viscondes Gizindo inovacdo ¢ eficiéncia ne orsanizayte pratne, tos til e organizagao Ppolitica, né é¢ oe na economia politica, Praticas bem a. — opi Zi essos falhados eram postos de lado. O « espectacular sucess que a elite fundidria europeia se transformou em aristo- Indo poder, dinheiro ¢ legitimidade — 0 oposto dos fe complacentes de outras partes do mundo. Esta rela- senhores ¢ 0 rei teve um impacto pro- econémi itico da Europa cha an ae mort — 0 aus o kistorisindor cooncraagy iguais entre os da sua geografia singular’, pode bemn ter sido o resulta iho da liberdade. Como escreveu Guido de Ruggiero, oriador do liberalismo, «sem a efectiva resisténcia de do sengo um g privilegiadas, a monarquia no teria cria vos». De facto, foi isso que fizeram os autocratas no do, Na Europa, a0 contrario, & medida que a Idade Média aristocracia exigia que os seus soberanos Ihe garantissem ¥ que mesmo a Coroa nao podia violar, Para dar expres @ as suas exigéncias, cla estabeleceu corpos represen- fentos, estados gerais, dietas. Nestas negociagdes ou fievais residem as fundagées do que hoje designamos pelo ircitoy, Assentes sobre as tradigdes romanas, estes direitos ntidos confirmados pelo poder da nobreza. Tal como o fa Igreja e 0 Estado, 0 conflito entre a aristocracia © & €.a segunda grande luta pelo poder da historia da Europa, fa dar, outra vez involuntariamente, a matéria-prima & Senhores ¢ reis Ayicografia a histori ae tt : —_ A eae combinaram-se para ajajudar a definir 2@ Brit gerrutnions care A Guede do Tmpério Ratomano © 0 Sil tie daspoder cescort a a omuainim en no. conti Bice, adininiectin etna. Nenbum sobegerano tinha SE Porstian aratva de goverar um espago tio a extenso © onal a. China ion ahh eepencentaies. Em con eedatee do Impdein Or se Manshis, % 2 india dong $ o ultios do Impkso Otomano conrolaram vasisasextensies de iferentes. Mas na Europa, os seisenhores feudais & geracia inglesa era a mais independente da Europa. Os senho- mas suas propriedades, governando e protegendo os seus troca cobravam impostos que os tornavam ricos ¢ pode- +A Aivica € fortunads wal peter de € particutarmente desafort i a agate rm tunada na sua geowrafa.fia, Apesar de ser 0 $¢ pact continente do mundo tem a mais curta linha de costa, a my maior parte da qual € efinds pr pasiiarepear proxi om, Ht a sho ravers, pr ato pic prof sen aos, 0 Spi, ns st to 8 por ripidos ¢ quads 7 ; reac Lipidos © quedas de gua (uma paisagem dramitica convonvida a um comer Se a sua posigio, no através de elaborados rituais da Corte, parte na vida politica e no governo, a todos os niveis* 80, neste caso). Acressa-s calor tropical © as doengas gas que o acompanha ee © isto 0 calor tropical © a eo ielatera, que consolida : pical € as doengs “6 uma triste exlicagio esrutual para subdesenvolvimento dis de Atficn, (0 . dio de Africa. (N. do A : a oak 36 0 FUTURO DA LIBERDADE correspondentes no continente, compreenderam que a sua forGa Tkepoy. sava no entendimento com a aristocracia — ou pelo menos com, yma parte dela. Quando os monarcas abusavam da sua sorte, proVoc‘ayam uma reacgiio fortissima da parte dos bardes. Henrique I, coroadig rei em 1154, estendeu 0 seu dominio a todo o pais, mandou juizes a lhocais recénditos para fazer cumprir os decretos reais. Procurou unifiicar o pais e criar uma lei comum, imperial. Para isso, era-lhe indispenjssye| despojar a aristocracia dos poderes e privilégios especiais. O Seu Iplano funcionou, até um certo ponto. Depressa a nobreza se sublevioy ¢ depois de quarenta anos de guerra, o seu filho, 0 Rei Joao, foi fOtreado a assinar, em 1215, uma trégua, num campo proximo do Castelys ge Windsor. Esse documento, a Magna Carta, era considerado, a0 tempo, uma carta de prerrogativas dos senhores ¢ bardes, onde se contitnhan 1s privilégios feudais. Continha disposigdes garantindo a liberdacje qe organizagao da Igreja e conferindo autonomia as cidades. Totmava posi¢ao (em termos Vagos) contra a opressio de todos os sibditays go fei, fossem eles quem fossem. Com o tempo, o documento foi intesrnre. tado de uma forma mais audaciosa pelos juizes ingleses, transfortynan do-se numa quase constituigao, protegendo certos direitos individjyaig Mas, mesmo no seu tempo, a Magna Carta era importante, tepre. sentando a primeira limitagdo escrita & autoridade real na Eutyong Enquanto tal, como escreve o historiador Paul Johnson: «Ela & jys. tamente classificada como a primeira das constituigdes inglesa;,’ go reino*, de onde se pode dizer que emanam as liberdades inglesias ¢ naturalmente, as americanas?» " Roma contra a reforma Depois da Igreja contra 0 Estado e do Rei contra os senhoress 4 grande luta pelo poder foi entre catdlicos ¢ protestantes, que setyig a mais longa e a mais sangrenta, tendo, uma vez mais, consequénycias acidentais, mas revolucionarias, no curso da liberdade. O seu instigegqor inesperado foi um devoto monge alemao que vivia numa pequyena recéndita cidade, chamada Wittenberg. No principio do século x\y,_¢ grassava por toda a Europa grande insatisfagdo contra um papado eXtre. mamente poderoso e corrupto. A pratica mais escandalosa de Roma, ra, * A colecgio de les inglesas que constituem a sua «Constituigio nio-eseritan. (Ndi, 4) UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA ” Comércio generalizado das indulgéncias: certificados papais absol- lo os scus compradores dos pecados, mesmo os que ainda nao sido cometidos. As somas recolhidas financiavam a grandio- je sem fim da Igreja, a qual mesmo pelos padres reluzentes do 10 era surpreendente. O seu projecto mais recente era a maior ¢ grandiosa catedral alguma vez construida — a Igreja de S. Pedro, “Roma. Mesmo hoje, quando erramos no Vaticano pelos acres de , maravilhados com os dourados, as jéias, as tapegarias © 05 s, de parede para parede, de tecto para tecto, é facil imaginar a piedosa de Martinho Lutero. - Winha havido apelos 4 reforma da Igreja antes de Lutero — Erasmo, + exemplo, pedira uma forma de culto mais simples, despojado de NWios — mas ninguém havia desafiado, frontalmente, a autoridade da ja. Lutero fé-lo-ia, em noventa e cinco teses, rigorosamente argu- 8, que pregou na porta do Castelo de Wittenberg, na manha de {de Outubro de 1517. Lutero poderia ter razio nos seus pontos de mas teve, também, sorte. A sua heresia surgiu num momento 10 na hist6ria da tecnologia. Ao tempo em que a Igreja Catélica iu e respondeu ao seu desafio, proibindo, peremptoriamente, a iso das suas ideias, as novas méquinas de impressio j4 haviam circular, por toda a Europa, o documento de Lutero, A Reforma ira. Cento e cinquenta anos mais tarde, apés intimeros banhos Sangue, quase metade da Europa era protestante, 3¢ Martinho Lutero visse o protestantismo de hoje, com a sua fina acomodaticia que exige pouco e tolera muito, ficaria, pro- -Yavelmente, horrorizado. Lutero nfo era um liberal. Pelo contratio, tinhia acusado 0 Vaticano de ser demasiado laxista na sua relagio Com a fé. Em muitos aspectos, foi o que chamariamos hoje um fundamentalista, reclamando-se de uma interpretagao muito literal da Biblia. As criticas de Lutero ao papado fazem lembrar as que so feitas, hoje, pelos fundamentalistas islimicos aos regimes corrupts © Sumptuarios do Médio Oriente que se afastaram da verdadeira via da f€ © da piedade. Lutero atacava 0 Papa pelo lado conservador do €SPectro teoldgico. De facto, alguem disse que choque entre cato- licismo e protestamtismo ilustra a velha maxima que a liberdade reli- Biosa é © produto de dois fanatismos igualmente perniciosos, anu- -s¢ um ao outro. _ A maior parte das seitas que surgiram na sequéncia da Reforma foram ainda mais muritanac ane a T a 38 0 FUTURO DA LIBERDADE entre elas, 0 Calvinismo* professa uma doutrina particularmente austera, pregando a completa privagao do homem de tudo o que seja supérfluo © que existem poucas hipéteses de salvago das almas, salvo para uma pequena minoria de fidis, eleitos antecipadamente por Deus. Mas as diversas scitas protestantes convergiram em rejeitar a autoridade do Papa e, consequentemente, toda a hicrarquia religiosa. Participa- fam num combate comum contra a autoridade e, embora o ignorassem ‘na época, constituem uma parte importante na histéria mais geral da liberdade**, Apesar destas querelas, estas pequenas seitas protestantes do Norte da Europa ofereciam a possibilidade de um caminho individual para a verdade, despojado da intermediagio dos clérigos. O papel que atri- bufam a um eventual clero reduzia-se & de representantes eleitos por uma congregacdo que se autogovernava, Tratando-se, muitas vezes, de facgdes minoritarias dentro de comunidades mais alargadas, elas luta- ram pelo direito de todas as minorias 4 sua crenga e a praticarem a fé como o entendessem. No conjunto, abriram espago para a liberdade religiosa no mundo ocidental. Ajudaram a moldar as ideias modernas no $6 no que respeita a liberdade de conscigncia e de expresso mas, também, quanto a liberdade de investigago cientifica, quanto aos tex- tos religiosos como a Biblia, e ainda em relagio a todas as doutrinas legadas pela tradigéo. E é bem no processo constante de desafio A autoridade ¢ de contestagdo aos dogmas vigentes que a ciéncia avanga. ‘Nesse sentido, a ciéncia moderna tem uma divida invulgar em relagdo 98 fandticos religiosos do século xvi. O mais imediato efeito politico do protestantismo foi dar aos reis © aos principes uma justificagdo para conquistar poder ao cada vez mais arrogante Vaticano — projecto que alimentavam ha algum tempo. © primeiro grande assalto teve lugar nio em defesa das ideias do * Os trés pilares do ealvinismo slo a supremacia da palavra de Deus, exposta na Biblia, «8 exaltasio da fé ¢ a predestinacio. Esta ditima ensina que Deus eseolhe antecipadamente 8 que serio salvos, isto 6, 08 eleitos. (N. do T.) Quando se visita a cidade de Genebra que foi durante muito tempo considerada 0 bergo do Protestantismo, descobre-se no seu maior parque publico um memorial & Reforma, Construido em 1909, é uma grande parede com esculturas e baixos-relevos que celebram 8 sua heranga espiritual. Honra todos os «Founding Fathers» do movimento, noutros tem- Pos inimigos encamicados como Lutero ¢ Calvino, ¢ também Olivier Cromwell e os puti= ‘anos americanos. E normalmente esquecido que muitas destas congregagdes combateram. se umas as outras. O que no deveria ter acontecido. (N do 4.) UMA BREVE 1ISTORIA DA LIBERDADE HUMANA 39 razio muito menos exaltante: um mo- Se scopcodo dears v um herdeiro. Henrique VIII de lesa iu a0 Papa Clemente VII que anulasse 0 seu casamento com Catarina ‘Aragiio porque ela nav fora capaz de Ihe dar um herdeiro a0 cay por falta de tentatitas: em oito anos, tinha dado & luz uma a co criangas que havam morrido em tenra idade e tivera dois .) O Papa recusoi seine Ve ean es ican, ja de Inglat Bee Rowe nat ibn ma de ordem doutrinal. Na verdade, cle defendido o Papa zontra Lutero, num documento que Ihe havia Jo 0 titulo de «Definsor da Fé, titulo que os seus sucessores, hamente ainda usm, A recém-independente Tareja Anglicans doutrinalmente catélea, excepto mam pormenor que era a quest — do desa’io de Lutero, a ruptura inglesa foi a primeira uma série de revolts religiosas © de guerras contra o Vaticano wolvendo, virtualment, to40s os estados da Europa e que duraram de 150 anos. As gweiras que sucedem & Reforma no terminariam Wo em 1648. A Paz de Vestefilia, como foi chamada, pos fim & dos Trinta Anos entre 0s alemies ¢ devolveu a César 0 gue era César, mais uma bos parte do que era habitualmente suet (isto é na ocorréncia, © Papa)*. Ressuscitou Sulina lisse cuius regio eius religo (tal a religido do principe, tal a Sanaa ie Jo) — segundo a qual 0s principes podem abravar a fda sua ha, © que legitima, na verdade, a tolerincia religiosa e as migra: 3s por motivo confessional. Mesmo se em 1648 a separagio entre @ ja ¢ 0 Estado néo ¢ ainda uma reatidade, a data simboliza ome ‘mudanga decisiva na historia ocidental. A Paz de Wes eed Para o limbo a ideia de que @ Europa era uma grande comunidads ‘eristi. — «a Cristandade» — governada espiritalmente pl ei Catdlica , no plano temporal, pelo Imperador do Sacro Império**. © futuro pertenceria ao Estado. * Para uma andlise histérica bem circunstanciada sobre a Paz de See as ie Bades Europa eto ver Pal Kee, sce Queda dos Grandes Poéncian, Fabris Eee Ae i emt exist hj os 2 Uni Nio ha; sono, sqtvatnte nugatmano A igreja Catia ou 20 Papa (ver capitulo 1). do a 0 FUTURO DA LIBERDSDE O Estado iluminado No século xvul, 0 desafio efectivo ao poder dos principes veio nio da religiio mas das autoridades locais: os principes, duques, bardes € condes. Mas ao longo deste século o principe venceria os seus rivais. Reforgaria a sua corte, criaria um governo centralizado —um Estado — que enfraqueceria os seus rivais locais. O Estado triunfaria por diversas razSes: mudangas tecnoldgicas, elevagdo da competigao militar, despertar do nacionalismo exacerbado ¢ capaci- dade de centralizar a colecta de impostos. Uma consequéncia merece, todavia, ser posta em destaque. O reforgo do Estado nfo foi bom para a liberdade. A medida que 0 seu poder cresceu, os soberanos encerraram a maior parte dos parlamentos, estados-gerais, assembleias © dietas medievais. Quando na Primavera de 1789 — na véspera da Revolugdo — foram convocados os Estados-Gerais em Franga, esta foi a sua primeira reunido em 175 anos! Os novos soberanos trata- ram, também, de abolir o sistema de privilégios aristocraticos, as tradigées regionais ¢ a proteccdo das corporagdes em beneficio de uma lei uniforme administrada pelo monarca. Uma excepgdo impor- tante a esta evolugdo foi a do Parlamento britfnico, que ganharia, aliis, a sua batalha contra a monarquia, depois da Revolugdo Gloriosa de 1688", Nao obstante os factos, 0 enfraquecimento da aristocracia pode parecer uma vitéria da igualdade perante a lei e ao tempo foi apre- sentada como tal. No século xvi, 4 medida que as ideias do Ilumi- nisno se espraiavam, filésofos como Voltaire e Diderot especula- vam acerca da «racionalizagdio» e da «modernizagdion do governo. Na pritica estas ideias significaram mais poder para © governo central © a estripagio da autoridade local e regional. «O absolutismo ilumi- nado», como seria mais tarde chamado, tinha alguns elementos rogressistas. Soberanos como Frederico Il da Prissia, Catarina II da Russia ou José II da Austria toleraram as dissidéncias religiosas, promulgaram disposigdes liberais e revelaram-se mecenas generosos em relagio a artistas, musicos e escritores (0 que explica, em parte, a sua aura nas gazetas da época). Mas este crescimento do poder cen- tral enfraqueceu 0 unicos grupos sociais capazes de contrabalan- garem a autoridade e 0 arbitrio real. A liberdade dependia, entdo, das vistas largas do soberano. Quando submetidos a uma pressio inte- rior ou exterior, mesmo os soberanos mais benignos —e os seus ja UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA a benignos sucessores — acabaram por renegar as suas ideias erais ¢ esmagar as oposigdes. No fim do século xvi, com guer- , revolugdes e rebelides internas a perturbarem a tranquilidade da .pa, 0 absolutismo iluminado tornou-se mais absolutista que ilu- lo. Em Franga a monarquia atingiu 0 seu apogeu com Luis XIV. feudalismo em Franga tinha sido sempre diferente do de Ingla- . Entalado entre vizinhos hostis, 0 pais vivia em situagao de mobi- Jo permanente para a guerra, 0 que tinha colocado a necessidade ‘um governo forte. (Dos cinquenta e quatro anos do reinado de iis XIV, trinta foram dedicados a guerra.) A monarquia explorava realidade geopolitica esforgando-se por manter os nobres longe ‘sua base de poder, que eram as suas terras. Prosseguindo a bri- te estratégia estabelecida pelo Cardeal Richelieu, Luis XIV afastou nobres das administragdes regionais e no seu lugar colocou fun- jiondrios seus. Ao mesmo tempo retirou poderes aos conselhos ¢ as bleias regionais. Luis XIV foi chamado o «Rei Sob» nao por a dos seus faustosos paldcios, como muitas vezes € percebido, pela sua posigo predominante no pais. Ele eclipsava todas as itras forcas. Impés a aristocracia que residisse permanentemente Paris, seduzindo-a com a Corte mais resplandecente da Europa. seu verdadeiro propésito era enfraquecé-la, As lendérias extrava- ‘Bincias da monarquia francesa — os jogos incessantes, os bailes, as ‘eagadas ¢ rituais da Corte, as maravilhas de Versalhes — tudo isso era, 20 fim e a0 cabo, um ardil politico para encerrar a nobreza numa ‘gaiola dourada, Por detrés das sedas sumptuosas e das perucas de penas, a aristocracia francesa tinha ficado sem poder e completamente dependente"’ ‘A Revolugdio Francesa (1789) trouxe muitas mudangas ao pais, mas No a estas tendéncias centripetas. Na verdade, ela centralizaria ainda mais o pais. Diferentemente da Revolugao Gloriosa inglesa (1688) que teforgou a aristocracia fundidria, a Revolucio Francesa destruiu-a. Debilitaria também a autoridade da Igreja Catdlica e enfraqueceria os obres locais, 0 clero e a finanga. Como observou o grande académico € politico do século x1x, Lorde Acton, a Revolugdo nao era sé contra um poder central, que pretenderia limitar, mas também contra a de todos os outros poderes que se pusessem a sua frente e que ela erradicou. Os franceses, observou Acton, tomaram por empréstimo dos america- NOs «a sua teoria da revOlucdo nao a ena tenria da anverns - 2 0 FUTURO DA LIBERDADE modo de cortar mas no o de coser». A soberania popular herdou toda a gloria do poder ilimitado da soberania mondrquica. «O Povo» era supremo e proclamou como sua finalidade: liberté, égalité et fraternité, Dependente noutro tempo da generosidade real, a liberdade dependia agora dos caprichos dos «cidadaos» e mais ainda dos que os represen. tavam, os chefes da Revolucio. Mas hé um outro modelo da liberdade e foi um francés que o vis- lumbrou, Montesquieu — aliés Charles-Louis de Secondat, bario de La Bréde © de Montesquieu — como muitos iluministas liberais do século xvitt admirava a Inglaterra pelo seu sistema de governo, Montes- quieu iria ainda mais longe, identificando 0 génio do sistema inglés — que prosseguia a liberdade na pritica, mais do que a proclamava em teoria. O exercicio do governo estava repartido entre 0 Rei, a aristo- cracia (a Camara dos Lordes) ¢ os comuns (a Camara dos Comuns), nenhum destes poderes podendo ganhar vantagem sobre os demais. Esta «separagdo de poderes» garantia que as liberdades civis seriam Fespeitadas e as diferengas religiosas toleradas. Montesquieu nao tinha uma f€ cega nos mecanismos do governo € nas constituigées como o mostra o seu trabalho maior que se chama, de forma significativa, o Espirito das Leis*. Na verdade, ao longo dos séculos, os poderes da Coroa inglesa tinham sido tio reduzidos que nos fins do século xix a Gra-Bre- tanha era uma monarquia no espirito, tendo-se transformado numa repblica aristocrética governada pela sua elite fundiéria. A inter- Pretagio lisonjeira de Montesquieu influenciou os préprios ingleses. O seu mais notavel jurista dessa época, William Blackstone, usou as ideias de Montesquieu para escrever os seus comentarios sobre a lei inglesa. O filésofo politico Judith Shklar néo deixou de sublinhar que na época da fundacdo da Repiiblica Americana «Montesquieu ra um ordculo», James Madison, Thomas Jefferson, John Adams e Outros procuraram, conscientemente, seguir os seus principios ao criarem 0 novo sistema politico. Eles citaram-no muitas vezes, mais do que a qualquer outro autor modemo (s6 a Biblia se Ihe sobrepés), Tio difundida era a atraccéo que exercia, lembra Shklar, que «quer os ue apoiavam a nova Constituigio, quer os que se Ihe opunham invo- cavam, sistematicamente, Montesquieu para esgrimitem os seus argu- ‘mentosy'?, ‘* Montesquieu, O Espirito das Lis, Editora Martins Fontes, 8. Paulo, 1997. (N de T) 1 F qui Mato, a produgio manufactureira € 08 servigos. Por 4 UMA BREVE HISTORIA OA LIBEROADE HUMANA a ‘éncias do capitalismo © xvi, a singular cultura politica da Gr Bretannaglil com uma outra evolusao devisiva: o capitalismo*. Se as a Igrcja ¢ 0 Estado, nobres ¢ reis, cablicos e protestane as brechas através das quais se insinuou & is rade dl 0 capitalismo fez ruir os restos da muralha. Nada ofa modemo de uma manest® mai poss sat como ele o fez, os milenares cial e politica. Ao longo dos séculos destruiu 0 faite, quismo com a sua referéncia rigida aos lagos seo 8 ento. Criou uma classe de empresirios — = + a m pouco 20 Estado ¢ que so hoje a forca dominante si Looks jedades avancadas do mundo. Fez da mudanga e do dinanistte is do que da ordem ou da tradigio — a filosofia dircarz 08 et a. O capitalismo eriou wm mundo novo muito difessite oo stiu até ai. E foi em Inglaterra que ele langou as su o firme. a O capitalismo comegou, contualo, noutro lugar, sob foes msis.g os embriondrias, No século XW, as trocas € 9 cemént MT al, congelados durante qurase toda a Wade MEtie, Buren” vez, em virios pontos da Evsrops. Uma revolugio nas 'ecnotasils olas produzia excessos de cereais que tinham de ser ou venus Oe trocados. Cidades mercantis € portuérias — Anmérpi, ETN’ meza e Génova — tomaram-se- polos da actividade snsmics. Co duco da dupla contabilidacde, dos numerais ral noe dos bancos, @ produgdo da smoeda deixou de ser ume ree dores para se tomar num megécio em larga escala, DEPTS Senvolvimento comercial se e=spalhou das cidades pomudnis aS © interior, nomeadamente nos Peaises Baixos e, mais tardt, eh TET emma, penettando nos diversas secstores da economia: agriculie™, Set 0 esté ainda em 4? A questo ett sinde em talismo se desenvolveu com estass actividades = gmicos con debate, mas a maior parte dios hiastoriadores econdmico: on. Us0- * Muitos livros tratam das diversas efinies de ecapitalismo>. soo mi CS ito basieo que coincide com a maior poate das defines dow dicionrion, ETN o Oxford Paperback Encyclopedia (10988): «Um sistema de organisa Sone a Seado na competi do mereado sab o » seal os meios ge Prog Hifocas s3o detidas ¢ dirigidas por imdividwuos ¢ sociedades...» “4 0 FUTURO DA LIBERDADE a existéncia de um Estado competente que protegia a actividade privada pode ter sido um factor importante nesta evolugao. Douglas North e Robert Thomas, dois dos mais eminentes especialistas na matéria afir~ mam que se o capitalismo triunfou isso «foi fundamentalmente devido ao tipo de direitos de propriedade assim criados»”, Pelo século xvi desenvolvia-se um consenso na Europa para sustentar que «a proprie- dade pertence 4 familia, a soberania ao principe ¢ aos seus magis- trados». Segundo um jurista espanhol do século xv «ao Rei é con- fiada, exclusivamente, a administragao do reino e aio 0 dominio sobre as coisas". Mas s6 a Inglaterra, contudo, iré a0 ponto de exe- cutar um rei (Carlos 1) por ter, entre outras coisas, langado impostos arbitrarios. A protecgio sistemitica dos direitos de propriedade transformou as sociedades e torna possivel a supressio da complexa teia de cos tumes ¢ privilégios feudais que constituiam obsticulos a0 funciona- mento eficaz da propriedade. A elite fundidria inglesa jogou um papel destacado na modernizagiio da agricultura. Através da generalizagio do sistema dos cereados, da afirmago brutal dos seus direitos sobre as Pastagens ¢ os terrenos baldios das suas propriedades, os aristocratas forgaram os camponeses ¢ agricultores que ai viviam a um trabalho mais qualificado ¢ produtivo. O comércio extremamente rentavel da 1a levaria & especializagio na exploragao dos ovinos. Ao adaptar-se 4 revolugao capitalista em curso, a aristocracia fundidria inglesa garantiu © seu poder e contribuiu, ao mesmo tempo, para a modemizagio da sociedade. A aristocracia francesa, pelo contrério, compunha-se de proprietarios de terra absentistas que pouco faziam para as tornar mais produtivas ¢, na verdade, continuavam a extorquir pesadas rendas aos seus rendeiros. Tal como muitos aristocratas continentais, desdenha- vam do comércio. Para além dos nobres economicamente empreendedores, o capita- lismo criou, também, um grupo novo de homens présperos e poderosos que deviam a sua riqueza no as rendas das terras concedidas pela Coroa, mas a uma actividade econémica independente. Tratando-se de Pequenos aristocratas ou de agricultores empreendedores estes yeomen ingleses formavam, nas palavras de um historiador, «um grupo de ambiciosos © agressivos pequenos capitalistas»'’. Eles foram os pri- meiros membros da burguesia, a classe industriosa de proprietérios que Karl Marx definiu como «os proprietirios dos meios de producao de uma sociedade ¢ os empregadores dos seus trabalhadores». Marx reco- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA 4s , de forma correta, que esta classe era a vanguatda da libe- 40 politica na Exopa. Os seus membros foram o8 principais Jarios do capitalimo emergente, do Estado de direito, da racio- io da economia > da liberalizagio das trocas, da ascensio do jonalismo ¢ da mritocracia, ndo podendo sendo apoiar as refor- graduais que favorceriam estes desenvolvimentos. Num estudo itica comparada, :gora lendario, 0 Professor de Harvard, Bar- sn Moore Jr., analiou a génese da democracia ¢ da ditadura no . A sua conclusticessencial contém-se em cinco palavras: «Sem ia, ndo ha demeracia!*» politica inglesa reolucionou-se & medida que a actividade em- ial se tomou 0 pricipal meio de ascensio social. A Camara dos ins, que tinha conqistado 0 poder das méos do Rei no século xvi fernava o pais, conava agora nas suas fileiras com mercadores © antes recentemeite enriquecidos. O nimero dos nobres titula- ‘em Inglaterra foi smpre reduzido: menos de duzentos no fim do xvi, Mas abako deles existia uma classe mais numerosa, ‘vezes chamada de gentry ou pequena aristocracia. A gentry ia-se, normalmente. das suas relagdes com a aristocracia para responsabilidades na administragao local, mas 0 seu prestigio nha da cficécia profssional, da habilidade para os negécios, ou de ficultura mais eficieste. Muitos destes homens entraram na vida fica e guardando una salutar distincia da velha ordem, fizeram es pela introdugio de reformas progressivas: a liberalizagao trocas ¢ do comério, os direitos individuais e @ liberdade de igiao. Os trés mais importantes primeiros-ministros da Gra-Bretanha no xix — Robert Pel, William Gladstone ¢ Benjamin Disraeli — das fileiras da entry. Esta nova e poderosa classe adoptava litos dos tragos disintivos da aristocracia — casas senhoriais, Iuetdes, tomeios de caga— mas era mais fluida. Os gentlemen walheiros) gozavam lo respeito geral ¢ ainda mais que os lordes ram-se os bastidesda sociedade. Assim, no século Xvi, © cava- inglés tornou-se uma figura quase mitica que toda sociedade Wa com inveja. Canta-se que uma.enfermeira que cuidava do i Jaime I pediu-the, uma vez, que fizesse o seu filho cavalheiro. Monarca ter-Ihe-4 repondido: «Nao posso fazé-lo cavalheiro, em- Possa fazé-lo lorde» Um visitante francés ridiculizaria a inclina- da aristocracia inglea em imitar a gentry: «Em Londres, 08 senho- 46 0 FUTURO DA LIBERDADE ‘res vestem Como os seus pajens € as duquesas copiam as camareiras'*»» Hoje o gentleman inglés € lembrado mais como um dandi, cujo estilo € estética so publicitados a uma escala planetéria por Ralph Lauren, ‘Mas as suas origens esto intimamente ligadas a0 nascimento da liber- dade inglesa Anglo-América No século xvi, apesar da ascensao do capitalismo, do governo imitado, dos direitos de propriedade e do constitucionalismo através da Europa, a Inglaterra ocupava uma posigao tinica. Ela era mais rica, mais inovadora, mais livre e mais estivel que qualquer outra sociedade do continente, Como escteveu Guido de Ruggiero: «As liberdades do individuo, sobretudo a seguranga de pessoas ¢ bens enicontravam-se ai solidamente asseguradas. A administragio era descentralizada e auténoma. As estruturas judiciais eram completamente independentes do governo central. As prerrogativas da Coroa eram muito limitadas [...] 0 poder politico estava concentrado nas maos do Parlamento. Que especticulo similar podia oferecer o continente?» Muitos observadores da época tiraram conclusdes semelhantes, elogiando a Constituigéo inglesa e 0 seu cardcter nacional. Alguns destacaram principalmente a economia, Para Voltaire « comércio & que enriqueceu os cidadaos de Inglaterra, auxiliando-os a tornarem-se mais livres j...] essa liberdade, Por seu lado, expandiu 0 comércio»*. Em vez de cultivarem os praze- tes decadentes da nobreza, anotava o pastor francés Abbe Coyer, 0 governo inglés tinha ajudado «a honesta classe média, essa parcela Preciosa das nagdes»"”. A economia de mercado havia contribuido para © enriquecimento da classe média, a qual apoiara a causa da liberdade. Um ciclo aparentemente virtuoso Os territérios que mais se assemelhavam & Inglaterra eram as suas colénias na América. Os colonos tinham. estabelecido sistemas de governo que se pareciam com os que tinham deixado para tris, na Inglaterra dos Tudors. Em 1776, quando se rebelaram contra Jorge III, apresentaram a sua revolugdo como um chamamento a devolugao dos seus direitos, como englishmen. Segundo cles, tinham sido despojados Guido de Ruggiero © RG. Clingvood, Hivor of European Liberati, Peter ‘Smith Pub., Nova lorque, 1977. (N. do T.) r mm 7 UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA, a1 jes que ha muito usufruiam por um soberano tirdnico, 0 que ara a declarar a independéncia. Num certo sentido, era uma da propria Revoludo Gloriosa inglesa, quando o Parlamento se contra um monarca arbitrario cujo maior pecado foi de ter impostos sem © consentimento dos governados — ou mais jente dos taxados. Os vencedores, quer em 1688 quer em 1776, ‘as elites progressivas, modemizadoras e vocacionadas para o rcio. (Os perdedores, para além do Rei, foram os velhos tories, continuaram leais & Coroa tanto na Inglaterra do século xvi como ‘América do século xvi.) fas se a Inglaterra parecia uma excepeo, a América representava ‘caso excepcional entre todos. Era Inglaterra sem feudalismo. Cer- ite, a América tinha familias fundidrias, com propriedades, mas no eram tituladas, néo tinham privilégios conferidos por nasci- to € no estavam investidas de um poder politico comparivel a0 membros da Camara dos Lordes. Para se compreender a América século xviii, € para se retomar a formula do historiador Richard ter, € necessirio imaginar 0 caso iinico de «um mundo de classe lian®. Os aristocratas se bem que presentes na economia ¢ na socie- raramente dominavam. No Norte, comegaram a diminuir na midanga do século xvut. O historiador Gordon Wood observou: «Na cada de 1780 podemos, na verdade, sentir a mudanga de uma socie- “dade pré-modema para uma modema, em que os interesses comerciais @ 0s gostos de consumo da gente comum se comegavam a afirmar como dominantes.» A Revolugao Americana foi, nas palavras de Wood, uma explosio do poder empreendedom alargando 0 fosso entre a América e a Europa”. A América era agora abertamente burguesa © orgulhosa de o ser. Dias depois da sua chegada aos Estados Unidos, em 1831, Tocqueville anotou no seu diario que na América «toda a socie- dade parece ter-se diluido numa classe média». ‘A via que conduziu a América & democracia liberal foi excepeional: a maior parte dos paises nio comegou a sua experiéncia nacional, enguanto sociedade nova, sem um passado feudal. Livres de centenas de anos de monarquia € de aristocracia, os americanos nio tiveram necessidade nem de um governo central forte, nem de uma revolugao social violenta para derrubar a velha ordem. Na Europa, 0s liberais. temiam o poder do Estado, mas este fascinava-os. Eles procuraram limita-lo, mas também instrumentaliza-lo por forma a modernizarem ‘as suas sociedades. «A grande vantagem dos americanos», escrevell 48 0 FUTURO DA LIBERDADE Tocqueville num apontamento famoso, «é que eles chegaram & demo- cracia sem terem de fazer uma revolugdo democratica... eles nasceram iguais sem terem de tornar-se iguais». No principio do século xix, na Gri-Bretanha ¢ nos Estados Unidos, a liberdade individual florescia para a maioria e a igualdade era garan- tida pelo Estado de Direito. Mas nenhum dos paises era uma democra- cia. Antes do Reform Act de 1832, 0 direito de voto era reservado a 1,8% da populagdo adulta da Gri-Bretanha, Depois da lei entrar em vigor, esse numero ascendeu a 2,7%, Depois do grande alargamento do yoto censitario, em 1867, 6,4% obtiveram esse direito e depois de 1884, 12,1%, S6 em 1930, quando foi reconhecido 0 direito de voto as mulheres, a Grd-Bretanha atingiu 0 padrio hoje estabelecido para um sistema se considerar democratico: o sufrigio directo ¢ universal”, Contudo, é considerada 0 modelo do Estado liberal constitucional, isto &, um Estado que protege a liberdade ¢ & governado pela lei Os Estados Unidos eram mais democriticos que a Gra-Bretanha, se bem que a diferenga nao fosse to evidente quanto se eré. Durante as primeiras décadas da jovem repiiblica, s6 os proprietérios brancos do sexo masculino eram admitidos 2 votar — um sistema muito semelhante ao do pais cujo dominio havia sido derrubado. Em 1824 — quarenta e oito anos apés a independéncia — s6 5% dos americanos brancos do século masculino colocaram o seu voto na uma, numa eleigao presidencial. Esse niimero subiria espectacularmente & medida que a revolugao jacksoniana se espalhou e as qualificagdes relacio- nadas com a posse da terra foram, em grande parte, eliminadas, Mas foi preciso esperar até as vésperas da Guerra Civil para que todos 9s brancos nos Estados Unidos fossem autorizados a tomar parte no escrutinio. Os negros encontravam-se, em teoria, em 1870, em con- digdes de poderem votar, mas de facto isso s6 aconteceria um século depois, no Sul dos Estados Unidos. As mulheres sé obteriam o direito de voto em 1920. Apesar deste défice democrético, durante grande parte do século xix 05 Estados Unidos foram a inveja do mundo pelo seu sistema de leis e direitos. E com tempo, o liberalismo consti- tucional levou & democracia, que levaria a mais liberdade ¢ por ai fora, O resto da Europa seguiu um caminho mais tortuoso para a demo- eracia liberal que a Gra-Bretanha ¢ os Estados Unidos, mas acabaria or ld chegar. O que se produziu na Gra-Bretanha ¢ nos Estados Uni- dos de forma gradual e (em geral) pacificamente, aconteceu no conti- UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA ~ num modo irregular e sangrento— como veremos no proximo Jo. No fim dos anos 40 do século xx a maior parte das nagdes jias tomaram-se democtacias liberais ¢ as restantes, depois de }, com uma consolidagio répida e estivel. A razio é clara: todos s ocidentais partilharam, apesar de algumas variagdes, uma historia, a que serviu de cadinho a tradigao constitucional libe- © caso inglés & 0 que os académicos chamam um «tipo ideaby 0 ‘© toma iitil para tomar como paradigma. Mas no século xix, mesmo is retrogrado poder europeu era um regime liberal quando com- com os seus homélogos na Asia e em Africa. Os cidadaos am de direitos poderes inimaginaveis noutras partes do . O poder dos monarcas era limitado por leis € pelas tradigdes. sociedade civil florescia com as suas empresas privadas, igrejas, jversidades, corporagdes e associagdes sem interferéncia maior do ). A propriedade privada era protegida e a livre empresa pros- ra. Estas liberdades eram muitas vezes mais s6lidas em teoria na pritica € os monarcas autocréticos tinham muitas vezes tendén- a abusar do poder. Mas comparado com o resto do mundo, 0 Oci- te era, realmente, a terra da liberdade. A cultura como destino Esta breve historia da liberdade pode parecer um guia desencorajante, Ela sugere que nenhum pais aspirando a tornar-se uma democracia liberal deveré provavelmente reorientar-se pelo Ocidente, E sem som- bbra de davidas que a pertenga ao mundo ocidental — mesmo se 0 é na periferia — constitui uma vantagem politica. De todos os paises que conquistaram a sua independéncia depois da queda do império sovié- tico, os que partilharam o que poderiamos chamar «a experiéncia oc dentaby — os antigos territérios dos impérios austriaco © alemao foram os que tiveram mais sucesso sob os auspicios da democracia liberal, A fronteira que em 1500 separava a civilizagao crista ocidental da oriental divide hoje os regimes liberais que triunfaram dos regimes iliberais que fracassaram. Polénia, Hungria e Repiblica Checa, que pertencem incontestavelmente & Europa, tém um considerével avango na consolidagao do respectivo sistema democratico. Os paises balticos seguem-nos de perto. Mesmo nos Bales, a Eslovénia e a Crodcia, que se encontram no lado ocidental entre a linha de demarcagao entre 50 © FUTURO DA LIBEADADE Ocidente ¢ Oriente, conhecem uma evolugio mais favoravel que q Sérvia e a Albania (no leste) € cuja transigao & mais conturbada, Significa isto que a cultura é destino? Este poderoso argumento tem sido apresentado por académicos eminentes, de Max Weber a Samuel Huntington. E, neste momento, uma ideia em moda. Desde os consul- tores de empresas aos estrategas militares quase toda a gente brande a cultura como a explicacao facil para muitos puzzles. Por que razio os Estados Unidos conheceram uma tal expansio nas iltimas duas déca- das? £ obvio: a nossa singular cultura empresarial. Por que razio a Riissia ¢ incapaz de se adaptar ao capitalismo? Também dbvio: é uma cultura feudal antimercado. Por que razio a Africa se atola na pobreza? Uma vez mais a cultura. E por que razio 0 Mundo Arabe gera terro- tistas? Outra vez a cultura. Mas estas respostas so demasiado simplistas, Apesar de tudo, a cultura americana também produziu a estagnagao e a Grande Depres- sio dos anos 30 do século xx. E as culturas outrora feudais do Japao e da Alemanha parecem ter-se adaptado bem ao capitalismo, tendo-se tornado, respectivamente, 0 segundo ¢ 0 terceito paises mais ricos do planeta. O mesmo pais pode triunfar ¢ fracassar em periodos distintos da sua historia, o que sugere que alguma coisa, para além da cultura — que é relativamente imutavel — esta aqui em jogo. Lee Kwan Yew, o brilhante patriarca de Singapura, explicou-me uma vez que se se quiser compreender como a cultura funciona, compare-se o desempenho dos trabalhadores alemaes e dos seus homé- logos zambianos, em qualquer ponto do mundo. Rapidamente se chega & conclusio que ha algo muito diferente nas duas culturas que explica os resultados dispares. Os académicos produzem argumentos idénticos: no seu interessante trabalho Tribes, Joel Kotkin defende que Se Se quiser ser bem sucedido economicamente no mundo moderno, a chave é simples — € necessario ser-se judeu, indiano, mas sobretudo chinést Lee e Kotkin esto obviamente certos na sua observagao de que certos grupos — chineses, indianos ou judeus — triunfam, magnifica- mente, em todo o tipo de cenarios. (De facto acho esta variante da teoria da cultura extremamente apelativa, ja que sou de origem indiana.) Mas se ser indiano ¢ a chave do sucesso econémico como explicar 0 deprimente desempenho da economia indiana nas quatro décadas que se seguem a independéncia de 1947 — ou, para beneficio do argu- mento, durante centenas de anos antes dela? Quando se nasce na india UMA BREVE HISTORIA DA LIBERDADE HUMANA. st idera, certamente, os indianos bem sucedidos do ponto de ondmico*. Na verdade, lembro-me do dia em que um famoso 9 do Parlamento indiano, Piloo Mody, colocou a seguinte ques- ira Gandhi, no periodo antes da ordem do dia: «A Primeira- a pode-nos explicar porque & que os indianos parecem triunfar os os governos do mundo, com excepgao do seu?» eremos por a mesma questo a respeito da China, outro pais sultados econdmicos foram mediocres durante centenas de anos, das duas altimas décadas. Se o que era necessério era ser-se a China tem milhares de milhdes de chineses. Quanto aos judeus, ‘tenham triunfado em muitos lugares, o pais onde séo a maioria lago, Israel, distinguiu-se até ha pouco tempo pelo marasmo mico. Dever observar-se que 0 desempenho econdmico destes ses (India, China e Israel) melhorou muito durante os anos 80 sulo xx. Mas isso ocorreu nfo porque eles inventaram novas 5, Mas porque os seus governos mudaram de politicas e criaram mbiente mais sintonizado com a economia do mercado. A China hoje de forma mais rapida que a india, mas tal tem mais a ver ‘0 facto de a China estar a reformar a economia mais extensiva- do. que haja uma qualquer suposta superioridade da ética lana sobre a mentalidade indiana. estranho verificar que Lee Kuan Yew seja um téo ardente defen- argumentos culturais, na medida em que Singapura, por muito s0 seja enfatizado, no € culturalmente muito diferente do seu finho, a Malisia. E mais chinés e menos malaio mas comparativa- te ao resto do mundo os dois paises partilham muito em comum. J que distingue Singapura dos seus vizinhos tem sido um governo ciente que tem prosseguido uma politica econdmica sagaz. Por outras s, a chave do sucesso de Singapura é Lee Kuan Yew © nao onfiicio, Longe de mim afirmar que a cultura nao é importante. Pelo rio, ela importa muito. Representa a experiéncia histérica de um OVO, tal como cla esta embebida nas suas instituigdes nacionais & la as atitudes das pessoas ¢ as suas expectativas. Mas a cultura ode mudar. A cultura alema em 1939 eta muito diferente daquilo em ela se viria a tomar em 1959, isto é, vinte anos depois. A Europa, utro tempo 0 coragao de um hipernacionalismo, & agora pds-nacio- * Na india encontra-se um tergo dos pobres do mundo, segundo estimativas da ONU, dor) 2 0 FUTURO DA LIBERDADE nalista, com os seus Estados dispostos a ceder parte da sua soberania ‘a entidades supranacionais por formas que os americanos dificilmente podem compreender. Os Estados Unidos foram em tempos uma repi- blica isolacionista muito reticente a ideia de intervengao externa. Hoje, dominam 0 mundo e tém guarigdes militares nos quatro cantos do planeta, Os chineses foram em tempos camponeses atrasados; hoje, sio negociantes natos. As crises econémicas, as guerras, a classe politica no poder — tudo isso muda a cultura. Ha cem anos, quando a Asia Oriental parecia inevitavelmente po- bre, muitos investigadores — designadamente Max Weber — defende- ram que as culturas de base confuciana desencorajavam todas as qua- lidades indispensiveis ao sucesso do capitalismo®. Ha uma dezena de anos, quando a Asia Oriental conheceu um sucesso econémico especta- cular, os académicos viraram do avesso esta explicagao e vieram contra- por que o confucionismo, na verdade, inculeava os valores essenciais a0 dinamismo econémico, Hoje a roda mudou outra vez € muitos deles véem nos «valores asiaticos» todos os ingredientes de um nepotismo que gangrena 0 capitalismo na sua versio oriental. No seu estudo, Weber estabelecia uma relagdo entre o sucesso econémico da Europa do Norte ¢ a sua «ética protestanter. Ele predizia também que o Sul catélico continuaria pobre. De facto, nos iiltimos cinquenta anos, a Itdlia e a Franga cresceram mais rapidamente que a Europa protestante. Pode alguém recorrer ao esterestipo dos latinos manhosos adeptos de «deixar para amanha 0 que se pode fazer hoje» para explicar o desem- penho modesto de alguns paises; mas entdo como explicar 0 Chile? ‘A sua economia rivaliza com as mais fortes dos tigres» asifticos. O seu sucesso ¢ muitas vezes atribuido a um outro conjunto de valores tipi- camente latinos: familias coesas, ligagao A religido voluntarismo. Na realidade, ndo se pode encontrar uma simples resposta & questo porque € que certas sociedades tém sucesso, em certos momentos. Retrospectivamente, quando uma sociedade triunfa parece-nos, muitas VezeS, que esse sucesso ¢ inevitavel. Examinemos as sociedades de ‘sucesso € procuremos dentro das suas culturas as razées do sucesso. Mas as culturas sio complexas; cada um encontra 0 que procura. Se se quiser procurar uma predisposigao cultural para o trabalho arduo e a Poupanga nos paises da Asia Oriental, ela esté ld. Se se quiser encon- ‘tar, pelo contrario, uma tendéncia para a obediéncia cega ¢ 0 nepotismo, eles também esto li. Se se olhar com cuidado, encontraremos estes tragos em muitas outras culturas, UMA BREVE HISTORIA DA LIBEROADE HUMANA 3 ‘Accultura é um factor crucial, pode ser um estimulo ou um travio, indo ou atrasando a mudanga. Pode ser solidificada em institui- € praticas, que representam, muitas vezes, os verdadeiros obsta- 5 a um sucesso completo, A cultura indiana pode comprometer ou as possibilidades de crescimento econémico do pais, mas isso nio provado, A burocracia indiana fé-lo certamente. A verdadeira van- do Ocidente € que a sua histéria levou & criagdo de instituigdes ticas que, embora ndo estejam inscritas nos genes ocidentais, so is de reproduzir, da estaca zero, noutras sociedades. Mas dificil € impossivel modelo da Asia Oriental Yhando para muitas das transigdes néo-ocidentais para a democra- liberal nas iltimas trés décadas conclui-se que os paises que evo- para uma democracia liberal seguiram uma versio do padrio 1: capitalismo e Estado de direito, primeiro e, depois, democra- Coreia do Sul, Taiwan, Tailandia ¢ Malasia foram paises governa- durante décadas por juntas militares e regimes de partido tinico s regimes liberalizaram a economia, o sistema legal, concederam liberdades de opinido, de religifio, de circulagao ¢ ent&o, algumas s mais tarde, realizaram eleigGes livres. Eles coneretizaram, talvez talmente, 0 dois principais atributos de um bom governo como Madison sublinhou nos Federalist Papers*. Primeiro, 0 governo ‘ser capaz de controlar os governados; depois controlar-se a si . A ordem mais a liberdade. Estas duas forgas produzirio, @ prazo, um governo legitimo, a prosperidade ¢ uma democracia . Com certeza, mas é mais facil dizé-lo que fazé-to. Nos anos 50 € 60 do século xx, muitos intelectuais do Ocidente figmatizavam os regimes da Asia Oriental como reaccionérios, iando, pelo contririo, os lideres populares da Asia e da Africa que lizaram eleigdes e proclamaram a sua fé no povo — por exemplo no nna Tanzania e no Quénia. A maior parte destes paises degenerou ditaduras enquanto a Asia Oriental se moveu, precisamente, na oposta. O facto de as democracias mais sélidas da América * Alexandre Hamilton, James Madison ¢ John Kay, O Federalista, Edigbes Colibri, 2003. (N. do T) ‘4 0 FUTURO DA LIBERDADE Latina ¢ da Asia Oriental —o Chile, a Coreia do Sul e Taiwan — terem sido durante muito tempo governadas por juntas militares deve- ria deixar perplexos estes mesmos académicos ¢ intelectuais. Na Asia do Sul, como na Europa Ocidental, as autocracias liberais estabelece- ram as fundagdes para democracias liberais estiveis Em quase todos os casos, as democracias abriram lenta e parcial- mente a economia, processo que conduziu a uma liberalizagao progres- siva do governo. «Uma caracteristica tipica da Asia Oriental desde a Segunda Guerra Mundial», escreveu um eminente especialista da Asia Oriental, Minxin Pei, & 0 processo gradual de institucionalizagao da autoridade [...] No centro deste processo encontra-se o lento emergir das insttuigdes politicas moder- ‘nas exercendo um contrapoder formal ¢ informal através de partidos domi- nantes, burocracias, de cleigdes parcialmente livres e de um aparetho judi- cial que adquire progressivamente o seu espago de autonomia, O processo produz um duplo resultado positivo — um elevado grau de estabilidade € de garantia dos direitos de propriedade (devido a limitagdes crescentes que as forcas de mercado ¢ as novas regras politicas impoem aos gover- nantes)» A Asia Oriental é ainda uma regio muito atingida pela corrupgao, pelo nepotismo ¢ pela fraude eleitoral — mas assim 0 eram muitas democracias ocidentais, ha cinquenta anos atrds. As eleigdes em Taiwan, na actualidade, nio sio perfeitas mas provavelmente so mais livres que as da América do Sul, nos anos 50 do século xx (ou de Chicago, nos anos 60 do referido século). Os grandes grupos econémicos sul-coreanos (chaebols) tém uma influéncia desproporcionada na politica do seu pais, mas esse também era 0 caso dos seus equivalentes na Europa nos Estados Unidos, hd um século atrés. Os caminhos de ferro, as empresas siderirgicas, as construtoras navais ¢ os grandes financeiros do passado cram sem diivida mais poderosos que actualmente qualquer tycoon as 0. Eles dominaram a América durante a Era do Ouro, no fim do século xix. (Pode-se citar 0 nome dos politicos contemporaneos de J. P. Morgan, E. H. Harriman e John D. Rockefeller?) Ninguém pode julgar as novas democracias por padres que teriam, excluido a ‘maior parte dos paises acidentais ha apenas trinta anos. A Asia Orien- tal com a sua mistura de liberalismo, oligarquias, democracia, capita- lismo e corrupcdo lembra muito a situacdio que existia no Ocidente. vor UMA BREVE HISTORIA OA LIBERDADE HUMANA ee emplo em 1900, Mas a maior parte dos paises da Asia Oriental ¢ sideravelmente mais liberal e democritica que a vasta maioria de itros paises ndo-ocidentais. ‘Uma outra prova ainda mais impressionante de que um passado iberal ¢ constitucional pode produzir uma democracia liberal foi ecida pelo cientista politico Myron Weiner, em 1983. Ele afirmou , desde entiio «todos os paises do Terceiro Mundo que sairam do gime colonial depois da Segunda Guerra Mundial, com uma populagao , pelo menos, um milhdo de habitantes (e, também, quase todas as olénias mais pequenas) com uma experiéneia democratica continua, antigas colénias britinicas»™. O dominio briténico nao quer dizer emocracia —o colonialismo ¢, por definigao, ndo-democratico — sim liberalismo constitucional limitado e capitalismo. Existem, fora, outras democracias no Terceiro Mundo, mas 0 argumento prin- sipal de Weiner mantém-se valido. Afirmar isto nao é defender o alonialismo. Tendo eu erescido num pais pés-colonial néo preciso de er lembrado do racismo institucionalizado e do abuso de poder que a parte do legado imperial. Mas nao se pode negar que o Império itinico deixou para tras um legado de leis e de capitalismo que aiudou a consolidar as forgas da democracia liberal em grande nimero § suas antigas colénias —embora ndo em todas. A Franga, pelo rio, encorajou pouco o desenvolvimento do constitucionalismo e economia de mercado nas colénias, mas é verdade que emancipou gumas das suas populagdes coloniais no Norte de Africa, Mas qual- quer que tenha sido 0 processo, a democratizago precoce, em todos 8 casos, conduziu a tirania. A via ocidental levow a democracia liberal para além dos limites do Mundo ocidental. De qualquer forma, como o mostram todos estes sos, a sequéncia e o ritmo da democratizagao so cruciais. Muitos aises do Terceiro Mundo que se proclamaram democracias logo apés @ independéncia, quandio eram pobres e instaveis, tornaram-se dita- duras no decénio seguimte. Como anotou Giovanni Sartori, 0 grande * Fim muitas das coldnias que os ingleses tardiamente conquistaram ma er escolonizaram algumas décadias mais tarde — em Africa e no Médio Oriente, pot exem- lo— eles ndo se preocupararm em constuir instituigSes e erigir um Estado de direito. ragaram fronteiras aberrarntes, legando as jovens nagSes, aquando da sua independén- graves problemas étnicos e teligioses. Mas na Asia do Sul, nas Carafbas e seguramente olénias de poveamenta (Cianada, Austiliae Nova Zelindia) a relagdo entre legislagio fitfinica e democracia ¢ inegawel. (N. do 4.) © FUTURO DA LIBERDADE que «o itineririo nao & reversiveln®, M ‘padrio i ona padrio anglo-americano — constitucion es capitalismo, primei fete demosraia — foram muito menos bem sucedidas na sug ee ‘ocracia liberal. Para compreendermos as compli pce pe: Produs uma democratizagio precoce, € bem 30 corsedo dl A jue teremos que regressar — 1 é stl Pampas cegmes ave regressar — viajando no tempo até og CAPITULO 2 Um caminho tortuoso jena no virar do Ultimo século era uma metrépole cintilante, cosmopolita nos scus gostos, vanguardista na arte ¢ aventurosa na politica, Foi nessa cidade dnica que Richard Strauss e Gustav ler compuseram, que Gustav Klimt e Egon Schiele pintaram, que Musil e Arthur Schnitzler escreveram, que Theodor Herzl pu- va os seus artigos, que Sigmund Freud praticava psicandlise ¢ que ‘Trotsky mobilizava multiddes e fazia discursos nos terragos dos . Viena era famosa pelos seus cafés, que ofereciam a intelligentsia Europa uma mistura singular de bebida, tabaco e discussio. Num es cafés — provavelmente no Landtman — na Primavera de 1895, Sigmund Freud acendeu um dia um charuto, Como se poderia esperar da parte de Freud, esse charuto era mais que um charuto. Era a cele bragdo da liberdade — contra a democracia’. Naquele més de Margo, Viena acabava de eleger um ultranacionalista, Karl Lueger, para presidente da cimara. As ideias politicas de Lueger eram detestaveis, Ele comparava frequentemente os judeus a gafanho- tos, exigindo que fossem esmagados ¢ usados como estrume ou empa- cotados e embarcados em navios e langados ao mar. O Imperador Francisco José 1, da Casa dos Habsburgos, decidiu que a eleigio de Lueger constituia uma ameaga as liberdades civis da cidade ¢ num gesto sem precedentes recusou-se a empossi-lo no cargo. Decistio =* Ver Giovanni Sartori, 72 Der tri, Teoria de la Dem yen 'ocracia, Alianza Editorial, Madrid, 2 vol,

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