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e.f.brancante © BRASIL Sas ea CERAMICA ANTIGA Sao paulo, ano memlxxxi II - TERRACOTA ste t6pico abrange 0 barro co- ziido artficialmente ou terracota, com ou sem pintura a frio, ou ouga de barro cozido. Subimos mais um degrau em direcdo a0 topo da escada ou dedithamos ‘mais uma nota sonora da escala Gerimica. A diferenga entre esta categoria c a altima abordada consiste em que, naquela, o barro € seco de ‘maneira natural, isto é ao sol, enquanto nesta cle & cozido artificialmente, em forno de Ienha ou de outros combustiveis, 4J4 nao era mais preciso manipular a argila ‘imida ¢ véla entijecer-se lentamente ao calor brando do sol sim observé-la e vé-la sofrer a aco violenta de outro lemento que jé vinha sendo usado para outros misteres, como o de obler claridade, afastar feras, proporcionar aquecimento e cozer alimentos. Aproveitado de vuledes, de combustdes espontineas ou de fafscas de raio sobre a vegetagio seca, 0 fogo adorado a principio como divindade, passou logo a ser produzido pela mio do hhomem, através do atrito de pedras duras ou através, de friccdo da madeira, tornando-se um de seus mais, poderosos ¢ eficientes instrumentos. Assim, 0 carvéo produto de semi-combustio, a gordura e o éleo, foram entao sendo empregados nas cavernas onde eram pre- pparados 0s alimentos ao abrigo das intempéries. Com ‘esses métodos de produzi-lo € de outros para conser vé-lo, nasceu o dominio sobre tal elementos e as formas de iluminagéo com as lamparinas, as candeias © as fochas, assim como os primeiros fogdes e fornos. Esses foxbes, se assim podemos chamé-los, eram de dois tipos, o cavado no chao, em cujo buraco abriga- do 0 fogo mantinha-se com a Iénha e as brasas — rocesso esse que lembra a estrutura das tradicionais, churrasqueiras © 0 fogo de trempe, que consiste em colocar trés pedras e entre elas introduzir gravetos © Jenha — sistema esse até hoje utilizado pelos cacadores. Essa domesticagio do fogo ea observagio de seu comportamento esto na base de descobertas transcen- entais que iriam alterar e marcar novas etapas na ivilizagio dos povos em variados campos ¢ sobretudo na Ceramica. Pode-se imaginar o quanto de espanto, perplexi- dade, confusio e alegria estampados na face rude do fhomem diante da sucesséo de fendmenos desdobrando- se diante de si. A observacdo ia aumentando 0 seu restrito acervo de conhecimentos © contribuindo para ‘novas realizagbes. Fa agio do fogo devia mesmo intrigar aqucles primitivos observadores pois ela era tio imprevisivel como desconcertante; destruia materiais como a madeira, a 4gua desaparecia na evaporacio, elementos sélidos transformavam-se em liquidos, outros flécidos tormavam-se rijos © as cores do barro © de ‘outros materiais sob sua acao se alteravam, Assim, dos fogdes, fogueiras e fornos primitivos foram surgindo descobertas surpreendentes. Os supor- tes de trempe, conforme a composicao das pedras que a armavam, derretiam-se a0 calor, transformando-se em outras matérias que iriam converter-se em metais como 0 Ouro, cobre, bronze, prata, ferro, etc. iriam também fomecer uma nova paleta de cores com os éxidos minerais, como iriam preparar, com a descoberta do Vidro, uma nova categoria para a cerimica: a louga vidrada, Essas importantes descobertas que levavam milé- niios para surgir, passaram também subsidiariamente a assinalar no tempo os estigios da civilizacao de povos, como as Idades do Cobre (6000 aC.) do Bronze (que € uma liga de cobre e estanho) (3000 a 2000 aC.) @ a do Ferro (esta iltima de 2000 a 1000 a.C.). ‘Mas a agao do fogo aquecendo a terra, sobre a qual se assentavam aqueles fogées primitivos, Ievou logo & constatagio de que a argila enrijecia-se a0 calor arti- ficial, apresentando um grau de resisténcia de colora- Gao € Sonoridade diferente e superior a0 do barro seco 0 sol — nese momento nascia a terracota, Surgem. a seguir os primeiros fornos para produzi-la, encavados em barrancos, encovados no solo, Ievantados sobre 0 chao de diferentes formatos ¢ tamanhos, que mais tarde evoluem para os de tijolos com respiradouros e contro- les de calor e de ar, e outros ainda, conforme o tipo de ceramica a ser fabricado. Tio grande a importincia do fogo, que, nos tempos hisiéricos, Homero (mais ou menos 1000 aC.) j ego, & solicitado pelos oleiros de Samos para compor um hino dedicado ao forno no qual invocava Minerva para que emprestasse sua mao habil a fim de que (05 vasos se cozessem ao grau conveniente (Louis Figuier) Mas outra invencdo de implicagées_profundas, ainda na pré-Hist6ria, foi a da roda, que iria abrir um novo capitulo na locomosao € transmissdo de forca © proporcionar um sem niimero de adaptagdes nas indtis- trias primitivas ¢ modemas. Da roda nasce o moinho, movido a Agua e pelo vento, e entre outras variadas ¢ estupendas derivacées, a roda ou tomo do oleiro. Ela, surge tanto na Africa, como na Europa ‘Nordica e no Oriente no periodo neolitico, porém tanto 2 roda ov 0 torno iriam levar séculos para que seu uso se disseminasse no’ mundo conhecido. Assim, na Peninsula Ibérica, o tomo s6 aparece quando 0s gregos estabeleceram feitorias em seu litoral por volta do século VIII a0 sécalo VI a.C., ¢ no interior da Peninsula os romanos o difundiram depois do século Imac, eee Tornos ou Rodas de Oleiro Manuais EGITO Pintura existente nas Catacumbas de Thebas, que mostea 0 Interior de uma oficina letra dedicada ao fabrico de. pega uilitdrias e de adorn e indica as diferentes fases de (1 secto) Dreparasdo daz pastas pelos artesaos © a confeccdo © modela- zrem dos vasos ‘pelos toynelros, Observarse na parede dots vasos de modelo'e no chdo um pore {6 modelado, ¢ a sexu (na 3" seedo) @ preparacio para @ quelma nos Forres Na Gilia, ele 96 veio a ser empregado no primeiro séeulo de nossa era. E na América, somente com a chegada dos europeus, ja no século XVI, € que seu uso se divulga. Consistia'o torno ou roda de oleiro de uma roda com- pacta colocada horizontalmente sobre um eixo vertical, sobre a qual era pousada a massa a ser modelada, roda, essa que era impulsionada com uma das mos enquan- to a outra procedia & modelagem. O nome de seu genial inventor e mesmo do povo que primeiro 0 usow perdeu-se no tempo, nessa vala comum, onde jazem boa parte dos fastos, fatos © per- sonagens de nosso passado remoto. Segundo Mar Almagro Basch ®, esse tosco, mas eficiente instrumento teria nascido no vale do Tigre ¢ do Eufrates na Meso- potimia, © seu emprego ja estava desenvolvido no terceiro milénio antes de Cristo, paralelamente a outros Drogressos, que tardaram como 0 tormo para propagar- “se & outros povos. No Egito, foi localizada uma estela nas catacumbas de Thebas, hé 2000 aC. com a representacao do processo entao vigente da fatura de lum vaso em terracota, em que se distingue 0 torno, chamado de manual, ‘com as diversas fases de seu fabrico ®. 6 © aso do torno manual assinalado pelos arquetiogos na Tera. no. periodo’neolteo, tanto na Enropa Nendca como sto Otiote, porem, © de preumit gu, dentro daqucle period, tena cabido. a primacit ao Bett, dado 0 avango a. sa evolu, Joan’ de Vasconcelos, n “A Indésiria Cerdmica”, Porto, 1907" pig. 42° esta reproduaida. Porém, os gregos inventaram um torno ainda mais completo, na realidade um torno duplo. Consistia ele de duas ‘rodas, uma superior, onde era colocada a massa, outra inferior, inpulsionada pelos pés, deixan- do, pois, livre as duas’maos do oleiro para modelar a peca. Foi o escultor ateniense Thalos, sobrinho de Dédalo, cerca de 1200 a.C., que criow ‘esse melhora- mento assim como outras invencoes, como a da tesoura © a do serrote, esta inspirada na espinka dorsal dos peixes. O tomo ainda vitia a ser acionado com maior desenvoltura com o emprego da polia, pelos chineses Essa invengao constitui um enorme passo sobre ‘os morosos ¢ imperfeitos métodos anteriores de tratar © barro. Ela conferia ao oleiro mais precisamente a0, tomneiro, ow ao louceiro ou ao ceramista, a capacidade de produzir simetricamente uma grande variedade de formas ¢ de proceder a méltiplas combinagdes circula- res, ovais, esféricas e cilindricas. Dava-lhe um controle mais efetivo e regular sobre o barro, a par de maior perfeicio © velocidade no fabrico. 'Essas vantagens itiam desenvolver consideravelmente a arte cermica, no 56 quanto ao caréter quantitative da producio, como pelo aspecto artistico em que 0 ceramista passava a dispor de um instrumento, com a ajuda do qual podia jzir com desembaraco € apuro as suas manifesta- esamais. © forno conferindo rigidex e fixando cores, e 0 produzindo formas e imprimindo rapidez, além novos horizontes para a cerdmica, acarretam que se refletem na propria estrutura social. do barro, assiste-se a sucesso de fases distin- atividade — a artesanal e a mecénica ¢ uma ando-sc com a outra, ao surgimento da industrial, teriza o homem moderno, F cada fase acarre- transformagdes de porte. No regime tribal, ‘no manuseio da argila era atributo predomi- nte feminino. Mas, j4 no neolitico, com 0 fogo oro, a mulher vai perdendo essas suas atribuigdes. artesanato casciro ¢ individual, destinado a uma ‘ou a um cli, nio estava mais em condigdes por fciente e precétio, de prover quantidade e quali- ‘para preencher no utiitirio a crescente demanda asilhame © na de adomo, o reclamo artistico ja tado pelas sociedades que se ilhavam em niicleos S ¢ scmi-urbanos. E quando comegam a se ovas fungbes especificas nos ateliés, fébricas © ¢ 0 homem assume de regra as tarefas ceri . Excnplo tipico, é o revelado pela estela de Thebas Q a.C.), ou seja cerca de 4000 anos atrés, que ra no Egito, um grupo de nove pessoas, com sua jgdo de trabalho, no qual ja nao figura a mulher maragao de um vaso de terracota Na Antigiiidade, tanto ocidental, como oriental, a do oleiro — 0 responsivel pela produgéo cera ‘— ja integrado num oficio, vai adquirindo um deiro “status” — na sociedade em que vive, pelas sécio-econémica e artistica que desenvolve. je paganismo, passa a merecer a invocacao dos deuses, nfo era elevado a condi¢ao de divindade, stianismo, veremos mais adiante, veio a desfru- do patronato dos principes ¢ soberanos. im, no Egito antigo, j havia um protetor de : Ophtch ®, Na Grécia, o protetor daquela classe Ceramus (donde proveio o termo cerimica), filho deus Baco de Ariana, havendo em Atenas um sro denominado Cerimica, onde se encontravam eles artifices®. Na China, um artesio miértir, ido Poussah, passou a ser venterado como deus “Oleiros”, do “Contentamento” e da “Felicidade”, para’ atender a uma encomenda imperial, ena fomnalha, e, segundo a crOnica, a peca perfeita. Qs gregos e os chineses, na sublimagao do belo, és da forma e do colorido, deram grande destaque ga cerdmica entre as outras manifestacdes artisticas: wam-se tanto de sua fatura, que parte dela era cada, indicando ora 0 artesio, ora 0 artista ou a a. que a produziu, Hé poucos anos, foi descoberto de Fidias o gigante da estatuéria grega, e nele [peca com seu nome, e os ceramégrafos puderam r através de cronicas e de pecas que sobrevi- m, 0s niomes de noventa ¢ cinco oleiros ¢ ceramistas , entre eles Andécides (oleiro), Bufranio, Oltos, de, Epicteto, Esmiero, Cotes, estes artistas ¢ uma outra geracdo, em prinefpios do século V, de Pintesiléia’ ow de Brigos, Macro, Duris tros mais Entre essas pecas marcadas, hé as assinadas com formacio do artesio que as fez e outras com 0 que a pintou, Esse costume deu origem nas artes plisticas & classificagéo que se tomou norma convencional da indicagao da paternidade da obra com © “pinxit”, o “fecit” ¢ 0 “delineavit", Tamanho apreco era conferido pelos gregos aos seus artefatos, que nos famosos Jogos Olimpicos além de coroas de louro e tagas de ouro conferidas aos vencedores, havia prémios para os atletas, constituidos de artisticos vasos ou figuras em terracota, Ela foi para os gregos um dos mais eficientes instrumentos para complementar a sua escrita e divulgar sua cultura. Foi através dela que plastica ou pictor camente puderam eles exaltar sta epopéia, reproduzir sua mitologia e demonstrar seu virtuosismo artistico. Num desdobramento visual de formas e de cores, num desenrolar de cenas e de episédios, acompanha-se como num painel mével, a histria grega, assim como os primérdios, a fase de assimilagio ¢ a de eclosio da arte genuina no berco de nossa civilizacd Distinguem-se assim, © periodo de influéncia de Micenas (1200 aC.) que transuda a0 Minuano de Creta; 0 chamado “geométrico” que faz lembrar as, angulares estilizagdes egipcias © 0 convencionalismo assirio (IX a0 VIIT séculos a.C.), 0 “arcaico” (do VIL ‘a0 V séculos a.C.) em que sobressaem as figuras jovens nuas (Kuros e Korai) com seu sorriso estereotipado, © periodo “classico” (do V ao IM séculos a.C.), consi- derado a Idade do Ouro, 0 apogen estético grego ¢ 0 hhelénico, (do IV 20 I séculos a.C.), em que se destacam as estatuetas, entre elas, as famosas tinagras, nas quais desabrocham em toda a sua plenitude, com caréter r6prio, o talento ¢ o virtuosismo daquela gente que iia Iegar a_n6s, latinos, um inigualével acervo de beleza e um inesgotdvel manancial de cultura Porém na Antigiidade, nao foram somente os ‘gregos que souberam manipular a terracota com des- ‘reza e cfiatividade. Antes deles os povos de Creta, da Mesopotamia, da China, Egito, brindaram-nos com esplendidos espécimes. Mas, nese mostrudrio universal da terracota 0 nosso. continente nao deixa também de patticipar, embora a presenca do homem na América, tenha sido constatada com maior atraso no tempo do que na Asia, Africa e Europa. ‘Diz-nos Cecilia Meirelles ®: “Autorizados ameri- canistas, como Paul Rivet, chegaram a conclusio bascando-se em conhecimentos atuais de arqueologia, de que a Antigiiidade do homem no continente ameri- cano, no pode ser recuada além do pelistoceno, ou talvez na aurora dos tempos neoliticos. Isso. situaria © povoamento inicial da América do Sul entre 20000 € 7000 ou 8000 anos antes de Cristo, ¢ 0 Brasil nao deve estar distanciado dessas datas”. Alberto Rex Gonzales também nos informa: “Dispomos de algumas evidéncias que permitem esti mar que o homem deve ter chegado a América do Sul © ocupar os Andes, hd uns 25000 anos”... E quanto a presenga da cerdmica, assinala: “Na Col6m- bia a cultura cerimica mais antiga se representa pelos achados de Puerto Hormiga (3000 aC.) em cuja ceramica hé algumas figuras modeladas com indubitavel ‘Apesar desse atraso no tempo do desconheci- mento do uso da roda pelo homem americano, antes, das conguistas ibéricas, nem por isso deixa ele de figurar com brilho, originalidade e diversificacao impares nese cotejo universal. Diversas culturas esparsas pelo nosso continente civilizagGes marcantes como a Azteca, a Maia c a nos deixaram um mostruétio tio rico quanto Nele predominam formatos globulares ¢ s, 0 uso do tripode como base de apoio, a ‘cio de umas funerérias, potes representando fe cabecas humanas, os “waco”, e de animais ‘como criagées tipicamente continentais 0 fabrico de sos comunicantes, a que chamarfamos de xip6fagos rando geminados, ou de pecas duplas ligadas por Quanto A participagdo brasileira nessa mostra merindia da terracota, nfo deixa ela de concorrer ondignamente. Hi mesmo antropélogos que julgam ue a perfeicao da cerimica amazinica colocaria os ssos indios em grau superior ao cultural Neolitico Gm que sio clasificados. Essa cerdmica da regio ‘amazénica (Marajé, Miracanguera, Rebordelo, Mar: ‘e4, Santarém, etc.) corresponde ‘a um tempo nio ‘mlito afastado do Descobrimento ¢ em geral foi deste _ contemporanea. Nossos selvicolas pré-cabralinos desconheciam 0 ‘tomo e mesmo o uso de moldes ou de formas (estas ram usadas pelos andinos), mas mesmo assim ‘manipulavam a argila com notével virtuosismo técnico, ‘sua producio nao deixa de apresentar um encanto ular, pois no se repete. Essa ceramica indigena a atengio de varios cronistas de nosso passado que a cla néo deixam de referir-se, como Staden, Léry, Thevet, d’Abbeville, Carvajal, Heriarte, Cardim, Gabriel Soares e outros Cecilia Meirelles, em observaco detalhada sobre “essas manifestacdes artesanais, qualifica-as de sober- s, admiriveis, surpreendentes, etc, O que poderia parecer uma explosio de ufanismo regional é na ealidade, a constatagdo de um fato, pois miltiplos ‘museus, tanto da América como da Europa, exibem cerimica marajoara ¢ santarena, como também a elas se referem quase todos os tratados de arte. O ceramé- grafo Warren E. Cox, ao descrever uma garrafa de Santarém, nao deixa de assinalar-Ihe 0s predicados: “boca bem modelada e decorada com desenhos incisos ¢ exuberantes detalhes”. ‘As duas cerémicas que mais se destacaram na Bacia Amazénica nos so assim desctitas por Cecilia Meirelles: “A marajoara cléssica na arqueologia brasi- lira 6 caracterizada acima de tudo pela riqueza dos omatos geométricos gravados ou pintados com admiré= vel firmeza ¢ pericia em suas urnas funerarias e em vyasos, idolos © outros variados objetos. Quanto a ouca’ de Santarém (Tapaj6) € um verdadeiro musen de zoologia... Tudo para ele (0 indio amazénico) era zoomorfo e antropomorfo. ... Nesse jardim z0olé gico que & a ceramica tapajé (verdadeiro catélogo da. fauna regional, como téo bem defini Linné), t os bichos so representados”. Carlos Estevao ©) assim se refere: “Seu estilo & inteiramente diverso. dos demais existentes no Brasil. De notar ainda alguns tragos inconfundiveis de seu estilo, como o tratamento dos gargalos sobrecarregados de ornatos ¢ relevos, representacoes do género “figurines”, e uma riqueza exuberante a lembrar um barroco nativo, Os tapajés também fabricavam cachimbos em terracota altamente elaborados”. ‘Quanto @ parte decorativa nos informa Eduardo Galvao "9: “Como téenicas da decoracio predomi- nam as pinturas em duas ou trés cores © 0 gravado (inciso) ou em relevo (exciso) usando-se algumas vezes, simultaneamente, esses _vérios ccessos. A ornamentacdo da cerdmica da fase Marajoara se limita quase exclusivamente ao tratamento da super ficie dos vasos”. As tinagras de barro decoradas $80 ‘as pegas definidoras por exceléncia da fase Marajoara. siticaiitts midi ‘ai naealbiliias si siti ita uw II° Capitulo Te II - BARRO CRU e TERRACOTA (IMAGINARIA) © chegarem os portugueses a Terra de Santa Cruz, depara- ram-se-lhes povos ainda no esté- gio cultural da Idade da Pedra Polida, ou do Neolitico, e a té&- nica de manipular o barro pren- aod dia-se ainda as duas primeiras categorias de cerdmicas: a do barro cru seco 20 sol ea do barro cozido artificialmente, ou terracota. Ao tempo dos Descobrimentos, j4 havia em nosso territério uma ponderavelpopulagio autéctone, estimada em dois milhoes, que se esparrama em manchas esparsas, @ beira do mar, dos rios, dos lagos e pelas florestas. A maioria das iribos brasileiras entre o seu variado artesanato dedicava-se & cerimica e, na distri- buicio do trabalho doméstico eram as indias que se entregavam 2 lide oleira, Os estudos arqucoligicos, intensos e extensos, procedidos desde 0 século passado, ¢ contemporanea. mente ordenados ¢ sistematizados, concorrem para recompor aquele mostrudrio artesanal. Esta exumacao realizada com critério cientifico em numerosos sitios, vém trazendo a luz, centenas de milhares de fragmen’ tos. $6 0 Museu Emilio Goeldi, em Belém, possui mais de duzentos mill Este documentério, a0 mesmo tempo que nos exibe 0s tipos e caracteristicas da cerfimica aborigene, vai servindo de basc, para os arquedlogos ¢ antropé- logos, de aferigio do desenvolvimento, do parentesco cultural e da localizagéo, no tempo e no espago, dos ndcleos tribais pré © pés cabralinos. E a sistemitica mais recente adotada nessas pesquisas é procedida principalmente, através do exame da cerdimica encontrada que € agrupada dentro de uma nova nomenclatura que atende aquelas finalidades (gor Chmyz-1966) ‘A reconstituigio desse passado, que uma escrita répria teria revelado, ¢ que apenas se vislumbra atra- vés de episédios esparsos referidas pelas crénicas, leva ‘os pesquisadores a se apegarem a um dos poucos elementos tangiveis que Ihes restam: a cerdmica. E € através de sua “leitura” e da sua classificagao que vao eles estabelecendo as fases arqueolégicas comple- mentando a histéria do homem americano. Todo o material recolhido € separado por dices", o que na linguagem arqueolégica significa “grupos de elementos ou téenicas que se distribuem com persisténcia temporal” ©. Para efeitos daqueles estudos foi 0 nosso territério dividido em duas vastas zonas: a da Bacia Amaz6nica e a da Faixa Costeira, abrangendo esta todo 0 territ6rio — interior e litoral — abaixo daquela, Na primeira, foram relevadas as seguintes tradigées: “hachurada zonada — borda incisa — poli- eroma-incisa ponteada. Na Faixa Costeira as tradicdes regionais — tradicdo tupi-guarani (esta com subtradicao corrugada, escovada, pintada, corrugada-escovada, pin-” tada-corrugada) © a tradigao neo-brasileira” ©, Numa visio de conjunto, a primeira zona foi mais beneficiada pelas migracdes ocorridas que sc proces- saram provindas da regiao andina de maior desenvol- vimento e que se fixaram em micleos na Amazénia brasileira, Diz-nos Eduardo Galvao: ® “alguns grupos de maior avanco cultural penetraram na Amazénia, em tempos pré-colombianos, vindos das encostas orientais andinas. As mateas de sua passagem encontram-se na cerdmica acumulada em iniimeros sitios ao largo do Amazonas. A afirmagio de sua origem ocidental e do alto nivel de sua cultura encontram-se na qualidade, na decoragio e na forma dessa ceramica. A forma e estilo ornamental dos vas0s indicam um parentesco com, ‘8 povos da regido subandina e do mar das Carafbas. Entretanto, identificam-se por caracteristicas proprias, 207 8 ———————— facilmente percebidas na ceramica de Marajé e de Santarém”. ‘Assim, entre aquelas duas divisoes mestras do tervitdrio, existe uma diferenca marcante. Na Amazénia, além da produgio costumeira de artefatos utilitirios, de culto e de adorno sem maiores atrativos ornamentais, destacam-se em alguns centros, produtos de elevado padrao artistico ¢ técnica apurada, de que séo expoentes as cerimicas Marajoara e Santa rena, entre outras, ¢ de que jé demos noticia no 1.° Capitulo ao abordar a Terracota no concerto universal. Na Faixa Costcira, o fabrico local nao apresentava aqueles atributos de’ originalidade ornamental, de técnica ¢ elaboracdo artisticas; as formas ¢ a decoragio cram mais simples, mais primérias ¢ rudimentares. ‘Na Bacia Amazénica, predominavam os Indios Tapajés ¢ na Faixa Costeira, os Tupinambés ¢ foram cles objeto das primeiras referéncias sobre 0 artesanato oleiro no quinhentismo brasileiro, ‘So cronistas estrangeiros — alemies, franceses © castelhanos — que nos dio conta, em primeira mo, ddas impressoes sobre a cerimica amerindia Hans Staden, cuja figura € até hoje reverenciada ‘entre nés, assim’ nos informa em sua obra: ...As, mulheres Tabricavam os vasos do seguinte modo: “Formam com barro uma espécie de massa a que dao a forma desejada; sabem muito bem colorir. Deixam estes vasos secat por algum tempo, os poem depois em cima de pedras, cobrem com lenha e assim deixam no fogo até ficarem rubros, entéo acham-se suficientemente. cozidos” , Jean de Léry, francés natural de Lamargelle, na Borgonha, missionério calvinista, companhelro de Villegagnon, em seu “Journal de Bord en la terre de Brésil en 1557", cuja primeira edigio foi publicada em La Rochelle em 1578, & mais explicito. Damos na integra o texto original em francés porquanto algumas tradugdes podem levar a um equivoco no tocante a0 emprego do vidrado pelos Tupinambis. O texto divide- se em duas partes, a primeira referente ao fabrico © as formas ¢ a outra relativa A decoracio. “Or, pour faire un sommaire des autres meubles de nos Américains, les femmes (qui ont entre elles, toute la charge du ménage) font force cannes et grands vaisseaux de terre pour faire contenir Ie breuvage dit caouin, somblablement, des pots @ mettre a cuire, de forme ronde ou ovale, des poéles moyennés et petites, plats et autres vaisselles de terre”. Colle-ci, n'est guére tunic au dehors, elle est néamoins bien polie et comme plombée au dedans par une certaine liqueur blanche qui durcit, et il n’est pas possible aux potiers de par-decé de mieux accoutrer leurs poteries de terre”. ‘As palavras “et comme plombée”, vém sendo traduzidas por “to bem vidradas” quando o certo é como (se fossem) vidradas”, © que se coaduna com a realidade técnica. trecho seguinte do mesmo parégrafo, concerna 1a decoragio © nele Léry é mais prolixo: “Ces femmes detrempent aussi certaines couleurs grisétres, propres A cela et font avec des pinceaux mille petites gentilles- ses, comme guillochés lacs d’amour et outres dréleries au dedans de ces vaisselles de terre, principalement en celles qui contiennent la farine et les autres. viandes: de fagon qu’on est servi assez élégamment voire dira je, plus honnétement, que le sont ceux qui usent, par- degé, de vaisselle de'bois. Et il est vrai quill existe un 208 défaut chez ces peintresses américaines: elles font avec leurs pinceaux ce qui leur sera venu en fantaisie. Si vous les priez ensuite d'en faire de la méme sorte, comme elles nont d'outre projet, dessin et crayon que Ja quintessence de leur cervelle qui trotte, elles ne sauraient reproduire le premier ouvrage: a ce point que vous m’en verrez jamais deux de la méme facon”. Frei Gaspar de Carvajal, que fez parte da expedi- 80 do Capitio Francisco de Orellana em 1541, que primeito desceu 0 Rio Grande ou o Rio de Orellana (Rio Amazonas) nos dé uma pitoresca descri¢éo do que observou na hospitalidade do chefe Omagua, entre os indios Tapajés. Damos na integra o texto em caste- Ihano para maior fidelidade de interpretagao: “En este pucblo estaba una casa de placer, dentro de la qual habia mucha loza de diversas hechuras, asi de tinajas como de céntaros muy grandes de més de veinte e cinco arrobas, y otras vasijas pequends como platos y escudillas y candelabros desta loza de la mejor que se ha visto en el mundo, porque 1é de Mélaga no se iguala con ella, porque es toda vidriada y esmaltada de todas colores y tan vivas que espantan, y demés isto los dibujos y pinturas que en ella hacen son tan ‘compasados que naturalmente labran y dibujan todo como Io romano: y alli nos dicieron los indios que todo Jo que en esta casa habia de barro lo habia en la tierra adentro de oro y de plata, y que ellos nos Hlevarian alla que era cerca”. © Conguanto este relatério tenha sido claborado por um frade culto, a afirmagio de que existiam pecas de louca vidrada nao veio a ser confirmada por pesquisas procedidas na regido dos indios Omégua. Se ela fosse ‘comprovada, o fato teria enorme repercussdo na hist6- ria da Cerémica no Novo Mundo, porquanto 0 emprego do vidrado néo era conhecido na América inteira a0 tempo dos Descobrimentos. Aproveitamos 0 ensejo para esbocar os métodos empregados pelos indios brasileiros no preparo de sua ccerdmica, e por certo pelo que acabamos de dizer deles, no consta a manipulag2o quimica do vidrado. ‘Ao chegarem os portugueses as nossas bandas, encontraram eles trés tipos de tribos “as que no fabri cayam cerémica, as que produziam louga de barro cru seco a0 sol ¢ as que a coziam 20 fogo e toda a ceramica era fabricada a mao, com a ajuda dos mais rudimentares e improvisados instrumentos, pois o torno de olaria era completamente jgnorado pelo indio americano antes da ‘conquista ibérica; o sistema de moldes ou formas ta0 usados na regiéo andina era desconhecido no Baixo Amazonas como em Maraj6”. © Quanto a coleta do barro, sabiam os indios fazé-lo de forma apropriada, assim como preparar massas mis- turadas com areia, cinzas, conchas ¢ pedras moidas ¢ até com fragmentos de quarizo e feldspato. Sabiam modelar através dos processos cléssicos de espiral do levantamento, assim como alisar as_paredes dos artefatos antes de levé-los 20 fogo, como dar-Ihes poli- mento com seixos depois de ¢ozidos. Conheciam a tée- nica de recobrir as pastas com engobe ou barbotinas, usando 0 tagud (perOxido de ferro) ou a tabatinga. E quanto ao cozimento, seguiam as normas neoliticas, cabendo ressaltar a singela referéncia de Hans Staden, e que lembra o uso do tripé pré-histérico, quando informa: ... “os vasos os péem em cima de pedras, cobrem com lenha, e assim deixam no fogo até ficarem tubros, entéo acham-se suficientementes cozidos.” ‘Quanto as formas, as crOnicas de Staden, Léry Carvajal ja nos revelam uma grande diversidade de modelos como de tamanhos (embora estejam clas ainda incompletas, pois sabemos que fabricavam urnas funerdrias, colheres, fusos, apitos, tangas, bancos, carimbos planos e circulares, botoques, cachimbos, estatuetas, etc.), Assim nesses. primeiros ‘arrolamentos ja constam: grandes vasos, panelas, frigideiras médias fe pequenas, pratos ¢ outros utensilios (Léry) como muita louca de diferentes formas, tinalhas (?) cantaros grandes (de. mais de 25 arrobas!) e outras vasithas pequenas como escudelas © candiciros (Carvajal). E quanto A decoragao plistica souberam as oleiras indigenas dominar as formas e aduzir ornatos relevados, praticar as téenicas milenares do inciso ¢ do exciso, as Go esgrafitado e ainda outras variagdes. Faziam uso de carimbos e de roletes, estes também aplicados & pinturas sobre a pele. Informa-nos Napoledo Figueiredo, Maria Helena de Amorim Folha (pag. 17, ob. cit.) referindo-se & tradigio tupi-guarani que ela era caracterizada (em grande parte) pela decoracio acanelada, corrugada- escovada, incisa, modelada, pintada ¢ roletada. Sabiam ainda 0s indios imprimir um brilho notével as pecas através do polimento com seixos, acabamento este que cchegou a impressionar a Léry e/a confundir Carvajal, que tomou as pecas vistas na Amazdnia como sendo realmente “vidradas € esmaltadas” ‘Acompanhando o costume dos indios de pintarem- -se a si préprios — cabega, corpo e membros — trans- feriram as oleiras Aquele pendor ativico para a decora- do da cerimica, colorindo-as @ frio. Valiam-se para tanto de cinzas, como de tintas vegetais ¢ argilas de diferentes cores que a Natureza prédiga Ihes punha ao alcance das mios, dessas ancestrais pioneiras da deco- ragio em nossa terra Assim diz-nos Angyone Costa: ® — 0 tejuco, 0 gess0, o carvio vegetal, o urucum, o caraju ou carajura, etc, davam-lhes embora restrita, uma paleta com branco, vermelho, preto e cinzento. ‘Quanto a aplicagao dessas tintas, hé que observar que Léry por duas vezes em seu relato informa que as, indias empregavam “pincéis”, sem especificar se de penas, de pélos ou de fibras. ‘Nos desenhos pinturas hé predomindncia das representagdes antropozoomérficas ¢ das variantes geo- méiricas e lineares. Curioso que Léry se refere entre 0s desenhos indigenas a0 guillochis ou “guilloché”, muito empregado na ourivesaria européia através de roletes. Apesar de nfo contarem com o toro © dg s6 disporem de um instrumental improvisado © de uma paleta restrita, mem por isso deixaram essas vossas, hhumildes artistas, de apresentarem pecas bem acabadas, de pequenas ¢ avantajadas proporgdes, como caldeires, igagabas, camocins, como de aptazivel colorido ou ainda pegas de excepeional valor artistico como, entre outras, as de Santarém e Maraj6. ‘Aqucles primeiros observadores quinhentistas de nosso meio e que abrem a galeria de nossos primeiros criticos de arte ndo deixam de se pronunciar, encomias- ticamente 2 cerfmica gentflica Diz Staden: “‘sabem muito bem colorir”. Carvajal eleva aos pincaros a sua admiragao: ... “desta louca da melhor que se tem no mundo”... “a de Malaga no se iguala com ela” ¢ “além disso ‘os desenhos ¢ pinturas que nela se fazem so tio compassados que naturalmente executam e desenham tudo como 0 roma- no” (Carvajal € em parte suspeito de exagero, pois, chegou a afirmar que as Ioucas eram “vidradas esmaltadas”). Léry informa que elas executavam a pincel mil desenhos delicados como “guillochis” ou “guilloché” € outros estranhos e observa talvez. com dose de humor: “existe um defeito nessas pintoras americanas: elas fazem com seus pincéis 0 que Ihes dita a fantasia... a tal ponto que nao se verdo jamais duas pegas com decoragao igual”. Nesta observagio esté, a nosso ver, 0 maior elogio que poderia caber As humildes ancestrais de nosso folclore. Livres, no seu mundo livre, elas iriam trans- mitir a mensagem da liberdade & arte propular, com seu ctinho de ingenuidade, espontaneidade e improvi- sacio, com um sabor peculiar, puro ¢ auténtico. Sobre a cerimica Marajoara, o Prof. Mério Simoes teve oportunidade, no langamento de uma série filaté- Tica langada pelos nossos “Correios e Telégrafos", em que era reproduzida em sclo uma urna marajoara, de emitir precisa apreciago sobre a famosa cultura indi gena, Para maior clareza reproduzimos 0 texto na into- gra € 0 selo posto em circulacao. 149 CERAMICA MARAJOARA — PARA. “A ilha de Marajé, com cerca de 48,000 km?, estd situada no Estado do Paré, e € a maior ¢ mais importante da fox do Amazonas. De topografia relati- vamente plana, coberta por mata tropical a oeste © extensos campos a leste, e sulcada por intémeros rios e igarapés, foi ocupada no passado por antigos grupos indigenas pertencentes a cinco culturas ou fases arqueo- logicas distintas, as quais habitaram sucessivamente a parte centro-oriental da ilha a partir de 1100 antes de Cristo. Destas fases ou culturas pré-cabralinas, destaca-se, quer pelo nivel cultural alcancado, quer pela extensa rea ocupada, a fase MARAJOARA, troduzida na ilha cerca do ano 400 de nossa era € ali se extinguindo em 1300. Seus aterros artificiais, construfdos ao longo dos ios e lagos para fins de habitagio, ceriménias ¢ ccemitérios, como também a cerimica altamente elabo- ada noles encontrada, atrairam desde cedo a atencéo de vigjantes e naturalistas que deles se ocuparam em suas narrativas ¢ trabalhos publicados. Contudo, somente em meados de nosso século, com as pesquisas de Clifford Evans e Betty Meggers, foi identificada a fase MARAJOARA, bem como estabelecida uma 209 seqiiéncia de desenvolvimento cultural para Marajé © reas proximas. "A cerfimica de fase MARAJOARA, a0 contrario daqueles que a precederam e sucederam na iha, & produto de um artesanato consciente, expressado pela Tigida padronizagio de formas e sofisticadas técnicas decorativas. Urnas funerarias, vasos cerimoniais, ban- cos, tangas femininas, estatuetas, etc., engobados de ‘branco © pintados com complexos desenhos pretos € vermethos, ou ainda por excisdes, incisées e modela- gem, atestam o alto grau de desenvolvimento artistico do qual essa cultura era portadora”. MARIO F. SIMOES Museu Paraense Emilio Goeldi. Com a chegada dos europeus e dos primeiros oleiros, parte deles improvisados, nas Capitanias, a cerimica no Brasil adentra em sua segunda fase que caracterizada por novas técnicas. Numa costa e territério imensos, com feitorias € estabelecimentos dispersos, 05 habitantes, por forca das circunsténcias, tinham que elevar a0 méximo a sua capacidade de improvisagao.e promover o mais possivel a sua auto-suficiéncia, Para tanto valiam-se éles do vasilhame autéctone, ow fabricavam 0 seu pr6prio ou utilizavam © importado. Essas trés opcdes, que muitas vezes se entrosam, que irdo marcar 0 panorama cerimico quinhentista e comecar a definir o quadro do equipamento domés- tico colonial. "Assim nos sitios isolados, nas grandes proprieda- des rurais, como os engenhos, c nas irmandades, Sobretudo ‘as jesuiticas, como nos povozdos ¢ vilas & que tém inicio 0 artesanato cerimico, as vezes impro- Yisado, ea industria oleira, para suprirem a demanda do meio, tanto do utiitério, como do de adoro ¢ do da construcio. Diz-nos Serafim Leite: “Os portugueses levaram as olarias para o Brasil no perfodo das Donatarias © chegaram varios oleiros em 1549 para a fundacao’ da cidade de Salvador, mas a ceramica ja era, praticada pelos indios do Brasil antes dos Descobrimentos © les sempre foram bons colaboradores dos irmaos da ‘Companhia nesta arte” “A primeira noticia de que os irmios fabricavam objetos de barro € de 1560, na Capitania de Sao Vicente, e € provavel que j4 a fabricassem antes, quer ai, quer na Bahia, sem se individualizarem os irméos fabricantes. O que deixou maior nome foi Amaro Lopes, mestre oleiro na Bahia, que exerceu a arte no século XVI e ensinou bem ao pessoal do Colégio”. Sao citados ainda pelo referido autor outros irmaos, como Afonso Braz, (1524-1550-1610) arquiteto, Forge ‘Antdnio (1555-1574-1608), oleiro ¢ enfermeiro, Barna- bé Telo (1542-1583-1590), oleiro, alfaiate, carpintei- ro. (“Artes e Oficios dos Jesuitas no Brasil” — 1549- “1760). Nesse rol de pioneiros quinhentistas, destaca-se ‘© padre Afonso Braz: de quem € dito: “nao se conten- tou ele em fazer as casas dos Tesuitas. Pode ser consi- derado 0 primeito arquiteto do Brasil ©. Torge de Lima, em Anchieta, conta que o irmio Diogo Fécome “levantou um torno de pé sem nada ter jamais sabido do oficio que o que The deu a engenhosa caridade”®®, Nesses primérdios de instalacao e de fixacao no Territério, com obras de porte para a época, eleva assinalar as realizagdes levadas a efeito por Braz Cubas como Provedor das Capitanias de Sao Vicente ¢ de Santo Amaro, cuja figura apontada como “um genio construtivo” por J. P. Leite Cordeiro Construiu ele diversas casas (de pedra ¢ cal) em So Vicente © Santos a mando de Thomé de Souza, como fortificagées (a da Bertioga € Ihe atribuida) ¢ em 16 de fevereiro de 1553, iniciou a construgio da Casa da Alffndega de Santos, que entre outras especi- ficagdes deveria ser coberta de telha e abrigar artilharia. Entre as téenicas de construcéo importadas, pre- valecia no litoral, onde a pedra de regra, era. mai abundante, os estabelecimentos levantados “de pedra e cal” ou de “pedra entaipada” “, O emprego do tijolo era restrito pelo custo, falta de mao-de-obra & produgio insuficiente. Assim os sistemas aplicados difundidos nas Capitanias eram os de taipa de pilio, do adobe e do pau a pique, prevalecendo n0 entanto nas de Séo Vicente e Santo Amaro, 2 taipa de piléo com “repartimentos” internos de taipa de mao, uso esse que iria prolongar-se até 0 século XVIII. A Camara da Vila de Séo Paulo em 1594, chegava a alugar ou aforar sete taipais, aos moradores, ou seja, as tabuas entre as quais 0 barro era socado “>, E 0 barro de terra tratado & curopéia ainda cor tribuia para modificar 0 aspecto pacato da povoacéo bandeirante, transformando-a, durante certo periodo em recinto murado: a Vila Forte de Piratininga. Em 1562, os chefes indios Jangoanhara ¢ Arati, a 10 de julho, atacam e quase sobrepujam as forgas locais. Segundo as Atas da Cimara de Séo Paulo, a 5 de novembro, 0 procurador do Conselho, Luiz Martins, requer que “se acabassem os muros ¢ baluar- tes”. Mais tarde, depois de conclufda a cinta de defesa da vila, e acontecendo que varios moradores fizessem bburacos na mesma, 0 atento ¢ precavido procurador intima varios moradores para que, no prazo de um més: “tapassem as ditas taipas, de’taipas de pilio ¢5 pena de quinhentos réis para 0 Conselho” Assim, & maneira medieval, trancava-se a popula do no alto da colina, dominando os vales adjacentes © espreitando a aproximacio do gentil hostil, ¢ a segu- Tanga de sua defesa externa, & qual nao faltavam baluartes, dependia da muralha de barro, levantada em taipa de’ pilio. E assim, segundo Anchieta: “Ficou Piratininga segura de todo embate” E 0 que dizer das coberturas das casas nesse Brasil de antanho, em processo de formacao? O que domi- nava a visio do casario das vilas nesses tempos recuados? Era certamente a mesma visio cinzenta do cenério neolttico, que se tinha com as tabas do sel cola. Era o sistema de se cobrirem as moradas com patha ou sapé, que perdurou ainda bastante tempo nos entros urbanos apis a Descoberta, como perdura até hoje em parte do meio rural. As Atas da Camara nos confirmam gue elas eram cobertas de sapé ou de palha, © a propria Camara da Vila 6 veio a ser coberta de telhas apés contrato firmado com o oleiro Christovam Fernandes que se obrigara também a cobrir o resto da vila. Isso no ano de 1575. ‘Quem primeiro solicitou © obteve permissio para montar em Piratininga uma olaria para fazer telhas aut foi Christovam Diniz, genro de Domingos Fernandes c, com este, fundador da atual cidade de Itu. Obteve Christovam Diniz, licenca da Camara, bem como o terreno necessério para montagem da olaria; no Tevou avante o seu intento, pois “se fora para o mar”, Em ata da sessio da Cimara, de 6 de margo de 1575, € dito que aquele oleiro se propunha a: “fazer telhas para se cobrirem as moradas desta vila por set cousa para enobrecimento dela”... “e a dita telha era necesséria por razio desta vila estar coberta de palha € correr risco por azo do fogo”. Sao estipuladas entao as condigies da remunera- gio do oleiro: “quatro cruzados em dinheiro pago no Ginheiro da terra que serio mantimentos ¢ carnes, gado bois © vacas e porcos porquanto nesta vila nio 4 outra fazenda... e ele a fard de bom tamanho ¢ ‘boa forma que fique de dois palmos e meio depois de cozida”. Sobre este particular do “dinheiro” em Piratinin- ‘ga, podemos lembrar que o sistema da barganha era 0 corrente e admitido oficialmente, e até pratos consti- jam moeda de troca com “agiicar branco ¢ rijo” em fins do século XVI e comego"do XVII . ‘A Camara determinou o tamanho da telha a ser fabricada na Vila, nao fez referéncia 20 tipo pois que nesse periodo até’o século XIX € a telha denominada em Portugal de “canudo ou romana” que iri, dominar nas coberturas, a qual chamamos nés de colonial ow de telha de canal Quanto @ primazia do setfabrico na Capitania, acreditamos que caiba a Sao Vicente ¢ a Santos, poi Braz Cubas, como vimos, jé em 1553, ficara obrigado a cobrir as’casas da Alffndega com aguele material. Ha também outra indicacdo, est’ no_planalto referente & Fazenda de Piquery, 0 que recuaria para ‘muito antes, pelos idos do 1536, o emprego de telhas. Diz J. P. Leite Cordeiro (ob. ‘cit. pags. 31-53-56) “A tinha Braz Cubas, muito antes mesmo da sesmaria, uma fazenda de mantimentos e criagdo, casas fortes uma ermida coberta de telhas”, A fazenda referida veio fazer parte da conhecida sesmaria de Jurubatuba que Ihe foi concedida em 1536. Mas nio se tomem aqueles dados, o da barganha © 0 da escassez de casas cobertas de telhas, como parimetro aferidor da extrema pobreza da Capitania, © em particular do reduto bandeirante em plena fase de fixago © desenvolvimento. Hé que considerar a época, a distancia da costa, as condigies locais, como também estabelecendo um paralelo com o que se passava entre a populagéo da propria Metrépole, em pleno devaneio de seu poderio e prosperidade. 86 entio, poder-se- formar um juizo mais justo da realidade vicentina e da do Sul do tertitério brasi- leiro. Afinal de contas, em 1593, a vila jé dispunha de uma organizacdo propria de oleiros © de um juiz de oficio, (Afonso de E, Taunay — “Sao Paulo nos Primeiros Anos” — $. Paulo, pag. 111). No interior de Portugal, na mesma época, era ainda a ténica milenar da taipa de pilao que prepon- derava e a telha era escassa nas coberturas. Diz-nos renomado sociélogo: “Como a madeira fosse rara, construiu-se de preferéncia em taipa, pedra ¢ tijolo. .. os pavimentos faziam-se também de tijolos fou com ladrilhos em forma de mosaico... Na Serra de Montemuro, pelos meados do século XVI néo ha 212 nenhuma casa de telha, senio todas de colmo e todas terreiras, De colmo se cobria, aliés, boa parte das casas, em especial as da gente miéda... O que todos tinham eram aposentamentos térreos com fartura, simples pardieiros de terra batida, &s vezes com cober- tura de colmo ou de palha, onde'se guardavam alfaias € se depositavam comestiveis” “, Com tudo isso, quer nos parecer que os famosos bandeirantes, cujos inventérios sd0 por muitos lidos com comiscraco, ndo eram mais pobres que seus parentes ou compatriotas metropolitanos. Com razéo ¢ equilibrio, 0 saudoso Sérgio Milli no preficio de “Vida e Morte do Bandeirante”, assim se expressa: “o que coloca a verdade, acerca da riqueza, bandeirante, entre Oliveira Viana e Alcéntara Macha- do, nem tao ricos, nem tao miseriveis éramos nés no inicio do século XVII” “1, ‘Ainda com referéncia @ telhas ¢ outros artefatos cerimicos, Gabriel Soares em 1587, nos informa: “tem a Bahia muito barro de que se faz muito boa telha e muito tijolo de toda a sorte, de que hd em cada cengenho um forno de tijolos e telhas em os quais tam- ‘bém se coze muito boa louca e formas (de agiicar) {que se fazem do mesmo barro” @, Referimo-nos até aqui, mais especificamente aos variados empregos do barto nas construgdes, debaixo dos novos métodos trazidos de além-mar pelos coloni- zadores e que jé caracterizam a segunda fase cerdmica no Brasil, ou seja, a alienfgena IMAGINARIA Mas o barro cozido nessa segunda fase da Cerd- mica no Brasil, na qual passa a participar 0 elemento curopeu, scrviu também, ¢ com destaque, a uma ala importante da Arte, a estatusria, que iria se desdobrar nna imaginéria sacra erudita, na popular e ainda servir 20 folclore. Nesse Brasil de antanho, descoberto sob 0 signo da Cruz, 0 culto catélico era intenso ¢ as imagens traridas “da Metrpole nao eram suficientes para atendé-lo_¢ batisfazer a devogio dos figis. Nisso a participacdo das Ordens Religiosas, Jesuiticas, Francis ‘canas, Beneditinas, para complementar a escassez, foi decisiva © responsivel pelo desabrochar de uma arte que iria se desdobrar no espago e se firmar no tempo, com uma série de santeiros notéveis, os “figulus statuarius” no dizer de Serafim Leite ¢ abrir um campo ainda pouco estudado da arte popular leiga e sacra € do artesanato que de forma geral nela se calea c age como veiculo de sua divulgacao. Dom Clemente da Silva Nigra, a quem @ cultura © a Arte devem no Brasil uma das mais brilhantes contribuigdes, faz referéncia a um nome pioneiro. E 0 de Jodo Goncalo Fernandes, vindo da Bahia, autor das imagens de Nossa Senhora da Conceigéo, que pertence @ Matriz de Itanhaém, de Nossa Senhora do Rosirio © de Santo Anténio, este quasc de tamanho natural, ambas da Matriz. de Sao Vicente (1560) (Exposigéo de Arte-Sacra-Rio-1955). Este santeiro abre a série espléndida @ que iria ‘consagrar nos oratérios, nas capelas, nas etmidas e nos, ‘templos, 0 elevado padréo da imagindria sacra erudita, de barro cozido e pintado a frio, executadas no Brasil, © marcar juntas com as produzidas no século XVII, a prioridade continental nese ramo da Arte, Dom a I Clemente o cognomina “pai da imaginéria brasileira’ ¢ Pedro de Oliveira Ribeiro Neto, dele nos conta: que Joao Goncalo Fernandes, segundo consta, “steve preso por motives politicos na cadeia de Itanhaém quando The foram encomendadas as imagen: estilo nos diz ainda: “poderia ser Joao Goncalo Fer- nandes, filiado & Escola Salaico-Biscainha do Norte de Portugal, de influéncia gética importada por biscainhos, galegos.... teria sido aluno de Joao de Ruio de cujas Virgens © Santas, tirow a expresso das imagens que nos deixou de heranga”... 22 ‘Ainda nesse quinhentismo surge também o artista ceramista, 0 arquiteto franciscano frei Francisco dos, Santos, que modelou duas belas imagens de Nossa Senhora, uma para Olinda, em 1575, e outra para Salvador (esta executada em 1616) @ e a0 mesmo santeiro so atribuidas por Pedro de Oliveira Ribeiro ‘Neto mais duas importantes Nossas Senhoras do Rosa- rio de bases diferentes, © que fizeram parte da capela, do creso. paulista Guilherme Pompeu de Almeida Dom Clemente atribui também a imagem de Nossa Senhora, da colegio do Dr. José Mirabeau Sampaio, de Salvador, aquele mestre. Nesse particular de fartura de imagens de barro ccozido, parte identificada, parte anénima, informa Dom, Clemente: “Verificamos Sio Paulo ser 0 Estado onde mais se produziu imagem de-barro cozido, desde 1560 até 1803, sem Até aqui procedemos a um esboco sobre a produ- fo indigena € a um apanhado sobre a alienigena que se The segue, produzida na terra. Falta, para termos uma viséo panordmica das categorias cerdmicas usadas nnesse quinhentismo brasileiro, a localizacio dos pro- dutos fabricados na Europa e na China. Certamente esse mostruério foi grande, a comecar pelos pertences trazidos pelos colonizadores lusos, complementado pelo abastecimento periddico feito pelas naus metropolitanas, que montavam a uma média anual de quarenta, no fim do século XVI 26, Alm disso, ndo faltaram em nossas costas, expe- digdes de diferentes nagées cobicando a presa gigante de Portugal. Parte delas traficavam, outras saqueavam e algumas ocupavam parte do territério, como é 0 caso. dos franceses ¢ holandeses. Fssas incursSes © ocupa- goes © as lutas terrestres © 05 combates navais decor- rentes, travados de Norte a Sul, deixaram vestigios materiais, A pesquisa arqueolégica terrestre e aquatica poderé aos poucos recompor aquele painel cerimico estrangeiro, através dos testemunhos materiais recolhi- dos, referentes a0 século XVI. Até © momento, faltam-nos esses elementos © na auséncia deles temos que nos reportar ao que existe cem colecSes © museus estrangeiros € nos basear nas indicagdes das crénicas conhecidas. Te Il - BARRO CRU e TERRACOTA om referéncia 8 producdo local dos produtos da olaria, inclusive louga de barr cozido, alinha- B] mos alguns dados de varias par- a] tes do Brasil. Na Vila de Pira- tininga © arredores, constata-se a disseminagio da atividade oleira com a presenca, entre a populagdo, de certos apetrechos de varios foros e olarias que slo revelados através de inventérios que abarcam a primeira metade do século XVI, mais precisamente de 1609 a 1656. ‘Como segue: — “Grade de fazer telha” (inventitio de Belchior Carneiro, 1609, volume 11); — “Forno de fazer telha © canoa de acarretar telha” (inventério de Francisca Cardoso, 1611, vol. IL); — “Forma de fazer lougas” (inventério de Manoel Requeixo, 1616, vol. XXXI); — “Sitio com umforno de telhas” (inventirio de Isabel Antunes, 1617 — vol. V); — “Forno de cozer telha” (inventitio de Joana Nunes, 1625, vol. XXXII); — “Olaria com seu forno de cozer telha’” (inven- tirio de Anténio de Oliveira, 1632, vol XID; — “Olaria_com casa © forno” (inventério de Diogo Coutinho de Mello, 1654, vol. XV); — “Olaria” (inventério de Luzia Leme, 1656, vol. XV), As indicagdes de “grade de fazer telha” ¢ “forma de fazer louca”, implicam em se admitir o artesanato casciro como atuante, tanto na produgio de parte de artigos de construgéo como na producéo do vasithame utilitério, Mas 0 que € de se notar naqueles singelos arrolamentos € que ndo ha mengio especifica a0 fabrico de tijolos, quando expressamente sao indicadas olarias e foros de fazer telhas. O que vém corroborar © fato, jd observado por vérios historiadores, de que © emprego da taipa de piléo foi e continuou sendo durante 0 periodo colonial e imperial o que dominava 4 técnica de construgao, sobretudo nos meios furais, ‘na Capitania e na Provincia de Sio Paulo, como mais, tarde na Capitania de Minas Gerais foi a técnica do adobe a predominante. Mas isso ndo quer dizer que no comeco do século XVVIL, 0 tijolo ndo fosse utilizado em Sao Paulo. Tem ele logo um emprego to inesperado quanto macabro aos vinte ¢ trés de maio de 1610, conserta 2 cimara da Vila com “Fernio Dalves” a construgo com tijolo cozido do pelourinho que seria pago a “tersa” parte em dinheito ou ouro e as outras duas partes em pano de algodio a “rezam de quatro reales a vara" @e9), Nao podemos deixar de assinalar a importincia de uma olaria no cendrio colonial. Ela era um instru: mento de. progresso € sua presenga pressupunha icleos ja em plena evolugio e por certo um atestado de civilizacio nese Brasil em formacio. De suas cntranhas ardentes saiam os tijolos, telhas, Iajotas, tubulagdes © muitas vezes, como assinalou Femao Cardim, o vasilhame doméstico, © que & facilmente compreensivel pelo baixo custo dessa louga que apro- veitava as mesmas instalagdes, os mesmos fornos, ‘mio-de-obra, matéria-prima, transporte, ete. Podemos até dizer que as olarias e os templos represeitavam bem dois simbolos na paisagem verde- jante do jovem Brasil: o do esforgo empreendedor do homem ¢ a presenca de Deus a abencoar a tarefa Ardua dos pioneiros. Mas 0 tijolo no Brasil, nesse seiscentismo chegou também a ser importado. Isso porque, em parte scrvia de lastro para as naus ¢ em parte, supria a deficiéncia do fabrico local e apressava a concluséo de obras em certos centros litordeos Podemos revelar que os holandeses na parte ‘ocupada do Nordeste, davam-se ao luxo de trazé-los da Frisia para construcio de postos de defesa e de ceasas. Nao se trata apenas de citagio de crénica, mas de fato conereto, pois foram descobertos tais tijolos. lids, J. A. Gonsalves de Mello, pesquisador e arqued. ogo, no prefacio da obra “Azulejos Holandeses no Convento de Santo Anténio do Recife”, dé-nos informagées precisas quanto a importagio de tijolos. telhas ¢'Iadrilhos, ete., trazidos pela Companhia das Indias Ocidentais para o Nordeste. “Material de consiru- ao veio em quantidade considerdvel para Pemam- buco... no s6 por iniciativa da Companhia das Indias Ocidentais... como por diligéncia de particulares”. Muitos destes traziam consigo tijolos, pranchas de ma deira, cal € “outros materiais de construgo", e outros requeriam licenca para importacéo de telhas, etc. Para se ter uma idéia do enorme volume desse comércio, nos informa o erudito mestre que no periodo de janciro de 1641 a julho de 1643, isto é num peri do de 30 meses chegaram ao Brasil nada menos do que 1.154.550 tijolos ¢ Tadrilhos. Segundo o mesmo ‘autor, as importagdes nao eram suficientes, tanto que © Alto Consetho daquela Companhia, para pavimentar as ruas de Recife ¢ a construcio de varias casas, como 0. do proprio Conselho (225,000 tijolos) ¢ a do Palé- cio de Vriburg de Nassau e ainda ladrilhamento, resolveu aforar terras 4 _margem do Rio Capibaribe para a localizacéo de dez olarias. Vemos pois que Nassau queria dar ao Recife, sede da famosa Compa- nhia das Indias Ocidentais, um “status” de cidade tratada nos moldes europeus © preocupando-se em Uurbanizé-la, Nao s6 importava tijolos, como incenti- 239 vava com doagéo de terrenos, a instalagio de olarias. Preferia o barro cozido’& cantaria. Nisso seguia a tra~ digio dos Paises Baixos, onde até hoje predominam fag casas e edificios em tijolos, em grande parte pela escassez da pedra naquela regio. ‘Naquela informagio, hé a mencdo da pavimenta- gio de Tuas com tijolos e a referencia a ladrilhamento, {© que nos leva ao ladrilho e & lajota, ou seja a0 reves- timento de piso. ‘© chiio ou o piso de uma morada podia ser de barro socado, ov “batido” como preferem os portu- gueses, ¢ isso ainda se verifica hodiernamente no nosso interior, ou de ladrilho ou de lajotas e mesmo de tijolo, ‘muitas vezes de madeira ou ainda de lajeado e mesmo de mérmore importado, O emprego de materiais nobres estaria na dependéncia direta da_posicio do proprictirio, se particular abastado, se o Estado, sc a Igreja ou Irmandades ¢ também conforme a abundin- cia na regido de determinados artigos © a facilidade de importagao na regido litoranea, da cantaria lavrada fou de mérmore para edificios. Era som divida um pardmetro para aferir 0 grau de requinte do meio Social. Nesse particular veremos que no fim do século XIX © comego do XX, as cidades de S40 Luis do Maranhio ¢ Belém do Paré deram-se a0 luxo de revestir calgadas e colocar guias em marmore de Lioz ou de Extreméz trazido pelos veleiros portugueses © que ainda se acham em uso! Mas voltando aos pisos das moradas: (© que alguns ignoram é que a lajota tinha, tam- bém uma outta destinagio. Por mais curioso que pareca servia também para adomo ou remate do forro em casa de maior porte ¢ methor acabamento. Podia dar-se 0 caso do piso ser de lajota encarando 0 forro de mesmo material. Eram elas colocadas lado a lado, fencaixando-se na parte inferior das vigas, formando fileiras largas paralelas ao madeirame. Existe no Brasil, tum exemplo tipico desse processo em vérias salas ¢ salées do Convento de Santa Teresa do século XVII, onde funciona o Museu de Arte Sacra em Salvador. ‘A construgao desse harmonioso conjunto arquite- tonico € atribuida ao arquiteto espanhol, 0 monje beneditino Frei Macario de Sao Jogo, segundo a abali- sada opinido de Dom Clemente. Diz ele que como espanhol, Frei Macério deve ter conhecido as cons- trugdes carmelitas da Espanha, especialmente a de Santa Teresa, em Avila, “transpondo elementos ibéri- cos, tio do agrado dos’ Carmelitas da Reforma espa- hota”. Estaria assim explicada a razio de ser aplicado ao forro um procedimento tipicamente espanhol, jé ‘que 0 seu construtor conhecia as técnicas aplicadas ma Ibéria®, 'A técnica talver. de origem mudéjar era muito empregada na Espanha, com um tipo de lajota grande fou placa de cerimica, decorada com brasdes ou dese- nos, © que era chamada de “soccarrat”, porém apoiadas elas na parte superior das vigas © mio encai- xadas na parte inferior, como ocorre no Brasil. Essas Tajotas nos forros constituiam um trunfo a mais de gue dispunha 0 arquiteto colonial no complemento da decoragao de um ambiente nobre. ‘Mas no Brasil seiscentista o emprogo das técnicas uitramarinas de construgio, através dos varios pro- cessos de condicionar o barro cru ¢ as de produzi-lo qucimado nas olarias demonstrava positivamente uma evolugdo sécio-econdmica. Mas 0 barro foi e sempre 240 seré um poderoso instrumento de manifestagdes de fordem cultural. E nesse particular o Brasil nese século XVII, desponta radiante nas demonstragoes exuberantes ¢ diversificadas de ordem artistica, IMAGINARIA HG um atavismo que acompanha o homem, como um fendmeno genético, através dos tempos ¢ sempre se manifesta num binsio cléssico: Utilidade ¢ Estética. ‘Dom Clemente da Silva Nigra, o infatigével pes- quisador e fundador do Museu de Arte Sacra da Bahia, fm suas aprofundadas pesquisas ¢ estudos, revelou a0 meio cultural e artistico 0 que descobriu nos boloren- tos e picotados alfarrabios do opulento arquivo da Ordem de So Bento ¢ que deu ensejo 2 identificacao de autoria e localizagio de pecas em locais diversos. Nada mais nada menos do que a existéncia de varias dezenas de imagens feitas cm terracota pelos dois ‘maiores santeiros seiscentistas no Brasil: Frei Agosti- tho da Piedade Frei Agostinho de Jesus, até entio desconhecidos, sepultados que estavam na pocira do tempo ou no. sudério do ésquecimento. .Produziram esses dois notiveis artistas obras soberbas que se espa- Tham por oratérios e altares de Sdo Paulo, da Bahia, Rio, Pernambuco c alhures. Frei Agostinho da Piedade nasceu em Portugel, ptesumivelmente em 1580 ¢ faleceu na Bahia em 02.04.1661. Esse escultor ceramista dominou a mode- lagem do barro como também a dos metais como a prata e o chumbo. Neste setor da ourivesaria aplicada 4} estatudria, revela-se também um dos precursores da fundigao artistica no Brasil. As numerosas invocagdes ‘que interpreta, demonstram a versatilidade do artista na ctiagdo. A série de relicérios tanto em barro como fem prata © uma parte das imagens apresentam uma claborada fatura seja nos ornatos das vestimentas como no tratamento das cabecas, cabeleiras, coroas, coifas, mitras e resplendores. Seu estilo € identificado por Dom Clemente como continuidade dos “fulgores da Renascenca, manifestado em Portugal, no mosteiro de ‘Aleobaga e que certamente influenciaram o artista”. Porém, ha uma outra série de imagens que ja se integram nos alvores do barroco brasileiro e contras- tam com 0 convencionalismo sacro, académico hirto. Nela © magistral _monge beneditino liberta-se das amarras escoldsticas, diversifica posturas, inova for- ‘mas, domina a anatomia, para transmitir, expressiva fe vigorosamente, as mensagens de, suas representagoes. Desta série, € expoente maximo o Séo Pedro Arrependido, Ela transmite “uma forga exuberante © ‘uma intensa concentracio intima” ¢ revela Yo extremo fabatimento do apéstolo”, no dizer de seu bidgrafo. Segundo Clarival do Prado Valadares, @ obra repre- sentaria o auto-retrato do monge beneditino € sobre fla assim se pronuncia... “Ea Gnica figura que for- mula na anatomia humana 0 profundo estado de devocao, de humildade e de humilhacdo. .. Séo Pedro ao € uina imagem consagratoria, mas um depoimento de cardter humano e. terreno”. Foram catalogadas daquele escultor ceramista centre as pegas por ele assinadas ¢ as que Ihe so fatribuidas, perto de trinta exemplares, sendo quatorze bbustos relicérios (incluidos os de prata) © quatorze imagens de corpo inteiro de tamanhos diversos. Em So Paulo, sobressacm as de N. S. do Mont Serrat, — Santo Amaro e¢ Séo Bento. De notar que o barra empregado € avermelhado e bem cozido © que suas pecas eram queimadas em fornos comuns de pao. Pedro Oliveira de Ribeiro Neto, primeiro dirctor do Museu de Arte Sacra de Séo Paulo, nos informa “Frei Agostinho de Jesus, foi o discipulo dileto de Frei Agostinho da Piedade, com o qual trabalhou no ‘mosteiro de Séo Bento, da Bahia. Carioca de nasci- mento, tendo estado em Portugal para ordenar-se beneditino em 1628, ali se aperfeigoou como ceramista pintor, trazendo de volta a0 Brasil os ensinamentos, aprendidos na Europa, onde por toda a parte se seguiam as escolas espanholas ¢ flamengas, j4 barroces, exuberantes e movimentadas. Nos mosteitos Benediti- nos da Bahia, do Rio de Janeiro e de Sao Paulo, tra- balhou o grande ceramista c pintor, mas em Sio Paulo & que se encontra a incomparavelmente maior e mais, importante parte de su obra” ©, Com referéncia as suas caracteristicas nos aponta cle “a desenvoltura no planejamento, a expressao sor dente de beatitude, 0 porte flamengo, camudo ¢ exuberante nas Madonas, as bases bordadas de anjos, e volutas. .. ¢ ainda “Frei Agostinho de Jesus € muito tipico e muito menos renascentista que 0 outro artista, monge” (Frei Agostinho da Piedade), 0 que Dom Cle- mente corrobora quando diz que ele “no hesitou em acompanhar as formas tio movimentadas do século XVII", Deixou numerosas esculturas em barro, varias dezenas, a maioria em Sio Paulo. Faleceu no ano de 1661, no mesmo ano de seu mestre, O barro de suas imagens apresenta uma constante de acinzentado a0 con- trario das de Frei Agostinho da Piedade que é averme- Thaclo ¢ melhor cozido, o que leva ao fato de as bases das imagens daquele serem mais atacarradas e pesadas, assim como as partes inferiores do que as deste escul t6r ceramista, Produzin menos relicérios, um dos quais, se encontra em Sio Sebastido, Além destes expoentes da imaginéria local, hé numerosos outros de santeiros anénimos, apontados por Dom Clemente, entre eles 0 Mestre de Angra e ainda outro com as iniciais H.R., assinalado por Pedro Oliveira Ribeiro Neto, que mode- Jou a Tmagem de Nossa Senhora da Luz, datada de 1662, do sitio Guaeeé (S. Paulo). ‘A falta talvez dos bons santeiros latinos. ou talvez pelo prestigio dessa producao artistica brasileira nna época, 0 fato € que varias pecas fabricadas no Brasil chegaram a ser exportadas para o estrangeiro, ‘como é 0 caso da imagem de Nossa Senhora de Lujan, que € a Santa padroeira da Argentina, e de um Cristo para a Catedral de Buenos Aires. Joao Hermes de Araijo, a esse respeito informa. “No que diz respeito & imagindria, dois exemplos se evestem de cardter, inclusive simbélico: a importin- ‘cia do Sul do Brasil de duas imagens da Virgem © da fatura do Santo Cristo da Catedral de Buenos Aires. Por volta de 1630 um rico fazendeiro portugués, radi- cado em Sumanpa, na Provincia de Sdo Jerdnimo de Cérdoba, fez trazer do Sul do Brasil, de Santa Catari- na, segundo dizem alguns, mas provavelmenie do litoral paulista, duas imagens da Virgem de barro cozido: uma da Virgem da Consolacdo e outra da Imaculada Conceigao. A primeira é venerada até hoje no santuério de Sumanpa; a segunda é a principal padroeira da Argentina, venerada em Lujan. Essas, dduas imagens, de grande sentido religioso, apresentam ‘cnorme interesse artstico, jé que so exemplos da arte da imagindria que naquela época, floresceu no Estado de Sio Paulo”, ‘A esse respeito Francisco Roberto dé-nos pitores- cos ¢ minuciosos detalhes sobre a encomenda, 0 trans- porte e os incidentes que ocorreram na longa viagem para o Prata, do que resultou uma imagem de fatura brasileira passar & mais elevada condicdo de culto no pais vizinho: a de padroeira da nacio Argentina ®. BIBLIOGRAFIA (1) Hamxaxt 4 Siva Bauxo — “Eguipamentos de trabalho hos Inventérios e Testamentos Celoniais” — Conf. Casa Brasileira —- 07.06.74. (2) Atas da Clara — vol. 1 — piss. 268/9, (3) Correspondéncin do Prof. J. A. GONSALVES Matto da Univ. de Recife — 1974, (4) J. M, Sueros Sines — 1959, (5) Dom CLEMENTE pA, SUVA Nig — “Os dois Escultores Frel Agostinha da Piedade « Frei Agottinho de Jesur ¢ 0 Anquiteto Fret Macério de Séo Joao” — pigs. 102/3 — Cons, Estadual de Cultura — SP — 1971 (6) Peono Otivema Rineimo Nevo — “Imagens Peulistas do sée. XVID" — tov. Inst. Hstorico e Geogratico Guarujé — Bertioga, ano I, 1969, (1) “BI Arte Luso Brasileic” — en el Rio de Ja Plata — Musco Nacional de Arle Decorativo — Buenos Aires — 1966. (8) “B paulisa a imagem de Nowa Senhora de Lujan — par drocira da. Argentina?” — in rev. do Inst, Hist. © Geogr. e Guarujg — Bertioga — n° 11 — SP — 1978. Stanistaw Henstar — “Imagens Religiosas no Brasil” -~ 1954 © 1956. 241 Te II - BARRO CRU e TERRACOTA ortugal_e Espanha, com os Descobrimentos, haviam dado a chave da prosperidade © a do dominio politico-econdmico 20 Ocidente. As riquezas carreadas pelas no- San] vas rotas de outros territérios © centros de produgdo incitam as Cortes ao luxo e 20 requinte, como despertam na sociedade 0 desejo de usufruir prazeres e desfrutar da beleza, através da Arte que afluia do Oriente e jé brotava vigorosa no Ocidente! E 0 periodo de ativacdo artistica e de manifestacdes intensas de apuro ¢ refinamento em todos os tertenos, do culto do belo e do pendor pela suntudria e pela luxsiria Esse extravasamento extraordinario reflete-se tam- bém de modo brilhante nas artes menores, na ebanistica, na ourivesaria, na imagindria e na ceramica que nesse século jé nos brinda em 1709 na Alemanba, com 0 Iabrico da tio cobicada porcelana na Europa. Portugal debilitado pela perda entre outras causas, do monopélio da distribuicao das especiarias, vé surgir ‘0 milagre tao longamente cobicado da torrente de ouro © pedrarias que as entranhas da sua colénia atlantica Ihe proporciona. Com essa vivificante transfusdo, a Corte Bragantina rivaliza em fausto e aparato com as congéneres européias. No dizer de Joao Liisi de Aze- vedo, “Portugal ia de novo dar ao mundo o espetaculo de uma nacio embriagada de suas riquezas”. Segundo Humboldt, mais da metade do ouro pro- duzido na América no séeulo XVIII, foi extraido no Brasil Esse fator novo iria acarretar sensiveis alteragoes no panordma sécio-econémico local, bem como influir poderosamente na economia lusitana ¢ até mesmo refle- ties, segundo alguns autores, na revoluso industria inglesa, estabelecimento de novos e densos nticleos po- pulacionais, como o surgimento de outros focos de irradiacio econdmica, obrigam o Reino a uma revisio ppolitico-administrativa do Estado do Brasil. Em conse~ qiléncia, duas medidas de elevado aleance pritico sio tomadas pelo governo Metropolitano. “Dom Joao V, em 2 de dezembro de 1720, promove ‘© desmembramento das Capitanias de So Paulo e de Minas do Ouro, dando a cada uma delas, limites, juris- digo e governo proprtos. E em 1763, a sede do governo geral da colonia é deslocada de Salvador para o Rio de Janeiro. ‘Uma multidéo de forasteiros movimenta-se pelos territ6rios recém-desbravados ¢ vai estabelecendo micleos de fixacao e redes de comércio entre a costa € © sertio, e fortunas de porte vao surgindo na exploragao das lavras e dos garimpos, ¢ no scu abastecimento. © afluxo de populagio que 0 surto da mineracéo atraira para os sertdes, era enorme, como a demanda crescente de suprimentos utilitérios ¢ voluptudrios para satisfazer Aquela massa e a elite que dela emergia. Essa alragio para 0 Eldorado recém-surgido era de tal ordem que se processava um esvaziamento huma- no de outras Capitanias a favor de Minas. Com referén- cia a de Sio Paulo nos 6 dito: “Outras vezes, 0s oficiais ferreiros, alfaiates, sapateiros, bem como outros arteséos, madeiros, marceneiros, cantoneiros, oleiros, etc., prefe- riam mudar-se para as Minas, para ficarem mais préxi- ‘mos dos novos ¢ ricos clientes mineradores”. © Essa leva impressionante de emigrantes de outras Capitanias, e, sobretudo, a de portugueses emigrados da Metrépole’ em busca de fortuna, ativava o comércio local, bem como desenvolvia a importacdo ¢ fazia pros- perar a Colénia, Mas essa corrida para a mineracio foi de tal ordem que, em 1732 0 Conselho Ultramarino ‘alarmava-se com 0 despovoamento do Reino e repre- sentava ao Rei para opor-se 2 evaséo de stiditos para © ultramar brasileiro! Em 1720, os brancos reptesentavam 37% da po- pulagio da Capitania das Minas Gerais, total esse constitufdo quase integralmente de portugueses metro- politanos ¢ nascidos no Brasil, cabendo os 63% restan- tes aos indios, africanos e mesticos, como mulatos, ‘mamelucos ¢ ¢afuzos. Pelo final do século XVIML, 0 Jevantamento demogréfico das Capitanias ia testemunhar uum aumento e disparidade mareantes de concentragées demogréficas em confronto com o século XVII. O Brasil com uma populacao estimada em 2,850,000 almas, jé ultrapassava, ¢ de muito, a do Reino, calculada ‘em 2 milhdes! E dentro desse contexto colonial, Minas Gerais passou a ser a Capitania mais densamente povoa- da com 650,000 habitantes, cabendo & Bahia 530.000, 1 Pernambuco 480.000, ao Rio 280.000 e a Sio Paulo, menos de 200.000, inclufda a comarca de Curitiba. ® (Os senhores de engenho que tanto impressionaram 0s cronistas coevos, nao eram mais os tinicos a esfadea- em aparato ¢ magnificéncia no cendrio sul-americano, aqueles senhores rurais do Nordeste, apontados por Oliveira Viana “como os mais espléndidos. stiditos @EI-Rei de Portugal, em toda a sua monarquia”, iri de agora em diante, encontrar rivais em opulénci bandas do Sul. E toda a paraferndlia do requinte oriental, que Gilberto Freire, nos aponta em “Casa Grande ¢ Sen- zala”, como existente no Nordeste, desloca-se. também acompanhando a benigna aragem da prosperidade, rumo a0 Sul, como o chapéu de sol, o palanquim, 0 leque, 2 bongala, a coleha de seda, a telha a modo sino-japonesa, 0 telhado caido para os lados ¢ recurvados nas pontas fem comos de lua, a porcelana da China, ete E a lite que ia se formando ¢ despontando na 313 | RRR a regio sudesto brasileira, nada ficou a dever em requinte Aquelas nordestinas. Teimava ela em manter na costa ¢ no Rio, antes mesmo de ser elevado a sede do Estado do Brasil (1763) ¢ nas vilas e cidades dos sertoes minei- 10s, 08 refinamentos das urbes européias. Impressionant € 0 rol dos artigos que aportam aquele centro distr buidor que em grande parte abastecia as Gerais. A pauta da Alfandega do Rio de Janeiro, do ano de 1739 das mercadorias importadas, dé-nos um retrato fiel do grau de requinte mantido, ‘As mulheres podiam se fartar de escolher os artigos que sua imaginacio pudesse sonhar ¢ a sua vaidade exigir, como os homens tinham a seu dispor todo um arsenal com que valorizar o garbo masculino, Eram aderecos, gargantilhas de coral, anéis variados, plumas de toucado, espelhos diversos, pentes de marfim, de tartaruga, de osso, sapatos, ¢ chinelos de seda, veludo fe marroquim bordados de ouro c prata fina, como de “prata falsa”. Quanto as esséncias com que se perfu- marem, dispunham da “agoa de Cérdova”, “agoa de Rainha da Hungria” “agoa de flor”, “agoa rosada”, “agoa” chamada do “Francés”, “6leo de jasmim” € “Gleo rosado". Com referéncia aos tecidos, era to grande a variedade, quando disparatada a procedéncia, Ho cetins, sedas, damascos, tafetas, baetas, chitas, velu- dos, fustdes, bombazinas, estamenhas, bocachinas, bar- reganas, gorgordcs, etc., provindos de Napoles, da India, de Castela, de Ruao, de Londres, de Granada, de Porta~ legre, Coimbra e Cabo Verde, de Amburgo (sic) de Cambraya e da Turquia etc. Quanto & moda, havia ‘modelos prontos a venda ¢ também vestidos usados, ambos importados, assim como rendas de ouro e prata fina, saias, jalecos e vestes de brim e de camurga borda- das de ouro prata, yeludo “lavrado” de ouro e prata, camisas de Olanda’ (sic), Cambraya, Bertanha (sic), Jengos de seda da India, lengos de Lamego, do Levante, da Olanda, como meias de seda, de la de camelo, de “finha inglesa ¢ ponto de Paris”, de Galiza, de Ttélia, © ainda meias para homens com “quadrados bordados de ouro e prata” e “colarinhos para 0 pescoco”. Havia ainda as perucas de cabelo humano, como cabeleiras de pelo de bode ¢ de carneiro, carapugas de seda bordadas de ouro e prata, chapéus finos do Norte, do Porto ou de Lisboa, cachimbos de barro e de “pau axaroado”, bengalas de cana com castao, abotoaduras de fio de ouro e prata fina, borzeguins © botas de ‘marroquim amarelo ou bordadas de ouro e prata. ‘Quanto misica, eram importados érgdos de dife- rentes tamanhos, cravos e “espinhetes”, rabecas, violas, rabecées, citaras, trombetas, pandeiros e “berimbaus” Com referéncia & parte alimentar, também era a sociedade centro-sulina exigente de paladar; além das clissicas especiarias e cereais eram importadas azeitonas, ccastanhas, passas, avelas, arenques, sardinha, bacalhau, ‘manteiga e sortidas qualidades de queijos de Alentejo, de Montemor, das Ilhas e outros flamengos, ¢ como nota de destaque “marmelada de Santos, a § 0,80 a caixa”. ‘No que diz respeito 20 mobilidrio, vém embarcados do Reino ou da Bahia, bufetes, leitos, catres, “cadei- rinha'da moda”, cadeiras de palha, preguiceiros, assim ‘como papeleiras de “meio corpo”, de “dois corpos” € outras de “xarao comum, com vidros”, ¢ ainda fecha- Guras mouriscas e inglesas para armarios © gavetas, dobradicas, engoncos, macanetas douradas, caixas de madrepérola, de tartaruga de xardo de vinhético © eanas- tras “encouradas”. 314 Tapetes ou alcatifas, os havia de diferentes regibes, da Itélia, da India e Arrayolos, grandes ¢ pequenos. 'E quanto ao vasilhame utiltério, farto era 0 equi- pamento de copa, cozinha ¢ sala de jantar: bacias com seus gomis de estanho, chocolateiras de cobre, canecas de Olanda (sic) ¢ de Veneza, ¢ toda uma série de louca de barro, vinda da Bahia, em que se alinham alguidares de diferentes tamanhos, boides, frigideiras, garrafas infusas, plicaros, ‘“tigelas de cabo”, pratos de comer, bacias, “panelas de cozinha grandes © pequenas de palmo de boca para cima pouco mais ou menos”: E como remate de toque cosmopolita: “louga fina da China e de Veneza”, “louca fina de Lisboa e Porto”, “ouga grossa de Lisboa e Porto”. ® Feito este apanhado de cardter sécio-econdmico, passamos 2 apontar e apreciar outras referéncias de interesse sobre a presenca e utilizacio dos. produto: cetdimicos, tanto da terra como estrangeiros, obedecendc & ordem das diversas categorias que se nos vio depa- rando no setecentismo brasileiro BARRO COZIDO ‘A. categoria ceramica produzida na terra, qu caracteriza a centiria & ainda a do barro cozido, con ‘a incidéncia da producéo da louca vidrada e deseo berta da porcelania no final do século, (0s indigenas aculturados continuam a participa preponderantemente do fabrico do vasifhame doméstico assim como os senhores de engenhos através de seu fornos, mantém 2 auto-suficiéncia dos conglomerado rurais nos longinquos latifindios, enquanto os Jesuitas no seu labor paciente e continuo, se dedicam a taref benfazeja de ministrar instrugdo e aprendizado do arte sanato oleiro entre outros, & populacio. A atividade d ‘mestres oleiros em seus colégios no Maranhao e Paré, assinalada destacando-se entre eles 05 irmios Joao d Almeida (1718-1748). Certamentc uma proporcio ponderivel de portu gueses reindis e descendentes americanos como escravo © agregados, complementavam aquela producto par dar vasio A demanda cada vez mais premente d vasilhames. ‘A esse respeito, no tocante & Capitania de Mina Gerais, © que pode servir de regra para as demai Augusto de Lima Jiinior, nos informa: “A indéstria. d boleiro to popular em Portugal, desde séculos, adquir regular desenvolvimento entre os colonos © muitas fbr cas-de louga grosseira forneceram ‘sua mercadoria 2 ‘consumo local”. ‘A producio bahiana nessa primeira metade ¢ século XVII, revela-se de porte, pois como vimos linhi atris, era a tinica a constar da pauta dos artigos receb dos no porto do Rio de Janeiro. A discriminacio ad-y: orem de 1739, da louca bahiana e da_estrangei naquele porto permite estabelecer um confronto ent elas. E através dos valores pela procedéncia atribu dos a cada qual, pode-se presumir qual 0 tipo ou ‘categoria da cerfmica da terra como diferenciar a ¢ uropa e da China, e assim distinguir dentro do tern genérico de “Iouca” que vem sendo empregado indisti famente naquele documento, as diversas variedad especificas ela contidas como porcelana, porcelal mole, faianca, loua vidrada ou apenas louca de bar cozido importadas no porto do Rio de Janeiro naque periodo. Neen nnn SreEnE EEE EEnESEEESESNTnnttTiTiinniiiiisiini ml LOUGA ESTRANGEIRA: (1739) “Louga fina da China”, média por peca $ 80 réis (corresponde & porcelana) “Sopeiras da India” ss maiores $600 réis. ( “Louga fina de Veneza” média por pega $ 50 réis ( i = 5 mole) (trata-se de porcelana mole cuja tinica fabrica em Veneza, no perfodo de 1739, era a Casa Vezzi) “Louga fina de Lisboa e Porto”, média por peca $ 13,30 réis (faianca) “Louga grossa de Lisboa e Porto”, $ 0,65 réis (louca vidrada ou meia faianga) LOUGA BAHIANA (1739) ‘As mais caras sio 0s alguidares (de trés palmos e meio de boca) panelas ¢ boides grandes — § 0,40 xéis — louga de barro cozido e louga vidrada (2) As mais baratas sto os pratos, bacia e alguidares pequenios — $ 0,10 xéis Essa louga babiana que ia ter a0 Rio, deve ser a ‘mesma que era exportada para o Reino nas torna-via- ‘gens das carracas © naus lusas. A nosso ver é a ela que se deve referir alvaré real de 11.12.1756, que per- mitia aos “Oficiais, mestres marinheiros e mais Homens do Mar ‘carregar do Brasil para a Metr6pole, livre de direitos de entrada, louga fabricada no Brasil.” © No tocante a0 fabrico de louca de barro em Séo Paulo, ha logo em 1704, mengao de um oleiro impor- tante que fabricava peroleiras para armazenamento de vvinho, azeite ou melado, e outros artigos, e foi contra- tado pelo Capitéo-mor Guilherme Pompeu de Almeida (Pai do célebre padre). Reza 0 documento: ““Contas ‘com Anténio Cubas 0 oleiro. Aos 24 de setembro de 1704, entrou em minha fazenda (em Parnahyba) Anto- nio Fds Cubas que mandei vir de Otu (tu) para tra- balhar e me fazer peroleiras ¢ Ihe mandei a dita vila de Otu 60,000 réis em dinheiro que me mandou pedir e me deve 0 dito dinheiro para me ir satisfazendo no ‘que avengar nas obras que me fizer de barto. concer- tou-se comigo em um cruzado de feitio de cada uma das peroleiras que forem do meu contento © 0 mais que fizer como & telhas, tijolos e mais obras que Ihe darei o tergo de tudo. Eu Ihe disse que 0 milho, 0 feijéo eo sal nao havia de custar cousa alguma — 0 mais como é aguardente, came, etc., que Ihe assistira pelo rego que corresse 2 sua custa”. © ‘Quanto a participacao indigena, continua ela atuan- te em Sio Paulo. Conta-nos Eduardo Etzel: No século XVIII, nas famosas feiras de Pilatos, institufdas pelo Capito General Anténio Manoel de Mello e Castro Mendonga, apelidado Pilatos, hoje no Bairro da Luz, 08 indigenas vendiam seus produtos de cerémica com grande aceitacio, como ainda em nossos dias as pane Teiras de Goiss velho, encantam os forasteiros com suas ‘moringas exéticas de comovente primitivismo ¢ beleza”. Em 1745, € expedido um edital na Vila de Sao Paulo, pelo zeloso almotacel Ignécio de Barros Rego que bem demonsira a participacdo indigena na produ- Go: “faro advertir os indios das aldeias quando tra- zem louca a vender nfo larguem as folhas que nos ba- laios trazem” ©. Também é consignado o fabrico de louga no bairro de Nossa Senhora do © — o levantamento feito em 1768, da populagio daquele bairro assinala um louceiro © diz: “Quirino, mulato, vive de fazer lucas.” ® Quanto a0 fabric’ de tijolos e sev uso em Sio Paulo, hé duas referéncias sigoificativas. Em 1733, nas Atas da Camara de Sto Paulo, consignada a necessidade de montar uma lareira de tijoto em seu recinto. As referencias @ lareiras no slo comuns no Brasil Colonial; sabe-se que na Bahia ¢ em Minas as havia, e nesta, de preferéncia, nas Cémaras; entre clas existe uma notével no Edificio do Museu da Inconfidéncia, antiga Camara Municipal de Vila Rica, que serve de fogi0 e de lareira com distribuigao de calor para os pavimentos de pedra do andar supe- rior. Outra indicagao é de 1742 ¢ se refere a calgadas de tijolos na vila de S40 Paulo, © & interessante pen- sar que, em meados do século XVIII, as calgadas das ras de Séo Paulo (ou parte delas) fossem pavimenti das, dando assim uma demonstracao de trato ¢ tentative de ‘apresentacio e ordenacao urbanistica, Afinal de contas, os bandeirantes nfo descuravam de tratar de seu ninho de aguias, plantado no topo do Triangulo turbano, donde partiam em bandos, em memoraveis arrancadas em busca de ouro, nos longinquos horizon- tes, semeando cidades onde pousavam. Isto, apesar do Morgado de Matheus informar que a seu tempo as ruas, da vila néo cram calcadas. Quanto 20 uso do barro cozido ou da terracota para a fatura de imagens, Serafim Leite (Arte ¢ Oficios Gos Jesuitas no Brasil) nos aponta 0 irmio Jesuita Francisco Rebelo (1713-1737-1791) natural de Braga, estatuério de barro — “figulus statuarius” — que exe- ccutou presépios no Brasil. Hé também que fazer mengio a Anténio Boarque de Azevedo, que foi um eximio santeiro, a julgar pela execugao artistica de uma peca assinada e datada de 1762, da colecao do Dr. Leio Gondim, do Rio. 315 III - CACHIMBOS uso do cachimbo no Universo precede 20 uso do tabaco. Ji a0 tempo dos Celtas e dos Romanos que cachimbos eram referidos por autores latinos Plinio informa em sua Natu- ralis HistGria que “a fumaca aspirada através de canudo é agradével”. 0 No mundo antigo, eram diversas substincias vege- tais, grdos, ervas, gravetos, que introduzidas nas caldei- ras dos cachimbos, 20 serem queimadas, produziam fumaca inalada ou aspirada pelos fumantes ¢ na China, © 6pio ja era queimado em cachimbos, antes de os europeus 1 aportarem. ‘A arqueologia, revolvendo o solo pisado por tantas, geragoes desaparecidas, confirma e corrobora as antigas ‘rénicas sobre a exisiéncia de cachimbos de diversos materiais, como 0 gesso, 0 oss0, a madeira, o marfim, a pedra, 0 barra, etc., usados antes dos descobrimentos na Europa, na Asia ena Africa, Porém, cabe a Colombo, quando descobre a Amé- rica, em 1492 (na Tha Guanahani, nas Bahamas), também o galardio de ser 0 primeiro ocidental a obser- var 0 fato nas Indias Orientais, quando aponta em seu diario de bordo, 0 hébito de fumar o tabaco entre os, aborigenes americanos. E 0 tabaco era planta completa- mente desconhecida dos Europeus. E a seguir, num crescendo vertiginoso, tanto os modelos de cachimbos indigenas como a planta do ta- ‘baco passam a invadir a Europa; e ao fumo passam a ser atribuidas virtudes excepcionais. Em 1574, 0 boté- nico Karl Clusius escrevia: “O tabaco é um remédio universal para as doencas de toda a sorte”... Em Franca, a moda de fumar tabaco em cachimbo € levada pelo embaixador em Lisboa — Jean Nicot (de ‘onde deriva o termo Nicotina). Catarina de Médicis € quem o difunde na corte francesa alardeando seus dons medicinais! Com referéncia ao Brasil, nao hé indicacio de que ‘9 hébito dos indios de fumarem tabaco, do Centro do Norte da América, tenha descido dos altiplanos andinos, para as planicies brasileiras OTT, em pesquisas de 1944, informa, referindo-se as buscas arqueolégicas na regido de Santarém: “Nunca foi encontrado cachimbo atribuido a pré-Cabral” Porém 0 cultivo do tabaco © 0 uso do cachimbo difunde-se rapidamente na Amazénia, logo apés a des- coberta . As pesquisas deste século revelam uma grande variedade de exemplares, sendo na regiio Ama- ZOnica 0 seu fabrico atribuido aos indios aculturados ou ‘10s missionérios. Frederico Berata aponta pelo menos cinco tipos distintos e os denomina de indio-jesuiticos ou tapajés-jesulticos ®'. Sobre seu estilo informa OTT, que “lembra o barrco portugués exibindo lindos omatos de cstilizacao vegetal”. Tendo sido observado que na técni- ca de confecedo s20 os cachimbos feitos em duas partes distintas ¢ depois colados, como também parte deles apresenta um orificio na parte inferior (0 que se repete também em Minas) destinado a suspensio protetora em cordéis, quando nao em uso. Barata, acompanhando a idgia de que 0 estilo dessas pecas obedece aos enones artisticos importados, lembra no entanto que a inspira- so barroca pode provir dos desenhos dos pilpitos sacros das igrejas e capelas, espalhadas pela regio, HA cachimbos com representagdes 700-antropo- morfas, fitoformes e geométricas e com decoracio estria~ a, canelada, esgrafitada, em relevo e incisa, com be- santes, rosdceas e ramagens. Os cachimbos dispunham de canudos curtos ou longos, estes de avantajados com- primentos; ao que parece eram do maior agrado da opulagéo colonial. Havia pecas com uma ponteira no cotovelo do cachimbo, parte essa que as vezes apresen- tava um furo — segundo vérios comentaristas haste longa era para esfriar a fumaca e tomé-la menos car- regada de nicotina; quanto & ponteira era um reforgo de protego para que a peca pudesse apoiar-se no cho ‘ou em mesas, e o furo em camudo longo, para pendurar 0 pito. © fato relevante € que o tabaco no século XIX veio a constituir uma das principais receitas da balan- a comercial € junto com o café, foram os. produtos brasileiros de maior exportacao. Atal ponto que os ra- mos de tabaco ¢ de café, amarrados na base com lagos de fita, passaram a ser considerados simbolos nacionais, criando-se na arte decorativa um novo cédigo ormnamen- tal genuinamente brasileiro para substituir nos arranjos florais, 0s ja surrados acanto ¢ louro que nos foram legados pelos gregos © romanos, através da Tbéria Aguele artistico motivo passou a fazer parte da bandeira imperial e a ser reproduzido em condecoragies, meda- has, moedas, em servigos de mesa, etc. E acompanhando a enorme producio do tabaco, alastra-se pelo territério 0 fabrico simples ou elaborade do cachimbo, sobretudo o de barro, disseminando-se 0 seu uso entre as classes sociais, mais acentuadamente ‘entre as mulheres os escravos. Sto numerosos 5 relatos de viajantes e de artistas estrangeiros que focalizam em crénicas e retratam em desenhos © pinturas os diversos e pitorescos aspectos daquele habito. Saint-Hilaire, em 1819, numa venda de Itu, obser- “meia dizia'de mulheres a fumarem compridos cachimbos de trés pés”. 20 George Gardner em 1836, aponta que em Goiés, Mato Grosso e Piaui: “As mulheres de quase todas as classes séo afeitas 20 cachimbo, como os homens” 427 CACHIMBOS Brasil (Baero cozido) 370 Obs: Vérias representagdes de’ fumantes populares do Rio antigo — Observem-se 08 longos canuos de alguns. Cortesia de Candido Guinle de Paula Machado, (pdg. 8, in “A mucy Teal « herbica cidade de Sao Sebastido do Rio de Tanciro”, Rio) As duas estarpas de cima sio de Guilhobel e a de baixo de Chanellain, 428 CACHIMBOS Minas A produsio de cachimbos (pitas) 12 perioito colonial foi grande, como atestam relatos de Vialantes e extampas da epoca, sendo seu uso muito difundido entre « populardo feminina Verifieanse em Minas, diversas téenicar de fatura come o moldado ¢ 0 modelado, assim como 0 emprezo de inciso e do relevado, a exemplo da louca mineita em geral. Quanto & Composigdo, variam elas do primitivo ao erudito, Este distinguese pela pontetra de protecdo ¢ ‘apoio com furos; e sua decoraeao elahorada inspira-se, sobreiudo no. barroco mine. Hé Ckemplor com cabecas de anjos, mndscaras, corucdpias, sancfas, perolados e ainda desenhos [gcomutricos, So Paulo também produzin cachimbor, séndo que eps Sao Sebastiao, no Bairro tte Sao Francisco, ainda hoje s20 fabricados. (0s cachimbor desta folha (0 da esquerda eo de baivo) so da regido de Diamantina — 0 de baixo, tem a data de 1733 com of iniciais BIPM. O da dircita ¢ da regiao de Sabard. Os Gutros cachihos ©) & diveita (barre patha) sto do Wale do Paraopeba (Congonhas). Colegao Roberto Paranhos do Rio Branco. ‘Séeulos XVIXVI. CACHIMBOS, Minas (Tetracota) 373 0 cachimbo a esquerda, moldado, apresentando a cabeca de um anjo é de inspiracdo francamente barroca, como ‘tiés boa parte da producdo mincira da centiria, O da direita é um cachimbo antopomorfo de forma afurllada singela de artesanoto indigena ou caboclo, A peca central com méscaras e furo na base situase entre a Influtncia ujricana ea barroca, Os dois cackimbor de baixo demonstram claramente outras inspiragdes ainda entro do barroco; uma elaboragit diversa usando cstrias, condame, (dirse-ia reminiscincias manuelinas) & ‘0 de direit uma tripice série de Svulos ou besantes em relevo com os de centro de maior tamanho. Colegio Toré Walter da Silva, Paulo de Vasconcellas ¢ Roberto Paranhos do Rio Branco referindo-se a localidade de Natividade acrescenta: “aqui o habito de fumar € geral entre as mulheres; de manha & noite, raro Ihes sai da boca o pito, com seu longo canudo de pau, de cerca de trés pés de compri- mento”. Francis Castelnau em 1844, referindo-se @ uma fazenda em Cuiabs, nos diz: “A’velha (octogenéria), fumando um comprido cachimbo, cujo cabo era sustido por uma escrava de eSeoras”. 2) © principe Maximiliano informa que “os bos usados pelos pescadores, como em todo o Bras particularmente pelos negros e outras pessoas das classes hhumildes, constam de um pequeno recipiente de barro cozido escuro e de um tubo fino c liso feito da haste de luma espécie de planta que cresce a considerdvel altura”. 20 Dentro da variada e grande producio brasileira que vai do mais rudimentar pito as pecas mais elaboradas ‘em que sobrelevam os produtos da regio amaz6nica no periodo colonial, ha que ressaltar a requintada produgio rmineira. Esta distingue-se no periodo colonial e imperial em Jinhas gerais, da Amazénia, pelas formas mais cesguias ¢ menos atarracadas e por uma variedade maior de interpretagdes em que se inclui a versio barroca mineira. ‘Constataram-se em Minas, diversas técnicas de fatura como o moldado ¢ 0 modelado, assim como 0 emprego do inciso ¢ do relevado. Quanto a composicio, hé uma gama muito grande entre o primitive e 0 erudito. Este distingue-se pela ponteira de protecio, ‘com furos ¢ sua decoracdo elaborada inspira-se, sobre- tudo, no abundante barroco mineiro. Hé pecas com ‘cabecas de anjos, méscaras, caretas, comucépias, sanefas, perolados e ainda harmoniosos desenhos geo- métricos. Sao Paulo também produziu cachimbos que so assinalados na época imperial, em Sao Sebastido, onde até hoje, no Bairro de S46 Francisco, sao fabricados pitos singelos. BIBLIOGRAFIA (1) “A evolugdo da Indistria Cerdmica no Brasil”, in carta mensal n° 272 — Rio, 1977, (2) 1. 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Paulo, 1979. 433, IV - LOUCA DE BARRO E LOUCA VIDRADA 4 produgio de feig20. industrial de artefatos domésticos uilité- rios © de adoro, observa-se, nesse século XIX, uma diversi- dade muito grande de produtos eum esforgo de methoria técni- ca, em que sobressai, sobretudo, © fabrico da louca vidrada, porém aparecendo outros artigos no Brasil, imitando a faianca com engobes cla- ros e amarelados, muito comuns, em Minas © também cencontrados em outras Provincias, como nas do Rio € Parand, produtos esses que se classificam como meia- faianga ou meia-maidlica (“mezza-maidlica”) e que apresentam diferenca sobre a louca vidrada na técnica de fabrico € na apresentacio. ‘Vao aparecendo pois, moringas, talhas, potes, me- dalhies, ostentando desenhos variados e formatos di- ferentes, retratos moldados, nomes gravados ou sobre- postos com brasées de armas do Império, de Portugal ‘ou da Repiiblica, com a raziio social do fabricante, © ainda alguidares, boides, pratos, sopeiras, galinhas ‘ornamentais que servem de garrafa e de copo, florei- ras, canecas, tinteiros, escarradeiras, urindis, etc.. parte cm terracota na cor natural, parte engobada e pintada a frio e parte em louga vidrada, De notar que os ingle- ses desde 1734, fabricavam galinhas © outras aves © animais em louga vidrada, inspirados na soberba fatura dos espécimes. chineses © fato € que a producdo local foi grande ¢ bas- tante diversificada, tanto a de cardter artesanal, na qual a patticipago do indio continua relevante, como 4 de feigao industrial, que j4 toma vulto nas provincias. ‘Numerosos so os viajantes estrangeiros que nos deixaram relatos e comentarios de interesse e pitores- ‘eos sobre essa _produgéo esparramada pelos quatro ceantos do territério. Saint-Hilaire jé vinha assinalando a louga utili téria em Séo Paulo, desde 1808, ¢ mais tarde, fazia uum triste e justo comentario: “Em 1823, a espoliacao 0s indigenas de Pinheiros estava completamente con- sumada... Intrusos ocupavam todas as terras que a esses infelizes pertenciam, Ganhavam os mesmos a vida como jornaleiros, as mulheres fabricavam artefatos de barro”. A cidade de Si0 Paulo, pelos idos de 1836, de acordo com 0 quadro de atividades, arrola quarenta oleiros nela estabelecidos. ® Sobre Minas, aquele autor francés informa que a {indias fabricavam vasos vermelhos, de tamanhos di- Yersos... com uma terra negra bastante fina; nos arredores de Peganha, na vizinhanga de Minas Novas, ainda assinala que eram as mulheres que fabricavam © vasilhame e eram muito bem feitos, faziam-nos de diversos tamanhos, mas todos tinham 0 mesmo for- mato; entre 05 Malalis, eram de uma esfera um pouco deprimida, tendo uma larga abertura. © Em 1822, Saint-Hilaire assinala que em Santa Catarina e em Porto Alegre, onde se refere a trés olarias, que fabricavam louca: “As loucas eram bem feitas © na maioria coloridas de vermelho, porém mais gros- seiras, jé que eram feitas com argila negra que apés 0 cozimento se tornava_amarela”. Diz-nos ainda, refe- rindo-se a Santa Catarina, que 14 existe um género de indstria que Ihe € peculiar: “o fabrico de vasilhas de barro em que a Agua se conserva fresca e que se exporta para 0 Rio de Janeiro ¢ outras cidades do Brasil...” elas sto de cor vermelha escura, lisas, reluzentes ¢ de argila finissima, sendo as mais comuns, uma espécie de bilha (moringue) de forma arredon- dada, com asa e dois gargalos, um maior para enche- las de Agua e outro menor, pela qual sc bebe precioso liquide. A outros vasos destinados ao mesmo fim, costumam dar formas mais elegantes, sendo por isso também utilizados como objetos de adomo. Todas essas lougas so feitas 20 torno, com argila de cor azeitona... depois de secas & sombra, passam-Ihes com um pano a solugio de_um barr’ vermelho: pulem-nas com uma pedra lisa ¢ levam-nas ao for- no”. @ Francisco Marques dos Santos, aponta 0 fa- brico, em Joinville, de potes de melado de influéncia acoriana. No Rio de Janeiro, em Niter6i, na antiga aldeia de So Lourengo, assinala-se também 0 artesanato indigena. Informa-nos o Principe Maximiliano de Neuwied, em 1815: ... “As cabanas dos indios se espalham no meio de laranjeiras, bananeiras... 05 habitantes estavam ocupados em suas cabanas na fa- bricagio de potes de argila cinzenta escura, que toma tuma cor avermelhada quando passa pelo fogo... fa- bricam grandes vasos utilizando-se apenas das mios, sem empregar a roda, ¢ alisam-Ihes a superficie por meio de pequenas conchas que umedecem com a boca”... Francisco Marques dos Santos aponta um fa- bricante no Rio, José Gory, por volta de 1850 com f fabrica Nacional de Louga Branca Vidrada, que se dedicava a produzir omnatos de jardim, ¢ 20 que pare- ce, tratava-se de estabelecimenio de porte, pela pro- paganda promovida Sobre © Amazonas, no ano de 1859, 0 viajante Robert Ave-Lallement, nos informa: “Uma olaria em Serpa (atual Itacotiara) e mais a de Breves, abastecem Manaus de louca de barro. Véem-se vasos, etc., n0 {gosto peculiar indio, lindas bacias de maos e de bithas para agua, cujo varido colorido & encantador. As cores principais da louga de barro séo 0 amarelo € 0 encarnado. O amarelo & preparado com ocre de terra, 435 um vermelho amarelado extrafdo do urucu ou bixa orellana, ¢ um encarnado muito intenso com as folhas, de uma beginia®. No Para, Ilha de Arapiranga, outro viajante em 1859, assinala: ...“Nessa fazenda cerca de cingticnta escravos trabalham em cerdmica; mostraram-nos magni- ficos vasos de varios formatos”. .. © Sobre a Bahia, j4 pelos idos do século XVII em 1779, que a sua louca se Fazia presente no mercado carioca, pois € consignado que naquele ano existiam “dezesscis lojas de varejo de louca da Bahia”. C. J. Costa Pereira) corrobora 0 fato, quando informa que “...exportava ceramica para’ o Rio, tanto assim que em 1840, 0 Jornal do Comércio, publicava um antincio comunicando que chegara grande partida de louga da Bahia, para uma das cases de co- mércio da Corte”. Os registros da Alfindega do Rio, no periodo de 12-12-1821 a 14-03-1823 ©, consignam a entrada de duzentas e quarenta e duas talhas, provenientes da Bahia; de Sio Scbastiio duzentas talhas, duzentas ¢ quarenta e quatro panelas e potes; ¢ de Santa Catarina trés mil e quinkentas moringas. Esses dados mostram ‘que pouco antes e pouco depois de nossa independén- cia, os principais forecedores de louca utilitéria para a Corte, eram aqueles centros litorineos. Causa-nos surpresa saber através daqueles apontamentos que a Capitania, depois Provincia de Sio Paulo, se alinhava entre os mais importantes centros exportadores, através da cidade de Sio Sebastiao; aliss, Azevedo Marques \, nio deixa de assinalar, na segunda metade do século, @ existéncia da producio da louga de barro em Sio Se- bastido, quando se refere ao artesanato das mulheres louceiras do bairro de S4o Francisco. Ainda hoje cxis- tem reminiseéneias dessa tradicdo local, com a producto 4de panelas, potes ¢ até cachimbos, embora ela se repre- sente por pouquissimas louceiras como Dona Silvana © Dona Amélia, Aliés, Sio Scbastifo constituia um ativo ponto de comércio, pois ja no fim do século XVIII, abastccia a Corte com “agticar, peixe, feijao preto, café, marmelada, goma”, conforme consta do ‘quadro das Entradas do Porto do Rio de Janeiro, do ano de 1791 9, A série de Exposigdes, realizadas na Corte, nos anos de 1861, 1873, 1875, 1881 e de 1888, com a representagao ‘de quase todas as provincias do Impé- rio, fala bem alto do progresso da producéo do barro cozido, dos produtos de olaria e da louga vidrada, ‘Na Exposicéo de 1881, no Ministério da Agricul- ‘tura e a seguir em 1881 em Buenos Aires, participavam cinco expositores brasileiros, entre eles Francisco Ant6- nio Esberard, do Rio de Janeiro, com artigos domésticos ‘como talhas, filtros, moringas, panelas, potes, etc., © apresentou também “amostras de louca’branca esmal- tada, ensaios imperfeitos e recentes” (9, ‘Acreditamos porém, que a Capitania, Provincia © depois Estado de Minas Gerais apresentasse o maior indice de produgéo, pelo menos na primeira metade do século, quando ainda nfo se haviam dissipado as fortunas provindas das lavras ¢ a esperanca da desco- berta de novos fildes animava 0s garimpeiros, 0 comércio e os governantes. Temos a considerar, que @ Teva de imigrantes de territérios e, sobretudo a de portugueses em massa imigrados de Portugal, provo- ‘cada pela corrida do ouro e dos diamantes, veio a con- 436 tribuir poderosamente para o aumento demografico © a intensificagao do fabrico da louca local, 0 que € corro~ borado pelas referéncias de viajantes estrangeiros. ‘Essa corrida de portugueses para Minas, foi de tal ordem gue vérias proibicdes foram estabelecidas por Iei, em 1709, 1711 e 1720, sem surtir o efeito de cstancar a corrente migratéria. Em 1732, 0 Conselho Ultramarino representava ao rei para opor-se agucla evasio de siditos metropolitanos. Portugal com cerca de dois milhdes de habitantes, via transferir-se para 0 Brasil em menos de cem anos, cerca de oitocentas mil pessoas. "9 O Conselho ponderava ao rei que o Brasil ‘com mais brancos e mais riqueza “no sofverd ser dominado pela nacao menor”. E o que representava Minas nesse confronto de- mogrifico com 0 resto das outras unidades, Capitanias ou Provincias — no fim do séeulo XVIII € comego do XIX? O Brasil nesse perfodo contava com uma po- pulagio de 2.850.000 habitantes, portanto mais que Portugal. E Minas representava a unidade brasileira mais populosa com 650.000 almas; a Bahia dispunha de 530,000; Pernambuco 480.000 € 0 Rio com 380.000, quase a metade da populacdo de Minas. Nes- se contexto, a Capitania de Sao Paulo apresentava em 1808, um total de 200.000 habitantes incluido neste ‘montante 35,000 referentes & Comarea de Curitiba ¢ 25.000 da cidade de Sio Paulo. .. Hade se acrescentar que parte ponderdvel daque- la populacéo, cra constituida de portugueses ou de descendentes ‘seus; j& em 1720, os brancos represen- tavam mais ou menos 37% dos habitantes da Capi- tania, e certamente boa parte deles tinha nogdes de cerfimica ¢ a produziam. Diz-nos Augusto de Lima Tinior ©: “A inddstria do oleiro, tao popular em Portugal, desde séculos, adquiriu regular desenvolvi- mento entre os colonos e muitas fabricas de louga grosseira fomeceram sua mercadoria a0 consumo local”. Assim, nfo é de admirar que a produgao local na qual os portugueses colaboravam, fosse grande. De outra maneira junto com a importacdo, nao seria dada ‘vazio ao consiimo cada vez maior da populacao com- posta de brasileiros, de europeus, de indios, de esera- vos africanos e de mestigos, como mulatos, mameltcos © cafuzos. Ainda hoje so numerosos os remanescentes da- queles produtos locais que diversos colecionadores em boa hora procuram recolher antes que desaparecam por completo. Esses pesquisadores compuseram um. mostruério variado ¢ sui-generis, devolvendo a nossa ‘visio numa paciente exumacéo do passado, o ambien- te das copas e cozinhas mineiras. Nele resulta uma gama extensa de cores: 0 avermethado, 0 pardo, 0 amarelo, 0 castanho, o melado, 0 branco, 0 azeitonado, © marrom, 0 verde, ¢ ainda tonalidades brandas lem- brando matizes de aquarela, Eo interessante € verificar-se que esses tipos de louga so ainda encontrados nos quatro cantos do territ6rio mineiro, o que demonstra, por um lado, 0 quanto eram apreciados e, por outro, quo intenso © difuso era aquele comércio. Sao lougas, muitas vezes de elaborada fatura, pratos, sopeiras, bules, xicaras, meios boides ¢ canecas com tampa, tigelas, potes, cuscuzeiros, cangirdes (g6- nero Toby-jug), etc. Quanto 20s formatos, variam bastante, havendo no entanto uma predominancia de formas lembrando a seco média e inferior de um bolo cléssico bojudo, de tampa e pega com variagdes de bojo e de boca, como ha também pecas mais raras de complicada fatura com recipientes de perfil circular com. bicos, outras tripodes de composicéo globulada, etc. Quanto & decoracao, apresentam elas certas ca- racteristicas. Com referéncia & cromia, ha pecas so- ‘mente monocromas, outras de fundo monocromo, sobre 0 qual so pintadas manchas de cariter abstrato, (ou entao desenhos ou composicées de inspiraglo floral. Hé também pecas de fundo policromado apresentando tonalidades desmaiadas, como outras apresentando género conhecido por’ esponjado e 0 marmoriado. Parte dessas loucas sio engobadas e consideradas de ‘meia-faianga (‘“mezza-maiGlica”). Com relacdo A decoracio incisa ¢ a relevada, hé que assinalar a variante de motives, uns imitando cordames, outros apresentando série de besantes © ca- nneluras, como hé também as faixas impressas com diferentes desenhos, inclusive alguns lembrando 0 “guilloché”, & mancira da ourivesaria, como existem também peas com decora¢io pontilhada e penteada na técnica do esgrafitado e outras com flores, folha- gens © omamentos diversos, justapostos. Devemos, no entanto, ressaltar que tanto nos for- ‘matos como na decoracdo incisa ¢ relevada, hé uma meritéria dose de criatividade e de estética locais que do passou desapercebida a Saint-Hilaire que disse: “Os _vasos apresentam em geral_ lindas formas”. A inspiragao para os desenhos pintados ¢ certos formatos de complicada fatura, queremos cret que proveio so- bretudo de Portugal, através de Massarellos, Viana, Caldas da Rainha, Fervenca, etc. assim como da Espa aha, pelos “alfareros” da Galicia, de Ledo, da Anda- huzia, ete. Em Portugal, costumam chamar de “Ratinho” a um tipo popular de louga muito decorativa que deve ter inspirado a mineira, embora esse género nada tenha Ver com 08 produtos ‘cerémicos da fabrica da Duque- sa de Palmela, que teve pouca duracio ¢ chamava-se também Ratinho, Grande parte dessa louca vistosa ¢ popular lusa, € considerada de meia-faianca ou engo- ‘bada com argila clara e esmalte de chumbo, as vezes, com pouco esmalte estanifero. As influéncias assimiladas pelos oleiros, ceramis- tas ou louceiros mineiros, sf0 de origem diversa. ‘Queremos crer que as lougas de barro, tanto as secas, 20 sol, como as cozidas ao forno, sofreram mais a influéncia indigena (as vezes ja aculturada), a aftica- na € a cabocla No entanto as que atuaram sobre a fatura das lougas vidradas e “mezza-maiGlicas” que exigiam téeni- cas mais apuradas, inclusive a manipulacéo quimica de esmaltes, foram mais marcadamente de influéncia curopéia, sobretudo ibérica, mourisca ou oriental, 0 que mais se evidencia na escolha dos formatos. Acabamos de dizer, sobre influéncias assimiladas em Minas, nao provém elas apenas da ceramica ibérica. Certos formatos sao tipicos dela, como outros sio de procedéncia diversa, trazidos de longe através de Por- tugal, ou por outros paises, jé que a abertura dos por- tos em 1808, ensejou o comércio direto. © pote tipo canjirio( com representagio antro- pomorfa) da colecéo Paulo Vasconcellos, pode ter sido copiado de espécimes da regio do Porto, onde foram fabricados em primeiro lugar em Portugal, de Lisboa (Fébrica do Ratinho) ou de Caldas da Rainha, de Deveza e da Fabrica de Choupelo, como também inspirados em exemplares ingleses de varias fabricas, pois foi na Inglaterra, em Staffordshire, que 0s can- gitdes-(com figuras) tiveram origem, de 14 passando para o resto da Europa, onde a representagio de per- sonalidades e de tipos populares, se tornou moda na Ceramica. As pequenas floreiras atribuidas 4 zona de Diz mantina-Serro, de boca grande e perfil de asas largas, Jembram espécimes maiores dos que costumavam omar altares; entre as banquetas de prata, metal ou madeira, eram comuns esses ornamentos ‘no século XIX, fossom em porcelana “Vieux Paris”, ou de fa- bbrico de Jacob Petit, Quanto a outro tipo de floreiras, com miltiplos bracos, tanto as de corpo bojudo (vide estampa) como as de formato espalmado, flabeliforme, sdo chamadas de “tulipeiras” e provinham de Delft onde foi iniciado 0 seu uso no século XVI; essas flo- reiras eram eventualmente, também usadas como can- delabros. Essas jarras j& eram usadas em Portugal & fabricadas em Santo Anténio do Vale da Piedade, desde o século XVIII 8 e If sto chamadas de “jarras de lava”. No que toca aos canudos — esses stio de origem persa, onde eram conhecidos por “el-barani” e 14 j& serviam como potes para guardar ungiiento e produtos, medicinais. Foram os 4rabes que 0s trouxeram do Oriente Médio e 05 ceramistas ibero-mouriscos passa- ram a reproduzi-los para o mesmo fim, como potes de farmécia. Eles tém como caracteristica de origem 0 estrangulamento na secdo média do tubo ¢ passaram a ser conhecidos na terminologia cerimica como “alba- rellos"; pois a Italia que 05 recebeu de Majorca, difun- diu 0 modelo para o resto da Europa, através de sua vistosa faianga. Qs recipientes para conservar esséncias, drogas © medicamentos, apresentam varias denominagées formatos. Eles podem tanto ser potes, camudos, boides tubu- lares, boides bojudos, como boides cilindricos; essas designagdes morfologicas englobam-se todas no termo genérico que especifica sua funcio, ou seja, “potes de farmécia” ou “boides de botica” (como so conhecidos em Portugal). Existem também garrafas para o mesmo uso, Todos estes recipientes estrangeiros portam indi cagdo através de inscrigdes, brasdes ou siglas. O boido, pote ou canudo, com estrangulamento na parte média, como dissemos € conhecido por “albarello”; 0 boise bojudo (que muitos s6 chamam de boido) tem, como caracteristica peculiar, sua forma globulada ou pirifor- me € o boo cilindrico & o canudo ow pote sem estran- gulamento. Este iltimo que vem acompanhado de tampa cénica s6 fez aparicdo nas prateleiras de nossos boticarios, em fins do século XVIII ¢ no correr do século XIX. 0% As pecas de complicada fatura, tanto da colegio Paulo Vasconcellos como de Walter José da Silva, reve- lam forte influéncia espanhola. Séo clas os tripodes globulados, 0s candelabros (ou floreiras) composto de um tubo em forma de cfrculo, com um ou varios 437 bicos, e ainda uma jarra formada de meandros tubv- lares © um bico superior. Alguns desses modelos jé eram fabricados em Manises, desde 0 século XV, conde eram conhecidos por “bibersns” © “jarras de trampa”. Com referéncia aos recipientes com base tr pode globulada, estes ja apareciam na China, na pro- véncia de Shantung, em louga branca vidrada (alt. 31 em) no terceiro ou principios do segundo milénio a.C. de acordo com escavacdes procedidas em 1964 2, eno Mediterrineo 2000 a.C., na itha de Chipre @ € aquele formato, é de se presumir que os arabes 0 tenham trazido para a Tbéria. Esse formato de recipiente, que Jevou milénios para chegar do Oriente ao altiplno mineiro parece que, além de agradar aos chineses, cipriotas, fberos mineiros, agradou também aos bandeirantes, porquan- to cle se faz presente em Apiai, onde louceiras do bairro de Serrinho, ainda 0 fabricam, obedecendo a tra- igao antiga, sendo lf denominados de “garrafas de trés pernas” 2, Em Portugal as “jarras de segredo”, as bilhas bo- judas ou piriformes com bico e boca laterais ¢ alga na parte superior (cole¢do Paulo Vasconcellos), assim ‘como pecas em forma de cfrculo, tubiformes com varios, gargalos, eram fabricadas sobretudo, em Extreméz. © Tanto as “jarras de segredo” como as bithas de alga superior, com variagées de formato, eram e, con- tinuam sendo, fabricadas na Bahia, sobretudo em Ma- agogipinho, sendo que aquelas também eram conhe- cidas por “‘piicaros de surpresa” e “pécaros de enga- 10”, todas decoradas a frio. 2 ‘Quanto as garrafas em forma de galo ou de ga- linha, em terracota’ ou em louga_vidrada, tanto na Andaluzia como na Extremadura Espanhola, so elas até hoje reproduzidas. Vejamos 0 que nos foi possivel reunir com refe- réncia a documentos sobre essas lougas. minciras © sua produgio, 0 que podera servir subsidiariamente para a identificacdo do local de seu fabrico. 1777-1786 — Dr. José Bittencourt Accioly fez ensaios © experiéncias favordveis com o barro de Caeté, porém nio ha evidéncia de que tenha dado inicio’a uma produgéo regular de louca, © 18..-.... — O inglés John Morgan interessou- se em organizar uma sociedade para aproveitar 0 material de Caeté, porém caducou sua concessio sem que montasse fabrica. 0 1809-1812 — John Mawe assinala, em Congo- has do Campo, uma olaria que, empregando “barro em seu estado nativo” e “a roda”, fabricava “pratos, otes, jarras pesadas © macicas, mas pouco sélidas, que se tomavam menos frégeis com 0 emprego de verniz espesso”. Segundo ainda Mawe, era “uma terra para porcelana, superior aquela empregada em Stvres. Provinha da colina de Santo Ant6nio perto de Con- gonhas do Campo” (citacio de Manuel Bandeira) 1816-1822 — Saint-Hilaire, assinala uma fébrica de louga perto de Vila Rica (Ouro Preto), “que se estabeleceu hd poucos anos”... “Os vasos apresentam em geral lindas formas, mas so revestidos de uma camada rhuito espessa de verniz ¢ quebram-se com muita facilidade. E evidente, aliés, que conseguindo-se evitar esses defeitos a manufatura de Vila Rica, fique rivalizando com as da Europa”... @? 438, 1855 — E analisado em Sevres batro de So Cac- tano, a trés léguas de Mariana, considerado como caulim e “a peca cozida deu boa louca” — analisado também no Rio, pelo naturalista Frei Gustavo Serrdo, sendo muito favoravel o exame”. ‘Augusto de Lima Jiinior jnforma que havia “algu- mas fébricas de producao ceramica na regiao de Ma- riana’’. Séo Caetano, por forca de seu bom material, no pode deixar de estar inclufda entre elas. 1858 — E aprovada pelo governo mineiro uma subvengio de cinco contos de réis, para o melhora- mento da “Fabrica de Caeté”, 0 que nos leva a crer ‘que esse centro fosse 0 que apresentasse melhores con- digdes entre todos os outros, para merecer aquele incentive. 18.- — Augusto de Lima Jinior informa: “A Jndistria do oleiro, tao popular em Portugal, adquitiy regular desenvolvimento entre os colonos © muitas fé bricas de louga grosseira forneceram sua mercadoria 20 consumo local. Temos conhiecimento de algumas em Mariana (Sao Caetano, entre outras), em Prados, em Congonhas do Campo e no arraial do Ouro Branco, afora uma préxima de Ouro Preto, que resistiu até o fim do século pasado (Saramenha). 'Pratos, tigelas, potes de égua, m as, alguidares, etc., foram fa- bricados e tiveram procura. 2 Manuel Bandejra tam- ‘bém informa, embora nao assinale a data, que a fabrica de Vila Rica desapareceu. ® 1868 — Lougas vidradas fabricadas em Taquarucu (distrito de Caeté), pelos sécios Felipe Nery Teixeira, sua filha Florinda de Jesus e Anténio Percira de Aratjo, Tavares, e adotando a técnica da fabrica de Caeté; “Fei- ta a apuracéo do barro pelo tamis ¢ amassado 0 barro a ‘brago, fazem a louga com uma roda tocada com 0 pé € queimada em forno ordinério, vidrada em pedra moféa ou com éxido de ferro e de cobre em partes iguais... € © biirro empregado em Taquanicu, € de diversas cores, © existe em grande abundancia nos arredores deste arraial, assim como pedras para todos 0s vidros... 08 fabricantes sio pobres e carregados de filhos, etc. CO 1883 — Na cidade de Passos, hé fbrica de Touca com a informacio de que “nesta paréquia, hé exce- lente caulim”. 1893 — Fundacdo oficial em Caeté, em 13 de julho, da Ceramica Nacional, pelo Dr. Joao Pinheiro da Silva’ (que foi presidente da Provincia em 1890) e pelo Dr. Carlos Thomaz. de Magalhaes, lente da Escola de Minas de Ouro Preto, com 0 propésito de fazer pros- perar a cidade de Caeté ¢ melhorar a qualidade e pro- Guzir artigos finos visando a porcelana, A ata diz entre outras coisas: “Sendo dadas as condigdes fisicas com que atualmente se fabrica uma espécie de louca bérbara nessa cidade de Caeté, conseguir melhorar... com wma intervenco quimica”. (Dois meses depois é relatado que ‘conseguiram condjgSes animadoras e com novas provas e descobertas deram o problema como resolvido). Diz a Ata ainda: Viram por eles (estudos) como se pode conseguir o esmalte branco na louca barbara aqui fabri- cada nos fornos rudimentares de eupim”, 1893 — ¥ assinalada a presenca em Mondeos, “a meia légua de Caeté, de um velho louceiro chamado Manuel Vicente, que tinha também seu forno de cupim (Ata cit.). 1897 — Informa Xavier da Veiga, que até entéo nio havia produgdo em Minas de porcelana. 1898 — Precioso élbum de fotografias da “Cerd- mica Nacional”, em que sio exibidas as instalagdes da fabrica e seus depésitos, com os artigos produzidos. 1903-1921 — Fabrico de pecas uilitérias em por- celana em Cacté, de forma industrial, informagées dos aluais ditigentes'e do jornal “O Pais", sob o titulo Kaulim, dias 7 © 8 de junho de 1926. 1921 — Transformacio da antiga razao social para, “Cerémica Jodo Pinheiro”, que produz atualmente (1975) somente produtos refratérios. Desa enumeracao de datas, dados ¢ comentarios, concluise fora de diivida que os artigos produzidos em, ‘Minas deviam diferenciar-se bastante entre si, 0 que faz com que os remanescentes de lougas encontrados hoje sejam bastante diversificados, isso também em ra- 26es de diferenca na técnica de origem adotada na pro- dugGo das argilas empregadas © seu tratamento, dos fornos, das formas, de vidrados e esmalte utilizados. Assim, néo estamos inclinados a admitir, salvo pro- vas aceitéveis ou documentos, inclusive fragmento encontrados nos antigos locais, que a louca mineira vi- drada do século XIX restrinja-se apenas a trés ou qua- tro origens, como Caeté, Saramenha, Diamantina (Serro) e Barbacena, quando os centros a produzi-las eram numerosos, em regides esparsas com técnicas, materiais, artesios, modeladores, decoradores ¢ apare- Ihamentos diferentes. Os centros encontrados até agora, so onze: (Olariay 1 — Congonhas do Campo (Fabricas) 7 — Vila Rica (Seramenha) Passos Caeté Mariana (S40 Caetano) Prados Ouro Branco Taquaracu (Louceito) 1 — Mondéos 2 Diamantina (Serro) . Barbacena Desses centros cerfimicos, destaca-se Caeté, que Passou por quatro fases. Seu. primeiro periodo perde-se 10 quartel do século XVIM até 1858, quando a fabrica de Caeté recebe vultosa subvencao (cinco contos de seis) do Govemo Provincial, e ja deve entio ter methorado a qualidade da louga, que serviu até de dito ‘maldoso: “Louca de Cacté Justica de Itambé E 0 povo de So Mané Livre-nos Deus, Dominé”! A segunda fase iria de 1858 a 1893, quando é constituida a firma Ceramica Nacional, com notavel aparelhamento, ¢ a terceira de 1893 até’ 1921, quando passa a ser Cerdmica Joao Pinheiro, e a quarta de 1921 até hoje. Sabe-se que em 1868, empregava como vidra- do pedra moida ou com éxido de ferro e de cobre em parte iguais: quanto & argila, segundo informacées dos atuais dirigentes © amostras, era ¢ & uma argila prota, que depois de cozida se tora branca. Na terceira fase de Caeté (de 1893 a 1921), con- ‘tinua sendo empregado o mesmo material para os arte fatos cerémicos, com outras misturas para o grés e os refratitios, fora o uso do caulim que de 1903 a 1921, serviu para a industrializacdo da porcelana, No ano de 1893, ja tinha sido assinalada a descoberta pelos téeni cos do esmalte branco para decoraco das loucas vidradas, Quanto aos formatos e tipos de Ioucas de Cacté, gue constam do élbum de 1898, pudemos distinguir na foto 1, do interior do Depésito de Loucas Artisticas, os seguintes modelos: um medalhéo com o busto de Tira- dentes, outro de Floriano Peixoto, uma série de anforas de tipo clissico, potes super decorados com folhas, flores, galhos em relevo (j4 estamos nesta altura no perfodo do floreal, do Art-Nouveau), bilhas, potes para flores de dependurar, garrafas, moringas com alga flo- rais, pecas (tipo floreiras) de boca larga com as abas (ajourées, ou vasadas, etc.). A fotografia n.° 7 focaliza © interior do depésito de louca de servigo ¢ nela se distinguem servigos de ché, cremeiras, como também largas bacias jarros, escarradeiras e urinGis. Quanto a Saramenha, sabe-se que se estinguiu no fim do século, conforme informacio de Augusto Lima Jr, corroborada por Manuel Bandeira 69. O cole- cionador Paulo Vasconcellos exibiu-nos uma peca por ele atribuida a Saramenha que mostra no frete a inscri- do “1922 fevereiro”, donde deduzimos que embora a fabrica haja sido extinta, artesdos seus © descendentes deles continuaram a procluzir individualmente na mesma técnica e decoragao. Saramenha, subtirbio de Vila Rica (Ouro Preto) apresenta uma producZo pelo que se pode apurar, bas- tante diversificada. O que se explica pelo fato de Vila Rica ter sido a Capital da Capitania © da Provincia. Acreditamos que a maioria dos pratos de louga vidrada, com desenhos policromados e sobretudo os de fundo esbranquigado (meia faianea), sejam de fatura sara- ‘menha, pois a decoracdo dessa louca exigiu artistas mais especializados e estes & licito admitir-se que se concen- ‘rassem na Capital da Provincia, onde a demanda era ‘maior e mais qualificada. Existe um exemplar prato de barbeiro da colecdo do falecido colecionador SimBens, da Silva (hoje no Museu da Inconfidéncia) com a ano- tagdo de Saramenha, o que corrobora aquela opinio; 6 um exemplar tipico da meia-faianca “mezza-maidlica”. Acreditamos também que seja da mesma procedéncia parte das pecas da mais fina elaboracao e técnica oleira mais apurada, como & 0 caso dos tripodes parte das ‘alinhas policromadas, cangirdes, pecas tubiformes, po- tes, canecas, sopeiras, cumbueas, etc, com desenhos. fitoformes e’abstratos sobre fundes esmaltados unifor- ‘mes ou de cores escorridas. AS pecas de Barbacena de que existem varias mar- cadas, apresentam em geral, um fundo esmaltado ama- relo ou amarelado e como caracteristico a representacio Policromada de flores e folhas em relevo. A cidade de Barbacena é tradicionalmente centro mineiro de culti- vo de flores, daf sua cerdmica nelas se inspirar até hoje. A Diamantina-Serro, dada a coleta de numerosas pocas com caracteristicos idénticos de forma, decoracio, e cor do vidrado naquela mesma regio, passou-se a atribuir o fabrico de determinados “‘tipos”. Sao as flo- reiras com alcas, com desenhos relevados e fundo azei- tonado ou amarelado. Hé também garrafas, potes, bules, canecas, canudos esmaltados € verde escuro ou marrom, de brilho forte, com ou sem aplicagao de cinco rosetas, ou cinco coragées em volta das pegas. 439 Com estas consideragdes sobre a louga mineira, ‘mais atualizadas, retificamos estudo nosso feito em 1975.9 no qual nos referimos & producdo cermica de Minas, limitamo-las apenas ao fabrico da louca de ‘arro (cru ou cozido) e ao da louca vidrada (poterie vernissée) sem incluir @ produgao da louga conhecida por meia-faianga ou meia-maidlica (mezza-maidlica), ‘técnica essa aplicada sobretudo nos pratos. Ha que se dar destaque especial nesse contexto brasileizo de produtores de cerimica artistica ¢ utlitéria, & fabrica de louca instalada em Colombo em 1880, por Francisco Busato. Estudos recentes de Newton Carneiro nos revelou uma producao de alto nivel artistico que se equipara sem favor & européia e que se deve a imigran- tes italianos. Francisco Busato, originério de Dalenova, Provincia de Vicenza, estabelecido em Colombo, produ- zia telhas e tijolos. Resolve depois dedicar-se & cerimica artistica © de qualidade, Contrata o artista Joio Ortola- ni e inicia pequena producao de um género de faianca, Touca vidrada e “mezza-maidlica”, ou variante, “e abrangendo floreiras, placas, estatuetas, nforas © bi- belots ¢ parte de seus modelos inspira-se no Art-Nou- veau, Com esses produtos alcanga em 1900 medalha de Ouro na Exposigéo do IV Centenario da Descoberta do Brasil. Essa fabrica de Colombo conhecew diversas fases até 1926, passando por diversos donos. ‘A fase realmente brilhante € a de 1897 a 1901, com a atuagio de Joao Ortolani, otiginério de Ligirie © que fez seu aprendizado artistico na Academia de Pintura e Eseultura de Verona, Essa fase denominaria- mos de “Italiana”, pois a seguir muda de categoria ce- ramica e de dono, que adota o fabrico industrial de Touca granito, importando uma importante equipe de téenicos alemfes — fase essa que chamariamos de “germanica” e da qual trataremos mais adiante no ‘Tépico Faianga Fina. Sobre a produgio de louca vidrada ou da meia- faianca, em Sdo Paulo, seja no periodo colonial ou imperial, ou dos primérdios da Repiblica, ha que assi- nalar alguns leiros isolados ¢ algumas fabricas. © Mago de Populagdo da Capital de 1808 ¢ 181169, aponta: “José Manoel Carneiro, natural de Minas que vive de uma fébrica de louga vidrada” © em 1817 (lata 35): “José Anténio Barbosa, natural de Minas, 37 anos, casado, branco, vive de’ fazer loisas vidradas” (sic). ‘Como centros produtores, entre outros hé que se destacar a cidade de Sorocaba, com as suas famosas “Joucciras” e ‘Séo Paulo. Nesta, o fabrico de loucas concentrava-se de inicio no Bairro de Agua Branca, Apontam-se ld varios fabricantes como “Ferreira & Cia, — Agua Branca”, que fabricava vasilhames e “Joaquim de Oliveira — Agua Branca”, que fabricava moringas ornamentais em forma de galinha com vistosos coloridos de esmalte e ainda: “A. Ferreira Irmaos, Agua Branca”, que fabricava pinhas oramentais de vistosa apresen- tagio (Colegio Isaac Alex Catap). ‘Ainda nesse bairro de Agua Branca, iria ser inicia- do 0 ensaio de produtos em porcelana e em biscuit, como o fabrico regular de louca de pedra, pelo pioneiro Romeu Ranzini e um grupo de seletos ceramistas, com 1 fundacio da primeira fébrica do género em Sio Paulo, chamada Santa Catarina, Necessério toma-se referirmo-nos, além da louca nacional também as lougas vidradas ¢ s meias-faiancas 440 importadas de Portugal, no correr do século XIX, jé que clas tiveram igualmente a sua presenca assinalada nos lares brasileiros, nos perfodos Imperial e Republicano. depois da revolugdo de 21 de abril de 1974, que vieram elas em maior profuséo para o Brasil. Trata-se sobretudo das lougas conhecidas por “Ratinho”, de alto teor decorativo © cromia vigorosa, a que jé nos re- ferimos. No equipamento doméstico brasileiro, fora as faian- ‘gas de primeira qualidade e porcelanas finas importadas do Oriente ¢ da Europa, a louca vidrada tinha também seu lugar assegurado. A louca brasileira, no entanto, ‘embora-encerrando em si predicados de cor e de formas assinaladas por Saint-Hilaire, nfo podia competir com as portuguesas (a ndo ser as producdes artisticas de Francisco Busato, executadas por italianos infelizmente de breve duragao) Diz-nos Francisco Marques dos Santos: . .. Fabri- cas de louca fina nunca medraram no Brasil antigo, talvez a falta de recursos dos oleiros ou mais seguramen- te pela concorréncia européia.” 09 E ainda “afirmamos ‘com seguranca, que 0s nossos primeiros quatro séculos, de civilizacao foram de louca desativada” (pég. 290) € rematando diz: “a louca vidrada fabricada no pais entrava como hoje na casa abastada, através dos algui dares, boides, panelas e em pecas de variada utilidade” (pg. 287). A regra realmente era essa, porém com a excecio dos produtos artisticos do Parana do final do século, jf citados, que foram de curta duracao e de producao limitada e cujo uso se circunscreveu ao Estado ‘ou apenas a regio da Capital. ‘Assim, de maneira geral, a louca vidrada portugue- sae Sua meia-faianca popular “mezza-maidlica” do gé- nero Ratinho, no equipamento doméstico, situava-se entre a copa e a sala de jantar, a louga vidrada brasilei ra mantinha-se entre a copa ¢ a cozinha, salvo as do Paand do periodo de Francisco Busato. Essas Iougas portuguesas populares, tanto do Ra- tinho como outras, em que se inclui parte da producéo artistica de Bordallo Pinheiro, vieram a conhecer na segunda metade do século XIX, uma versatilidade bem maior de motivos ¢ de criatividade do que a faianca verdadeira fabricada no mesmo perfodo, a nosso ver mais carefte de originalidade. Sua representacdo é em geral fitoforme, de técnica jmperfeita mas de sabor ingénuo e atraente, parte de [producio de inspiracdo autéctone e parte dela interpre- tando com vigor 0 modismo anglo-francés orientalista Por mais estranho que pareca, colegdes no Brasil (D. Anita Marques da Costa, Marcondes Ferreira, Gaston ‘Adler, entre outras de Sao Paulo), revelam uma suxpre- ‘endente variedade de motivos. Nestes so representados padrées classicos repetidos, de cunho popular e folcléri- co, como das mais inesperadas e soberbas interpretacbes do orientalismo ou do japonismo em voga na segunda ‘metade do século, mormente de Limoges, cuja producto ja impregnada do romantismo © do_impressionismo, estravasa também na representacéo floral persa que prenuncia o Art-Nouveau e deve ter influenciado os ceramistas lusos. ‘Ainda com referencia a lougas importadas, ha que assinalar uma série grande de santos origindrios de Por- tugal e de variados tamanhos e cores, assim como, mais raras as imagens francesas, porém, estas eram em porce- Tana em geral de acabamento dourado. ———— ee TERMOS EM PORTUGUES (Perfil de Pratos) Prato anverso nebordo, aba aba, borda neverso - tardoz ee Acanalada — Poca canclade, Adobe — Tijolo cru (téenica antiga de construcio) barro ‘minturado com palha, Os mouros_o introduzicam na ES. panha e Portugal e este no Brasil Aftaba — Gomil (Pérsi), “Ajouré” —Termo francés: transfurado, vasado, fenestrado, ‘ncestado, “‘Albarelio” — Variedade de potes cilindricos, mais altos ou ‘mais baixos, mais largos ou mais estreites, com ‘ol sem Tigeiro estrangulamento no centro, com cu sem alga, com ‘ou sem tampa; a forma jé era encontrada na Persia (al- ~ barani) © na’ Siriano séc. XM-e na Espanha mourisea ® pattit dos sées. XV ¢ XVI e eram usados para con sorvar artigos farmacéuticos e ungtientos. Seu uso aston para_a Italia e 0 resto da Europa, a decorapio inclut brasoes,retratos (amatoriD, o nome abreviad do conteiido, etc, Existo uma série magnifice no Brasil dos sées. XV ¢ XVI, de antiga famosa colecso (A. Imbert — Paris) em ‘exposigio no Museu de Arte de So Paulo Albarrada — Vaso sem asa em que se costumam pér flotes, pichel de barro com bico. ‘Alcarraza (Grabe) — Espécie de bilha de barro porose, morings. Aleanfér — Canfors. Aleatruz — Vasilha que os drabes usavam para tomar gue, no Brasil ‘significa tubos de aro, de peda ou de pat pelio-betumado: condutores. de gua (recipiente de Agua solocados nas rodas d'égua dos engenhos). Alguidar — Yaso de barro vermetto ou vidrado, com maior sircunferéncia do que fundo. Alizar — ‘Termo arabe (al-izat) faixa de azulejos © também ‘ise © mesmo nome ao enquadramento de porias ou de jnnelss com cercaduras ou barra de azulejos. Almofia — Vaso de barro mais largo. do. que alto, princi almente para favar ss mfos; tigela de fundo largo. caldeira quase perpendicular Almotalia — Pequeno vaso de forma cOnica para azeite (engraxadeiray Almude — Vaso que contém medida de capacidade para liquidos, de doze canadas ou qusrenta © eito quertliios (antiga’‘medida de cereais). “Amorini” — Cupidos muito usados na Tél Anil —- ‘indigo, Antefizo-acroterio — Pocas de cerfimica colocadas nos telhados « simalhas, como arremate de fachadss, no Norte do pais chamavam também de ponteiras (reminiscencia, dos "acto: ferium” gregos e romanos) Anverso — Parte anterior do prato. Avabescos — (Arabe) Na decoracio islamica consiste em deco- ravio plana de linhas ou fitas intrineadas e eatrelacadas, formando um desenho abstrato. Como decorssio papular ‘mourisca era muito usada, porém sem formas de anieiais os louccires espanhéis € que aduziam decenhos soomorfo © aniropomorfos. Esses desenhios influenciarim, mais tarde © barroco do Norte como ornamento, No sé. XIX ne Inglaterra esses “desenhos cram também chemados de “Moresques" Aranhides — Tipo de decoracio encontrada na faianga portw- Buesa. Este motivo ornamental (sée XVID) solveu anna evolucio que ma forma primitiva spresentava a “pedra Sonora” dos chineses, modilicado por sucessivas estilizacoes, {ransformowse “num motivo paretido com um. inset, Dai provém 0 nome “aranhoes” (eatélogo do “Museu sna decoracSo das Janclas Verdes” — 1938 — pig. 10, estampa 101}, Argila — Barro de diversas cores © ‘composigées, inclusive Branco, Azul de cobalto — Mineral que tem por base o sluminato de obaltc. Continua sendo 0 ingrediente mais usado na Piral” e de "colombin”, pelos espanhs & frances. Enmxugo.— Secagem pars eliminar winidade antes da pega ser Suibmetida. 4 cozedura, Esendela— (Do, lation "Scutela") Pequena. malga baixa com sas ou orelhas srafito — ‘Técnica de decoracio de desenhar linhes incisas sobre o_

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