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Adolpho Caminha Bom-Crioulo Rio de Janeiro, Artium Editora Ltda., 1997, Flavio Alves e Sérgio Barcellos Toque de Siléncio - uma historia de homosexualidade na Marinha do Brasil Sao Paulo, Geracao Editorial, 1997. Carlos Alberto Messeder Pereira “Qual cisne branco que, em noite de lua, vai navegando no mar azul...” Em 1895, Adolpho Caminha (morto em 1897, vitima da tuberculose, aos 29 anos) - cearense que seguiu carrei- ra na Marinha, instituig%o da qual se des- liga em 1890 em fungao de uma compli- cada e escandalosa histéria de amor vivi- da entre ele (entéo, segundo-tenente) e uma jovem de dezenove anos, casada com um oficial do Exército - publicava O Bom-Crioulo, primeiro romance brasi- Iciro a abordar a temiatica da homosse- xualidade. Trata-se da hist6ria de dois marinheiros, um branco e um negro, respectivamente Aleixo - 0 jovem e belo grumete - e Bom Crioulo - temido por m 229 RESENHAS sua forga fisica e seu temperamento instével. Contada no registro dos precon- ceitos daqule momento (com destaque para uma visio que carregava nas cores do patolégico e do perverso) e num clima de forte erotismo, a histéria dos dois amantes tem como pano de fundo o cotidiano da Marinha da época, a vida nos navios e um pouco da cidade do Rio de Janeiro de entio. A critica literéria reagiu & altura, configurando-se um verdadeiro escindalo literdrio; durante o Estado Novo, uma reedigao do livro chegou a ser apreendida (segundo o critico Brito Broca, sob a fantistica acusagdo de “comunismo”), tendo sido finalmente Jiberada por decisao judicial. Adolpho Caminha efetivamente demonstrava um interesse recorrente por temiticas polémicas - em 1893, havia publicado o seu primeiro romance, intitulado A Normalista, no qual a personagem que dava titulo ao romance era deflorada por seu padrinho; em 1896, foi a vez de Tentagdo, 0 qual girava em tomo do adultério, “Deixou outros dois [roman- ces], Angelo e O Imigrado, inacabados & a informagio de mais dois livros no 230 BOM-CRIOULO | TOQUE DE SILENCIO prelo, dos quais no se tém noticias: Pequenos Contos e Duas Histérias””. Além disso, publicou contos, impressées de viagem e poesia. Praticamente 100 anos depois, em 1997 (ano em que O Bom-Crioulo foi reeditado), surge um outro livro - Toque de Siléncio/Uma Historia de Homosse- xualidade na Marinka do Brasil - , am- bém sobre a tematica da homossexuali- dade na Marinha, Desta vez, no se trata de um romance mas de um longo ¢ denso depoimento em que um ex-membro da Marinha, 0 cabo Favio Alves, fala de suas experiéncias. O livro vem também assi- nado por Sérgio Barcellos, aquele que narra as experiéncias de Flavio com base em depoimento, Sua idéia inicial era, como afirma na Apresentagio, “escrever um livro com depoimentos de militares homossexuais(...). Acreditévamos en- contrar pessoas dispostas a contar suas experiéneias. Dezenas de homossexuais foram contatados e, com excegao de dois, todos os outros di eram que s6 dariam entrevistas se nfio fossem identificados”. Diante da situagio, Fl4vio altera seus planos iniciais e resolve contar sua propria hist6ria. O livro teve uma recep- Gao “politicamente correta” de parte da midia, tendo sido langado em evento con- corrido, no Museu da Reptiblica, antiga sede da Presidéncia da Repiiblica, (Ed. Artium, RJ). Fundador do Grupo Gay da Marinha, bem como do grupo Caras & Coroas - 0 qual reunia jovens que se interessavam por homens mais velhos, os ‘coroas” -, Flivio foi também organi- zador do primeiro time de futebol gay do RJ, por volta de 93/94. Baseado em time similar criado inicialmente em Sao Paulo (0 “Caneca de Prata”), por volta da mesma época, 0 time gay carioca “jogou contra o time do Corpo de Bombeiro, contra times de bairros como Penha, Campo Grande e, até mesmo, contra 0 time de militares da Marinha, Para sur- presa de todos, com excegaio dos dois primeiros jogos, 0 time gay jamais perdeu, mesmo na partida contra o time da Marinha”. Em 1995, Flavio organizou ainda a I Olimpfada Gay do Brasil, even- to que ocorreu durante a realizagio, no Rio de Janeiro, da XVII Conferéncia da ILGA - International Lesbian and Gay Association. As atividades de militante gay desenvolvidas pelo cabo Flavio foram, ainda que com uma certa timidez, noticia- das pela imprensa diéria. Na imprensa especializada, voltada especificamente para um piiblico gay, as coberturas foram bem mais amplas. Tendo ingressado na 1987/1988, Flavio se defronta com um contexto institucional Marinha em muito diferente daquele enfrentado por Texto de informacao sobre o autor, nao assinado, publicado na edigdo de 1997 do romance Adolpho Caminha; entretanto, muito da hipocrisia da relacdo oficial da institu- igo com a questo da homossexualidade parecia inalterada - 0 lema “Eu finjo que niio sou; eles fingem que n&o sabem” ainda expressava bastante bem 0 que 0 autor define como “o jogo da instituigio em relagio a presenga de gays”. No comego dos anos 90, no Brasil, 0 movimento gay organizado vivia um periodo de “reaquecimento”. O idedrio GLS - sigla que sintetiza a expressio “gays, lésbicas ¢ simpati- zantes” - ganhava cada vez mais espago, intimeros novos grupos surgiam a cada dia ¢ 0 jornal Nés Por Exemplo - “ponto de partida para o reaquecimento do movi- mento gay no Brasil", segundo 0 autor - marcava sua presenga. “Apés dez anos do desaparecimento do jornal O Lampiao (primeiro jornal gay brasileiro), a comu- nidade gay tinha como opgées de leitura revistas pornograficas e jornais homo- f6bicos”, Ainda referindo-se ao jornal Nés Por Exemplo © ao papel por cle desempenhado, o autor afirma: “A época de seu primeiro mimero existiam apenas dezesseis grupos gays ¢ lésbicos no Pais. Por meio do incentivo que o jornal deu a pequenos grupos, fornecendo-Ihes infor- magées de como se organizarem e, tam- bém, dando voz aos mesmos grupos que eram ignorados pelos érgaos de comuni- cagdo convencionais, o ntimero de gru- pos gays e Iésbicos atingiu em 1995 0 Adolpho Caminha ™ 231 Flavio Alves ¢ Sérgio Barcellos ndmero recorde de 65 grupos em todo 0 Pais”. As Forgas Armadas nao escapavam dessa ambiéncia geral, 0 que fazia com 0 que 0 debate sobre a questio da homos sexualidade também estivesse ali pre- sente - 0 livro do cabo Flavio € eloquente nesse sentido. Entretanto, apesar da passagem de um longo tempo entre um livro ¢ outro, das enormes mudangas que se ve- rificaram tanto no pais quanto na propria Marinha, bem como da diferenga de pers- pectiva de cada um dos autores em pauta, o que chama a atengao do leitor na leitu- ra dos dois trabalhos 6 a permanéncia de fortes preconceitos que permeiam as histérias contadas bem como a reagéo da Marinha diante da vida particular dos dois autores. A leitura de ambos 0s livros torna evidente a enorme resisténcia da instituigo em discutir de forma mais aberta a tematica da homossexualidade bem como a voraz tentativa institucional de controlar a vida particular de seus Tera Caminha - aparentemente um hetero con- membros. sido por isso que victo - resolveu se “vingar” da institui- ‘fo, revelando ao ptiblico do séc. XIX as “entranhas” homossexuais da Marinha? Quantas histérias semelhantes aquela contada o autor teria presenciado ao longo de sua permanéncia na instituigio? Caso nao tivesse morrido tao jovem, 0 autor teria vivido 0 seu “outing”? No caso do cabo Flavio, o drama, vivido em 232 Ml B0M-CRIOULO TOQUE DE SILENCIO outra época, tem outro desdobramento. Antes de ser desligado da Marinha - 0 que, evidentemente, aconteceria mais cedo ou mais tarde - ele préprio se desli- ga c joga 0 jogo explicito de tornar puibli- ca sua hist6ria, No primeiro caso, um desfecho trégico: a morte provocada pelo citime do amante traido - O Bom Crioulo nao acei- ta pacificamente que Aleixo 0 troque por uma mulher; no segundo, apesar da forga ¢ da violéncia dos preconceitos que se explicitam, uma vit6ria (ainda que ao prego de ter de abandonar a Marinha) pela via da militancia. Entre os dois tra- balhos, um enorme siléncio oficial (¢ mesmo liter4rio) apenas interrompido por uma profusio de fantasias e de hist6rias, ouvidas e contadas com curiosidade & num tom picante, sobre homosexuali- dade, ou melhor, sobre praticas “homo- eréticas” no interior das Forgas Armadas e, muito especialmente, da Marinha. Em ambos os livros, nos defrontamos diretamente com os com- plexos entrelacamentos entre 0 universo eo imaginario homossexuais e 0 “mundo militar”. E af, um destaque - 0 fetiche da farda, esse grande simbolo erético. Comentando os sentimentos de D. Caro- lina, personagem central do romance de Adolpho Caminha, com quem o grumete acaba por trair 0 Bom Crioulo (fato que The custou a vida), o narrador afirma a certa altura: “Bla gostava tanto de o ver em seu uniforme, ‘todo bonitinho’, como uma pintura, chamando a atengio dos burgueses, admirado, invejado, gabado. ‘Assentava-Ihe muito mais a roupa de marinheiro; sem comparagao! O que era um soldado & paisana? Um homem como qualquer outro, um pobre-diabo que AS hist6rias de paquera contadas pelo cabo ninguém respeitava. Oh! a farda! Flavio nos falam de suas andangas pela rua Visconde de Inhatima (no centro do Rio de Janeiro) e dos fardis dos carros que piscavam em sua diego, num con- vite explicito para uma noite - ou momentos, quem sabe? - de sexo casual e descompromissado. Ele € 0 primeiro a reconhecer que sem o uniforme de mari- nheiro seu sucesso nao seria tao grande... a Carlos Alberto Messeder Perei- ra é antropélogo, professor € pesquisador da Escola de Comunicagio da UFRJ, onde coordena 0 Nticleo de Estudos ¢ Projetos em Comunicagio (NEPCOM)

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