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avn22015 ‘Ordem dos Advogaos -Artgas Dauirinals - José de Oliveira Ascensto - ntervengdes ro genama humane, Valdade éico¥ureica Inicio > PublicagBes > Revista > Ano 2003 > Ano 63 - Vol. 1/11 - Abr. 2003 > Artigos Doutrinais ARTIGOS DOUTRINAIS José de Oliveira Ascensao - IntervengGes no genoma humane. Validade ético-juridica INTERVENCOES NO GENOMA HUMANO. VALIBADE ETICO-JURIDICA Pelo Prof. Doutor José de Oliveira Ascensdo SUMARIO: 1. Sociedade de risco © manipulacao genética; 2. Gene, intervengéo genética, patente; 3. Fontes juridicas; 4. Intervengbes com cardcter terapéutico em celulas somatias; 5. Intervengses com cardcter terapéutico em célulag germinais; 6. Intervengées para fins de methoramento em céluas somaticas; 7. Jnterveneaes em célulasreprodutvas; 8. Etea e “politica das éticas"; 9, Intervengoes para methoramento em celulas germinats; 10, Personalidade e genoma; 11. O status juridico da questo. 1, Sectedade de risco e manipulagio genética \ivemos hoje no que é qualificado como uma sociedade de risco. A organizacio tecnolégica avancada e meticulosa da vica social coexiste com riscos espantosos que de todo o lado a ameacam. A sociedade é vida de seguranca, mas esté por muitas formas wilneravel. Disso temos por todos os lados manifestacoes: duas torres que desmoronam, 0 caos provocado pela Interrupgio no, fomecimento de electricidade, © panico provocado por um simples acidente rodovdrio num tinel, o sdescontrolo nuclear... ‘Também se aponta, na origem de grandes riscos que ameacam a sociedade, a biotecnologia (1). Por isso se desenvolvem dais movimentos paralelos e nie contraditérias: por um lado, a corrida a inovacao tecnolégica, motor de auténticas revolugaes que levam sempre mais longe a capacidade de dominio da natureza ¢ de resolucao de problemas sociais; por outro, o receio ou a inquietacao perante o$ resultados anémalos que se configuram (ou pressentem, porque muitas vezes ocultos ainda). Como saldo, podemos dizer que os riscos aumentam sempre, mais celeremente que as solucées dos problemas. Ao contrario do slogan, a resposta aos problemas levantados pela técnica s6 com defeito tem sido dada pela tecnica, Isto levou a desenvolver um principio da precaucio, dirigida controlar a evolucio para evitar que se desemboque em ‘consequéncias que sejam ja irreparaveis. Ele é proclarmado em todos os sectores de risco. E tem side referide expressamente biotecnologia, sempre que o ecossistema ou a satide ou integridade humanas estejam em rico (2). [Na realidade, hi aqui apenas manifestacdo da virtude ou principio cléssico da prudentia, algo depreciado no mundo novo, mas que ressurge perante o avolumar dos riscos da prépria existéncia individual e social. (© conhecimento do genoma humano, em particular, abre dominios maravilhosos de actuaco, e cria simultaneamente grandes zonas criticas. ‘As possibitidades de intervencéo, na terapia génica, na procriacao, ou em muitas outras formas de actuagio sobre a base biolégica do ser humano, v8o em crescimento continuo. ‘Mas multipticam-se 05 espagos probleméticos, na investigacdo e experimentacdo cientifica (por exemplo, na criagao de ‘monstros), no diagnéstico (incluindo o pré-natal), na determinagao e alcance do consentimento a exigit, ¢ em tantos outros sectores, E esses problemas fazern-se sentir em todas as aplicagdes: policiais e criminais; no emprego e nos seguros; no aborto e na selecrao dos embrides; na criacdo de bancos de dacos genéticos; na adopgao; na investigacao de patemidade’; e assim por diante (3). 2. Gene, intervencao genética, patente ‘56 é nosso tema o que conceme & prépria intervengao no genoma humano. Estamos no tempo em que se anunciou ter-se chegado ao mapeamento completo do genoma humano. Assistiuese até a uma muito significativa corrida entre a indistria e a ciéncia, a primeira para conseguir 0 monopstio, a segunda pela liberdade. Segundo se revela ao observador nao técnico, a ciéncia teria chegado primeiro, e a liberdade prevaleceu. © presidente Bush fez mesmo uma declaraao piblica, que aparenterente iia no sentido da liberdade do genoma humane. hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 a0 ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea ‘Mas isso nao aplacou a voracidade da indistra. ‘Até ha pouco, admitiam-se apenas patentes referentes micro-organismas. Os Estados Unidos introduziram as patentes ce genes. A Comunidade Europeia foi pressurosamente atrés, pagando o alto preco de ter de subverter as nodes fundamentais de invengio e de descoberta (4), Isto porque a descaberta dum gene é mesma descoberta e ni inven. ‘A outorga de direitos exclusivos sobre genes, mediante patente de produto, cria por outro lado 0 risco de se levantarem barreiras & pesquisa e aplicacio (5). Mas a Comunidade Europeia emitiu a Directriz n.* 98/44/CE, de 6 de Jutho, relativa & protecgao juridica das invengSes biotecnolégicas, que consagra a patenteabilidade de sequéncias de genes, em termos indefinidos mas perigosos (art. 5/2). Foi transposta para a ordem juridica portuguesa pelo recente Cédigo da Propriedade Industrial, aprovado pelo Dec.-Lei n.” 36/03, de 5 de Marco. Utitizou na transposicao o habitual método da fotocépia. ‘Mas ainda agravou a situacSo, uma vez que integra um art. 54/1 a, em que se admite a patenteabilidade de “uma substancia ‘ou composicao compreendida no estado da técnica para a execucao de um dos métodos citados no n." 2 do artigo 52.", com a condicao de que a sua utilizagao, para qualquer método ai referido, nao esteja compreendida no estado da técnica”. (0s métodos “citados” no n.” 2 do art. 52 so os métodos de tratamento cintrgico ou terapéutica do corpo humano ou animal e ‘05 métodos de diagnéstico aplicados ao corpo humano ou animal. Mas j8 ai se diz que podem ser patenteados os produtos, substAncias ou composigSes utilizados em qualquer desses métodos. © art. 54/1 a vern assim, para este caso de métodos nao patentedveis (1), alargar a patenteabilidade as substancias ov ccomposicdes compreendidas no estado da técnica, desde que a sua utilizacao para aqueles métodos nao esteja compreendica no estado da técnica. Calculam-se as dificuldades que trara esta previo casuistica, ainda por cima por referéncia a métodos ‘que nao podem ser patenteados. Retomemos porém a questio do mapeamento do genoma humano. 0 facto de se afirmar terminado nao impede que ainda falte muito no esclarecimento das fungdes dos genes. Foi entretanto possivel extrair da cadeia de ADN os trechos que contém informagao genética. Produzem-se sondas que permitem detectar genes da mesma natureza, nomeadamente para a localizacao do tipo de anomalias que se pesquisem. E podem-se recombinar 0s elementos constituintes: —suprimindo; = modificando; —substituindo; —aditando; —genes, e isto; quer em células somaticas quer germinais; quer para terapia quer para melnoramento.. Devemos examinar estas modalidades, assim descritas em linguagem de leigo. >Mas antes, ha que fazer um breve inventario das fontes juridicas disponiveis. 3, Fontes juridicas ‘Até hi pouco poderia dizer-se que nao havia em Portugal fontes normativas especificas na materia. Restava assim apenas 0 recurso as fontes gerais, particularmente as constitucionais. Encontravam-se duas disposigées do major alcance instas na Constituigdo(6): 41) ado art. 1, que coloca a base constitucional na dignidade da pessoa humana. E uma afirmacao da maior relevancia, comum alias a todos os paises ocidentais. E cla da a base valorativa para resolver muitas questoes suscitadas. Mas ha que evitar o recurso desmesurado a este principio ontolégico, que pode levar a uma banalizagao (7). Arthur Kaufmann descré mesmo que possa representar um argumento plausivel, por ser demasiado abstracto e genérico, e ter contetdo cambiante (2). 2) a do art. 26/3: a lei garantiré a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criacao, desenvolvimento e utilizagdo das tecnologias € na experimentacso cientifica, Aqui versamnos ja especificamente © nosso dominio ‘Acstas foram-se sucedendo outras fontes, em consequéncia de acordos internacionais Referimos em particular: Deciaracao Universal sobre 0 Genoma Humano e 0s Direitos Humanos (UNESCO, 11 de Novembro de 1997). Trata-se de uma mera declaracio. Tem como é natural um cardcter de proclamacio de principios. Tadavia, as intervengies sobre 0 genoma humano so justamente o seu abjecto, Contém varias proniincias sabre aspectos particulares. Eo art. 24 prevé “praticas que poderao ser contrarias & cignidade humana, como as intervengdes sobre a tinha germinal”. Il — Convengio para a Protece3o dos Direitas do Hemem ¢ da Dignidade do Ser Humano face 3s Aplicagbes da Biologia e ¢a Medicina: Convencao sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Consetho da Europa, Oviedo, 4 de Abril de 1997). Ter um Protocolo Adicional de 12 de Janeiro de 1998, que proibe a clonagem de seres humanos. Tratarse agora de uma Convencio, e tem grande significado para Portugal por ter sido jé ratificada, juntamente com 0 Protocolo, a 3 de Janeiro de 2001 (9) Interessa-nos muito em particular 0 Cap. IV desta Conven¢o, relativo ao genoma humano. Alguns preceltos revestem-se de hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 ano ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea um cardcter vago, 0 que nao é de estranhar perante a grande diversidade de participantes e os receios de uma intervene normativa prematura em dominios ainda em grande ebulicdo. Por outro lado, isso reduz em grande parte a eficdcia pratica. Seja 0 caso da proclamacao do principio da nao discriminacao em virtude do patriménio genético. Marca uma orientacao, mas permite ainda muitos entendimentos. ‘A.Convencao contém porém duas disposicées taxativas, que cortam cerce as probleméticas que apontam 41) Ant 14 — no seleccio do sexo ‘0 proibidas técnicas da procriagao assistida pare escolher 0 sexo da crianga a nascer. ‘Apenas se admite uma excepsao: quanco a finalidade for evitar graves doencas hereditarias ligadas ao sexo. 2) Art. 12 ~ testes genéticos predictivos ‘56 0 admitidos para fins médicos ou de investigagio médica e sem prejuizo de um aconselhamento genético adequado, Firma-se assim uma orientaco de grande importincia, nomeadamente se se tiver em vista a pressto dos sectores interessacos no sentido da realizacao de testes para fins de emprego ou de seguro. E fundamental para nés o art. 13, epigrafado mesmo “Intervengdes sobre o genoma humano”. Mas justamente por ser’ 0 niécleo do nosso tema, a sua analise acompanhara o desenvolvimento subsequente. Estranhar-se-a a escassez de fontes com que se lida em dominio téo importante. Mas ha também aqui uma prudéncia que impede que se legisle afoitamente, H8 que fugir da precipitacgo que leva a fechar rigidamente questdes cuja meditagao ainda esta em aberto. Por iso se tem manifestado a preferéncia pela auto-regulamentacao, e nomeadamente pelos cédigos deontolégicos (10), que permitam com maior flexibiidade a adaptacao as necessidades e acompanhamento da evolucao. O recurso as comissoes ce &tica tem-se revelado também muito importante, em Portugal nomeadamente, E indispensivel aditar uma adverténcia em relacao a esta situacao de escassez legislativa. Nao se pode inferir da circunstncia dde uma pratica nao ser especificamente proibida que ela seja lcita(’1). Por exempio, nao seria da circunstancia de nao haver rnenhuma proibigdo especifica da clonagem que se retiraria a licitude desta pratica. Nao deixariam de se aplicar os principios {gerais do Direito, com todas as orientagGes valorativas que comportam: © nameadamente a orientacao basica da preservagao dda dignidade do ser humano. Isto é igualmente importante quando se procede a despenalizagao de uma accao(12). 4, Intervenges com caracter terapéutico em células sométicas Pode operar-se a terapia em células somaticas, com intervengBes por meio de ADN recombinante ‘O homem tem hoje capacidade, embora ainda limitaca, de controlar as estruturas da sua existéncia como ser biolégico. Para o cientismo tecnol6gico, essa possibilidade nao tem marcos que a limitem. 0 homem, como ser biolégico, poderia ser fencarado apenas como odjecto de accies de melhoria(13). Ajusta-se perfeitamente a nossa Sociedade de consumo, em que o cliente tem sempre razao. Por isso a liberdade que se pretende é a do homem vir a ser tudo o que pode ser(14); $6 as possibilidade facticas representam batreiras. ‘Mas desde logo, o “biologismo” sé enquadra uma fraccao relativamente reduzida do ser humano e suas reaccbes (15). Escapa- sthe 0 ser espirtual, que se ancora na base biolégica e simultaneamente a Lranscende. Obriga a uma constante dialéctica, dirigida a uma composigao finaistica, a que presidem jA critérios eticos e outros. Neste dominio, a descoberta das técnicas de actuagéo sobre © genoma provocou uma comodo inicial, por receto de ‘consequéncias imprevisiveis. Perguntava-se nomeadamente: —se a mutacao nio ira atingir a descendéncia; se ela nio provocaria alteragao da personalidade do paciente. Portanto, perguntava-se se a intervencao nao afectaria a identidade do receptor; ¢ pior ainda, se nao atingiria as geracées vindouras, por veiculagao através de células germinais. Era dificil prever as consequéncias da ruptura do equilbrio genético. ‘Mas hoje tende-se a admit formas de terapia genética em células sométicas. Assimila-se esta modalidade de intervencao a ‘quaisquer outres tratamentos em geral. Aqueles receios estao mitigados, porque nao se terao confirmado as previsoes mais pessimistas, (0 que nos diz o art. 13 da Convengao da Biomedicina? Que uma intervencao que tiver por objecto modificar 0 genoa hhumano nao pode ser levada a efeito senao por razées preventivas, de diagnéstico ou terapéuticas e somente se nao tiver por finalidade introduzir uma modificagio no genoma da éescendéncia, Excluem-se pois as intervengées que se comunicam & descendéncia, que so as que paderiam ocorrer através de células, ‘germinais. Estas sero examinadas a seguir Passando as intervengoes em células somaticas, que agui tomamos como as nao comunicaveis & descendéncia, deiamos fora do nosso tema intervengies com finalidade’ diagnéstica, nao obstante os problemas que podem provocar. Ficam as intervengBes com finalidade preventiva e terapéutica, © principio & hoje o da admissbitidace destas intervencées. Tal principio de aplaudir, desde que se pressuponham regras deontolégicas ou éticas em geral que fixem limites. Quanto alteracio da Identidade nao é questio especifica destas intervengdes; e no é a qualquer intervengao no genoma que se deve atribuir esta consequéncia. De facto ha dificuldades em determinar os limites da intervencio terapéutica. Mas este ponto sera examinado adiante. Outra ‘questo reside na chamada “reserva de emergéncia” (16). E aqui volta a funcionar o principio da prudéncia, perante tecnologias no experimentadas ou intervencdes de resultados ainda inseguros. hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 ano ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea 5. Intervenges com cardcter terapéutico em células germinats ‘As maiores dificuldades concentram-se nas intervencées em células germinais. ‘Aqui di-se um aumento tremendo do risco. Nao esté em causa apenas um individuo, esto também geragies futuras. As intervencoes podem trazer mutacoes imprevisiveis. No extremo, poderiam conduzir a algo que nao pertencesse ja biologicamente ao género humano(17). ‘A questao ¢ para Jé predominantemente teérica. Dizem os especialistas que estas técnicas nao estardo operacionais ainda por Mas 0 debate nao é em qualquer caso prematuro, porque em questio de tanta gravidade ha que formar opinido 0 mais edo possvel, para que amanha nao sejamos surpreendides por evolugces pare que nao soubernos preparar-nos ou a que ndo {uisemas atempadamente par cobro. ‘A posigdo mais generalizada, na sociedade da lisonja em que nos encontramos, em que os egoismos sio constantemente ‘alimentados pela propaganda politica e pela publicidade, & a da desconsiéeragao dos interesses das geracdes futuras. A frase de Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”, é bem lapidar. Detras de uma observacao de facto inatacével, esta subliminarmente contida a desresponsabilizacio pelo que respeita aos que estio para vir: essa‘a razio do éxito que a frase ‘obteve. $6 nés contamos. 0 que debeamos aos vindouros ja nos nao preocupa. No ponto de vista ético, porém, a posicio a tomar é radicalmente oposta. Impde-se uma solidariedade inter-geracdes; somos responsavels, na nossa medida, por quem vier depois de nés, Tudo 0 que fizermos que possa atingir as geracbes futuras 56 pode ser feito em beneficio delas, e nao em seu detrimente, Portanto, qualquer intervencao estaria sempre condicionaca pelas consequéncias previsiveis que trouxesse ao homem no provir(18).. Retomemos entao o art, 13 da Convensao. Que nos diz sobre a intervencdo em células germinais? Directamente, nao as refere. A formulacao pode conter a admissao de uma intervengao em celulas germinais, com finalidades preventivas ou terapéuticas em relacto ao préprio individuo — por exemplo, para substituir um gene nocivo. Isso estaria ‘dmitida, parece, porque o criteria da admissbilidade foi colocado na finalidade da intervencio. Mas 0 que se entende pela frase: “'se nio tiver por finalidade introduzir uma modificagao no genoma da descendéncia”? Parece excluir o que se dirige exclusivamente a alterar as caracteristicas do genoma da descendéncia. Mas abre espaco a possibilidade de uina intervengo em células germinais ser feita com finalidade terapéutica no que respeita ao sujelto, mas introduzir simultaneamente uma modificagao no genoma da descendéncia. Como se nao cao mais esclarecimentos e se poe 0 critério na finalidade(9), parece deixarem-se em aberto as madificacbes no genoma da descendéncia que sejam arrastacas por intervengdes com finalidade terapéutica em células germinais. ‘Como julgar entao esta situagao, ainda que se afigure de realizacao hipotética e marginal? ‘A Constituicdo, no art. 26/3, fala em garantir a identidade genética do ser humano. Com isto estabelece também uma ‘garantia que se reflecte sobre’as geracbes futuras. ‘Mas a identidade genética nao implica inalterabilicade: sendo, mesmo as interyences terapéuticas em células somaticas nao seriam admitidas. Também nao ha uma garantia da inalterabilidade genética da espécie, até porque os direitos, liberdades e Barantias Lém par sujeito pessoas, e ndo espécies. Isto significa que, mesmo & luz da Convencao e demais fontes, hé ainda um espaco nao regulado, onde cabe uma intervencéo dde que resulte mocificagko no genoma da descendéncia, ‘Mas quais sio 0s limites dessa intervencao, a considerar-se eticamente admissivel? Permitimo-nos colocar a questao mais em geral. A intervencéo terapéutica em células germinais, com a finalidade de afastar genes malignos que se comuniquem a descendéncia, deve ser recebida com grandes cautelas, mas nao condenada a partida Afinalidade de curar justifica a intervencao. Libertar os vindoures de uma doenga é justificagao suficiente. ‘Mas se admitida, e na medida em que for admitida, s6 0 serd com total subordinacao ao principio da prudéncia ‘Tem de se supor uma intervencao profundamente meditada e sujeita a toda a possivel experimentagao. ‘Tem de se averiguar quanto possivel se a eliminacao dos aspectos negativos nao tera como contrapartida para o homem a liminacéo de aspectos positivs que deles sejam dependentes. Doutra maneira poderdo afinal os vindouros ficar desprovidos do equilibrio genético natural. Nunca se elimina totalmente o rsco. Mas 6 apés realizadas as diligéncias cabiveis se pode pensar em intervenes que possam ter efeitos na descendéncia,libertando a especie (a linha descendente) de uma anomalia. Estas conclusies teriam sempre interesse, mesmo que conclufssemos que na situacao actual estas intervengies estao de facto proibidas ou fortemente restringidas. £ que, como cissemos, vigora o principio da prudéncia, $6 passo a pasto se abrem novos ‘eaminhos. Uma. politica muito restritiva tendera a evoluit, com os progressos cientificos, no sentida de uma maior maleabilidade. A valoracio positiva desses métodas, no plano ético, permite a abertura prudente a outras orientagdes. E de facto, por oposicio ao que se estabelece nos arts. 2 e 3 da Convencio Europeia dos Direitas Humanos, afirma-se hoje um novo direito, 0 direito a nao herdar defeitos genéticos detectados e eliminaveis cientificamente(20). 6. Intervenges para fins de methoramento em células somaticas Uma intervene pode nio ter finalidade terapéutica (ou preventiva), mas de methoramento, Esse melhoramento pode dirigit-se = 20 individuo hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 ano ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea —aespécie, (0 methoramento da espécie seria obtido mediante intervencao em células germinais. Sera matéria a examinar depois. Agora interessam-nos intervengBes sobre células somaticas com fins de metharamento que néo atinjam as células germinals, Limitando-nos pois a estas, observamos que semelhantes actuagdes sobre o corpo humano nao so tao singulares como poderia pensar-se. 1a se fazem, mesmo sem intervencao no genoma humano. E criam mesmo problemas de qualficacéo ética € juridica, como no caso de cirurgia estética. Esta € ofensa corporal tipica, ao contrario da interven¢&o com fim de cura; ‘apenas podera ser justficada com base no consentimento do ofendide. © contetido da methoria aparece claro em varios aspectos. Tomam-se remédios para aumentar a resistencia fisica, a meméria, até 0 QL. Isto ria um paralelismo na apreciacio da lcitude. ‘Também nestes casos, se houver maus resultados estes néo se transmitem (ao menos directamente) aos vindouros(21}). ‘Mas se passarmos as intervengGes sobre © genoma humano em células somsticas, destinadas a obter 6 methoramento, ou 0 reforco de caracteres humanos positives, as davidas aumentam. J se no trata de corvigir defeitos, mas de produzir um homem methorado. € possivel recorrer a outras subdistingbes para valorar a licitude. Por exemplo, poderemos dstinguir: —o reforgo de caracteres positivos —asalteracoes arbitrarias. Todas as distingBes chegam a casos de fronteira, sempre discutiveis. A comparacao com a cirurgia estética mostra a dificuldade. Também poderiamos pensar nas mudangas de tez. Mas a distingao é nuclearmente verdadeira. Por isso, daqui por diante vamos considerar simplesmente o reforgo de caracteres que representem elementos positivos do ser humano, interrogar-nos sobre a licitude da sua obtencio ou melhoria por intervencao no genoma, no nivel das células somaticas, Fala-se usualmente, quer em engenharia genética, quer em manipulagio genética. Mas manipulagéo implica um juizo negativo. Tomaremas por isso engenharia genética como a expressio-base, livre ainda de qualquer valoracao, para designar toda a intervencéo em células através do ADN recombinante(22) Podemos falar em manipulacto genética, como modalidace de engenharia genética com cardcter arbitrério, por nao ser dirigida ao reforco ou obtengao de caracteres a valorar positivamente. -Mesmo fixando-nos na engenharia genética que ndo consista em manipulacao, ha que proceder 8 sua valoracio ética. Uma intervengia que permitisse aumentar a forca fisica, ou qualidades psiquicas, seria de condenar? Parece-nos dificil uma resposta afirmativa sem mais, quando ninguém condena os frmacos com esta finalidade. Nao diriarnos ‘que o elemento eticamente decisivo se encontra no modo fisico de intervengao. Esta antes na finalidade prosseguida Pos-se em causa essa lictude, considerando a desigualdade que assim se iriaintroduzir. Esses meios seriam de acesso limitado €e muito onerosos.Ir-se-ia criar entéo um abismo entre quem poderia recorrer a eles e quem 0 nao pudesse fazer. Mas esse abismo no é maior que entre quem tem Rolls Reyce e quem néo tem dinheiro para comprar uma bicicieta. Ou, em ‘dominio mais préximo, quem pode voar para o estrangeiro para se tratar da sida e quem fica na lista de espera do hospital. Para nao falar, evidentemente, na cirurgia estética, Dirfamos que deste modo se misturaria uma questio de ordenacéo social, que ¢ genérica, com a questio bioética, que ¢ a nica que versamos aqui Na realidade, exciuir a utlizagao dum processo vantajoso com a consideracio que nao pode chegar a todos ¢ incorrer no que cchamamos a igualdade da inveja. Esteve muito em moda ha uns tempos atrés, e deixou marcas persistentes. Porém, tudo 0 ‘que for benéfico para alguns deve deixar-nos contentes. Como chegar aos outros, € outra questao. Seguramente muito ‘importante, mas sempre consequencial e instrumental em relagao A primera, ‘Que conciuir entao sobre estes métodos? Serao de rejeitar, por trazerem a tentagao de criar © super-homem, a figura acima dda condigdo humana? Nao é, quanto a nés, motivo determinante de condenacio. Estamos ainda muito longe de semelhantes extremos. Pelo que nao ha motivo para tolher 0 desenvolvimento da pesquisa Isto significa que nao & uma razio ética, mas uma razao de prudéncia, que dita o limite, constante do art. 13 da Convenga0, de s6 serem permitidas intervencoes sobre o genoma humana com finalidade terapéutica (ou preventiva). As intervenes que se dirigissem a methorias seguras no plano somético da base biolégica do ser humano poderiam ser permitidas, Teriam porém de ser submeticas a restrigbes muito apertadas, para que representassem verdaceiramente uma mmethoria, afastando alguns riscos que sao J& previsiveis. E decerto, nada ha que tolha a investigagao cientifica com esta finatidade. 7. Intervengbes em células reprodutivas Chegamas & hipétese extrema de intervencio humana sobre a base biolégica — a intervencho em células germinais, portanto com a potencialidade de se transmitirem mutacées aos descendentes. ‘Também aqui a finalidade poders ser terapéutica, eugénica ou experimental. A terapéutica dar-se-ia para afastar anomalias hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 sito ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea ‘em células reprodutivas (23) ‘Comecemos por distinguir estas intervengées da mera escolha entre varias possibilidades de reprocucio. Esta matéria s6 é objecto de uma referéncia na Convencio sobre Biomedicina: 0 art. 14 exclui a utilizacio de técnicas de procriagSo assistida para escolher o sexo da crianga a nascer, como dissemos(24). Daqui se infere que a ulilizacao para ‘quaisquer outros fins nao esta coberta pela Convengao, postiva ou negativamente. 0 referido Relatério do CNECV(25) sobre impticacdes éticas da genémica observa que a justficagso ditima da exclusto da selecgao dos dadores de gametas para a consecucao de caracteristicas fisicas da descendéncia, por razoes nao médicas, estaria expressa na Expasigao ce Motives anexa ao Protocolo que proibe a clonagem de seres humanos: “Considerando que @ Fecombinacéo genética natural tende a originar uma maior liberdade para o ser humano do que the daria uma constitulcao genética pré-determinada, é do interesse de todas as pessoas manter a natureza essencialmente aleatria da composicao os seus proprios genes”. ‘Sem contestar a op¢o, pomos em divida a afirmaco que assim se limita a tiberdade dos vindouros. Cada um é igualmente livre, dentro da sua prépria constituicdo genética. A questao esta na legitimidade éa escolha humana em vez da determinacao aleatéria, no na liberdade do ser futuro implicado, ‘Mas mesmo a mera escolha das caracteristicasfisleas dos préprios embrides jd formados, a fazersse, é impugnada por motives Sticos, A intervengio pode incidir, a0 menos teoricamente, sobre gimetas isolados ou sobre o embrio. Neste Ultimo caso pode ser fetal, a realizar no ventre da mae(26); tem entao riscos acrescidos. ‘Com isto se gera uma nova problematica, que é a da oposicao da mae e da possiblidade de a ultrapassar no interesse do filho. Asituacdo suscitou varias prondinclas neste sentido nos Estados Unidos. Mas ha também posigdes em sentido contririo(27). Porém, como dissemos, nao é este tema que nos ocupa. Pensarnos antes na intervencao em células germinais para transmitir ccertas caracteristicas a descendéncia 8. Etica e “politica das éticas” © genoma fol repetidamente declarado patriménio comum da humanidade nas assemblelas intemacionats, E_uma grande proclamacao eloquente, para fazer face aos perigos que se apresentam. Representa algo como uma progressao do direito subjectivo a um patriménio genético inalteraco; é uma espécie de objectivacao desse direito E isto porque as mutacdes genéticas podem pér em causa a humanidade, tal camo nos reconhecemos; ¢ porque recorrentemente, de modo aberto ou disfarcado, se continua a manifestar 0 apelo a raca superior. Mas aquela afirmacio deve ser entendida em termos adequacos. Como todas as declaracées de cipula, precisa de um ajustamento de fronteiras. Por outro lad, teve a sua valia para um dada momento histérico, mas esse momento est em vias de ficar superado(28). Ha que distinguir, em relacio a esse patriménio, 0 que representa beneticio do que representa alienacdo — deixando jé de fora o que é libertacao do mal, portanto terapia. E alienacao a atracrio do super-homem, que implica mudanca de natureza; mas também aqui a grande dificuldade esta no tracar do critério de distincao. Devemos, antes de mais, ter bem consciéncia do que esté em jogo. Para isso convém excluir todo © gongorismo, para que a realidade se apresente no seu significado, 0 obstéculo principal reside hoje na opacidade ética de vérios sectores “pésmodernas”, que se limitam a uma ética de “éidlogo”, ou melhor, a um minimo denominador comum das éticas. Na realidade, no é jé uma ética; passa a ser politica, a politica das éticas. Estas orientacGes nada tém a opor a criacao dum ser que, pela alteracao do seu genoma, nao pertencesse 38 a espécie humana. Isso craria a diversidade de natureza, entre 0s seres transformados e 0s remanescentes. Mas nao se vé também razio, quando outros critérios nao intervém senao’os utilitaristas, para excluir directamente a criagao duma pluralidade de naturezas humanas, tantas quantos os ambientes para que seja conveniente adaptar 0 homem (29) ‘A desconsideracao dos limites ontolégicos tira de facto a base para excluir qualquer desenlace. Mas 0 resultado a que ‘conduziria seria'a quebra, agora definitiva, da unidade do género humano. Ha que rejeitar estes extremos, numa visio ética (que nao podemos fundamentar aqui) ¢ & luz dos dados juridicos existentes. 9. Intervenges para melhoramento em células germinais A intervencao em céluas germinais pode fazer-se para methoramento da espécie. E aqui que surgem as maéximas‘antasias, pois tuo aparece como verosiml. Surgem também as méximas tentacbes, como a fa clagao duina superraga que pouco tela Ja de coum com a nos, poraue o codigo genctico passaria a ser auto. Surge tent 0 maximo rseo.E sto multe embora a utlizaco efectva destas tecnicasesteja muito mais tonge do alcance humaro ‘do que o sensacionalsma dos media e do espectaculo dto a entender. ‘Mas isto nao implica que todas as intervencdes com fins de methoria devam ser liminarmente rejeltadas. ‘Também nao significa que rejeitemos 0 consenso como via de actuacao. Pelo contrario, a prudéncia recomenda que neste ‘campo acidentado nos timitemos aquelas alteracoes que sao universalmente aceites como benéticas(30}. Talvez neste memento devamas mesmo prosseguir sabretudo na busca do consenso — embora tendo plena conseiéncia que 0 cconsenso nao ¢ critério de verdade, muito menos na ética. Sobretudo hoje, que vivemos em tempos de consensos impostos, pelos meios de comunicagao social. hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 ero ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea ‘Como 0 consenso nao é critério de verdade, ters de se deixar sempre espaco para posigSes individuats em contrario. Que se podem exprimir, nomeadamente, pela objeccao de consciéncia. Tal como se tem de deixar espaco para orientagdes minoritarias, que tenham igualmente mefos de expressio e sejam respeitadas (e nao demonizadas, camo fazem os nossos democraticos comentadores) -Mas os passos que se dao nesta via ingrata e resvaladica precisam de se basear num apoio tao alargado quanto possivel. Tenco sempre presente que consenso nio é unanimidade, porque a exigéncia de unanimidade, ou da aproximacio desta, leva a0 imobitisn9(31). Na reatidade, também aqui temos uma manifestacto do principio da prudéncia. Por razdes pragmaticas © por razies de fundo. 0 consenso, se for genuino, resultara do poder persuasive do argumento. E a evidéncia continua a ser, ne dominio racional, 0 crtério da verdade. Portanto, o ponto de partida possivel estaria na distincSo das intervengdes arbitrarias e das que consensualmente devam ser ‘tomadas como methoramento. ‘Como lissemos, é matéria que nao tera concretizacao factica nos tempos mais préximos. Nem a técnica tem resposta para ja. ‘Mas é necessario estarmos preparades para reagir carrectamente, se a qualquer momento a questho se susctar, Vamos dar como exemplo (real ou ficticio, para nés é indiferente) um gene que melhore a acuidade visual. A actuagéo com fing de methoramenta consistria numa recombinagao de DNA em células germina’s que alterasse a informagio genética na descendéncia, melhorando o desempenho da funcia(32). Isso suporia sempre, repisamos, o conhecimento avancado de todas as funcoes do gene e do equilibrio genético, para nao ter efeitos colaterais de maior gravidade. Suporia toda a'prudéncia em semethanga mutagio. E suporia ainda a possibilidade ce recusa por parte das pessoas naturalmente implicadas naquela operacao. 10, Personalidade e genoma A supor que estas intervengdes se mantivessem nos limites indicados, quais seriam as consequéncias? ‘Temos em vista alteracoes limitadas do genoma, que nao implicariam alteracao da natureza. Mas o resultado seria sempre a coexisténcia de tipos genémicos naturals e de tipos a que pademes chamar transgénicos. Essa coexisténcia manter-se-ia por tempos indeterminados. Mesmo que os cruzamentos trouxessem uma certa ampliacio, 0 “Ambito afigura-se-nos ser sempre limitado a nivel mundial. $6 a multipticacao de semethantes intervenes poderia modificar ‘© panorama (a prazo muito longo, todavia). Por outro lado, dependeria ainda da persisténcia do gene introduzido ou alterado, ou das Suas modificagdes, o que supomas ter hoje muito de ignoto. ‘nas ha ainda que apurarse este tipo de intervencio ser eticamente admissvel. Argrande objeccio asenta em a intervencao poder tazer uma mudanca éa personaidade (33). € © argumento mais frequente, mas dssemos ja anteriormente que temos dificuldade em 0 compreender. A personatidade dos membros cas geracbes futuras nao muca, porque tera sempre 36 uma. A questdo esta antes na legitimidade das intervencdes presentes Sobre o futuro, n80 na alterago de personalidades futuras. Mas consideremos entio a predisposicéo que se possa praticar agora de elementos que contribuem para a formacio da personalidade de seres a vir, ou sobre os quais a personalidade destes se alicerce. ‘Ainda que a intervengéo seja para realizar um melhoramento; ou que a incidéncia surja como consequéncia acesséria do methoramento — actuamos sobre, ou determinamos, a personalidade de seres a nascer? Se a personalidade fosse a resultante do genoma, a resposta poderia ser afltmativa. Predispondo o genoma, ou elementos deste, estariamos a predispor também, parcialmente que fosse, personalidades futuras. Isso Seria porém manifestacao duma concepcao materialista da personalidade, que se nao justfica. O espirito, funcionando sobre base biolégica, vai muito além desta, $0 aspectos proporcionalmente limitados da personalidade dependem da base fisca. Ha um grande sector que € epi ou ‘transgenémico, Para muitos aspectos fundamentats da personalidade nao se encontrou até hoje base em qualquer gene(34), Por isso, 0 espirito sobrepde-se & base fisica. Nao é pelo genoma que o captamos. Talvez este aspecto seja impressivamente ‘aptavel pela realidade dos gémeos homozigoticos, Tém o mesmo genoma (ou praticamente o mesmo) e todavia a propria, experiéncia do convivio revela-nos persanalidades perfeltamente diferenciadas. Tém aspectos comuns, mas sao sem duvida personalidades distintas. ‘A prépria clonagem deve ser considerada a esta luz(35). Com toda a anomalia que encerra, © nomeadamente com a auséncia de dupla derivacao que implica, em todo 0 caso a replicacéo do genama nao representaria dupticagao da pessoa. Haverd sempre pessoas diferentes, nao odstante as zonas de reaccao semelhantes que acusassem. E verdade que, alterando células germinais, se predispaem elementos que sero constitutivos de personalidades futuras. Estes elementos sa0 planeados, em vez de resuitarem aleatoriamente de processos naturais, Mas com isto nao se esta a tirar a ‘dentidade pessoal de ninguém, ‘Tudo sto factores que devem pesar no julgamento dos processas de melhoramenta por intervencio nas células germinais, Em dominio tao delicado, em que as exigéncias de prudéncia decuplicam, nao se vé que a ética impeca em absoluto que se ‘explorem caminhos que possam levar a uma methoria da base fisca da individualidade humana. Mas esta ¢ a apreciacao bioética, E a apreciacio juridica, ou ético-uridica? 11, status juridico da questa Que concluir, das manifestagées legais dispersas sobre esta matéria? Nao ha uma’ disposico expressa. Pelo que estaria fundamentalmente em causa o art. 26/3 da Constituicfo, que garante a identidade genética’ do ser humano. Mas, se estivessem em causa direitos de pessoas existentes, a garantia da identidace hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 mo ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea ‘genética seria assegurada através da exigéncia do consentimento da pessoa implicada para a intervencio no genama, salvo se essa intervencao contrariar a clausula geral dos bons costumes. ‘A.questio esta porém em saber se sob essa garantia pessoal no se situa também uma garantia institucional, que asegura a ‘entidade da espécie. € natural que sim (36). Mas (so no significa a inalterabildade do genoma e a impossibildade ce intervencées. Recorde-se o que dssemos sobre as inlervencbes em célulassométicas com caracier de terapia. Portanto, o significado da garantia da identidade genética do ser humane parece ficar dependente da valoracio biostica sobre o tipo de intervengao que se pretenda. ‘Mas nao avangamos mais por este caminho, porque a aprovagio da Convengao sobre Biomedicina velo trazer outra base Juridica & questio. O art. 13 da Convencao, como vimos, traz impicita uma proibicao absoluta de intervencbes no genoma humano que tiverem por finalidade introduzir uma modificacao no genoma da descendéndia. Isto significa que qualquer modificacao nas células germinais fica automaticamente vedada. As distingbes que tragémos, para discussao biostica, sao praticamente irelevantes, porque aquele preceito a todas proibe. Podera parecer paradoxal, dado o que anteriormente dissemos, mas estamos de acordo com a proibicfo no que respeita a células germinais— portanto, no que respeita a intervengdes cujos efeitos se prolonguem no genoma da descendencia. E que o dever de prudéncia impede que se abram prematuramente as portas a processos hoje ainda no definidos, ¢ cujas consequéncias estao ainda muito lange de estar apuradas com a seguranca possvel. Em dominios de tanta gravidade, em que qualquer erro de previsio se poderia repercutir tragicamente sobre a descendéncia, & bom que 0 direito imponha, no periodo antecedente a factibilidade efectiva, um compassa de espera, destinado a urn ‘equacionar mais perfeito das questées. Fala-se intemacionalmente numa moratéria neste dominio. Aplaudimos a solucao. Nio pensamos porém que esta seja definitiva, pelo que havers que nio deixar esmorecer a meditacio juriiea, Isso ficou j& marcado quando falamos da intervencao em células somaticas. Hé intervengGes, mesmo com caracter de terapia, ‘que atingem a dignidade do homem e devem ser vedadas. Seria o caso de intervencdes que, afastando doencas, tornassem 0 paciente apatico ou abilica, por exemplo (37). ‘Mas nfo é qualquer methoramento que muda a personalidade. Procurdmos por isso delimitar os casos em que pareceria ticita ‘uma intervengao com funcio de melhoramento em células somaticas (© que se passa nas intervencdes com funcéo de methoramento em células germinais & apenas um novo passo — ‘qualitativamente muito importante, mas sempre sequencial — em relacao a essa problemitica. Por exemplo, a libertacao de ‘ependencias ou limitacdesfisicas nao parece dever ser vedada por si. Tornar as pessoas menos irritavels, por exemplo, no parece de repel — mesmo que reerido a geragdes futures Porém, se pesquisarmos as razies da proibicdo, verificamos que esta se baseia quer na insuficiéncia dos conhecimentos, quer na possibilidade de erros na intervencdo, quer no receio de desvios ou abusos, Por isso se apela para uma moratéria, Isto manifesta que 0s tempos ainda nao esto maduros para maior avanco neste campo. A reflexdo deve prosseguir, quer no ‘eamnpo dioldgico, esclarecenco as potencialidades, quer no campo ética, aprofuncando o seu significado, quer no campo juridico, precisando os concicionalismos normativos que qualquer abertura teria necessariamente de implicar. Estas cautelas sio amplamente justificadas também pela voracidade da indistria, que referimos ja. Abrir neste momento a possibilidade de modificacao do genoma humano com efeitos sobre as geracées futuras seria transformar a genémica em objecto de lucro, mais do que ja esta, sem qualquer instrumento ou possibilidade séria de controle. Este & um dos grandes riscos que paira actualmente sobre a dignidade humana. Mas por outro lado, tomar a situagSo actual como definitiva, encerrando tudo no dilema sim ou nao, seria deletério. 0 ‘eaminho parece ser’antes 0 do aprofundamento de distingoes, que tomem possivel delimitar com seguranga o que € ou nao acmissivel. Verificamos pots que, também neste sector melindroso, as questées néo sao radicalmente novas. Mas ha um incremento de sgravidade que ameaca trazer uma diferenciacao qualitativa. E necessirio avangar com muito pequenos passos, que correspondar ao estado dos conhecimentos ¢ & reflexao ético-jurdica, -Mas também nisso'se manifesta 0 principio fundamental da prudéncia, Notas: (1) Cfr., embora com objective apenas de descricko geral, Femando Bronze, Argumentacio juridica: © dominio do risco ou © risco dominado?, no “Boletim da Faculdade de Direito” (Coimbra), LXXVI (2000), 13, que retoma (23-24) a enumeracao de Ulrich Beck. Este fala da globalizacio dos perigos ligados as industrias quimicas € atémicas, a manipulacao genética e assim por diante. Arthur Kaufmann cesenvolve a matéria da Bioética (bem como a da Ecologia) justamente no capitulo sobre a sociedade do rico: Rechtsphilosophie, C. H. Beck, 1997, 301-328. (2) Cfr. por exemplo J. P. Remédio Marques, A comercializacio de organismos geneticamente modificacos e os direitos dos Consumidores, in “Estudos de Direito do Consumidor”, n.* 1 (1999), Centro de Fstudos de Direito do Consumo éa Faculdade de Direito de Coimbra, 215; Joao Carlos Goncalves Loureiro, O direito a identidade genética do ser humano, in Studia luridica. 40, Colloquia 2, Coimbra Editora, 1999, 350, hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 ano ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea (3) Cfr. por exemplo Luis Archer, Questdes éticas e sociais implicadas na anslise do genoma humano, na revista “Arte Médica Portuguesa”; Augusto Lopes Cardoso, Da dimensdo juridica do intervencao genética, in Rev. da Ordem dos Advogacos, 61-1 (Jan. 2001), 485-6. (4) Cr, sobre esta problematic Jodo Paulo Remédio Marques, Patentes de Genes Humanos, Coimbra Edlitora, 2001, 3.2 (5) Cfr. Alberto Bercovitz, La patenteabilidad de los descubrimientos genéticos. in “El Derecho ante el Proyecto Genoma Humano" (abra colectiva}, vol. Il, Fundacion BBV, 173; Celeste Pereira Gomes/Sandra Sordi, Aspectos actuals do projecto genome humane, in “Biodireito”, coord, Celeste Leite dos Santos, Revista dos Tribunais (S80 Paulo), 2001, 192-193. (6) Interessam ainda nesta os arts. 24 (direito vida), 25 (direlto a integridade pessoal) e 26/1 (cireito & identidade pessoal) (7) Neste sentido Joao Carlos Goncalves Loureiro, 0 direlto identidade genética do ser humano, in “Portugal-Brasil Ano 2000", U.C. / Coimbra Editora, 1999, 264-389 (278-279), que estuda profundamente o tema. Mas 0 apoio neste principio & imprescindivel neste dominio e o autor recorre a ele frequentes vezes. Vejasse por exemplo a analise de Direito Constituctonal brasileiro a que procede, e que o leva a ancorar a integridade genética do ser humano, na falta de previsdo especifica, na relevancia auténoma do principio da dignidade da pessoa (354-359). 0 autor retoma o tema em Os genes do nosso (desjcontentamento — Dignidade humana e genética: notas de um roteiro, in Bol. Fac. Dir. (U.C.), vol. LXXVI, 163, aprofundando 0 sentido de dignidade humana e considerande que s6 excepcionalmente se pode falar de uma violagio ‘auténoma do principio da dignidade humana, dado o vasto leque de direitos fundamentais consagrados, (8) Rechtsphilosophie cit, 314. (9) AConvengao entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2001, por ter sido ratificada por cinco paises. (10) Estas fontes nao serso por nés examinadas ern especial (11) Cfr. © nosso Direito e Bioética, in “da SaGde e Bioética” (obra colectiva), Lex, 1991, 12-13. (12) A confusio foi muito vsivel entre nés no debate sobre a despenalizacio do aborto, Muitos identificaram despenalizagio proclamagao da licitude. Nao ¢ assim, A intervencao do Direito Penal s6 atinge um nimero minimo de iicitos, quando razdes de varias ordem, nomeadamente de ‘oportunidade, o justifiquem. Ainda quando 0 aborto é despenalizado nao se pode tirar dai nenhurna ilacao quanto a licituce ‘ol ilcitude da sua pritia, (13) Ainda mais rudemente € acolhida qualquer limitagao & investigacio cientifica. £ elucidativo o que se passa com a clonagem (14) Cf. mais desenvotvidamente Femando Bronze, A Metodonomologia entre a Semethanca e a Diferenca, Coimbra Editora, 1994, 198, (15) Cf, 0 Relatario e Parecer sobre Implicacdes Eticas do Genémica do Conselho Nacional de Etica para as Ciéncias da Vida (40/CNECV/01), que acentua pelo contrario a influéncia do ambiente (|, n." 5) (16) A Declaracao de Helsinguia V — Edimburgo 2000, n.° 1L5, admite que em face da ineficiéncia de outras praticas se podem usar metodos nao comprovades, particularmente se estes tiverem sido objecto de pesquisa. A nova informacao deve ser S52 possivel guardada e publicada. Abrangera a possibilidade assim aberta as intervengées no genoma human? Advinha-se 0 risco de isso trazer consequéncias muito negativas, em especial se incidir sobre células germinais. (17) Ou que resulte do cruzamento com anima’s, (18) E até pelo grau de risco de consequéncias imprevisivels que envolva, a avaliar em termos de prudéncia, (19) Jo80 Loureiro, 0 direito & identidade genética cit., 9.3., traduz por “apenas se o seu abjecto nao for..". A substituicao de finalidade por abjecto no é indiferente para o sentido’ do preceito. Finalidade é o que consta da versio portuguesa, publicada no Disrio do Republica e o que corresponde também as versdes inglesa ¢ francesa. Por isso é a verso que retemos. (20) Cf. José Luis Viliar Palasi, Introducciin juridica, in “El Derecho ante el Proyecto Genoma Humana”, vol. 1, Fundacién BBV, 1994, 62. (21) Salvo evolugao anémala e imprevisvel, (22) Se imaginassemos que isso poderia ser obtido por métodos que nde representassem intervengao directa, como a ingestdo de produtos quirmicos, a nao representaria engenharia. (23) Cfr. Carlos Maria Romeo Casabona, El Derecho y la Bioética ante los limites de la vida humana. Centro de Estudios Ramén Areces, 1994, 367. Apresenta ja como alternativa a diagnéstico pre-implantatério. (24) Salvo para evitar graves doencas hereditirias ligadas a0 sexo. (25) Supra, n.* 4 (26) Ou da portadora. Como é natural, se for fetal est dependente do consentimento da mae. (27) Cfr, Romeo Casabona, Carlos Maria, Do Gene ao Direito (trad. bras.), Instituto Brasileiro de Ciéncias Criminais (S80 Paulo), n." 9, 1999, 156 e segs. (164). (28) Por isso, a prépria afirmagao do art. 1 da Declaracao Universal sabre o Genoma Humano e os Direitos do Homem “o enoma humano é um componente fundamental do patriménio comum da Humanidade” foi substituida, passando a dizer-se: “Num sentido simbélico, ele é patriménio da humanidade”. hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 arto ana‘2n1s ‘Orde dos Advogaros - Artgos Douinals - José de Oliveira Ascenso - nterverges no gerama humana, Validede dico-urciea (29) Cfr. Fermin Roland Schramm, Eugenia, Eugenética e 0 spectro. do Eugenismo, em ‘ww furg.brfurg/admint/cibio/op/eugenia.htm, (30) Cfr. sobre esta matéria 0 nosso Direlto e Bioética cit, 21, em que referimas a posicao de Luis Archer. (31) Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie cit., 313-314, observa com razio que a responsabilidade nao é s6 pela acréo, mas também pela omissao. Mas recorda também (311) a afirmacdo de Hans Jonas, que os erros técnicos mecénicos sao reversiveis, os biogenéticos sho irreversiveis (22) Poderia consistir num aumento da resistencia do homem perante determinados agentes patolégicos (cfr. por exemplo Romeo Casabona, Do Gene ao Direito cit., 224), 0 que ja nao representa terapia ou eugenta negativa. Ou no reforco ce ‘earacteres humanos dese}avels, como a meméra, (23) Parece-nos desde logo claro que nao se pode falar de alteracao da personatidade daquele cujas células germinais foram alteradas, (34) Afirma por isso Daniel Wikler, Los genes y la iberdad humana, in “El Derecho ante el Proyecto Genoma Humano” (cit. nota 5), 1, 107-109 (107-108), que os progressos da ciéncia genética nao suscitam novas questoes no dominio da liberdace humana: “Os genes sSo atributos fsicos como quaisquer outros, cuJo conhecimento pode ser utilizado para o bem e para 0 mal” (35) E palavroso recorrer a um pretenso direito & individualidade, no sentido de irrepetibilidade dos seres futures, para Fesolver a questao. Alias, é manifestagio do abuso que se faz da categoria do direito subjectivo, a torto e a direito, A exclusio dda clonagem nao se funda ra violagao de quaisquer pretensos direitos, mas em consideragoes objectivas sobre a dignidade & portanto sobre a nao instrumentalidade da pessoa humana, (36) Sobre o significado da garantia constitucional da identidade genética do ser humano, cfr. a andlise desenvolvida de Paulo Otero, Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Hurnano — Um Perfil Constitucional da Bioética, Almedina, 1999; fem particular para a questo que nos ocupa, cfr. on.” 4.3., onde sustenta um principio geral da verdade bioldgica. (27) Pelo menos quando essa fosse a resultante global dessas intervenes, hnipstwwwoa iConteudos/Artigosidetslhe_arigo.aspx7ide=307778idsc=S77SA8ida-S7721 tonto

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