Você está na página 1de 63
284 Normatividade & argumentacio Verdade Moral e Método Juridico na Teoria Constitucional de Ronald Dworkin Claudio Ari Mello INTRODUGAO A filésofa alema Hannah Arendt sustentava que a rela- cao entre a filosofia e a politica ficou definitivamente marca- da pelo trauma da condenagao de Sécrates pelos cidadaos ate- nienses. De acordo com a fildsofa alema, desde Platao a filo- sofia tem se dedicado a descobrir e justificar verdades absolu- eee eee ee eee eee eee eee EIDE fiaveis desejos humanos que dominam a vida politica. A par- tir desse trauma original a filosofia teria sido mobilizada para controlar ou eliminar a contingéncia e a instabilidade da pol tica por meio de teorias capazes de demonstrar a existéncia de verdades que possam ser impostas a pratica politica? Em certo sentido, a incomum popularidade de Ronald Dworkin no ambito académico no cendrio judicial de todos 0s continentes pode ser considerada uma nova expresso des- sa tradigao filoséfica antipolitica? A teoria do direito elabo- T, Professor da Faculdade de Direito da Pontificia Universidade Catolica do Rio Geand= do Sul. Doutor em Teoria do Direito (UFRGS) # estes em Dirsita do Estado (PUCRS). 2, Hannah Asendt, A Promessa de Politics, 2005, e “Vardadle ¢ Politica’, em Entre 0 Passado eo Futuro, 2003, Para um estudio gesal sobre a sslagto antes verdad e politica ‘a filosofia politica da autora, ver Andre Duarte, O Pensamento d Sombra da Ruptura, 2000. Sobre a relasio entre filocofia e politica eo “trauma de Platio”, ver Frederick M, Dolan, “Arendt on philosophy and politics”, im Dana Villa (Ed), The Cambridge Companion to Hannah Arendt, 200, 3.A bibliografia sobre Dworkin é hoje imensa ¢ praticamente inesgotivel. Fazemos aqui referéncia apenas 2 alguns dos estudos mais conhecidos sobre © autor: Marshall, Cohen (org.), Renald Detorkin and Contemporary Jurisprudence, 1984; Stephen. Guest, Ronald Duvorkin, 1991; Justine Busley (org), Dworkin and his Critic, 2008; Scatt Hecshavite (ed), Exploring Law's Empires The Jurisprudence of Renala Dasorkin, 2006; Asthuar Ripstein (ed), Ronald Dasari, 2007. 285 Normatividade & argumentaco rada por Dworkin est assentada basicamente nas seguintes premissas: (1) 0 direito possui uma relacao direta com a mo- ral, ou, mais recentemente, é uma parte especial do dominio geral da moral; (2) existem verdades morais objetivas, que po- dem ser apreendidas pela mente humana; (3) a afirmacdo de valores morais verdadeiros ¢ obtida através de uma argumen- tagdo construtiva baseada na coeréncia; (4) 0 poder judiciario eo processo judicial sao as instituicSes mais adequadas para a afirmagao de valores politicos e morais objetivos em uma de- mocracia constitucional. Cada uma dessas premissas € objeto de intensas discus- sbes, travadas em diferentes areas do conhecimento. A premis- sa (1) estabeleceu uma intensa e prolongada controvérsia com as teorias juridicas positivistas e jusnaturalistas, que historica- mente dominaram os debates sobre a natureza do direito. A ‘premissa (2) provocou um debate com as diversas concepcdes metasticas da filosofia moral contemporadnea, especialmente com os relativistas ¢ os céticos, mas também com os realistas. A premissa (3) exigiu um arduo confronto com diferentes corren- tes da epistemologia e da hermenéutica. A premissa (4) é con- testada por concepsbes republicanas, democraticas e comuni- taristas defendidas por juristas, filésofos e cientistas politicos. Como se pode ver, 0 projeto filoséfico de Dworkin énapoledni- co. Ele pretende conquistar territ6rios em diversos quadrantes, em cendrios diferentes, e tudo ao mesmo tempo. O impacto da obra de Dworkin na cigncia do direito ébas- tante singular. Por um lado, ele se tornou um pensador mui- to influente e mesmo reverenciado por alguns setores da lite- ratura juridica, especialmente por conta da sta teoria das nor- mas juridicas, que deu uma nova dimensao normativa para os princ’pios juridicos a partir da década de 1960 e abriu no- vas perspectivas para a atividade judicial, especialmente no ambito do direito constitucional. Por influéncia dessa litera- tura, 0 autor norte-americano se converteu em uma podero- sa autoridade intelectual na teoria do direito e especialmente 286 Normatividade & argumentacio no pensamento constitucionalista do final do século XX, que testemunhou a ascensao e a hegemonia do controle judicial da constitucionalidade da legislacao. Dworkin é, sem ciivida, um dos grandes icones desse novo constitucionalismo. Por outro lado, naquilo que podemos classificar de “alta filosofia do direito”, poucos autores foram to contestados e atacados, e talvez nenhum de forma to dura. Nesse dominio, o autor tomou-se 0 arquti-inimigo do positivismo juridico que emer- git a partir da obra do jusfildsofo inglés H.L.A. Hart. Neste artigo, pretendo me concentrar no estudo da rela- sao entre democracia constitucional e epistemologia moral na teoria constitucional de Dworkin. A minha percepgao é que a obra do filésofo norte-americano ofereceu a teoria constitucio- nal contemporanea uma metodologia juridica particularmen- te sedutora para os sistemas juridicos das democracias cons- titucionais modernas. Nas tiltimas décadas, tanto os sistemas juridicos da tradicao romano-germanica quanto dos paises da common law sofreram uma revolugao provocada pela ascensao da chamada era dos direitos.t Neste novo modelo de sistema juridico, o poder judicirio, especialmente através das supre- mas cortes e dos tribunais constitucionais, passou a exercer um tipo de fungao praticamente inédita na histéria das insti- ‘tuigdes piiblicas, com a excecao isolada da Suprema Corte dos Estados Unidos. No exercicio dessas funcdes emergentes, os juizes constitucionais passaram a controlar a compatibilidade das atividades de todos os demais poderes em face das cons- tituigdes e das declaracdes de direitos. Lentamente, os siste- mas politicos assimilaram e inclusive estenderam a atuacdo das supremas cortes e dos tribunais constitucionais na prote- cdo dos direitos fundamentais e no controle dos atos do poder legislativo, do poder executivo e dos demais érgaos do poder judiciario” 4. Ver Louis Henkin, The Age of Ris 192 5, Huma fasta © qualificada literatura analisando a emecgéncia deste navo modelo de sistema juridico em diversoa paises de todoa os continentes, Entre tais extsdos, podem ser destacades 05 soguintes: Alex Stone Sweet, Governing with Judges: 19%, e Norberto Bobbio, A Ere des Dieitos, 287 Normatividade & argumentaco mene sss en nw fC NS L IEE tas tentaram compreender o papel da jurisdigao constitucio- nal nos novos sistemas juridicos foi o esquema classico do Es- tado liberal, baseado na teoria da separacio e especializacdo dos poderes e nas doutrinas da soberania popular e da supre- macia do parlamento. Com isso, os tedricos que estudaram o papel exercido por tribunais constitucionais e supremas cor tes nessa nova ordem juridica tenderam a se mostrar criticos acerca dessas instituigdes. As criticas so bem conhecidas. As supremas cortes e os tribunais constitucionais so acusados de serem excessivamente ativistas, de nao respeitarem a se- paracao dos poderes, de desprezarem o poder legislativo e os processes demoeraticos, de exercerem uma nociva funcao contramajoritaria e até de tentarem promover um novo mo- delo de Estado, a “juristocracia”* Embora alguns analistas reconhegam que muitas decisdes das supremas cortes e dos tribunais constitucionais sao corretas do ponto de vista subs- tantivo da protecéo de direitos, assim como concordam que esses drgios judiciais podem ser muitas vezes imprescindi- veis para proteger o individuo e grupos minoritSrios da forca frequentemente opressiva e discriminatéria das maiorias po- pulares, muitos entendem que o saldo liquido da atuagao dos érgios judiciais pode colocar em risco o funcionamento da democracia? Mais recentemente, contudo, alguns analistas tém come- cado a destacar e elogiar as virtudes da justica constitucional. Uma virtude que tem sido realcada é 0 fato de que osjuizes de Constitutional Politics im Europe, 2000; Tam Koopmans, Courts and Political Insitutions, 2003; Jetirey Goldsworthy (editor), Interpreting Constitutions: A Comparative Study, 2007; Ran Hirschi, Towards Juristoracy: The Origins and Conseguences of The New Constitutionatism, 2007; David Robertson, The udge as Political Theorist: Contemporary Judicial Rete, 2010; Javier Couso, Alexandre Huneeus ¢ Rachel Steder (editores), Cultures of Legality: Juaicalzaton and Judicial Activism in Latin America, 2010. 6, Ver Ran Harschl, Towards Jurstocracy: The Origins and Consequences of The New Constitutional, 2008, 7. Neste sentido, ver jeremy Walseon, Low and Desagreement, 2001, ¢ The Dignity {of Legislation, 1999. Eu proprio explorei esta perspectva critica a partir da flosofia politica de Immanuel Kant em Kant e« Dignidade da Legislagte, 2010, 288 Normatividade & argumentacio supremas cortes ¢ tribunais constitucionais tém exercido um importante e estratégico papel de tesricos politicos que inter- pretam e constroem o significado dos valores politicos e mo- rais que formam o contetido dos principios e direitos funda- mentais protegidos nas constituigdes, nas declaragées de di- reito e em tratados internacionais* Na medida em que tribu- nais constitucionais e supremas cortes estdo obrigados a con- trolar a compatibilidade entre leis, atos administrativos e de- cisdes judiciais em face de valores abstratos e genéricos como igualdade, liberdade, dignidade, privacidade, justica social e solidariedade, entre outros, eles se veem obrigados a desco- brir e construir um significado para esses valores. Como a es- trutura das decisdes judiciais é baseada em argumentos racio- nais, que procuram um resultado baseado na corresao ¢ na coerencia do discurso, as decisdes judiciais desses tribunais tendem a envolver profundos e complexos estudos tedricos sobre 0 significado desses valores, compreendidos tanto indi- vidualmente quanto como elementos que compdem um siste- ma de valores que devem se alimentar reciprocamente. Dworkin percebeu com rara lucidez a emergéncia deste modelo de sistema juridico. Desde a década de 1960 ele sus- tentou que, nesse novo sistema legal, o poder judiciario deve exercer o papel de um forum de principios responsavel pela construgao do sentido dos valores que formam a moralidade politica dos sistemas constitucionais contemporineos, papel esse que nao pode ser exercido com os mesmos resultados pe- los érgaos legislativos e executives. Por mais comprometidos que estejam os parlamentos com a protesao dos direitos fun- damentais da pessoa humana, eles ndo tém instrumentos para oferecer a sociedade uma concepcao mais refinada e densa do contetido, do significado e da extensao dos valores politicos e morais protegidos pelos direitos. Para compreender e defen- der esse modelo de sistema juridico e a funcao que ele reser- va aos juizes, 0 filésofo norte-americano elaborou uma teo- 5 Ver David Robertson, The Judge as 2 Political Theorst: Contemporary Judicial Review, 2010 289 Normatividade & argumentaco ria constitucional que prope uma nova forma de compreender a democracia, que ele denominou de concep¢ao constitucional ou participativa (partnership conception) de democracia, em opo- sigdo a uma concep¢ao meramente majoritaria de democracia. No amago dessa sua concepgio de democracia consti- tucional se encontra uma epistemologia moral que afirma a existéncia de verdades morais objetivas e de respostas certas na interpretagao do direito, as quais estariam fora do alcance das decisoes majoritérias tipicas da democracia parlamentar. Dworkin pensa que qualquer sistema juridico é composto de normas que remetem a valores morais ¢ politicos dotados de objetividade, acessiveis por meio da interpretacao sistemati- ca do direito e demonstraveis por argumentos coerentes. Essa objetividade permite que juizes usem seu poder de raciocinio moral para descobrir as respostas certas as questdes morais e politicas que surgem quando devem resolver casos judiciais. Ele propoe, entao, uma nova metodologia juridica para a de- cisdo de casos judiciais, ajustada & sua epistemologia moral. Dada a natureza das questdes morais envolvidas na interpre- tacao do direito e a forma argumentativa pela qual elas so re- solvidas, se usarem essa nova metodologia juridica, os juizes estarao mais bem posicionados para decidir sobre elas do que os érgaos politicos tipicos de uma democracia constitucional. Dworkin, portanto, privilegia a filosofia em detrimento da politica na resolugao das grandes questdes politicas e mo- rais das sociedades modernas. Para ele, 0 direito deve dei- xar-se contagiar pela filosofia, e os juizes devem tentar ser fi- lésofos em sua atividade deciséria. Trata-se claramente de tuma concepgao “platénica” de filosofia politica, no sentido da critica de Hannah Arendt a que nos referimos acima. Todo © projeto jusfiloséifico do autor depende da sua conviccao de que existem valores morais objetivos e que esses valores po- dem ser descobertos ou construidos pela razao humana por meio da interpretagao e da argumentagao. Dessa tese segue-se 5. Gabse a hase flasitica do pensamente juridico dworkinian, ver Scott Shapizo, Legality, capitulo 11,2011 290 Normatividade & argumentacio uma série de consequéncias para a sua teoria do direito e sua filosofia constitucional. Em um trabalho anterior, propus que a concep¢ao relativista que Hans Kelsen defendia a respei- to da epistemologia moral explicava aspectos centrais da sua teoria constitucional.:° Neste ensaio, pretendo levar adiante oestudo sobre a relacdo entre epistemologia moral e a meto- dologia juridica que vem sendo elaborada no direito constitu- Gonal moderno, explorando agora a teoria objetivista sobre a verdade moral exposta por Ronald Dworkin e seu impacto no pensamento constitucional do filésofo norte-americano. Oeensaio inicia com uma sintese funcional da teoria do di- reito do autor, que tem como unico objetivo situar o leitor no contexto geral da obra dworkiniana. Em seguida abordo, de forma igualmente resumida, a epistemologia moral desenvol- vida ao longo das diversas fases do seu pensamento. Na ter- ceira parte do texto, apresento uma avaliacao da teoria consti- tucional elaborada pelo autor e procuro estabelecer uma rela- cao entre ela e a sua teoria do direito. Na parte final exponho um breve balango ciitico da teoria constitucional de Dworkin, destacando alguns de seus avancos e de suas limitagdes. ATEORIA DO DIREITO Omiicleo tedrico da filosofia do direito elaborada por Ro- nald Dworkin reside na compreensao sobre a natureza do di- seito, Desde seus primeiros escritos, publicados ainda na dé- cada de 1960, o autor sustentou que o direito nao pode ser compreendido apenas como um conjunto de normas de con- duta criadas por uma autoridade ou decorrentes de costumes sociais, e reconhecidas tanto pelos membros de uma comu- nidade quanto por suas autoridades competentes como jur dicamente validas ¢ vinculantes." Em sintese, 0 direito nao 10. Claudio Ari Metio, “Democracia e Epistemologia Moral em Hans Kelsen’, Revista Braslesra de Estudos Constituctonss, v.23, 2012. TL Ver 0 artigo “The Model of Rusles 1", de 1967, sncluido aa coletinea de artigos Taking Rights Seviouly, de 1977. A descrigto da projeto tedrica de Dworkin, Sintetizada nesta parte inicial do texto corresponde basicamente A primeiea fase de 291 Normatividade & argumentagiio se exaure em fatos sociais identificados e aceitos como fontes factuais de normas juridicas, como as leis criadas por um par- lamento, as decisdes de drgaos judiciais e os costumes de uma comunidade. Segundo 0 autor, todo sistema juridico é com- posto também por principios, que so normas que ndo de- correm necessariamente de convengdes humanas e podem ser derivadas de valores morais e politicos que tornam esse siste- ma necessariamente vinculado a algum sistema moral. O di- reito, portanto, nao pode ser identificado exclusivamente com base em fontes factuais, como pretenderam os teéricos do po- sitivismo juridico pelo menos desde Jeremy Bentham e John Austin.? Outra caracteristica essencial do diseito identificada pelo autor é a justificacdo do uso da coercao por parte do Estado. O recurso & coercao estatal sé pode ser considerado legitimo quando o sistema juridico, que serve de fundamento e fon- te para a acao coercitiva, é compreendido como sendo forma- do de valores morais e politicos que integram direito e moral ¢ tornam o direito uma ordem justa. Por isso, uma teoria do direito tem que estar amparada em uma teoria da moralida- de politica. Segundo o autor, a teoria moral que justifica o uso da coersao estatal com base no direito deve ter como funda- mento basico o principio da igualdade, embora outros prin cipios, como a justica, a imparcialidade e 0 devido processo também se associem para justificar moralmente o direito. Essa associacao de principios morais justificativos ¢ ordenada pela ideia de integridade moral do direito, que exploraremos mais adiante.® [eu desenvolvimento) que fol eiponta noe aaiges “Ihe Medel of Rules Pe “The Model of Rules II, compilados em Teking Rights Serioulsy. Embora nao se possa dizer {que © autor tenha abandonado exsas tess originals, o que seguramente ele nio fez, necessirio reconhecer que a sua estratégiatedrica se altera a partir cle Law's Empire, de 1986, Sobre as fases do projeto tedrico do autor, ver Scott Shapiro, “The ‘Hart ‘Drvotkin’ debate: a short guide for the perplexed”, in Arthur Ripstein, (ed), Ronald sorte, 2007 12, Jeremy Bentham, The Principle of Morais and Legislation, 1985, e John Austin, The Province of Jurisprudence Determined, 2000. 1B. Ver Stephen Guest, Roxald Dueorkin, p.3-46 292 Normatividade & argumentacio Para Dworkin, nao ¢ possivel entender o que 0 direito tentando estudar qual o significado que damos na vida prati- ca & expressio “direito” ou “sistema juridico”, como preten- deriam os principais teéricos da filosofia analitica do direito O conceito de dizeito que usamos normalmente nao é basea- do em fatos naturais e também nao depende de alguns crité- ios convencionais que permitem que definamos o que ele sig- nifica. O conceito de direito nao é um conceito natural, como a definigao de “tigre”, que é baseada em determinadas carac- teristicas genéricas tipicas da natureza da espécie animal co- nhecida e denominada como “tigre”; ¢ também nao é um con- cxito criteriolégico, como os conceitos de “casa” e de “homem calvo", que sao definicdes baseadas em determinados crité- ios, estipulados pela pratica comunicativa de um determina- do grupo social para designar um determinado objeto. Ne- nhuma dessas espécies conceituais se ajusta ao modo como normalmente definimos o direito. Dworkin atribui aos defen- sores do positivismo juridico 0 equivoco tesrico de sustenta- rem que o direito ¢ um conceito criteriolégico, equiveco que ele chama de aguilhiio seméntico. O autor sustenta que 0 con- ceito de direito é necessariamente interpretativo e somente po- demos entendé-lo quando tentamos compreender como ele campriria da melhor forma as suas mais genuinas finalida- des. Como a tese de que 0 conceito de direito é essencialmente interpretativo é decisiva para compreender 0 projeto tedrico do autor, é importante que deixemos essa distingao esclareci da antes de avangarmos no estudo da sua teoria do direito.# Um conceito semantico ou criteriolégico é formado a par- tir da observagio e da analise critica de uma determinada pra- fica social e da definicao de critérios que possam ser usados para permitir que reconhecamos quando estamos falando de uma mesma espécie de pritica social. Depois de observar e Ti, A tase do aguilhte seméntica foi exposta especialmente em Law's Empire, de 1986, Contsdo, desde a edict daguela obfa 0 autor zetomows,rovisou e aperfeicoou a tose em diversos trabathos, sendo de destacar especialmente Justice ix Robes, de 2008, Justice for Hedgehogs, de 2011, 293 Normatividade & argumentaco analisar a pratica, formulamos um conceito que seja composto por esses critérios e que nos permita usi-lo exatamente para identificar semanticamente a ocorréncia e a repetigao da pre tica. Por exemplo: observamos e analisamos as diversas expe- ridncias de organizacao politica de comunidades humanas e constatamos que em muitas delas as fungSes de criar as leis e de governar a comunidade sao exercidas por pessoas eleitas diretamente por um grande conjunto dos membros dessa co- munidade (exemplificativamente, por todos os homens e mu- theres adultos mentalmente sadios) e designamos essa pratica de “democracia”. De acozdo com esse procedimento de cons- trugdo do conceito de democracia, so democraticas todas as organizacSes politicas que se ajustam a esses critérios, isto 6, que sao governadas por um érgao legislativo e um drgao ad- ministrativo compostos por pessoas eleitas diretamente por uum conjunto quantitativamente significativo e representative de membros da comunidade. Portanto, podemos agora apli- car esse conceito para todas as sociedades cuja organizacio politica se ajusta aos critérios que formulamos, assim como. podemos exchuir do conceito de democracia todas as socieda- des cuja organizacao politica nao se ajusta aos critérios cons- titutivos do conceito. Como se pode ver, 0 procedimento de construgao de um conceito semantico ou baseado em critérios 6, supostamente, meramente descritivo e moralmente neutro, isto é, nao avaliativo.* Um conceito interpretative, por seu tumo, é formado a i ee en eee eee eee eee eee ee eee uma determinada pratica social, visando a identificar quais so os valores e as finalidades que explicam e justificam essa pratica. O tedrico que pretende compreender essa pratica e as pessoas que a compartilham nao necessitam estar de acor- do quanto aos critérios que usam para identificé-la. Eles po- dem usar o conceito que aplicam a pratica mesmo quando di- TRO conceito semfntico & normative apenas no sentido trivial de que devernos ‘usar a palavra democracia exclisivamente quasido nos teferimos a ema sociedade ‘caja onganizagta politica atende aos critésios que estipulames, 294 Normatividade & argumentacio vergem acerca de quais sao 0s critérios que devem ser usados para explicé-la. Por isso, a mera descrigao da pratica é sempre insuficiente e ineficiente. Uma vez que reconhecemos © va- lor e a finalidade da pratica social, para elaborar um conceito que defina o que ¢ essa pratica devemos apresenta-la em sua melhor perspectiva, isto 6, de um modo que essa definicao permita que a pritica realize da melhor maneira possivel 0 seu valor fundamental e a sua finalidade. Quando analisamos uma pratica social como 0 governo democratico, por exem- plo, devemos buscar nessa pratica qual ¢ o valor fundamental ea finalidade que ela visa a realizar; a seguir, devemos com- por um conceito que permita que a pratica realize esse valor e essa finalidade da melhor forma possivel. Ao elaborarmos esse conceito, nao estaremos apenas descrevendo a pratica: estaremos também interpretando ela e propondo como esse conceito deve ser compreendido e aplicado. Mesmo que, ao investigar 0 significado do conceito de democracia, quisésse- mos baseé-lo exclusivamente em uma generalizacio histérica extraida do conjunto de sistemas politicos que compartilham determinadas caracteristicas, sempre que quiséssemos identi- ficar se um novo elemento é ou ndo compativel com 0 concei- to de democracia, digamos, por exemplo, 0 controle judicial de constitucionalidade, teriamos que apelar para as finalida- des essenciais da democracia para sabermos se esse novo ele- mento pode ser acomodado na melhor interpretacao possivel do que significa aquele conceito, Portanto, o procedimento de construgao de um conceito interpretativo é normativo, e nao meramente descritivo, e é engajado, isto é, nao é moralmente neutro.* Para Dworkin, conceitos politicos como democracia, liber- dade, igualdade e direito nio podem ser criteriolégicos por- que sao necessariamente interpretativos. O conceito semant co ou criteriolégico de direito é um equivoco tedrico porque parte da premissa de que podemos definir 0 que € 0 direito a 16. Ver, especiaimente, Ronald Dworkin, “Haet's Postscript and the Point of Potitical Philosophy", em Justice in Robes. 295 Normatividade & argumentaco partir de uma posicao moralmente neutra e desengajada, que © autor denomina de arquimediana.” Dworkin sustenta que 0 conceito de direito é necessariamente interpretativo e somen- te podemos entendé-lo quando tentamos compreender como ele cumpriria da melhor forma as suas mais genuinas finali- dades. Essa interpretagao jamais pode ser neutra e desenga- jada. Quando tentamos entender o que € o direito, inevita- velmente projetamos nesse conceito as finalidades que julga- mos permitir o direito tornar-se uma instituicao mais legiti- mae moralmente justificada, Haverd divergéncias em relagao a qual é a concepgdo que torna o direito o que ele é, mas essas divergéncias nao podem ser evitadas por uma atitude mental arquimediana, que busque formular um conceito neutro em relagao ao desacordo conceitual. Qualquer concepgao acerca do direito é uma interpretagao possivel do que ¢ 0 direito. O positivismo juridico, por exemplo, que Dworkin prefere cha mar de convencionalismo, é apenas mais uma concep¢ao in- terpretativa sobre o direito. A concepgao que deve prevalecer 6 aquela que apresenta o melhor conjunto de argumentos in- terpretativos, isto é, os argumentos que se revelam capazes de mostrar o direito na sua melhor perspectiva ou “a sua me- Ihor luz”, uma expresso cunhada pelo autor e insistentemen- te usada por ele ao longo de suas intmeras obras.“* Concep- Ges supostamente neutras e cientificas sobre a natureza do direito, como o convencionalismo e o realismo juridico, séo apenas concepgées interpretativas rivais, que disputam qual delas expde os melhores argumentos para explicar 0 que é 0 direito Ty, Trata-se de uma cofecéncia so matemitice # fisica grage Acquimedes de Sieacusa (287.212 AC), em sua exposicio sobre fungio da slavanca na fisica, Segundo narra a historia da losofia antiga, Arquimedes teria dite: “Déem-me um ponte de apoio eeu moverei a Terra’, Portanto, a referéncia ao filésofo grego sugere que essa concep¢i0 fedrica pretende encontrar um fundamento exterior do direito para sustentar uma, definigio sobre a natureza do dire. 18, Em seu interessante estudo sobre as interseySes entre a teoria do direito de Dworkin ea cxtica da jiz0 de Kant, jake Allard sugere que a ideia de mostrar 0 diseita a sua melhor lz se teatada como uma ideia reguladora da teoria do diceito como integridade, Ver Julie Allard, Dusorkin et Kant: reflexions sur le jugement, 2002, p. 130-133, 296 Normatividade & argumentacio Dworkin apresentou-se como um adversirio vigoroso do positivismo juridico ja desde os seus primeiros textos. Embo- ra tenha dirigido seus ataques iniciais teoria positivista de Herbert Hart, ele procurou refutar diversas outras concepgdes do positivismo jusidico, desde John Austin até aquelas que fo- ram formuladas pelos inimeros discipulos e seguidores de Hart. Um de seus principais alvos é a tese positivista da se- paragao conceitual necessaria entre direito e moral, que ele considera indefensdvel. Ao longo de décadas, 0 autor procu- rou mostrar as intersecdes entre direito e moral até fundir as duas areas na sua ambiciosa tese da unidade do valor, defen- ee ee eee eee oe nee eee EE do, a tese da conexao necessaria e da unidade entze direito e moral nfo o aproximou das concepgées jusnaturalistas classi- cas.” De fato, ele jamais formulou abertamente um conjunto de proposigées que comporiam um direito natural metafisico que se sobrepusesse ou que de qualquer forma condicionasse a validade do direito positive, como ¢ tipico das teses jusnatu- ralistas. Ao contrario, Dworkin foi sempre critico dessas con- cepgdes, conquanto jamais tenha lhes dedicado muita atencao enem tenha explicado com mais detalhes o que efetivamente 19. Mattos anos atrés John Mackie explocou esse desajuste tedrico da teoria do iteito de Dworkin, designando-a como “sma texceita teoria do direito”, stwada tent 0 jtsnaturalismo e o positivismo juridico. Ver John Macie, "The Thied Theory ‘of Law”, in Marshall Cohen (org.), Ronald Dworkin and Contemporary Jurispradencs, 1984. Em vam istigante ensaio sobse as semelhangas entre as teoras filoséficas do iteito cle Dworkin e Hegel, Thom Brooks defende que amas as concepgses teoricas SGeveriam ser situadas em ima posicio intecmadiaria entre 9 positiviemo juridico = ‘9 jusnaturaismo, Ver Thom Brocks, “Between Natural Laws and Legal Positivism Dworkin and Hegel on Legal Theory”. Reconhecidamente ainterpretacto da ilosotia do deite de Hagelaace umatacefa al, Contudo, a ocma inal que Drvoslan conten, 2 sua teoria do diseito, especialmente em Justice for Heigehogs, incospora 0 dissito ro dominio geral da moralidade enquanto a instincia que define como podemos viver bem, individual e coletivamente, Nesse sentido de fato podemos identificar ‘uma familiaridade entre o projeto dworkiniano e a Blosofia do direite hegelana, inclusive em relagioa uma certa desvalorizasio da politica democratica como e=pago PPiiblico de construgio da eticidade. Para uma importante reinterpretagio da Filosfs 40 Divato de Hegel, que pode contebie para reileir sobve essa famsisandade, vor ‘Axel Honaeth, Sifrinento de indeterminagie. Ua restulizaglo da Filosofia do Direto 4e Hegel, 2007. Contra, situando a teoria do diveito do autor entre as concepbes de diseito natusal, vee Robin West, Normative Jurisprudence: An Introduction, 2011 297 Normatividade & argumentaco distingue a sua teoria nao positivista do direito das teorias jusna- turalistas. Nao hé chivida, contudo, que a conexao entre direito e moral, que é a tese central do projeto jusfilosofico do autor, nao segue o protocolo tradicional das teorias do direito natural que hhistoricamente se contrapuseram ao positivismo juridico.” Em primeiro lugar, Dworkin rejeita o jusnaturalismo por- que entende que as teses do direito natural esto baseadas em uma concep¢ao insustentavel de realismo moral metafisico. As teorias jusnaturalistas afirmam que existem valores mo- rais na “estrutura do universo” (fabric of the universe), e que a mente humana pode conhecé-los e explicé-los adequadamen- te a ponto de poder sustentar proposigdes verdadeiras acer ca desses fatos morais. Para Dworkin, qualquer teoria funda- da na tese de que existem fatos morais na “estrutura do uni- verso” é falsa. Os valores morais s4o objetivos porque podem ser demonstrados como verdadeiros por meio da argumenta- cao adequada, nao porque correspondem a fatos existentes no mundo natural. Portanto, embora seja um objetivista moral & sua maneira, Dworkin nao é um realista moral metafisico. Em segundo lugar, Dworkin rejeita o jusnaturalismo pelas mes- mas razées pelas quais ataca o positivismo juridico: porque as teorias jusnaturalistas também defendem uma concepcio se- mntica ou criterioldgica acerca do que é 0 direito, na medida em que também propdem a existéncia de alguns critérios fixos usados para definir 0 que € e 0 que nao é 0 direito, os quais seriam formulados a partir de uma perspectiva supostamente “neutra e desengajada” em relacao aos possiveis desacordos interpretativos acerca da natureza do direito. Ou seja, as teo- tias do direito natural também sao concepgdes tedricas arqui- medianas, exatamente como as teorias positivistas. O vinculo entre direito e moral evoluiu ao longo do de- senvolvimento teérico do autor."! Em uma primeira fase, ele 20, Para uma reflexto mais especifica sobre as diferengas entre a sua teoria do direito ¢ ojusnaturaismo, ver o ensaio do autor intitulado “Natural Law Revisited”, de 1982. 21. Podemos identificar, para fins apenas de sistematizacio, as tres fases do pensanianto filosetica do autor da seguints forma: a primeira tase apresentou uma, frites tevicn ao positivism juridien, expasta sapecialaiante nas artigas compilados em 298 Normatividade & argumentacio defendia que a conexao entre direito e moralidade ocorre es- sencialmente por meio dos princfpios de moralidade politi- ca existentes em qualquer sistema juridico, e que sao efetiva- mente seguidos pelos juizes nas decisdes de processos judi ciais, especialmente nos casos mais dificeis (hard cases), em que as normas do direito positive nao oferecem uma solugdo moralmente adequada para o direito visto “a sua melhor luz” Em uma segunda fase, ele passou a sustentar que todo siste- ma juridico deve ser interpretado como sendo dotado de inte- gridade moral, ainda que a interligacao do direito com a mo- ral seja mais evidente nos casos dificeis da pratica juridica. A integridade moral significa que os valores morais que justifi- cam a existéncia do direito e permitem que ele realize da me- thor forma as suas finalidades essenciais devem ser interpre- tados como formando um conjunto coerente de valores, que se justificam e se alimentam reciprocamente. Em uma terceira exiltima fase, Dworkin passa a considerar o direito uma par- te da moral. Nessa tiltima versao, 0 autor adota uma concepeao ‘monista na qual a ética, a moral, o direito e a politica passam a ser consideraclos como expressdes especializadas da morali- dade geral, que determina as agdes humanas em todas as suas esferas. Em Justice for Hedgehogs, sua obra derradeira, 0 au- tor sinteticamente afirma que a moral deve ser compreendida como uma drvore: “o direito é um ramo da moralidade polt- tica, que é ela propria um ramo da moralidade pessoal mais geral, que, por sua vez, é um ramo ainda mais geral do que é viver bem’ Taking Rights Seriously, de 1977; a segunda fase formulou uma critica 4 rantojuriica, cexposta em Law's Empire, de 1986; na terceia fase ele formulou uma critica rasta pritica,em Justice for Hedgehogs, de 2011. Essa sistematizacio do pensamento filosético de Duworkin segue a divisso propasta por Lavrence B. Solum para compreender 3 cevolugio da teoria geral da interpretayio do autor, conforme consta no eneaio “The Unity of Interpretation”, Boston University Schoo of Law Review 2010, 22. Dwworkin, Justice for Hesgchogs, p. 5. Como 0 préprio autor esclarece, a referéncia | ourigosj no titulo da obra se deve a um famoso aforisme atnibuido 20 poeta grego “Azqailoce, segundo o qual a raposa sabe muitas coisas, mas o ourigo sabe uma coisa ‘muita importante. Esse aforismo foi celebrizado pelo influente eneaio de Isaiah Beclin sobre o caticsmo em Telstei, publicado em 1953, intitulado “O Ourico © a Raposa!,ctado acima. A proposta do ensaio ¢ demonstrar a exsténcia de dois ipos 299 Normatividade & argumentaco Para 0 autor, o direito ¢ essencialmente uma pratica inter- pretativa guiada por valores morais objetivos. Essa atividade interpretativa 6 constituida por duas dimens6es distintas, mas inseparaveis: 0 ajuste e a justificagao. Na dimensiio do ajuste, 0 intérprete deve adequar a sua interpretacdo ao “material jus dico basico” que forma o sistema legal de uma comunidade, como as constituicdes, as leis, os costumes juridicos e os prece- dentes judiciais. Entretanto, 0 processo de ajuste da interpreta- cao a esses dados objetivos pode permitir diversas interpreta- Ges aceitveis do material basico. A controvérsia no processo de ajuste ¢ uma caracteristica tipica da interpretagao juridica, Por isso, a dimensio da justificacao exige que a interpretacao for- mulada com base no material juridico basico na dimensio do ajuste mostre o direito em sua melhor perspectiva, a partir da melhor interpretacdo possivel dos principios morais existentes no préprio sistema juridico em questdo e de valores morais ine dependentes, que justificam a pratica do direito. Adotando uma abordagem analitica na exposicao da sua teoria interpretativa do dizeito, Dworkin propde uma meto- dologia juridica na qual a interpretacao é dividida em trés fa- ses.” A primeira fase é denominada de pré-interpretation. Nes- se estagio, 0 intérprete deve colher o material bruto que forma © sistema juridico de uma comunidade politica, como cons- tituicao, leis, costumes e precedentes judiciais. No entanto, como vimos, esses dados sao apenas o material basico a partir do qual tem inicio a complexa e exigente definicao do que 6 © direito da comunidade que deve ser aplicado em processos judiciais ena vida das pessoas. Toda vez que um juiz ou qual- quer outro cidadao quiser definir qual ¢ o direito da comuni- bisicos de personalidades na histGna inelecual do Oddenter os ourigos adotam uma concepsio monistae tentam explicar a diversidade humana a partic de um Since sistema de crengas ices as raposas extraem ca plralsdace de experénciae hhumanas impossbilidade de constrinr um drico sistema de crengas e ideas que sejs capaz de explicar © mundo, j3 que o fins nem sempre podem ser concilados. Patio, Hegel Marx sto exemplos de curios, a paseo que Antteles, Shakespeare @ Montaigne ato ecemplos de esposas, Ver lasiah Bern, “© Ousiga a Raposs", Enasios sobre « Humanidade, 2002 23, Ver, expecialmente, Dworkin, Law's Empie, capitulo 07. 300 Normatividade & argumentacio dade a respeito de alguma questao, ele deve comegar 0 seu es- tudo pelo material bruto extraido de fatos sociais ou conven- des humanas como leis e decisdes judiciais. Concepgdes po- sitivistas menos sofisticadas se satisfariam coma referéncia a esses materiais juridicos na definicdo do que ¢ o direito. Para © autor, contudo, esse estagio é meramente preparatério para a atividade do fildsofo do direito e para os juristas em geral. Todavia, ja nesta etapa incide a abordagem interpretativa do direito. Iss0 ocorre porque mesmo a fase pré-interpretativa é ja interpretativa, tendo em vista que a definicao de quais sio 05 materials brutos que server como fundamentos do direito: depende de uma interpretagao acerca do que deve ser consi- derado fundamento do dizeito, a partir dos principios de mo- ralidade politica que melhor justificam a pratica do direito. A fase seguinte é 0 estagio propriamente interpretativo desse proceso. Esse estgio possui duas dimensoes. Chama- rei essas dimensdes de interpretagto sistemiitica lintitada e inter pretacio sistematica abrangente. Na primeira dessas dimensdes da fase interpretativa, 0 juiz deve buscar uma resposta ao pro- blema juridico que lhe cabe solucionar que seja ajustada ao di. reito positivo vigente e aos precedentes judiciais preexisten- tes relevantes para o caso. Nessa fase, se 0 juiz se deparar com textos legais semanticamente imprecisos, com antinomias ou Jacunas juridicas, ele deve apelar para o material juridico basi- co colhido na fase anterior para encontrar uma resposta, ainda provisoria, para o caso que esté examinando. Essa fase da teo- tia interpretativa do direito de Dworkin equivale aquilo que a metodologia jusidica da Europa continental denomina de in- terpretasdo sistematica do direito. Embora no utilize a termi- nologia tipica da metodologia juridica europeia nem elabo- re uma teoria compreensiva da interpretacdo sistematica nes- se sentido mais limitado, Dworkin claramente nao subestima a importancia de outros métodos hermenéuticos nessa etapa, como a interpretagao literal, a histéria e a teleolégica* Entre- TE Ver, por exemple, Dwwoskin, “The Forum of Principle", em A Matter of Principle, 301 Normatividade & argumentaco tanto, todas essas técnicas de interpretacao convergem para uma compreensao sistematica do direito positivo vigente na comunidade. Nao esta presente aqui, por enquanto, nenhuma pretensio de correcao moral da solucao encontrada pelo juiz em face da moralidade intrinseca do sistema juridico. O ob- jetivo é apontar uma solucdo que seja coerente com 0 direito positivo vigente e com as decisdes judiciais prévias e relevan- tes acerca da questao, independentemente do ajuste dessa so- Iugao proviséria vis-d-vis os valores morais e politicos funda- mentais do direito da comunidade. Dworkin chama essa for- ma de coeréncia de estratégica, mas nés vamos denomina-la de coeréncia estrita. Até aqui, a metodologia juridica dworki- niana nao apresenta um desafio sério ao positivismo juridico. A fase seguinte exige uma interpretacdo sistemdtica abrangente porque agora o juiz ndo mais se limita a obter uma resposta que seja coerente apenas com os textos legais @ os precedentes judiciais relevantes, Como vimos, 0 direito € uma pratica cuja principal funcao ¢ justificar o uso legitimo de meios coercitives pelo Estado para ordenar a vida social. A coercao s6 legitima quando o direito, que justifica o seu uso, decorre de principios morais e politicos existentes no proprio sistema juridico e que interagem entre si para formar um sis- tema normativo moralmente coerente. Aqui entra em jogo a teoria do direito como integridade, que 6 a concepcao dworki- niana de uma teoria interpretativa do direito. Para 0 direito como integridade, nao basta que as leis ¢ as decisdes judiciais sejam coerentes de uma maneira limitada: um sistema juridi- co sé é legitimo quando ele também é moralmente coerente, isto 6, para ser legitimo ele deve ser dotado de uma integi- dade moral baseada em principios, do mesmo modo que co- bramos de um individuo que ele seja moralmente coerente em suas acdes. Para fundamentar a teoria do direito como in- tegridade, Dworkin afirma que um Estado é uma comunidade ersonificada, e essa comunidade deve ser tao moralmente coe- rente quanto exigimos de um individuo em suas agdes. As de- 302 Normatividade & argumentacio cisdes politicas que se convertem em fontes de direito devem ser integradas por principios morais que interagem e dialo- gam entre si e formam um direito moralmente integro. Nes- sa fase, a interpretagdo sistematica ¢ ampliada precisamente para abranger os principios morais politicos intrinsecos ao sistema juridico que esta sendo interpretado. Na etapa interpretativa abrangente, o juiz deve com- preender 0 sistema juridico “A sua melhor luz”, on seja, deve tentar encontrar uma resposta hermenéutica que apresente 0 direito em sua melhor perspectiva, a partir da interagao re- flexiva entre 0 direito positivo e os principios morais e polit cos acolhidos nesse sistema juridico. O juiz deve nao apenas ajustar a sua decisdo ao material juridico basico, mas também justificar o direito a luz desses principios. No entanto, o juiz ainda ¢ limitado em sua atividade hermendutica pelos prin- cipios expressos e implicitos do sistema juridico ao qual ele pertence. O conjunto de valores morais que ele deve utilizar para obter uma decisao moralmente coerente nao , portanto, um conjunto independente das decisdes politicas da comuni- dade, que possa ser deduzido de concepgdes metafisicas ou de algum exercicio auténomo da razao pratica. A sua ativida- de, nessa etapa, é ainda interpretativa: o juiz deve interpretar 0 direito positivo e as decisées judiciais relevantes de modo a construir uma resposta moralmente afinada com os principios morais e politicos acolhidos no préprio sistema juridico, com- preendidos de tal forma que a resposta apresente o direito da comunidade na melhor perspectiva possivel. Embora ja pos- sa corrigir distorgdes que a mera interpretacao estrita do ma- terial juridico basico pode gerar, a sua vinculagao aos valores morais contemplados no sistema legal impede que ele escape dos princfpios consagrados pela histéria politica da sua co- munidade, Portanto, nessa fase a moralidade das convengoes constitucionais prevalece sobre qualquer exercicio de morali- dade critica 5. Um exemplo que facilita a compreensto do que Dworkin pretende com essa distingto pode ser explicado com o seguinte exempla: por mais que um juiz norte 05 Normatividade & argumentaco A seguir, 0 juiz ingressa em uma fase pés-interpretativa no processo de construgao da decisao judicial. A expresso “pés- -interpretativa” deve ser esclarecida. Em verdade, nao se tra- ta de uma etapa nao interpretativa da pratica juridica. Nao existe um estagio nao interpretativo na pratica juridica para Dworkin. Esta etapa é “pés-interpretativa” no sentido de que 0 juiiz agora nao se encontra mais estritamente atrelado ao di- reito positivo, aos precedentes judiciais, aos valores acolhidos no sistema juridico ou 4 histéria juridica de sua comunida- de. A fase de interpretacao do material juridico basico e seus principios morais e politicos expressos e implicitos foi ultra- passada. A maior parte dos casos juridicos tera encontrado ‘uma resposta neste estagio, seja mediante uma interpretagao sistemética estrita, seja mediante uma interpretacao sistem4- tica abrangente. Em muitos outros casos, todavia, a fase inter- pretativa do sistema juridico nao fornecera de imediato uma resposta para 0 uso da coercao pelo Estado ou forneceré uma resposta incapaz de justificar a coercao estatal. Nessa fase, 0 resultado da fase interpretativa deve ser contrastado com va- lores morais independentes que so inerentes & pratica do di- reito. Esses valores independentes tanto podem exigir a corre- cao de uma resposta obtida na fase interpretativa quanto po- dem oferecer uma resposta que nao fora fomecida de modo algum pelo material juridico basico e pelos princfpios morais expressos ou implicitos no sistema juridico. © valor fundamental em torno do qual Dworkin constroi asua filosofia moral e juridica é 0 principio da igual consideragto ¢ respeito. Esse principio perpassa a teoria do direito do autor desde os textos compilados em Taking Rights Seriously até Jus- tice for Hedgehogs, obra na qual Dworkin associa este principio americano considere moralmente correto que cada Gdadio norte-americano possua ‘um divesto fundamental a assisténcia médica gratuita, ele n4o pode justificar a fevastencia desse diesto nem com base no diseto positivo vigente em seu pais, nem ‘com base nos principine mossis politicos consageados na historia juridica = politica dos Estados Unicos da America, Mesmo que the caiba apresentac 0 diceito 4 =a sisihor luz, ¢ ainda o diceita nocte-americana que els esta interpretands, no 0 igeitabeasilaico 304 Normatividade & argumentacio a ideia de dignidade humana e oferece uma concep¢ao mais elaborada dele, dividindo-o em dois subprincfpios: (i) 0 prin- cipio do auto-respeito (principle of self-respect), que, a rigor, € uma reconstrugao da segunda formulacao do imperative ca- tegérico kantiano, sustenta que a vida humana tem uma im- portancia intrinseca que deve ser respeitada por todas as pes- soas e especialmente pelo Estado; e (ii) o principio da auten- ticidade (principle of authenticity), segundo 0 qual as pessoas e 0 Estado devem respeitar as escolhas e as decisoes que cada individuo adota no uso da responsabilidade que cada um de rnés tem em viver bem a vida, formula que, por sua vez, tam- bém parece uma derivagao liberal dos deveres para consigo proprio da Doutrina da Virtude de Kant, exposta na Metafisi- ca dos Costumes.” Esses dois subprincipios conformam o con- ceito de dignidade humana que esta na base do principio da igual consideracao e respeito do autor.* Embora nao seja apresentado como um principio de direito natural, o dever de igual consideragao e respeito é um principio de moralidade geral a partir do qual podem ser deduzidas es- pecialmente as obrigagdes politicas que sao tipicas do direito. A regulacao estatal das relagbes externas entze as pessoas através do direito s6 é legitima quando o Estado usa seus instrumen- tos tipicos tratando todas as pessoas com igual consideracao e respeito. Este principio de moralidade politica transcende todo e qualquer sistema legal e funciona sirmultaneamente como cri- tério ultimo de legitimasao politico-moral de um ordenamen- to juridico e como fonte de direitos morais e juridicos que po- dem ser reivindicados pelos individuos em processos judiciais A natureza transcendente deste principio encontra-se bem ex- plicitada na seguinte passagem de Justice for Hedgehogs: Uma comunidade politica nao tem nenhum poder moral de criar e impor coercitivamente (enforce) obrigacdes contra 26. Tinmanuel Kant, Fundamentacio da Metafisice dos Costumes, 2008, p. 243, 17. Imananwsel Kant, Metgfisica dos Costurtes, Doutsina Etica Elementas, 2008. 28. Ver expeciaimente o capitulo 09 de Justice for Hadgehogs. Ver, também, Is Democracy Possible Here? 1023, 305 Normatividade & argumentaco seus membros a menos que os trate com igual consideragao € respeito; isto 6, a menos que as suas decisdes politicas tra- tem os destinos de seus membros como igualmente impor- tantes e respeitem as suas responsabilidades individuais por suas prdprias vidas. Este principio de legitimidade é a fonte mais abstrata de direitos politicos. O governo nao tem nenhu- ma autoridade moral de usar a coercio contra qualquer pes- soa, mesmo que seja para melhorar o bem-estar ou a bonda- de da comunidade como um todo, a menos que respeite essas duas exigéncias em relagao a todas as pessoas. Os principios da dignidade, portanto, estabelecem direitos politicos muito abstratos: eles prevalecem sobre politicas coletivas do gover- no. Nés moldamos esta hipétese: todos os direitos politicos so derivados deste direito fundamental. Definimos e defen- demos direitos particulares perguntando-nos, em muito mais detalhe, o que a igual consideracdo e respeito exige.> Como se pode ver, 0 principio politico-moral da digni- dade humana, segundo qual o Estado deve tratar todos os smembros de uma comunidade politica com igual considera- cdo e respeito, é a condigao de legitimidade do direito estatal e a fonte material de direitos politicos, isto 6, de direitos morais que podem ser reivindicadas institucionalmente pelos indivi- a nn NN ¢a tedrica entre o autor e as concepcbes positivistas do direi- to, Para Dworkin, “questdes sobre o direito sao sempre ques- tes sobre a justificativa moral do poder politico” * Como a sua teoria do direito ¢ uma concepgao filosdfica sobre a prati- ca do direito, o autor desloca a questao tedrica da justilicati- va moral da autoridade politica, normalmente discutida ape- nas no ambito da fundamentacao filosofica do direito, para a propria atividade de interpretacso do direito. O direito é sem- pre produto de uma interpretagao, a interpretagao que mos- 29, Dworkin, Justice for Hedghogs, p. 330. 30, Sobre o conceito de dsestos polticas, var, eapecialmnente, Tang Rights Seriously BL Arthur Ripstein, “Anti Asguimedianism’, in Asthae Ripsiein (ed, Ronald Dusorkix, 2007, 4 306 Normatividade & argumentacio tra 0 direito em sua melhor perspectiva é sempre aquela que trata a vida de cada pessoa humana com igual consideracao € respeito. O autor evidentemente reconhece que 0 principio da dignidade humana é um conceito interpretative que pode ser concretizado com diferentes contetidos e alcances norma- tivos, em um mesmo Estado, ou em diferentes Estados. Por isso, distintas solucées normativas podem revelar-se adequa- das ao principio. No entanto, nem todas as solugdes normati- vas concretas podem ser consideradas ajustadas a ele. Quan- do um juiz conclui que uma determinada solugao existente em um determinado sistema juridico nao se ajusta a melhor interpretagao do principio da igual consideracdo e respeito, deve entdo procurar uma interpretagéo que corrija esse desa- juste. Nesse caso, 0 principio da igual consideracao e respeito devidamente interpretado deve permitir que se obtenha uma solucao adequada.® ‘Um problema recorrente com 0 qual o autor tem de lidar 0 problema da controvérsia ou do desacordo interpretativo. De fato, o desacordo interpretative ocorre em qualquer esté- gio do processo de aplicacao do direito no ambito da teoria in- terpretativa do direito elaborada por Dworkin. A compreen- so do significado de normas imprecisas ou semanticamen- te abertas e do contetido e do alcance normativos de princi pios de moralidade politica de um sistema juridico, bem como as concretizagdes normativas do principio da igual considera- sao € respeito estao todas sujeitas a controvérsia. Muitos intér- pretes podem chegar a conclusdes diferentes, contrarias e até 132, Se esta interpretacto da teoria do direto de Dwvorkin esti correta, entio a sua tect do disaito ests mais prowima da tadigio do diseito natural do que 9 autor sdaute, De fat, na stedida em que © principio da igual considecasio # espeto fo da dignidade da pessos humana, na forma em que apresentado pelo autor, & considerado tum prineipio moral transcencente isto ¢ um principio de moralidade politica extemo a qualquer sistema juricico, que (i) funciona como fonte de normas ‘ou de proposigéesfuridicas, (i) controla a validade juridica de normas do “direito postivo” ca comunicade e (it) seve de snspiragzo para a nterpretagzo de normas ppostivas imprecisas ev) para a sokuclo de confitos de normas, estamos falando de {ima teoria coos pressupostos sto familiares ao jusnatsraismo. Ver, neste sentido, Thom Brooks, “Between Natural Law and Legal Positivism: Dworkin and Hegel on Legal Theory 307 Normatividade & argumentaco francamente incompativeis a respeito dos principios morais internos e do valor moral soberano da dignidade humana. Di- ferentemente do que pensam os positivistas, 0 desacordo teé- rico é inerente a praticas interpretativas como o direito, En- tzetanto, a despeito da inevitabilidade da controvérsia, para Dworkin é possivel encontrarmos respostas certas na inter- pretacao do direito. Isso significa que os juizes nao dispdem de discricionariedade para decidir casos controversos nem li- berdade para criar direito como se fossem legisladores, mes- mo quando devem decidir com base na melhor interpretacao do material juridico basico, nos principios morais fundamen tais do sistema juridico ou no principio da igual consideragio e respeito. Para 0 autor, ndo existem lacunas nem imprecisiio no direito Com a teoria do direito como integridade, Dworkin pre- tende finalmente oferecer uma resposta completa a uma das suas criticas seminais a doutrina positivista do direito: a tese da discricionariedade judicial. A tese da discricionariedade sustenta que em intmeras situacées o sistema juridico ndo oferece uma resposta certa para os casos judiciais, como nas hipéteses de lacuna no direito positivo ou quando as normas que formam o sistema legal usam expressées semanticamen- te imprecisas e vagas.* De acordo com a tese da discriciona- riedade, nessas situacées o juiz ja ndo pode decidir de acordo com o sistema juridico e por isso dispoe de discricionarieda- de para decidir, tal como se fosse um legislador. O juiz pode e deve decidir os casos de lacuna do sistema juridico ou de im- precisdo semantica das normas da forma mais justa, inclusive recorrendo a valores morais, mas nem ele esta obrigado a de- cidir dessa forma, nem esses valores morais pertencem ao di- reito que ele deve aplicar. Jé em seus primeiros escritos sobre o tema, Dworkin sus- tentou que a tese da discricionariedade judicial defendida pe- los positivistas esta errada e nao corresponde ao modo como 33, VeeHILA. Hast, The Concept of Lew, 2001. 308 Normatividade & argumentacio normalmente se compreende a pratica do direito. A teo- ria interpretativa do direito ou 0 direito como integridade & a concepgao tedrica que permite demonstrar, segundo pen- sao autor, que mesmo nos casos dificeis, em que o direito po- sitivo ou os precedentes nao oferecem uma resposta imedia- ta, 0 sistema juridico, interpretado de acordo com a integri dade, sempre oferece respostas certas. A natureza mesma do eee eee ee nn ne ma juridico interaja com principios de justiga e de moralida- de politica, que devem ser utilizados na interpretacao do di- reito, especialmente quando o material juridico basico (cons- tituigdo, leis, precedentes judiciais) nao oferece uma resposta clara. Alem disso, a pratica do direito é guiada por determi- nados valores, como a igualdade, a justica e o devido proces- so legal, que também devem determinar qual é a resposta cor- reta para um problema jurfdico. A teoria da resposta certa é decisiva para a estrutura da teoria do direito de Dworkin. E ela que permite ao autor afir- mar que os juizes sempre podem decidir processos judiciais com base no préprio sistema juridico e nos principios morais que justificam a existéncia do direito, sem a necessidade de re- correr ao seu préprio arbitrio, a concepgdes subjetivas suas ou a elucubracdes sobre como o legislador teria legislado em ca- sos de lacuna ou indeterminagao das normas juridicas. A tese da resposta certa levou 0 autor a desenvolver uma concepgao muito particular acerca da epistemologia e da metodologia da interpretacao no direito. Em um primeiro momento, nos tex- tos que foram compilados em Taking Rights Seriously e A Mat- ter of Principle (1985), ele propunha uma concepsao forte da tese ao sustentar que o direito sempre fornece uma tinica res- posta certa para todos os problemas juridicos. Posteriormen- te, a partir de Law's Empire, 0 autor modifica seu programa tedrico e passa a sustentar que o sistema juridico, interpreta- do construtivamente com base na sua teoria da integridade, BE Ver Dworkin, “The Mode! of Rules I’, em Tuking Rights Seriously 309 Normatividade & argumentaco quase sempre oferece respostas certas, e que os casos de inde- terminagao do direito “sao muito mais raros do que se costu- ma pensar”. Nessa segunda fase, portanto, o autor recua para uma concepgio mais moderada da tese. A rigor, ndo se pode dizer propriamente que ele abandona a tese da sinica resposta certa, como alguns comentadozes sustentam, Em verdade, ele modifica a tese, ao admitir que o direito pode ser indetermi- nado, mas essa concepcao nao o leva a renegar a tese: de fato, © autor sustenta que quando o direito ¢ efetivamente indeter- minado, a unica resposta certa é exatamente essa, isto é, a res- posta certa é que o direito nil oferece uma solucto juridica Essa nova abordagem a tese da resposta certa aparece ja bem elaborada no artigo Objetivity and Truth: You'd Better Belie- vie It, de 1996. Nesse texto, Dworkin faz uma importante dis- tingSo entre incerteza e indeterminacao no direito. A incerte- za 6 apenas uma crenga incompleta ou insuficiente a respei- to de alguma questo controversa. Se nao tenho certeza sobre a constitucionalidade do aborto ou da eutandsia, porque os argumentos favoraveis e contrarios a cada uma dessas pra- ticas me parecem adequados e justos e nao consigo me deci- dir por nenhum deles, estou diante de uma situagdo de incer- a a se, depois de pensar cuidadosamente sobre a questao eu con- cluo que a resposta certa, tudo considerado, 6 que a constitui- ao nem profbe nem permite o aborto ou a eutandsia, ou seja, que nao é verdadeiro que a constituig’o autoriza essas prati- cas, mas também nao é verdadeiro que ela as permite, entdo estou diante de um caso de indeterminagto do direito, e essa é atinica resposta certa. Esse é, portanto, um argumento positi- vo, que necesita ser demonstrado como o argumento corre- to, tanto quanto os argumentos que defendem a constitucio- nalidade ou a inconstitucionalidade do aborto ou da eutand- sia, como mostram as seguintes passagens: Uma crenca na indeterminacao é um argumento positi- vo, e necessita de uma razdo ou uma premissa positiva para apoid-la. Existem trés visdes possiveis que eu poderia adotar 310 Normatividade & argumentacio acerca da questao do aborto, excluindo a incerteza, mas eune- cessito de tantos (ou tao poucos) argumentos para defender essa terceira visio — indeterminagdo - quanto eu necesito de argumentos para qualquer uma das outras duas.* (..) deve haver uma resposta certa sobre a melhor coisa a fazer, ainda quando essa resposta seja somente que ndo ha nada a fazer. Isto nao é uma armadilha (trick): é um modo de lembré-lo de que o ceticismo nao é uma posicao negati- vva (defeult). Qualquer convicgao de que nada importa deve ser um alvo da sua suspeita ou diivida —e uma esperanca deslocada para a validagéo externa — como qualquer ou- tra conviceao positiva. Se vocé pensa que nada importa, lembre que esta também é uma conchisdo que outras pes- soas, que pensaram {do 4rdua e longamente quanto vocé, nao aceitam. Nao existe escape para o isolamento da cren- canaquilo que outros nao creem. O ceticismo ou o niilis- mo certamente nao escapam. Essa importante alteracdo na tese da resposta certa nao frustra os consideraveis avangos que a teoria dworkiniana do direito acrescentou A compreensao da fungdo da interpreta- Aono direito. Entretanto, é inegavel que ela tem repercussoes decisivas na consisténcia tedrica global da teoria dworkiniana do direito. Contudo, como tentarei demonstrar mais adian- te, ela nao ecebeu o desenvolvimento doutrinario que pare- ce ser indispensavel para manter a solidez da tese. Como ve- remos, a aceitacdo da inexisténcia de respostas certas, ou, me- Thor dizendo, a inexisténcia de uma solugio jurfdica nos casos de indeterminagao insuperavel do direito mostra-se particu- larmente problematica para a teoria do direito como integri- dade no ambito do direito constitucional, cujas principais nor- mas juridicas tendem a ser indeterminadas. Para compreen- dermos melhor as ambigdes da teoria do direito de Dworkin, e finalmente para entendermos os importantes avancos me- todoldgicos que ela projetou a pratica constitucional e alguns Dm, “Oiectivity and Truth: You'd Peter Beliewe ft" 0 134. 36, Dworkin, Justice or Hedgehogs, p. 418. 31 Normatividade & argumentaco dos problemas que podem comprometer a sua consisténcia teGrica, é indispensavel examinarmos com mais atengao a re- lacao que o autor estabelece entre o direito como interpreta- so e a objetividade do raciocinio juridico. No préximo capi- tulo exploro essa questao. AVERDADE E O DIREITO A tese da tinica resposta certa (one right answer thesis) na in- terpretacao do direito é 0 principal argumento de Dworkin para rejeitar a tese positivista de que os juizes dispdem de dis- cricionariedade para julgar casos juridicos controversos, nos quais 0 direito nao oferece uma tinica solugao, tese essa que ocupou um lugar central na teoria positivista do direito de- fendida por Hart e acolhida pelos teéricos juspositivistas.” Dworkin concedeu & tese da tinica resposta certa na interpre- tacdo juridica o respaldo filoséfico de uma concep¢do obje- tivista de verdade moral. Para o autor, interpretar o direito € sempre assumir posigdes morais e apresentar argumentos consistentes em favor delas. Todavia, é claro que essas posi- des morais individuais, adotadas por juizes, nao podem ser consideradas “respostas certas” em contextos de controvérsia interpretativa se nao puderem ser afirmadas como posigoes morais objetivamente “certas” ou verdadeiras, Para enfrentar essa dificuldade, o autor adota duas estratégias: em primeiro lugar, sustenta uma teoria objetivista acerca da verdade mo- ral, de acordo com a qual existem verdades morais objetivas que podem ser demonstradas por meio de uma argumenta- cao construtiva ¢ integrativa; em segundo lugar, ele afirma que 0 raciocinio juridico desenvolvido em processos judiciais 6 particularmente propicio para a emergéncia da verdade mo- ral Do mesmo modo como atacara as teorias positivistas do direito, na defesa da sua teoria da objetividade dos valores morais, Dworkin langa “um ataque geral” & metaética como TALL A Hast, The Concept of Law, 2001 312 Normatividade & argumentacio teoria filosdfica acerca do status epistémico das proposigoes morais. Conquanto a sua preocupacao central tenha sido a de refutar as teses céticas, que negam a existéncia de valores morais objetivos, 0 autor procura refutar todas as concepgdes metaéticas sobre a verdade moral, Em seu ataque, 0 autor re- jeita a existéncia de qualquer forma de concepgio filosofica

Você também pode gostar