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Narcisismo Contemporaneo: Uma Abordagem Laschiana”™ ALEXANDRE A. RIBEIRO WANDERLEY ** RESUMO Narcisismo contemporaneo: uma abordagem laschiana Este artigo visa a retomar algumas das psincipais teses do historiador Christopher Lasch acerea da subjetividade contempordnea, Utilizando 0 conceito psicanalitico de narcisismo para produzis um diagnéstico de nossos tempos, Lasch propée uma interessante reiacdio entre individuo e sociedade — questo inerente a todo pensamento sociolégico. Pretendemos sustentar a importancia da nogio laschiana de uma ética da sobrevivencia narcfsica para a anélise do mundo globalizado, onde a escassez de ideais comuns € 0 consegiiente recuo da politica parecem apontar para a intensificago do investimento no bem-estar individual como a tnica alternativa valida. Palavras-chave: Subjetividade contemporinea; narcisismo; psicopatologia. ™ Trabalho apresentado como requisito para a conclusio da disciplina Sadde Coletiva, minis- trada pelo Prof. Dr. Luiz AntOnio de Castro Santos, no Programa de P6s-graduagio em Satde Coletiva (mestrado), do Instituto de Medicina Social da UBRJ, 1998. ** Psicanalista, psicblogo especializado em Saude Mental pelo Instituto Philippe Pinel. Mestrando em Sade Coletiva, Instituto de Medicina Social da UERJ. PHYSIS: Rey. Sniide Coletive, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 19993 Alexandre A, Ribeiro Wanderley ABSTRACT Contemporary nareissis Laschian approach The article resumes some of the main theses on contemporary subjectivity, conceived by the historian Christopher Lasch. Departing from the psychoanalytical concept of narcissism in order to make up a diagnosis of our time, Lasch proposes an interesting relation between the individual and the society -—- an issue concerning every sociological thought. We intend to support the importance of the Laschian idea of a narcissistic survival ethics in the analysis of a globalized world, where the scarcity of collective ideals and the consequent reversal of policies seem to be pointing at an intensification of investments in the individualist welfare as the sole alternative. Keywords; Contemporary subjectivity; narcissism; psychopathology. RESUME Narcissisme contemporain: une approche laschien Cet article vise & reprendre quelques unes des théses principales du historien Christopher Lasch & propos de la subjectivité contemporaine. En s*utilisant du concept psychanalytique de narcissisme pour produire un diagnostic de nos jours, Lash propose un rapport intéressant entre individu et société — question immanente & toute pensée sociologique. Nous prétendons soutenir Vimportance de fa notion laschienne dune éthique de survivance narcissique pour I'analyse du monde globalisé, ol la rareté des idéaux communs et le conséquent recul de 1a politique semblent aller vers l'intensification de Vinvestissement du bien-étre individuel comme {a seule alternative valide. Mots-clé: Subjectivité contemporaine; narcissisme: psychopatologie. Recebido em 6/10/98. Aprovado em 16/J2/98, 2 PHYSIS: Rev. Saige Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2: 31-47, 1999 Narcisismo Contemporaneo: Uma Abordagem Laschiana Introdugio O presente trabalho tem como objetivo abordar as relagées entre indivi- duo e sociedade. Salientemos, de inicio, que nao se trata aqui de retomar a célebre “dualidade inerente & sociologia”, expressao utilizada por Elisa Reis (1989) para se referir & oposigao entre a tradi¢o sociolégica francesa ¢ a alema. Antes, nosso interesse é examinar alguns tépicos relativos & socio- logia da satide mental e a interface entre a sociologia, a psicandlise e a psicopatologia. Tomando esta visio multidisciplinar como ponto de partida, buscaremos estabelecer possiveis relagdes entre certas caracteristicas das sociedades ocidentais contemporaneas e alguns tragos psicolégicos tipicos dos individuos urbanos. Para tanto, utilizaremos, fundamentalmente, os estu- dos do historiador Christopher Lasch, em particular 0 livro A cultura do narcisismo (1983), publicado originalmente em 1979. Parece-nos que 0 relevo das pesquisas de Lasch reside na acuidade com que analisa o material histérico de que langa mio, o que confere embasamento a sua démarche. Além disso, a apropriagio de um referencial psicanalitico permite formular hipdteses acerca dos fenédmenos sociais que observa. E nesta medida que acreditamos que os estudos de Lasch se prestam ao tipo de reflexdo que tencionamos realizar. Vejamos, ent&o, em que consistem os pontos basilares da argumentagio do autor. A Etica da Sobrevivéncia Watson Christopher Lasch € considerado um dos mais severos criticos das sociedades industriais modernas. Inscreve-se, assim, na tradigao da escola de Frankfurt, originada no inicio dos anos 30 ¢ constituida por filésofos e pesquisadores alemaes, como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Jiirgen Habermas, entre outros. O historia- dor, que lecionou na Universidade de Rochester, morreu em 1994, aos 61 anos, Do seu legado, A cultura do narcisismo representa 0 livro mais conhecido e que se tornou um best seller apés ter sido mencionado num dos pronunciamentos televisionados do entio presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter (Renwick, s/d). O subtitulo do referido livro —- A vida americana numa era de espe- rangas em declinio — bem poderia constituir uma espécie de sinopse da obra de Lasch. Seus estudos, especialmente voltados para a anélise da otigem ¢ evolugdo da familia burguesa nos séculos XIX e XX, apontam para PHYSIS: Rev. Salide Coletiva, Rio de Janeiro, 2): 31-47. 199933 Alexandre A. Ribeiro Wanderley uma preocupacdo constante com os destinos da sociedade norte-americana. Acreditamos que, nao obstante as particularidades dessa cultura, suas refle- xées podem ser estendidas a outras sociedades industrializadas, nas quais predomina o individualismo como valor (Dumont, 1985; Velho, 1987). Isto posto, passemos ao essencial. Em A cultura do narcisismo, Lasch propée uma anélise da sociedade americana que permita responder as diversas interrogages que o assaltam. Referindo-se ao que considera como esfacelamento da vida intima a partir da década de 70, Lasch se pergunta: “(...) por que o crescimento e o desenvolvimento pessoais se torna- ram t&o frduos de ser atingidos; por que o temor de amadurecer ¢ de ficar velho persegue nossa sociedade; por que as relagdes pessoais se tomaram tio instaveis e precérias; ¢ por que a ‘vida interior’ nao mais oferece qualquer refiigio para os perigos que nos envolvem” (Lasch, 1983: 37). Ao censurar os que rotulam qualquer movimento de olhar para o passado como nostalgia, Lasch assevera a necessidade de uma andlise histérica da sociedade e da polftica modernas para responder a essas indagag6es. Como veremos, a critica do historiador as sociedades ocidentais burguesas se faz acompanhar da esperanga na reforma da vida publica, tinica possibilidade de refrear a auto-observacao narcisista de nossos tempos. Frisemos que, para © contexto deste trabalho, importa menos a proposta de reforma politica elaborada por Lasch — niio muito clara, diga-se de passagem — do que sua andlise acerca da imbricagdo das esferas publica e privada nas sociedades contemporaneas. “Apés a ebuligdo politica dos anos 60”, escreve Lasch, “os americanos recuaram para preocupagées puramente pessoais” (1983: 24). Partindo desta constatagio, 0 autor sugere que a decepgiio dos grupos de vanguarda radical dos anos 60 quanto aos resultados politicos do movimento, e a conseqiiente retrag&o da atividade politica, estariam na base do culto da expansao da cons- ciéncia, da satide e do crescimento pessoal. Sentindo-se impotentes diante da burocratizagao generalizada da sociedade americana ¢ atemorizados pela exaustao iminente dos recursos naturais ¢ pela possibilidade de uma catéstrofe nuclear, os militantes politicos de outrora passaram a se preocupar, quase exclusivamente, com o proprio bem-estar. Antes dispostos a dar a vida por um ideal, trans- formaram a sobrevivéncia fisica ¢ psiquica num fim em si mesmo. 34 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 1999 Narcisismo Contempordneo: Uma Abordagem Laschiana Das cinzas do sonho libertdrio de uma nova sociedade, surgem os ho- mens natcisistas de nosso tempo. Os narcisistas se caracterizariam, segundo Lasch, pela superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria, pseudo-autopercepeio, promiscuidade sexual, horror a velhice e & morte. ‘Também chamados novos radicais, so descrentes quanto 4 possibilidade de transformar o futuro, desprezam o passado e vivem para o momento, per- dendo o sentido de continuidade histérica, Aludindo a esse “reptidio ao passado recente” — sintoma de uma crise cultural, 4 qual o livro se dirige — Lasch reproduz uma passagem do filme Sleeper, de Woody Allen, que teria captado os sentimentos dos anos 70: “solugdes politicas nao funcionam (..) acredito no sexo e na morte — duas experiéncias inicas em uma existéncia” (Lasch, 1983: 25). Para Lasch, o embotamento das preocupagées politicas teve uma exce- gio. No vacuo politico deixado pela contracultura a partir da década de 70, comega a ganhar forga um movimento social, a saber: a militancia ecolégica. Ocorre que, de acoerdo com Lasch, este movimento € absolutamente consonante com a ética da sobrevivéncia a que nos referimos. Em O mini- mo eu (1987), Lasch nos diz: “Os proprios movimentos de oposigiio — os movimentos pacifista preservacionista — fazem da sobrevivéncia o seu lema. Evidentemen- te, eles se referem a sobrevivencia do conjunto da humanidade, € no a sobrevivéncia cotidiana dos individuos; mesmo assim, refletem € reforgam uma mentalidade de sobrevivéncia. Apelam a um ‘compro- misso moral com a sobrevivéncia’ (como propde Richard Falk em seu manifesto ecolégico Este planeta ameacado), nio levando em con- sideragdo © risco de que um tal compromisso, em vez de conduzir & ago politica construtiva, possa também, com a mesma facilidade, levar a um esconderijo nas montanhas ou as politicas nacionais destinadas a preparar o pais para sobreviver & guerra atémica, Os movimentos pacifista e preservacionista chamam a alengdo para a criminosa indiferenga de nossa sociedade diante das necessidades das geragées futuras; porém, inadvertidamente, reafirmam tal atitude, a0 insistit, por exemplo, nos perigos da superpopulagdo © na itresponsabilidade de se trazer uma crianga a um mundo j4 superlotado. Com freqiiéncia, substituem um interesse abstrato no futuro por uma espécie de interesse palpavel e emocional, que habilita as pessoas a fazerem sactificios em beneficio préprio” (Lasch, 1987: 10-11). PHYSIS: Rev. Sade Coletive, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 199935 Alexandre A. Ribeiro Wanderley Lasch nao quer desmerecer a crescente conscientizagdo ecolégica, nem tampouco desvalorizar a oposigio0 A corrida armamentista. Ao contrario, acredita que sio movimentos imbufdos do espfrito da agao politica, tinica safda, segundo ele, para a crise das sociedades modernas ocidentais. Entre- tanto, chama a ateng&o para o perigo de se reforgar uma moral da sobre- vivéncia, que se justificaria per se. De modo semelhante, o psicanalista Contardo Calligaris atenta para o fato de que as politicas identitdrias das minorias nos anos 80 ¢ 90 se atre- laram as defesas de interesses particulares. Interesses que, no mais das vezes, esto referidos ao proprio corpo, deixando de lado ideais que visam ao bem comum. Em verdade, tais movimentos acabaram por assumir, fre- qiientemente, uma postura separatista. Em suas palavras: “O progressismo de repente abandonou seu projeto de transformagio da sociedade como um todo ¢ abragot a causa dos particularismos. Alias, descobriu tarde demais que, entre essas diferencas enfim reco- nhecidas, nenhum sonho de uma nova comunidade era praticavel (Todd Gitlin, que ja escreveu sobre os anos 60, descreveu essa transformagtio em The left lost in the politics of identity). As propric- dades dos novos grupos que surgiram eram: 1) 0 trago comum de seus membros era real; a anatomia vira Gnico destino (note-se que a escolha homoerdtica dos gays nfo faz excegao, pois grande parte do movimento gay norte-americano recebeu entusiasticamente as hips- teses sobre a origem genética da homossexualidadey; ¢ 2) as razes politicas de sua Tuta nfo eram valores, mas interesses particulares, ime- diatos e reais. A prova dessas duas observagdes reside no fato de que 0s novos gnupos so, por esséncia, separatistas: ndo aceitam em seu seio quem nao traga consigo os tragos anatémicos previstos e quem nao tenha sofrido a discriminagao ou a privagdo correspondentes. No grupo politico tradicional, no precisava ser proletério para ser socia- lista ou comunista, nem ser empresirio para ser Bberal. Do mesmo jeito, as exigéncias da comunidade nacional podiam estar acima das preocu- pagdes individuais de seus membros. Assim, 0 burgués socialista, operario liberal ou 0 contribuinte favorével a um aumento de imposto para sustentar a forga bélica de sua nagio demonstravam de alguma forma, por sua existncia, que o grupo néo perseguia sé interesses reais, mas também valores simbélicos, que para alguns contavam mais do que sua fortuna” (Calligaris, 1996: 5-6 - grifo nosso). 36 PHYSIS: Rev. Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47. 1999 Narcisismo Contemporaneo: Uma Abordagem Laschiana Segundo Lasch, a crenga do individuo modemo, de que a sociedade no tem futuro, embora se baseie em certo realismo sobre os perigos do devir, também incorpora uma incapacidade narcisista de se identificar com a pos- teridade ou de se sentir parte do fluxo da historia. Neste sentido, Lasch afirma que “a ética da autopreservagdo e da sobrevivéncia psiquica esti, entao, radicada nfo meramente nas condigdes objetivas da guerra econdmi- ca, nas elevadas taxas de crimes € nos caos social, mas na experiéneia subjetiva do vazio e do isolamento” (Lasch, 1983: 77) Na auséncia de valores como justiga social e sentido de continuidade com geracées anteriores, a ética da sobrevivéncia constitui a marca distintiva da cultura do narcisismo. Como assevera Lasch, (..) as condigdes sociais hoje em dia encorajam uma mentalidade de sobrevivéncia, expressa em sua forma mais nude nos filmes de catés- trofes ou em fantasias de viagens espaciais, que permitem uma fuga vicdria do planeta condenado. As pessoas deixam de sonhar com a superagio de dificuldades, mas simplesmente passam a sobreviver a elas” (Lasch, 1983: 75). Essa cultura testemunha a transformagdo do individualismo competitivo e da ética do trabalho livre, caracterfsticos do infcio do capitalismo, na ética da autopreservagio e da sobrevivéncia psiquica. A busca da felicidade reduzida a uma preocupagao narcisista com 0 eu é expresso, segundo Lasch, do homem psicolégico do século XX — substituto do homem econémico e produto final do individualismo burgués. A desqualificagao da luta politica dos anos 60 da jugar, de acordo com Lasch, a um ataque & familia burguesa, fonte de toda repressio emocional ¢ sexual. Buscando contrapor-se aos valores tradicionais, 0 homem narcfsico, ao invés de culpado, moralista ou reprimido, se diz liberado, permissivo e tolerante. Para Lasch, entretanto, a liberagdo sexual e a emancipagio de antigos tabus nao trazem nem a paz sexual, nem a espiritual, Ao contrario, a busca incessante do prazer se torna uma obsessao, freqiientemente seguida de queixas de vazio interior, Tampouco a proclamagao da toleriineia resultou numa maior compreensio ou aceitagiio do semelhante. O homem narcisico € indiferente a tudo e a todos que nio Ihe dizem respeito diretamente. PHYSIS: Rev, Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 1999 37 Alexandre A. Ribeiro Wanderley Neste ponto, pensamos ser possfvel estabelecer um paralelo entre a indiferenca do homem narcisico e a atitude blasé dos habitantes das metr6- poles, tal como Georg Simmel (1976: 11-25) descreveu, numa conferéncia proferida no inicio do século. A esséncia dessa atitude reside no embotamento do poder de discriminagio diante do excesso de estimulos e informacdes inerentes as grandes cidades. Essa baixa reatividade do individuo blasé nao significa, obviamente, incapacidade de diferenciar estimulos. Trata-se, se- gundo Simmel, de um estado de 4nimo em que o valor atribuido as coisas, acontecimentos e pessoas é nivelado. Nos dias de hoje, nada mais emblematico dessa indiferenciagao do que a relativa naturalidade com que assistimos as variadas noticias veiculadas pelos telejornais: uma crianga passando fome, gols de uma partida de futebol, corpos das vitimas de um ataque terrorista, a gravidez, de uma apresentadora infantil, falsificagdo de medicamentos, aventuras extraconjugais de um chefe de Estado. A mirfade de imagens que desfilam diante de nossos olhos parece ter a mesma relevancia. Pensamos que o denominador comum ao homem narcfsico e ao individuo blasé con- siste na progtessiva perda da capacidade de indignar-se, restando a contem- plagdo passiva como resposta aos infortinios de nossa vida pablica. Retomemos por um instante a questo da critica 8 moralidade burguesa, intensificada a partir da década de 70, porquanto este é um t6pico central na argumentacdo de Lasch. Como foi visto, a energia empregada no movimento da contracultura passa a ser canalizada para 0 ataque 4 familia tradicional bur- guesa. Segundo 0 autor, a ideologia individualista acaba por produzir um meio familiar andmico, onde prevalecem prinefpios idiossincraticos de orientag4o social, baseados no respeito a liberdade e ao desejo de cada um. A familia tradicional, calcada na ampla sociabitidade e no modelo hierarquizante, passa por um processo de nuclearizagio ¢ se transforma gradativamente em familia igualitaria ¢ individualizante. E assim que, destitufda dos princfpios morais que orientavam sua condota, a familia se dirige, progressivamente, para fora de seus limites, em busca de parametros que a auxiliem na tomada de decisio diante de tal ou qual impasse. O recurso a profissionais de satide — os tecnoburocratas, na definigdo de Lasch — torna-se regra e retira paulatinamente ‘a autonomia que a familia burguesa j4 teve na resolugdo de seus problemas. Neste sentido, Lasch afirma que 0 clima contemporaneo nao € religioso, mas terapéutico, ¢ adverte: “Tendo desbancado a religiio como a moldura organizadora da cul- tura americana, a visio terapéutica ameaga também desbancar a po- 38 PHYSIS: Rey. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 1999 Narcisismo Contemporineo: Uma Abordagem Laschiana litica, 0 dltimo refigio da ideologia. A burocracia transforma as quei- xas coletivas em problemas pessoais acessiveis & intervengdo tera péutica” (Lasch, 1983: 34). Para Lasch, os novos radicais estéio, sem saber, reforgando o sistema ao qual se buscam contrapor. A atrofia das tradigdes mais antigas de auto- suficiéncia minou a competéncia cotidiana, em uma drea apés a outra, ¢ tomnou o individuo dependente do Estado, da corporagdo & de outras burocra- cias, O natcisista funcionaria, entdo, como pega perfeita da engrenagem, ideal para a sociedade burocratica ¢ planificada. Ao invés da “socializago da produ- Go”, afirma Lasch, assistimos & “socializagao da reprodugao”: os pais petderam 0 direito de educar moralmente os filhos e séo induzidos a consumir os servigos dos tecnoburocratas da sociedade do bem-estar. Assim sendo, ao atacarem a familia, os radicais reforgam o programa racionatizador do Estado. O Narcisismo Patolégico Em A cultura do narcisismo, Lasch se serve de uma série de tedricos da psicandlise anglo-americana que desenvolveram estudos sobre as perso- nalidades narcisistas. Comparando a descrigao dessas personalidades com a descrigio do individuo urbano, Lasch encontra semelhangas — tais como temor intenso da velhice e da morte, senso de tempo alterado, fascinio pela celebridade, medo da competicao, declinio do espfrito lidico. O autor susten- ta que o individuo narcisico se origina de mudangas especificas na sociedade americana. Essas mudangas dizem respeito 4 burocracia, 4 proliferagaio de imagens, as ideologias terapSuticas, & racionalizagao da vida interior, ao culto do consumismo e, em Ultima andlise, as mudangas na vida familiar. ‘Assim, Lasch considera que 0 narcisismo nao deve ser concebido como “metéfora da condicao humana”, pois deste modo ndo se poderia relacionar aquelas patologias ao contexto hist6rico em que surgem. Entretanto, 2 ori- ginalidade do estudo de Lasch nao reside, como se pode pensar, na relagdo entre 0 conceito de narcisismo e as caracterfsticas psicolégicas do individuo americano tipico', Outros autores, como Eric Fromm e Richard Sennett, ja haviam assinalado 0 cardter narcfsico das sociedades ocidentais, marcadas ) Caberia aqui uma objegdo: atinal, quem € este “individuo tipico”, seja ele habitante dos Estados Unidos ou pertencente a outras sociedades ocidentais urbanizadas? Conquanto reco nhegamos a pertinéncia de tal objecio, levando-se em conta o alto grau de generalizagio que a categoria “individuo tipico” encerra, pensamos que nfo retita a validade da nogio, Evi- PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47. 199939 Alexandre A. Ribeiro Wanderley pela invasao da esfera de sociabilidade ptiblica pela esfera do privado®. A novidade da argumentagdo de Lasch pode, a nosso ver, ser considerada a partir de dois aspectos, quais sejam: 1) devassamento da esfera privada, e 2) caracterizagao do narcisismo do individuo moderno como sendo de cunho. patolégico. Como veremos adiante, hé uma relagao direta entre esses dois aspectos. Atenhamo-nos por ora as palavras de Lasch, acerca do narcisismo patolégico encontrado em certas desordens de carater: “(...) 0s pacientes que comegaram a se apresentar para tratamento nos anos 40 e 50 muito raramente lembravam as neuroses clissicas que Freud descrevera com tanta profundidade. Nos tiltimos 25 anos, 0 paciente fronteirigo, que vai ao psiquiatra no com sintomas bem definides, mas com insatisfagdes difusas, tornou-se cada vez mais comum. Ele no sofre de fixagées ou fobias debilitantes, ou de con- versio de energia sexual reprimida em moléstias nervosas; ao invés, cle se queixa de “insatisfagio difusa, vaga, com a vida’, ¢ sente que sua ‘existéncia amorfa € fiitil e sem finalidade’, Ele descreve “senti- mentos de vazio futilmente experimentados, embora penetrantes, ¢ de depresstio’, ‘oscilagdes violentas da auto-estima’ ¢ ‘uma incapacida- de geral de progredir’. Ele ganha wma ‘sensagio de auto-estima au- mentada somente quando se liga a figuras admiradas e fortes, cuja aceitagdo ele deseja muito, e por quem precisa se sentir apoiado’. Embora empreenda suas responsabilidades cotidianas e chegue mes- mo a distingdo, a felicidade o ilude e a vida freqiientemente nao 6, para ele, digna de ser vivida” (Lasch, 1983: 62). Apoiado em psicanalistas como Kernberg, Kohut, Searles e outros auto- res kleinianos, Lasch sustenta que o narcisismo patolégico decorre da re- dentemente, a utilizagio de categorias semelhantes por autores como Lasch, Simmel e Dumont — para fazer mengAo apenas aos que ji foram citados neste trabalho — no implica 1 desconsideragéio dos mesmos quanto as especificidades dos individuos e das culturas nas quais estes se inserem. O¢orre que no hi como realizar um estudo sociolégico sem que se faga algum tipo de generalizagio. * Segundo Lasch, a concepedo de narcisismo utilizada por Sennett, em O declinio do homem publico: as tiranias da intimidade (1988), devolve ao conceite seu valor heuristico, que havia sido perdido em outros estudos que relacionaran narcisismo ¢ sociedades modernas. Para o autor, um dos méritos do livto de Sennett € 0 de retornat ao mito de Narciso € criticar a identificagao entre narcisismo € auto-interesse ou egofsmo. O narcisisimo deve ser pensado, para ambos, como defesa contra impulsos agressivos, em lugar de significar amor-préprio (Lasch, 1983: cap Th 40 PHYSIS: Rev, Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 1999 Narcisismo Contemporaneo: Uma Abordagem Laschiana gressio do ego, submetido a um superego arcaico, dominado pela pulsao de morte. Outro aspecto caracterfstico do quadro consiste na constituigio de um “self grandioso”, além da idealizag4o do objeto, sob a égide do narcisismo infantil. Essa dinamica intrapsiquica seria a causa de sintomas como ansic- dade, oscilagdo do humor, atencfo voltada para o sexo © para 0 corpo, exibicionismo, avidez por celebridade, inveja, frieza afetiva, destrutividade nas relagdes amorosas e humanas em geral, entre outros, Neste sentido, Lasch afirma: “Nao obstante suas ocasionais ilusdes de onipoténcia, o narcisista depende de outros para validar sua auto-estima, Ele ndo consegue viver sem uma andiéncia que o admire. Sua aparente liberdade dos lagos familiares e dos constrangimentos institucionais nao o impede de ficar s6 consigo mesmo, ov de se exaltar em sua individualidade. Pelo contrério, ela contribui para sua inseguranca, que ele somente pode superar quando vé seu ‘eu grandioso’ refletido nas atengdes das outras pessoas, ou ao se ligar Aqueles que irradiam celebridade, poder ¢ carisma. Para o narcisista, 0 mundo é um espelho, ao passo que o individualista 4spero 0 via como um deserto vazio, a ser modelado segundo seus proprios designios” (Lasch, 1983: 30-31). Lasch utiliza 0 conceito de narcisismo como um meio de compreender 0 impacto psicolégico das recentes mudangas sociais. O narcisismo presente nas sociedades contemporaneas seria uma defesa contra tensGes € ansieda- des da vida moderna. Como afirma o autor, “as condigoes sociais predominantes tendem (...) a fazer aflorar os tracos narcisistas presentes, em varios graus, em todos nés. Estas condigdes também transformaram a familia, que por sua vez modela a estrutura subjacente da personalidade” (Lasch, 1983: 76). Em iiltima andlise, a personalidade narcisista € fruto da persisténcia do narcisismo infantil na vida do adulto, resultante de identificagdes patogénicas na infancia. Segundo Lasch, 0 homem narcfsico tem sua origem nesse superego arcaico, que, por sua vez, € um corolario da desestruturagio da familia burguesa tradicional. Nisto consiste a relagfio entre individuo e socie- dade proposta por Lasch. Para tentar justificar a apropriagao do narcisismo patolégico, descrito pelos autores citados acima como um conceito que, PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 199941 Alexandre A. Ribeiro Wanderley extrapolando sua utilizagao clinica stricto sensu, se presta a uma espécie de diagnose social, Lasch faz referéncias As transformacées da estrutura fami- liar. Neste contexto, 0 autor dedica algumas paginas & discussdo acerca da hipertrofia da esfera privada postulada por Sennett: “Quando as relagées pessoais sio conduzidas sem outro objetivo além da sobrevivéncia psiquica, o ‘privatismo’ deixa de proporcionar um refiigio de um mundo sem coragio. Pelo contrério, a vida privada assume as prdprias qualidades da ordem social andrquica, para a qual se supe que ela proporcione refigio. E a devastagao da vida pessoal, no o recuo para o privatismo, que precisa ser criticada e condenada. O problema do movimento pela conscientizagio nao é que ele se destine a questdes triviais ou itreais, mas que proporcione solugées que impliquem autoderrota. Originando-se de uma insatisfagio pene- trante para com a qualidade das relagdes pessoais, ele aconselha as pessoas a nao fazerem investimentos muito grandes no amor e na amizade, a evitar dependéncia excessiva de outras pessoas © a vive- rem © momento — justamente as condigdes que criaram a crise das relag6es, em primeiro lugar” (Sennett, 1988: 50 - grifo nosso). Como se vé, Lasch critica a hipétese explicativa de Sennett para o narcisismo moderno. Este ndo seria resultado de uma hipertrofia da esfera privada, como sustenta Sennett. Ao contrdrio, seria justamente uma espécie de esfacelamento da vida privada, originada pela perda de uma demarcagio clara dos limites das fronteiras das esferas piblica e privada. De acordo com Sennett, antes do século XIX a sociabilidade nas sociedades ocidentais independia da intimidade. As relagdes impessoais em publico eram reguladas por convengées ¢ signos puiblicos compartithados. No século XIX, porém, as pessoas passaram a acreditar que as ages ptiblicas revelavam a persona- lidade intima do agente. O ideal romAntico da sinceridade e da autenticidade desvalorizou os cédigos sociais utilizados nos encontros interpessoais e des- truiu os limites entre a vida piblica e privada (Sennett, 1988: cap. VIII). Lasch estd de acordo com a critica de Sennett aos efeitos perniciosos da ideologia da intimidade, que fazem com que 0 mundo piiblico passe a ser visto como um espelho do eu. Entretanto, como assinalamos acima, nao concorda com a relagéio proposta por Sennett entre narcisismo e hipertrofia da esfera privada. Neste sentido, Lasch (1983: 39) faz mengfo a “lasciva curiosidade sobre as vidas privadas de pessoas famosas” e se refere aos 42 PHYSIS: Rev, Saide Cotetiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47, 1999 Narcisismo Contemporaneo: Uma Abordagem Laschiana escritos autobiogréficos como género literério que confirma que & precisa- mente a vida intima que nao pode ser levada a sério. Além de duvidar que o abandono das preocupagées politicas tenha redundado na maior qualidade da vida privada, Lasch sugere que a andlise de Sennett acaba por desconsiderar a necessidade de reforma social. Nas palavras do autor: “O conceito de Sennett de politica adequada como sendo a politica de egocentrismo compartilha com a tradigio pluralistica tocquevilleana, da qual ele evidentemente se origina, um elemento ideolégico préprio. ‘A tendéncia desta andlise € exaltar o liberalismo burgués como a nica forma civilizada de vida politica e a ‘civilidade’ burguesa como a tinica forma nao corrompida de conversagdo publica” (Lasch, 1983: 52). Algumas paginas adiante, Lasch acrescenta: “A despeito de sua idealizagao da vida piiblica do passado, o livro de Semnett participa da atual revolugo contra a politica — ow seja, a revolug&o contra a esperanga de usar a politica como um instrumen- to de mudanca social. (...) Sennett culpa o mal-estar contemporineo pela invasdo da esfera piblica cometida pela ideologia da intimidade. (..) Nossa sociedade, longe de favorecer a vida privada a custa da vida pliblica, torou cada vez mais dificeis de serem conguistadas amizades profundas ¢ duradouras, casos de amor ¢ casamentos. A medida que a vida social se torna cada vez mais hostil e barbara, as relagdes pessoais, que ostensivamente proporcionam alfvio para es- tas condigGes, assumem 0 cardter de combate” (Lasch, 1983: 54). Como vimos anteriormente, @ famflia burguesa tradicional, transformada pelas injungdes do capitalismo tardio, perde gradativamente sua fungao de “tefiigio no mundo sem compaixdo”. A “socializagaio da reprodugio” abala a autoridade dos pais na educagao dos filhos, tornando a familia cada vez mais dependente dos profissionais da satide. Para Marcuse, 0 superego desaparece com a auséncia da autoridade paterna nas sociedades modernas (Costa, 1986). Essa auséncia da mediagao da figura paterna seria respon- sdvel pela dificuldade de intemnalizagao de normas ¢ ideais sociais pelo individuo moderno. Contrario a esta posigdo, Lasch sustenta que o superego, ao invés de desaparecer, torna-se arcaico e punitivo, ¢ escreve: PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 2): 31-47, 199943 Alexandre A. Ribeiro Wanderley “A medida que as figuras de autoridade na sociedade moderna per- dem sua ‘credibilidade’, o superego nos individuos cada vez mais tem origem nas primitivas fantasias infantis sobre seus pais — fantasias carregadas de édio sédico — ¢ nao de ideais de ego interiorizados, formados pela experiéncia posterior com modelos amados ¢ respeita~ dos da conduta social” (Lasch, 1983: 33). Consideragées Finais Curiosamente, as criticas que Lasch enderega a Sennett, no sentido de consideré-lo um defensor saudosista da familia burguesa, se assemelham a0 tratamento que o historiador recebe por parte de alguns de seus criticos. Quanto a estes, pensamos que a acusagdo de saudosismo se justifica, em parte, pela falta de clareza com que Lasch se refere a sua proposta de reforma social, Em A cultura do narcisismo, 0 autor sugere a criagio de “comunidades de competéncia”, como alternativa as condigées impostas pelas sociedades de consumo. Essas comunidades consistiriam na criagao de miicleos associativos por adultos leigos que, através da apropriagado do co- nhecimento cientifico e da discussio critica, encaminhariam a resolugao dos problemas da comunidade, Dessa forma, evitar-se-ia a dependéncia aos tecnoburocratas, bem como o autoritarismo familiar do passado. Costa (1986), apesar de nao considerar Lasch um saudosista, critica a nogdo de narcisismo patolégico como patognoménico da sociedade america- na. Para o psicanalista, afirmar que a cultura americana € patogénica, uma vez que torna os individuos portadores de cardter patolégico, é incorrer no equivoco de homogeneizar o psicolégico € 0 patolégico, bem como confundir trago étnico e trago psicopatolégico. Para o autor, seria 0 mesmo que dizer que os americanos sdo doentes s6 por serem americanos. Citando Devereux, Costa lembra que 0 traco étnico € 0 produto do processo de socializagio, enquanto o traco psicopatolégico corresponderia a um disturbio nesse pro- cesso. Toda cultura constréi um tipo psicolégico ideal, parte integrante da identidade étnica de todo sujeito. O tipo narcisista corresponde ao tipo psi- colégico ideal erigido pela sociedade americana. Neste sentido, a persona- lidade narcisica americana nfo pode ser patolégica. A cultura americana pode, isto sim, funcionar como estimulo psicopatogénico, no sentido de impor a certos individuos um desempenho psicolégico inalcangdvel. A dissimetria entre as exigéncias do tipo psicoldgico ideal e os meios adequados ao cum- ptimento dessas exigéncias seria responsdvel pela resposta patolégica. 44 PHYSIS: Rev, Saiide Coletiva, Rio de Faveiro, 9(2): 31-47, 1999 Narcisismo Contemporineo: Uma Abordagem Laschiana O tipo ideal referido por Costa estaria, na cultura americana, associado ao culto da celebridade —- cercada de encantamento e excitagéo —, pro- movido pelos meios de comunicagio de massa, Segundo Lasch (1983: 43- 44): “a midia (...) intensifica os sonhos narcisistas de fama e gléria, enco- raja 0 homem comum a se identificar com as estrelas € a odiar 0 ‘rebanbo’, ¢ torna cada vez mais dificil para ele aceitar a realidade cotidiana. (..) A modema propaganda de mercadorias ¢ da boa vida sancionou a gratificagio do impulso. (...) Contudo, essa mesma pro- paganda tomou insuportiveis 0 fracasso ¢ a perda Ainda para Costa, a anilise de Lasch aponta para um fator determinante na compreensio das sociedades ocidentais contemporaneas, a saber: a pro- mogao do consumo como sucediineo do protesto e da rebelido. A propagan- da desempenha af um papel central. Se antes a propaganda se limitava a anunciar um produto, exaltando suas qualidades, ela passa a criar seu proprio produto: o consumidor eternamente insatisfeito, Em consonancia com Lasch, Costa sustenta que o narcisismo moderno ndo deve ser considerado como mero hedonismo, mas sim como um narcisismo regenerador, defesa dos individuos ante a tirania dos ideais de beleza e juventude etermas propagados pela midia em geral. Muitas sdo as possibilidades de leitura critica dos trabalhos de Lasch. Acreditamos que, para além de possfveis inconsisténcias em tal ou qual momento de sua obra, seus argumentos sao, de modo geral, vigorosos € instigantes. Parece-nos que os dias de hoje confirmam o diagnéstico de Lasch. No mundo globalizado, que pretende aposentar palavras como nage ou Estado, o recuo da politica é intensificado. Convictos de que o neoliberalismo é inelutavel, os individuos se concentram mais do que nunca no proprio bem-estar. “O cogito cartesiano ‘penso, logo sou’ parece transformar-se em ‘goz0, logo sou”” (Costa, 4986: 118 — grifo nosso). Os argumentos de Lasch acerca do narcisismo contemporaneo como um fend- meno social ¢ cultural nos ajudam, em tltima andlise, a langar luz sobre a complexa relagio entre individuo e sociedade, questo inerente a todo pen- samento sociolégico. Gostarfamos de finalizar este trabalho com as palavras de Calligaris. Referindo-se ao psicanalista como xami modemo, Calligaris assevera a necessidade de se pensar na dimensdo psicolégica como inextrincavelmente ligada & dimensdo social, o que nos faz reafirmar a im- PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9@2): 31-47, 199945; Alexandre A. Ribeiro Wanderley portincia da abordagem multidisciplinar na compreensiio das questdes rela- tivas 4 condigao humana: “A modemidade ocidental sé tem problemas psicoldgicos. Aliés, ela 08 inventou. Nao é diffcil entender como e por qué. Somos filhos de uma cultura na qual 0 individuo vale mais do que a comunidade e suas regras. Aqui, o lugar e a funco preenchidos pela tradiciio sitio ocupados por probleméticas subjetivas e, em wltima instincia, psico- Iogicas, Qualguer impasse ou dificuldade de convivéncia, qualquer imperfeigao (¢ sé hé imperfeigdes) relacional é prioritariamente da conta da subjetividade de cada um. (...) Como nfo constatar a grande novidade moderna, que comanda a transformagio da familia nos dois Ultimos séculos, sobretudo nas ditimas décadas, em uma instituigo regrada néio mais pelas necessidades da comunidade, mas pelos afe- tos de seus membros, ou seja, pelo amor? E portanto, tio forte e tio frdgil quanto um sentimento? Como ndo entender que nossas dificul- dades proverbiais com a educagdo das criangas também sao um efeito imediato dessa nova regra da instituigio e da vida familiar, que € 0 amor? Por isso, quando 0 xama moderno acha que atende a problemas intimos, cle est4 alimentando uma estranha ilusio. Na verdade, ele se ocupa dos problemas sociais de nosso tempo. Pois o foro intimo, em uma cultura individualista, é 0 lugar (sofrido, inevitavelmente} onde se decidem as realidades sociais, Do mesmo jeito, 0 antropdlogo da modernidade alimenta uma iluséo: ele pode achar que descreve a (movediga) realidade de fatos sociais. Na verdade, ele € um psicélogo € um psicopatélogo, pois 0 que ele descreve é uma sociedade onde a cada sujeito € incumbida a tarefa de sustentar ou criticar, aderir ou rejeitar, se integrar ou se afastar, obedecer ou resistir, O fato social é, de antemao, um drama interno ao sujeito” (Calligaris, 1996: 5-6). Referéncias Bibliograficas CALLIGARIS, ©. Crénicas do individualismo cotidiano. Sic Paulo: Atica, 1996. COSTA, J. F. Violéncia e psicandlise. 2* ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. DUMONT, L. 0 individualismo: uma perspectiva antropoldgica da ideologia 45 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9¢2): 31-47, 1999 Narcisismo Contemporineo: Uma Abordagem Laschiana moderna, Tradugio por Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. LASCH, C, A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperancas em Declinio. Tradugéo por Emani Pavaneli. Rio de Janeiro: Imago, 1983. . O minimo eu: sobrevivéncia psiquica em tempos dificeis. Tradugio por Jo’o Roberto Martins Filho. 4* ed. Sdo Paulo: Brasiliense, 1987. REIS, BE. Reflexées sobre 0 homo sociologicus. Revista Brasileira de Ciéncias Sociais. Rio de Janeiro, v. 4, n. 11, s/p, out, 1989. RENWICK, M. Democracy’s death rattle. Capturado na Internet, s/d. www2.canoe.com/JamBooksRewiew. SENNETT, R. O declinio do homem piiblico: as tiranias da intimidade. Tradugio por Lygia Araujo Watanabe. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1988. SIMMEL, G. A metropole ¢ a vida mental. In: VELHO, 0. G. (org.). O fendmeno urbano Tradugio por Sérgio Marques dos Reis. 3* ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. VELHO, Gilberto. Individualismo ¢ cultura: notas para uma Antropologia da sociedade contempordnea, 2° ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. PHYSIS: Rey. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(2): 31-47,1999 47

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