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WwWwWwW.ILCP.ORG.BR POLEMICA A que heran¢a os comunistas devem renunciar? Anita Leocddia Prestes Ao nivel da atividade politico- partidaria, 0 que a pratica tem demonstrado é que a democracia permaneceu ausente da vida interna do Partido Comunista Brasileiro. Indiscutivelmente, vivemes um momento privilegiado., Apés longos anos de terror fascista, de repressdo policial e de total cercea- mento de qualquer debate democratico, criaram-se condigées favora- veis — sob a pressio do movimento democratico ¢ de oposi¢ao a dita- dura — para que os comunistas e todos aqueles que se interessam pe- los destinos do socialismo em nossa patria iniciem um processo fecun- do de discussao ¢ questionamento da orientacao politica das ‘‘esquer- das’, em geral, ¢ do Partido Comunista Brasileiro, em particular. Nesse sentido, constitui ogo contribuigao ao debate a pu- blicagao recente do livro ingitulado PCB: vinte anos de politica, 1958-1979 (Documentos) fontene alguns dos principais docu- mentos do PCB elaborados nds Gltimos vinte anos. Contudo, é indis- pensavel que essa iniciativa se estenda aos documentos anteriores des- ¢ partido, cuja histéria, como & sabida, tem inicio no ano de 1922, fora vez que o desconhecimento do seu passado tem sido uma das Tausas principais e terreno fértil para que floresgam anilises superfi- ciais e interpretacées falsas e manipuladas da politica do PCB em. di- ferentes periods] 1. PCB: vinte anos de politica, 1958-1979 (Documentos), Livraria Editora Ciéncias Humanas, Sao Paulo, 1980. Assim, no momento, encontram certa ressonancia as[teatativas insistentes de erigir em dogma, ou em verdade inquestianavel, a atual linha politica do PCB, expressa em alguns dos seus pripcipais documentos do periodo 193.197 fl é evidenciado, poresemlo. em matéria publicada no semanarid Voz da Unidade 2, assingda por David Capistrano Filho, onde os documentos citados sao considera- dos um ‘‘verdadeiro patriménio dos :comunistas. brasileiros’’ ¢ a “‘Declaracio de Marco de 1958'’a “‘manifestacao através da qual a di- recao central do PCB iniciou sua longa caminhada em diregdo a uma ampla politica de massas, inserida ativamente na realidade concreta do pais’’. Outros autores, como Marco Aurélio Nogueira, no preficio ao livro supracitado, afirma que a ‘‘Declaracdo de Marco de 1958" re- presenta ‘‘o inicio de uma nova fase na vida do Partido”’ s, ¢ 0 escti- tor Leandto Konder fefere-se a esse documento como uma ‘‘au- tocritica profunda”’ « Piame de tais colocagées, feitas com o empe- nho evidente de tentatjustificar e defender uma determinada orien- tacdo politica, cabe argiiir se nfo estariam seus autores contribuindo parg uma visio manipulada e, portanto, falsa dos fatos € da realida- le. 4A mesmo tempo, temos que concotdar com Leandro Konder, uando este, no artigo intitulado ‘‘PCB, democracia ¢ eurocomunis- mo” 5, rejeita a identificacio, que vem sendo feita por alguns, de certas posicées politicas da atual diregdo do PCB com as teses do cha- mado ‘‘curocomunismo’’. Certamente, nao estamos diante de um desvio ‘‘eurocomunista’’ no PCB. Como diz L. Konder, ‘‘existe toda uma histéria muito significativa de aprofundamento da reflexdo em torno da democracia, no interior mesmo do PCB e anterior ao ‘euro- comunismo’’’ «, Entretanto, 0 autor — defensor confesso da atual li- nha politica do PCB — procura apresentar suas principais teses como fruto de uma ruptura com o passado desse partido, que teria ocorrido com a aprovacao da *‘Declaragio de Marco de 1958’’. Conrudo, os argumentos expostos tanto em seu aftigo, come no livro A democra- 2. David Capistrano Filho, ‘Vinte anos de PCB", in Voz da Unidade, n° 3, 17/04 23/04 de 1980, p. 15. 3, PCB: vinte anos de politica, op. cit., p. 9. 4, Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas no Brasil, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1980, p. 104; Leandro Konder, “PCB, democracia ¢ eurocomunismo’’, in Oitenta, n° 2, L& PM Editores, Porto Alegre, janeiro! 1980, p. 91. 5. Idem, ibidem. 6. Idem, ibidem, p. 90. 198 ay cia ¢ os comunisras no Brasil 7, nao levam 4 comprovacio dessa opi- niao, ficando, lamentavelmente, na superficialidade dos fatos. No nosso entender, uma anialise séria da politica atual do PCB e das mudangas reais ocorridas em 1958 exige o estudo aprofundado de toda a histéria desse partido, de seus principais documentos desde a sua fundagao em 1922 e da sua atividade pratica. Sem divida, a his- tétia do PCB ainda esta por ser escrita. Mas existem — ¢ poderiam ser publicados — seus principais documentos, que podem e devem ser analisados antes de se chegar.a conclusGes apressadas e dirigidas num sentido politico definido: [in transformar a atual orientagao politica do PCB — aprovadaem seus 5° e 6° Congressos — em dog- ma inatacavel, que nao caberia questionat, nem revisar. Estatiamos diante de um patriménio, que, no maximo, poderia ser aperfeigoa- do, jamais revisto ou fejeitado. Preferimos seguir outro caminho: tentar descobrir as principais concepgGes que estiveram presentes nos documentos dos periodos fundamentais da vida do PCB e verificat sua cotrecio. Isso nos perm: tira responder 4 pergunta que nos colocamos: a que heranga isa] renunciar para poder avanc¢ar rumio aos nossos objetivos socialistas?|O. que houve na histéria do PCB de fundamentalmente errado, precisa ser rejeitado e corrigido, como condicao para sair da crise atual aponrada na ‘ ‘Carta aos Comunistas’’ « de Luiz Carlos Prestes? O dogmatismo — Desde a sua fundacao, o PCB estaria marcado pelas condigées historicas do pais, dentre as quais merece destaque 0 seu atraso econémico, social, politico ¢ cultural. O débil conheci- mento do marxismo, assim como da realidade brasileira, que 0 parti- do se propunha a transformar, teria que conduzir seus dirigentes 4 copia de modelos ¢ esquemas elaborados em outros paises e para si- tuagées diferentes. Era 0 inicio de toda uma tradigao de acentuado dogmatismo na elaboragdo da politica do PCB. Como diria mais tarde Astrojildo Pereira: ‘‘Teoria revolucionaria significava, para nds, aplicar — mecanicamente, livrescamente — a linha politica e a expe- riéncia tevolucionaria de outros povos’’.». Se no 1° Congresso do PCB nao foi aprovada nenhuma resolugio sobre a situag4o nacional, nenhuma anilise sobre o Brasil, em seu 2° Congresso, realizado em 1925, as teses sobre a situagao politica nacio- nal baseavam-se na concepsio ‘‘agrarismo—industrialismo'’, formu- Jada inicialmente no livro de Otavio Brandio Agrarismo ¢ industria ] 7. Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas no Brasil, op. cit 8. Luiz Carlos Prestes, Carta aos Comunistas, Ed, Alfa-Omepa, So Paulo, 1980- 9. Astrojildo Pereira, Formagio do PCB. Ed. Vitéria, Rio de Janeiro, 1962, p, 140 199 lismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de Sao Paulo ¢ a guer- ra de classe no Brasil, escrito em 1924. 1 Esta “‘primeira tentativa fei- ta no Brasil de analise marxista da situagZo nacional’’, na\palavras de Astrojildo Pereira 11, era também um exemplo de apli dogma- tica € mecanica do pensamento de Lénin, de suas idéias ‘&xpostas no Impetialismo, fase superior do capitalismo 12. Assim, “‘a uta entre o capitalismo agrario e semifeudal e o capitalismo industrial moderno"’ constituia ‘‘a contradicao fundamental da sociedade brasileira apés a Repiiblica’’ 13. O imperialismo inglés apoiava o agrarismo, ¢ o impe- jalismo americano o industrialismo. 11 Como conseqiiéncia, a politi- ca dos comunistas preconizava ‘‘a terceira revolta ¢ a frente tinica do proletariado, da pequena burguesia urbana e da grande burguesia industrial, contra o imperialismo ¢ 0 governo dos grandes proprieta- rios rurais feudais”’ 15. Essas teses, que hoje se parecem extremamente esdrixulas, refle- tiam o dogmatismo, que viria a imperar em toda a histéria do PCB, sua acentuada tendéncia a copiar modelos estrangeiros, a enquadrar a realidade nacional dentro de esquemas importados. Essa tendéncia torna-se mais evidente nas resolugdes do 3° Con- gtesso do PCB, realizado nos tltimos dias de 1928 ¢ primeiros dias de 1929, Em suas teses politicas dizia-se que a economia brasileira “‘per- tence ao tipo de economia agraria, semifeudal, semicolonial’’ «. E nas resolugdes sublinhava-se que ‘‘a situacao politica e sdcio- econémica do Brasil é determinada pelos seguintes fatores principais: 1) a dominacao imperialista; 2) a economia agratia; 3) o problema da terra; 4) a revolugao democratico-burguesa’’. Por isso, a primeira eta- pa da revolucao deveria levar 4 ‘‘solugao do problema agrario através do confisco da propriedade latifundiaria, da liquidagdo das sobrevi- 10. Otavio Branddo, Agrarismo ¢ industrialismo: cnsaio marxista-leninista sobre a re- volta de Sdo Paulo ¢ a guerra de classe no Brasil, 1926, citado por John W.. Foster Dul- les, Anarquistas ¢ Comunistas no Brasil, Ed. Nova Frontcira, Rio de Janeiro, 1977, p. 222, IL. Astrojildo Pereira, *'Pensadores, criticos e ensaistas’’, em Rubens Borba de Morais © William Berrien, eds., Manual bibliogrifico de estudos brasileiros, p. 656, citado por John W, Foster Dulles, op. cit., pp. 222 © 248. 12, Ver John W. Foster Dulles, op. cit., p. 222; ¢ Oravio Brandio, Combates ¢ bata- thas: memérias, t. 1, Ed. Alfa-Omega, $40 Paulo, p. 289. 13. Astrojildo Pereira, op. cit., p. 66. 14. Idem, ibidem, p. 68. 15. Otavio Brandao, op. cit., pp. 297-298. 16. Astrojildo Pereira, op. cit., p. 116. 200 véncias semifeudais ¢ da emancipacio da dependéncia imperialista’’ " Quanto ‘‘a pressao exercida pelo imperialismo sobre a politica in- terna’’, afirmava-se: ‘‘Seculares eram as ligagdes de dependéncia da burguesia agraria e conservadora do Brasil em relacdo ao imperialis- mo britanico; dai que o imperialismo norte-americano, como primei- fa etapa em seu plano de penetracao, tenha procurado apoiar-se na burguesia industrial, pretensamente liberal, mais jovem, mais ambi- ciosa, mais ousada. O agravamento dessa dupla e contraditéria pres- sdo externa nfo podia deixar de acentuar, como acentuou, como acentua cada vez mais, os antagonismos das forgas sociais internas, aumentando a exploracdo ¢ a opressio das massas laboriosas em ge- ral. Tal a causa primordial dos descontentamentos populares acumu- lados nestes tiltimos anos ¢ que explodiram nas revoltas de 5 de ju- Tho" 1s, A partir de semelhante esquematismo chegava-se a formulacéo da “‘teoria da terceira revolta’’; uma ‘“‘terceira explosao revoluciona- tia'’ que seria a continuacdo mais ampla e radical dos movimentos de 22 ¢ 24, A esta perspectiva devia ajustar-se a posicao do PCB: ‘‘Toda a tatica do Partido Comunista deve, portanto, subordinar-se a esta etapa estratégica de mobilizacdo das massas em vista do movimento que se prevé. O Partido Comunista devera colocar-se 4 frente das massas, a fim de conquistar, por etapas sucessivas, nao s6 a direcao da fracdo proletaria, mas a hegemonia de todo o movimento’’. 19 [ Quando nos referimos ao dogmatismo, temos em vista a aplica- cao a realidade brasileira dos esquemas elaborados pela Internacional Comunista, particularmente as resolugdes do VI Congresso da IC, tealizado em 1928. Suas teses sobre os paises coloniais e semicolo- Niais, entre os quais sao incluidas as nagGes latino-americanas, pas- sam a orientar a atividade do PCB. Ao consultar-se as ‘‘Teses sobre o movimento revolucionario nas colénias ¢ semicolénias’’ do VI Con- gresso da IC, verifica-se a semelhanca de suas andlises com as apresen- tadas nos documentos do 3° Congresso do PCB e, posteriormente, em outras resolugdes deste partido. Nas ‘‘Teses’’ dizia-se, por exem- plo: ‘‘Na América Latina os comunistas devem tomar parte ativa ¢ getal no movimento revolucionario de massas dirigido contra o re- 17. “'La Cotrespondencia Sudamericana’’, 1929, N° 8, p. 24, citado por B. I, Koval, Hist6ria do proletariado brasileiro (1857-1967). Ed. Nauka, Moscou, 1968, pp. 184 184 (edicao em russa). 18. Astrojildo Pereira, op. cit., p. 118 19. Idem, ibidem, p. 119. 201 gime feudal e contra o imperialismo, inclusive 14 onde este movi- mento ainda esteja sob a ditecao da pequena burguesia. Para isso, os partidos comunistas nao devem se subordinar, em nefhuma hipéte- se, a seus aliados tempordrios. Ao mesmo tempo que’es ‘partidos co- munistas lutam pela hegemonia no movimento revolcionario, de- vem esforcar-se em primeiro lugar pela independéncia ‘politica e or- ganizativa do seu partido e trabalhar para que o Partido Comunista sé converta no partido dirigente do proletariado"’. 2 Da mesma forma, é interessante destacar algumas das principais © colocagées do ‘‘Projeto de teses sobre 0 movimento revolucionario da América Latina’’, datado de 1930: ‘‘A América Latina é, no seu con- junto, um dos mais importantes campos de batalha do imperialismo ianque ¢ do imperialismo britanico. Muito rapidamente, o primeiro conquista a hegemonia e faz da América Latina um vasto dominio colonial. O carater semicolonial dos paises da América Latina, apesar de sua independéncia politica formal mais ou menos grande, é, por conseguinte, evidente’’. (...) ‘“A classe dominante em quase todos os paises da América Latina, qualquer que seja a forma politica do po- der, é’’ (...) “‘a classe dos grandes proprietarios de terras, a servico ¢ em estreita ligagio com o imperialismo britanico ou norte- americano’’... ‘Em alguns paises onde se desenvolveu uma burgue- sia nacional industrial independente da classe dos grandes proprieta- rios de terras (Chile, Argentina, Brasil), esta classe nao é, absoluta- mente, independente do imperialismo. Sua luta contra os grandes ptoprietarios de terras € sempre a expressao da luta do imperialismo ianque contra o imperialismo britanico.”’ (...) ‘‘O desenvolvimento industrial dos paises da América Latina, modificando sua estrutura econémica e social, desenvolvendo novas e profundas contradicées, criando maior instabilidade nas relagées politicas e sociais, nao lhe modifica 0 carater semicolonial.”’ (...) ‘‘Pelas condices histéricas nas quais se desenvolve, por seu contetido de classe ¢ por seus fins, 0 mo- vimento revolucionario da América Latina pode, portanto, ser carac- terizado, em geral, como um tipo democratico-burgués nos paises se- micoloniais onde dominam o problema agratio ¢ o problema antiim- perialista.’’ (...) ‘'Na fase democratico-burguesa do movimento re- volucionario da América Latina, o momento mais importante, 0 mo- mento decisivo para a realizagio das tarefas da_revolucao 20, "'Tesis sobre el movimiento revelucionario en las colonias y semicolonias" in VI Congreso de la Internacional Comunista, primeira parte (tesis, manifiestos y fesoluciones). Ed. Cuadernos de Pasado y Presente, 66, México, 1977, p. 238. 202 democratico-burguesa em si mesma, e para a sua ulterior transforma- do em uma revolu¢io proleraria é, portanto, o momento em que, no movimento de massas, a hegemonia passa das maos da pequena bur- guesia para as maos do proletariado ¢ do seu partido comunista’’. 21 No que concerne ao Brasil, é ilustrativo consultar a ‘‘Resolucao- Comentario do Sectetariado da IC para a América Latina’ de janeiro de 1930, aceita pelo Comité Central do PCB, que incorporou suas te- ses principais 4 ‘‘Resolucao do Bureau Politico do Comité Central do PCB”’ de 1932. Dizia-se nesse documento: ‘‘As préprias caracteristi- cas da crise brasileira demonstram que os problemas mais agudos, os mais sentidos pelas massas trabalhadoras so: 1) feudalismo e explo- ragdo escravagista que a ele se liga; 2) os que provém do carater semi- colonial do pais, de sua exploragio pelo imperialismo, da luta que eles travam para adquirir-lhe o monopdlio; 3) os que nascem da dita- dura politica dos grandes proprietarios de terras de café, da repressio crescente do governo contra as massas trabalhadoras, etc. Os fins da revolucao brasileira serao, pois, desde o inicio, orienta- dos para a aboligdo da grande propriedade de tetra feudal, para a li- bertacio do pais do imperialismo, para a criacao de uma larga demo- cracia de massas trabalhadoras.|A luta anticapitalista s6 se desenvol- vera no curso da luta contra o feudalismo ¢ o imperialismo, quando aparecer claramente as massas trabalhadoras que os capitalistas brasi- leiros defendem os grandes,proprietarios de terras ¢ o imperialismo, aos quais estio ligados por milhares de lacos econdmicos, politicos ¢ sociais. Deduz-se, pois, que o Brasil esta diante de uma revolugio de tipo democratico-burgués, ao qual se prende o carater especial, fortemen- te antiimperialista ¢ rapidamente anticapitalista’’. 22 O profundo desconhecimento da realidade latino-americana ¢ das particularidades do capitalismo no Brasil levava o PCB 4 accitacao passiva das tesesda IC, que, por sua-vez, estavam impregnadas de dogmatismos ¢ esquematismos. Em primeiro lugar, deve-se destacar que nas teses da IC sobre a América Latina adiantavam-se analises e conclusées que haviam sido claboradas tendo em vista os paises asiaticos ¢ africanos, Ocorria, pot- tanto, uma abstragio essencial relativa ao nivel de desenvolvimento capitalista ja atingido naquela época por diversas nagées latinoameri- 21, Edgard Carone, A*Segunda Reptblica (1950-1954), Bd, Difel, So Paulo, 1978, pp. 332-346. 22. Citado por Cid Silveira, ‘Teoria marxista da revolugio brasileira’, in Revista Civi lizacao Brasileira. Ed. Civilizagdo Brasileira, 0” 8, julho/ 1966, Rio, pp, 144-145. 203 canas. A América Latina era classificada em sua totalidade como se- micolonial; quando muito, o Brasil e a Argentina eram considerados “paises dependentes com germes da indastria e, 4s vezes, com um desenvolvimento industrial consideravel’’., 2s Como asgitgla em seu livro Politica e trabalho no Brasil, Paulo Sérgio Pinheiro, \*Pessalta-se o peso do feudalismo, mas nao se consegue perceber as enigéncias as quais se submete o capitalismo, obrigado a preservar em alguns seto- tes um sistema de relagdes de producio aparentemente ‘ndo- capitalista’ capaz de assegurar uma exploracao extensiva da mao-de- obra. Em outras palavras, ha dificuldade em perceber a dominacio do modo de produgao capitalista na formagdo social latino-americana sob a configuracao das caracteristicas especificas ali assumidas: a utili- zacao de indicadores calcados nas analises das formagées sociais euro- péias levara a concluir pela dominacao do feudalismo, do pré- capitalismo, de situagdes semicoloniais”’. 2+ Em segundo lugar, as andlises da IC referentes 4 América Latina partem de um esquema simplista, em que os acontecimentos nesses paises sdo sempre interpretados como um reflexo direto das conttadi- gGes existentes entre os imperialismos inglés e americano, contradi- gGes estas que, sem divida, tinham uma importancia determinada, que eta, entretanto, absolutizada nas interpreragdes da IC (na época voltada para a luta contra o perigo de guerra mundial proveniente do acitramento das contradigées interimperialistas). O trecho seguinte, publicado na ‘“Correspondéncia Internacional’, reflete claramente essa visdo: ““Torna-se claro que a derrubada de Washington Luis, a aniquilacio da hegemonia dos paulistas, representa objetivamente o reforco das posigées dos Estados Unidos ¢ um enfraquecimento da- quelas da Inglaterra’. 25 Em terceiro lugar, as teses da IC partiam de uma assimilacao dog- matica ¢ mecinica das concepcdcs leninistas sobre a Riissia czatista ¢ o catater da revolugdo neste pais. A ‘‘andlise concreta da situacdo con- creta”’ levou Lénin a afirmar que a monarquia russa era o esteio dos latifundiarios feudais, da velha burocracia e do generalato x ¢, por- 23. Ver ‘Programa de la Internacional Comunista’’ in VI Congreso de la Internacional Comunista, op. cit., p. 287 24, Paulo Sérgio Pinheiro, Politica e trabalho no Brasil, Ed. Paz ¢ Terra, Rio de Janci- ro, 1975, p. 156. 25. J. Majorski, ‘La guerra civile au Brésil et la crise économique mondiale’’, in Corre- pondance Internationale, n° 95, 1930, pp. 1223-1224, citado por Paulo Sérgio Pinhei- ro, Politica e trabalho no Brasil, op. cit., p. 166. 26. Ver V. 1. Lénin, “Cartas desde lejos"’, in Obras Escogidas, t. 2. Ed. Progreso, Mos- 4, 1975, p. 25. 204 tanto, um enttave para o ‘‘desenvolvimento vasto ¢ rapido, europeu ¢ ndo-asiatico, do capitalismo'’27. Lénin dizia que ‘em paises tais co- mo a Rassia, a classe operaria sofre menos em conseqiiéncia do capi- talismo do que pela insuficiéncia de desenvolvimento desse filtimo. Por isso, a classe operaria esta absolutamente interessada no mais vas- to, mais livre, mais rapido desenvolvimento do capitalismo. E indu- bitavelmente benéfica para a classe operaria a eliminacio de todas as velhas reminiscéncias que entorpecem o desenvolvimento amplo, li- wre ¢ rapido do capitalismo. A revolugdo burguesa é, exatamente, a revolucdo que mais decididamente varre os restos do que é antiqua- do, as reminiscéncias do feudalismo (as quais pertencem nao s6 4 au- tocracia, mas também 4 monarquia) ¢ garante, de modo mais com- pleto, o desenvolvimento mais amplo, mais livre, mais rapido do ca- pitalismo’’. 28 Ao mesmo tempo, Lénin mostrava que nas condigées da Rassia do inicio do século KX, na época do imperialismo, a burguesia s6 era a favor da revolugado de uma ‘‘forma inconseqiiente, interesseira ¢ co- varde’’, 20 E a dinica classe capaz de levar a revolugao burguesa até 0 fim era o proletariado em alianca com os camponeses. Essa é a razao do car4ter democratico-burgués da revolugao ¢ da necessidade do proletariado alcancar a hegemonia no processo revolucionario para assegurar seu prosseguimento rumo 4 revolucao socialista. As tendéncias dogmaticas tanto na IC, como no PCB, conduzi- ram 4 uma transposicao mecanica das idéias de Lénin para uma reali- dade inteiramente distinta, como a da América Latina, em geral, ¢ do Brasil, em particular. Em vez de partir-se do estudo do processo real do desenvolvimento capitalista nesses paises, passava-se a identi- ficar a situagao no campo com um suposto feudalismo, que, junta- mente com o imperialismo, desempenhariam o papel de entraves a0 desenvolvimento do capitalismo. Enquanto o capitalismo encontrava novas formas de desenvolver-se nas condicdes de dependéncia do im- perialismo e de manutencio de determinados tipos de relagdes de produc&o ndo-capitalistas, considerava-se que nas semicolénias era necessario realizar a revolugdo agraria ¢ antiimperialista — que seria a forma concreta da revolucdo democratico-burguesa, sob a hegemonia da classe operaria — para assegurar o desenvolvimento capitalista li- vre e independente nesses paises. 27. V. 1, Lénin, Duas cétieas da social democracia na revolugdo democnatica, Ed, Calvi- io de Janeiro, 1945, p. 73. lem, pp. 75-76. lem, p. 152. 205 [ Tratava-se, portanto, de uma falsa visao estratégica da revolugao, uma vez que nao resultava da andlise concteta das contradigGes reais presentes na formacio social brasileira ou de outros paises latino- americanos. O desconhecimento das particularidades do desenvolvi- mento capitalista em paises dependentes do imperialismo como o Brasil, onde a dominacao imperialista nao s6 nado representava um ~ entrave ao capitalismo, como pfopiciava seu desenvolvimento dependente, conservando e utilizando para isso estruturas anteriores do tipo pré-capitalista — nesse sentido hoje ha toda uma série de es- tudos de diversos autores, como Florestan Fernandes, Fernando Hen- riaue Cardoso, Francisco de Oliveira, dedicados a andlise das carac- teristicas do capitalismo dependente so — levava 4 separacao mecani- ca entre a luta antiimperialista ¢ a luta anticapitalista. Pretendia-se realizar uma revolucao de libertacgao nacional — a etapa democratico- burguesa —, em que fossem liquidados os restos feudais ¢ a domina- cio imperialista ¢, assim, criadas as condigées para um desenvolvi- mento capitalista auténomo. Deixava-se de perceber que este esque- ma era impraticavel e que a luta antiimperialista tinha um conteido marcadamente anticapitalista, uma vez que o capitalismo possivel | em paises como o Brasil é 0 capitalismo dependente ¢ associado aos © monop6lios estrangeiros. Liquidar a dominacao imperialista signifi- ca, portanto, dar um golpe de morte no capitalismo; jamais contri- buir para o seu desenvolvimento, ainda por cima auténomo. Essa viséo estratégica errénea tem um contetido de direita na me- dida que se propde um objetivo j4 ultrapassado pelo prdéprio processo de desenvolvimento histérico no Brasil: desenvolver o capitalismo. (Na Rassia czarista e feudal, realizar a revolugdo burguesa para de- senvolver o capitalismo era uma tarefa progressista, como Lénin sou- be mostrar.) No Brasil, a revolugio burguesa possivel nas condicées hist6ricas desse pais deu-se num processo distinto das revolucées bur- 30. Ver, por exemplo: Florestan Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Ed. Zahar, Rio de Janciro, 1975; Florestan Fernandes, A revalugao burguesa no Brasil (Ensaio de interpretacdo sociolégica). Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1975; Florestan Fernandes, Circuito fechado, Ed, Hucitec, Sao Paulo, 1976; Fernando Henrique Cardoso ¢ Enzo Faletto, Dependéncia ¢ desenvolvimento na América Latina fensaio de interpretacao sociol6gica), Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1975; Fernando Hen- tique Cardoso, O modelo politico brasileiro. Ed. Difusio Européia do Livro, $30 Pau- lo, 1972; Fernando Henrique Catdoso, Autotitarismo ¢ democratizacdo. Ed. Paz ¢ Terra, Rio de Janeiro, 1975; Francisco de Oliveira, “A economia brasileira: critica 4 ra- vio dualista’’, in Estudos Cebrap, n° 2. Ed. Brasileira de Ciéncias Ltda., Sao Paulo, outubro/ 1972; Francisco de Oliveira, A economia da dependéncia imperteita, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1977 206 guesas nos paises desenvolvidos, como bem 0 revela o socidlogo Flo- restan Fernandes. 3: A tarefa do Partido Comunista consiste, portan- to, em encontrar o caminho para a revolucio socialista, partindo das particularidades concretas do capitalismo dependente que se formou nesse pais. Nao se trata de romper com a dependéncia para desenvol- ver o capitalismo, mas de, rompendo com a dependéncia, golpear 0 capitalismo e avangar rumo 4 revolugio socialista. Uma concepgao estratégica falsa ¢ de direita teria que conduzir na pratica a uma politica de conciliagdo de classes, de subestimagao do trabalho junto as grandes concentracées operarias e de debilitamento organico do PCB. Uma estratégia errénea teria que acarretar taticas também erréneas e eivadas de vacilacao e de atitudes contraditérias. Na medida em que faltava uma analise concreta da burguesia brasi- leira, dos seus diversos setores ¢ de suas diferentes posigdes politicas, apelava-se para os esquemas em que uma suposta burguesia nacional — categoria importada de modelos elaborados para outros paises — ora era considerada a servigo do imperialismo, ora uma forca até i mesmo revolucionaria. Uma corfeta politica de aliancas teria que ser fruto da compreensao exata do capitalismo dependente, de suas con- tradigdes, da real estructura de classes da sociedade brasileira, do seu sistema politico. Somente uma estratégia corteta, derivada da analise concreta do capitalismo dependente que vinha se desenvolvendo no Brasil, pode- tia assegurar a formulagao de objetivos taticos que efetivamente con- tribuissem para a acumulagao de forcas necessdrias 4 formacao do blo- co de forcas sociais e politicas — sob a direcio da classe operaria — capaz de empreender o caminho da revolucao socialista. A continuidade da mesma concepgio estratégica de direita — Es- sa mesma concepcao estratégica da revolucao no Brasil € mantida nos documentos posteriores do PCB, nao obstante todas as viradas taticas que sao eferuadas. Assim, se em 1930 os diferentes setores da bur- guesia eram considerados simples instramentos dos imperialismos in- glés ou americano, em 1935 o PCB luta por uma ampla frente Gnica da qual devem participar setores burgueses — ‘‘a parte da burguesia nacional nio vendida ao imperialismo’’. 32 A estratégia, entretanto, continua a mesma. O PCB se empenha na criagao e ditegao da Alian- ca Nacional Libertadora, cujo programa é ‘‘antiimperialista, antifeu- dal ¢ antifascista’’. 31 O Manifesto de 5 de julho de 1935 levantava o 31, Ver Florestan Fernandes, A revolucdo burguesa no Brasil, op. cit., pp. 203-221 32. Ver o “Manifesto de 5.7.1935"", publicado em A Plaréia, 6.7.1935 ¢ citado por Edgard Carone, A Segunda Repdblica (1930-1937), op. cit., p. 433. 33. Idem, p. 437 207 problema da ‘‘luta pela libertag4o nacional do Brasil’’ 31 ¢ diz que o ““governo popular revolucionario’’ que era proposto seria ‘um go- verno do povo contra o imperialismo ¢ o feudalismo’’.ss |Deixava implicita a necessidade de desenvolver o capitalismo ¢ de que este pudesse vir a tornar-se auténomo: ‘‘A distribuicao das terras dos grandes latifundiarios aumentara a atividade do comércio interno ¢ abrira o caminho a uma mais rapida industrializagio do pais, inde- pendentemente de qualquer controle imperialista’’. 3 E interessante observat como uma estratégia de direita — uma re- volugao de libertacdo nacional que abrisse possibilidades para o de- senvolvimento capitalista — permitia a formulacdo de uma tatica es- querdista mo programa da Alianca Nacional Libertadora. Assim, dizia-se no ‘“Programa do Governo Popular Nacional Revoluciona- rio’’: ‘‘Nas condicgées atuais do Brasil, frente 4 ameaca do mais tertivel fascismo, frente 4 completa colonizagao do nosso pais pelo imperialismo, ao qual vai ele sendo vendido cinicamente pelo gover- no de traicgao nacional de Getilio ¢ de seus mais fiéis lacaios nos esta- dos, 0 que nés, da ANL, proclamamos é a necessidade de um gover- no surgido realmente do povo em armas, compreendendo como um povo a totalidade da populacao de um pais, com exclusio somente dos agentes imperialistas ¢ da minoria insignificante que os segue’. (...) ““No Governo Popular deverio estar representadas todas as ca- madas sociais, inclusive a burguesia nacional, pelos seus elementos realmente antiimperialistas e antifascistas. O Governo Popular, go- verno surgido do povo em armas, nao sera um governo somente de operarios € camponeses, sera o governo da ampla frente Gnica de todos os brasileiros antiimperialistas.”” ““O Governo Popular Na- cional Revolucion4rio nao significa a liquidacao da propriedade pri- vada sobre os meios de producdo, nem tomara sob seu controle as fa- bricas e empresas nacionais. O referido governo, dando inicio no Bra- sil ao desenvolvimento livre das forcas de produgdo, nao pretende a socializagao da produgio industrial e agricola porque nas condigées atuais do Brasil sé sera possivel, com a implantacio da verdadeira de- mocracia, liquidar o feudalismo e a escravidao, dando todas as garan- tias para o desenvolvimento livre das forcas de producio do patis."” 37 34. Idem, p. 438. 35. Idem, p. 439, 36. Idem, p. 439. 37. “Programa do Governo Popular Nacional Revolucionario'’, in Hélio Silva, 1935 — A revolta vermelha, O ciclo de Vargas, volume VIII. Ed. Civilizagao Brasileira, Rio de Janeiro, 1969, pp. 443-450. 208 Apés a derrota da insurreicio armada de novembro de 1935, 0 PCB atravessa anos de grandes dificuldades ¢, em 1940, sua direcdo central é toda presa. O Partido é desarticulado pela repressao policial, ¢ somente em 1943 é reorganizada a direcao ¢ eleito Luiz Carlos Pres- tes secretario-geral, embora se encontrasse preso desde 1936. Isso ocorre na Conferéncia da Mantiqueira, realizada em agosto de 1943, quando também é tracada uma nova orientacdo politica. E adotada a tese da unido nacional em torno do governo para derrotar o nazifas- cismo. Partia-se de uma andlise em que era privilegiada a situacdo in- ternacional, subordinando-se toda a politica dos comunistas 4 derrota do nazismo. Dizia-se, por exemplo: ‘Estamos em guerra contra o na- zismo. Esta guerra é para nés questao de vida ou de morte, é sem exa- gero uma guerra pela independéncia nacional. O essencial, portanto, é vencer a guerra. Para isto, precisamos no pais da mais forte ¢ ampla unidade nacional. Esta unidade, praticamente, pode e deve ser al- cangada em torno do governo constituido, o que ai temos,,¢ que, apesar de todos os seus erros e defeitos, j4 deu incontestavelmente grandes passos ao lado das Nagées Unidas...’ ss. E ainda: ‘‘Somos no momento radicalmente contrarios a qualquer luta contra 0 governo constituido ¢ estamos certos de que é esta também a opiniao da maioria esmagadora da nagao. Apoiar o governo para ganhar a guerra € 0 que todos desejamos...””. 39 Como era reconhecido, em 1945, pela propria direcao do PCB, a orientacgdo aprovada na Conferéncia da Mantiqueira nao soube mos- trar que ‘‘a luta pela guerra era inseparavel da luta pela democracia no pais’’.«0 Na realidade, toda a concepgdo da unidade nacional es- tava estreitamente ligada 4 visdo estratégica da luta pelo desenvolvi- mento do capitalismo na democracia, que seria conquistada e assegu- rada com a vitéria mundial sobre o nazifascismo. Alimentavam-se ilusdes profundas quanto As possibilidades reais do imperialismo com o fim da guerra: ‘‘Liquidado o nazismo, nao havera nenhuma outra grande nacao imperialista (altamente industrializada) para sustentar contra a vontade dos povos qualquer ditador. Nenhum neofascismo’ * ° sera, portanto, possivel’’. 41 38, Luiz Catlos Prestes, Problemas atuais da democracia. Ed. Vitoria Ltda., Rio de Ja- neiro, s./d., p. 46. 39. Idem, ibidem, p. 56. 40. ‘Os comunistas na luta pela democracia™ (Informe Politico apresentado em nome da Comissao Executiva ao Pleno do Comité Nacional do PCB, em agosto de 1945, °° Pleno da Vité "), in. C. Prestes, Problemas atuais..., op. cit., p. 137 41. Idem, ibidem, p. 66. 209 A idéia da unidade nacional ¢ da sua ligacio com a visio estraté- gica da revolucio democratico-burguesa, uma visio notadamente de direita, era apresentada da seguinte maneira: ‘‘...Se a democracia for restabelecida durante a guerra, a unido nacional em torno do governo permitira uma transicao dentro da lei e da ordem até a constituciona- lizagdo definitiva do pais. Com a derrota do nazismo o governo de guerra e de uniao nacional sera entao para o povo um governo vito- rioso, contando com 0 apoio espontaneo ¢ livre das grandes massas trabalhadoras que na defesa de suas conquistas democraticas serao as mais interessadas em sustent4-lo para que se faca em ordem a recons- titucionalizacao do pais. Depois da terrivel ¢ longa noite fascista ¢ de tantos anos de guerra, de dor ¢ de miséria, os povos quetem paz ¢ ao proletariado mais adiantado e consciente, aos comunistas, numa pa- lavra, o que convém é a consolidacao definitiva das conquistas demo- craticas sob um regime republicano, progressista ¢ popular. Ora, uma tal repablica, para que possa ser instituida sem maiores choques ¢ lutas, dentro da ordem e da lei, nao podera ser de forma alguma uma repiblica soviética, isto é, socialista, mas capitalista, re- sultante da agao comum de todas as classes sociais, democraticas e progressistas, desde o proletariado até a grande burguesia nacional, com a s6 excegdo de seus elementos mais reacionarios, numericamen- te insignificantes... Que essa seja, no caso particular do Brasil, a Gnica perspectiva jus- ta para um marxista parece nao poder haver nenhuma davida, pois é evidente que entre nés faltam para uma revolucdo socialista nao s6 as mais elerhentares condigdes subjetivas como as imprescindiveis con- digdes objetivas. Alias, os comunistas do Brasil sempre lutaram pela revolucao democratico-burguesa, como é facil verificar pelos seus do- cumentos mais autorizados... Além disso, objetivamente, num pais industrialmente atrasado como 0 nosso a classe operaria sofre muito menos da exploragao capi- talista do que da insuficiéncia do desenvolvimento capitalista e do atraso técnico de uma inddstria pequena e primitiva. O que convém agora 4 classe operaria é a liquidacdo dos restos feudais, de maneira que se tone possivel o desenvolvimento o mais amplo, o mais livre e o mais rapido do capitalismo no pais. Na situa- ¢ao atual do Brasil, podemos afirmar com Lénin que nada pode haver de mais reacionario do que pretender a salvacao da classe operaria em qualquer coisa que no seja o desenvolvimento ulterior do capitalis- mo. Esta nisso a base material, objetiva, de uma agao democratica unificada, perfeitamente possivel nas condigdes brasileiras do mundo 210 de apés-guerra, do proletariado com a burguesia nacional progressis- ta’. 42 Se analisarmos os diversos documentos do PCB no periodo de sua legalidade (de 1945 a 1947), verificaremos a continuidade dessas mesmas concepgGes estratégicas ¢ de toda uma politica marcadamen- te de direita, em que propunha a unio nacional de todas as classes para assegurar ‘‘dentro da ordem e da tranqiiilidade’’ a ‘livre e rapi- da expansio do capitalismo no pais’. «1 Semelhante concepgao do processo revolucionario no Brasil fazia com que o PCB passasse a ser encarado nfo mais como o partido da classe operaria, mas como um partido antiimperialista e de todo o povo «4, que desenvolvia uma politica de colaboragao de classes — ‘‘nao poupando esforcos para encontrar sempre a solucdo harménica e pacifica de todas as diver- géncias € contradigées de classe que porventura nos possam separar ¢ dividir’’ «s —, e que propunha aos operarios *‘apertar a barriga e pas- sar fome”’ para garantir a continuidade do processo democratico, 46 As ilusdes parlamentaristas eram outro aspecto de toda essa Visio do desenvolvimento capitalista na democracia. Assim, dizia-se: ‘*Es- tamos convencidos de que dentro de um Parlamento democratico li- vremente eleito, de que participem os genuinos representantes do povo, sera possivel ¢ relativamente facil encontrar a solugdo progres- sista de todos osnossos problemas. Sera possivel entao legislar sobre a propriedade da terra, em particular dos latifandios abandonados nas proximidades dos grandes centtos de consumo e das vias de comuni- cag4o j4 existentes, colocando seus donos ante o dilema inexoravel de explora-los por métodos modernos ou de entrega-los ao Estado para que sejam suas terras distribuidas gratuitamente 4 massa camponcsa sem terra que nelas queira viver, trabalhar e produzir para o mercado interno em expansdo e cada vez mais livre, do que tanto necessita a nossa indtstria. Num Parlamento democratico sera possivel legislar contra o capital estrangeiro mais reacionatio, contra os contratos lesi- yos ao interesse nacional e ao progresso do pais’’. 47 Com o avanco da ‘‘guerra fria’’, o PCB é colocado fora da lei em maio de 1947. Sua politica anterior voltada no sentido de garantir a “‘ordem e a tranqlilidade’’ havia levado a desmobilizacao das massas 42. Idem, ibidem, pp. 70-71. 43. Idem, ibidem, p. 111. 44, Idem, ibidem, p, 83 45. Idem, ibidem, p. 81. 46. Idem, ibidem, p. 177. 47. Idem, ibidem, pp. 86-87. 211 e ao desencanto da classe operaria com o Partido. O fechamento do | FCB nao provoca nenhuma reacdo importante das massas ¢ a propria ~ direcio é surpreendida pelos acontecimentos. O passo seguinte do governo Dutra é propor a extingao dos mandatos dos parlamentares eleitos pela legenda do PCB. No mesmo dia, 16 de maio de 1947, tem lugar uma virada brusca na tatica do PCB, que passa a exigir a re- nGncia imediata de Dutra, como Gnica forma de restabelecer ‘‘a or- dem ¢ a democracia’’, ‘‘violadas pelo governo'’. 4s Como assinala o sociélogo Ricardo Maranhao, ‘‘o Partido, sem mudar a concepgao es- tratégica do processo politico brasileiro, elaborada na conjuntura an- terior, passou a comands taticamente radicais, mas sua a¢3o se limitava ao universo. instiruicées parlamentares, sem mobilizar efetivamente seu potencial de apoio de massa’. a O Manifesto de Janeiro de 1948 representa uma ‘‘guinada 4 es- querda’’ na orientagao tatica do PCB. O governo de Dutra passa a ser considerado de ‘‘traigéo nacional’’ e ‘‘a servigo do imperialismo norte-americano’’. + E langada a palavra-de-ordem de ‘‘derrubada do atual governo de traigdo nacional, pela instauracdo no pais de um governo popular, democratico ¢ progressista, Ginico capaz de salvar o pais da miséria, do aniquilamento, da perda total de sua soberania’’. rm A autocritica realizada pela direcao do PCB em 1948 é extrema- mente elucidativa daquilo que estamos procurando mostrar: a conti- nuidade da mesma concepgdo estratégica de direita, ndo obstante as intmeras guinadas taticas 4 ‘‘esquerda’’ e a direita. Trata-se de uma violenta autocritica das posig6es raticas do Partido no periodo ante- rior, em que se reconhece uma “‘tendéncia direitista... que ... se ca- racteriza ... pela sistemAtica contengao da luta das massas proletarias em nome da colaboragao operario-patronal e da alianca com a ‘burguesia-progtessista’, assim como pela pouca atencao dada as lu- tas dos trabalhadores rurais contra o latifiindio, que significa a subes- timagao na pratica da massa camponesa como principal aliado do proletariado”’. sz Dizia-se ainda: ‘‘Evitamos, de fato, falar sobre nossos objetivos estratégicos ou, mesmo quando a eles nos referiamos, ... nado éramos 48. “'Hoje’’, 17/5/1947, citado por Ricardo Maranhao, Sindicatos ¢ democratizacao (Brasil 1945/1950). Ed. Brasiliense, $20 Paulo, 1979, p. 89. 49. Ricardo Maranhio, op. cit., p. 89. 50. Luiz Carlos Prestes, ‘‘Como enfrentar os problemas da revolucio agraria ¢ antiim- perialista’’, brochura, p. 4. 31. Idem, ibidem, p. 33. 52. Idem, ibidem, p. 25. a 212 suficientemente conseqiientes para atacar a reacdo e manter uma ati- tude firme de oposicao ao governo Dutra, mero instrumento da rea- cio ¢ do imperialismo norte-ameticano. E por isso nao fomos tam- bém capazes de desmascarar a composicao de classe tremendamente reacionaria da Assembléia Constituinte que nao quis abolir a Carta de 1937 e, alimentando nas massas ilusdes a seu respeito, nao soube- mos também demonstrar com o vigor necessario o cunho retrégrado da nova Carta Constitucional de 18 de setembro’’. 53 E reconhecia-se que ‘‘caimos no exagero de ver em qualquer greve ou movimento de massas espontineo uma provocacdo perigosa ¢ sempre contraria aos interesses do proletariado’ ’. 54 Fazia-se também uma autocritica da exigéncia langada um ano antes da ‘‘rendncia de Dutra’, caracterizando-a como ‘‘a influéncia de ideologia estranha ao proletariado, de tendéncias pequeno- burguesas ‘tenentistas’ que se manifestam entao no Partido, mesmo em sua direcio’’. s3|Entretanto, apesar de condenar-se a ‘‘preocupa- cao de ordem e tranqitilidade, as grandes ilusGes reformistas em con- quistas patlamentares ou dentro dos estreitos limites da democtacia burguesa’’ +, em nenhum momento era questignada nem a analise da realidade brasileira, nem a estratégia do PCB. |O Brasil continuava aser ‘‘um pais atrasado, semifeudal ¢ semicolonial’’ ,s7 cuja estrutura econémica ‘‘constitui obstaculo principal ao progresso nacional’’, e “*é contra isto que precisamos lutar levantando com coragem e auda- cia a solucao dos problemas fundamentais da revolucdo agraria ¢ an- tiimperialista em nossa patria. Este é 0 nosso objetivo estratégico’’. 18 Continuava-se a ver na ‘““industrializagdo’’ o caminho para a emanci- pacdo nacional. 19 No Informe Politico da Comissdo Executiva a0 Comité Nacional do PCB, de maio de 1949, é definido claramente o carater da revolu- cAo como ‘‘democratico-burgués’’: trata-se de ‘‘remover as causas profundas do atraso e da reacao politica, afastar os obstaculos que im- pedem o desenvolvimento das forcas produtivas no pais. Isto implica na luta conseqiiente contra os restos feudais e todas as formas pré- capitalistas de exploragao, quer dizer, na revolucdo agraria, de um la- do; ¢ de outro, na luta contra o imperialismo estrangeiro, norte- 53. Idem, ibidem, p. 25: 54. Idem, ibidem, p. 27. 55. Idem, ibidem, p. 28. 46. Idem, ibidem, p. 26. 37. Idem, ibidem, p. 26. 498. Idem, ibidem, p. 32. 59. Idem, ibidem, p. 36. 213 americano em particular nos dias de hoje, e pela independéncia na- cional. No imperialismo ¢ no feudalismo, particularmente no pri- meiro, est4o os inimigos mortais de nosso povo. Mas essa revolucao agraria e antiimperialista, revolucdo democratica em sua forma e bur- guesa pelo seu contetido econémico ¢ social, a realizar-se em plena €poca da revolugao proletaria ¢ da consttugao do socialismo numa boa parte do mundo, s6 pode ser realizada sob a direcio do proleta- tiado’’. «0 Para a realizacao da revolucdo democratico-burguesa era proposta a criagao de uma ‘‘ampla frente democratica e de libertagio naci al’’, que ‘‘sob a direcdo do proletariado, podera quebrar a reacao, fis a i ditadura feudal-burguesa por um] governo demo- Fatico, popularle progressista,\capaz de iniciar a solucdo dos proble- mas da revoluca agraria e anflimperialista, reconquistar a indepen- déncia nacional 'e de deslocar o Brasil do campo do imperialismo e da reacao para o campo do progresso e da democracia”’. «: O Partido era catacterizado como ‘‘o tinico partido politico realmente anuimperia- lista’’, «2 deixando claro que para a aplicacéo de uma estratégia an- tiimperialista era coerente a visao de um partido que tivesse esse card- ter policlassista. Era ainda evidente a profunda ilusdo de classe de su- por vidvel um desenvolvimento capitalista auténomo do impetialis- mo, que permitisse, inclusive, deslocar 0 Brasil do campo do impe- tialismo para o ‘‘campo do progresso e da democracia’’. A 1° de agosto de 1950 é langado, em nome do Comité Nacional do PCB, o famoso ‘‘Manifesto de Agosto’’. Tratava-se da continua- Gao das mesmmas teses expostas em 48 ¢ 49: a ‘Frente Democratica de Libertacao Nacional’’ para “‘libertat o pais do jugo imperialista e por abaixo a ditadura de latifundiarios e grandes capitalistas, substituir 0 governo da traicao, da guerra e do tersor contra o povo pelo|governo efetivamente democratico € popular'’| «3s A estratégia continuava a mesma: a revolucao de libertagdo nacional para ‘‘impulsionar o de- senvolvimento independente da economia nacional’, ou seja, para assegurar o desenvolvimento livre ¢ independente do capitalismo. O suposto ‘‘esquerdismo’’ se resumia 4 tatica e ao palavreado, este sim extremamente radical. TAtica essa que, entretanto, ndo conseguia ser posta em pratica pelo préprio fato de nao ser decorréncia de uma Bis RR FON FeeLT NCCAA 60. “Informe Politico'* da Comisséo Executiva a0 Comité Nacional do PCB apresenta- do por Luiz Carlos Prestes, em maio de 1949, brochura, 1949, p. 76. G1. Idem, ibidem, p. 5. ty 62. Idem, ibidem, p. 5. 63. Manifesto de Agosto de 1950, brochura, Rio, 1950, p. 19 214 politica alicercada na ‘analise concreta do pais. A tatica passava por guinadas bruscas ao sabor dos acontecimentos, que, na maior parte das vezes_ constituiam surpresa para os comunistas, incapazes de prevé-los. Nao se tratava, portanto, como diz L. Konder em seu livro «i, de um acentuado ‘‘esquerdismo’’ na linha politica do PCB a par- tir de 1948; s6 uma anilise superficial pode levar a tal conclusdo. A estratégia de direita permanecia com todas suas conseqiiéncias desas- ows fen as quais a mais importante consistia exatamente na in- capacidade de formular uma orientacdo t4tica que correspondesse a real correlagao de forgas sociais ¢ politicas ¢ permitisse o avango rumo a objetivos politicos corretos, que sé poderiam ser decorréncia de uma justa andlise das particularidades do capitalismo dependente que se desenvolvia no Brasil. Em 1954, realizou-se 0 4° Congresso do PCB, em que foi aprova- do o Programa do Partido. Eram reafirmadas, no fundamental, as mesmas teses do ‘‘Manifesto de Agosto’’. Assim, no Informe do Ba- lanco do Comité Central do PCB ao 4° Congresso do Partido, dizia- se: ]‘A revolucao brasileira em sua etapa atual é, assim, uma revolu- cio democratico-popular de cunho antiimperialista e agraria, anti- feudal. E uma revolucdo"contra os imperialistas norte-americanos € contra os restos feudais ¢ tem por objetivo derrocar o regime dos lati- fundiarios ¢ grandes capitalistas. Libertando o Brasil do jogo dos im- perialistas norte-americanos ¢ dos restos feudais, desloca, simultanea- mente, o pais do campo da guerra ¢ do imperialismo para o campo da paz, da democracia ¢ do socialismo. O Programa do Partido refle- te essa justa caracterizacao da revolugao brasileira em sua atual eta- pa’’. 6s Destaca-se ainda: “‘No que concerne as relagdes com a burguesia nacional, o Programa do Partido nao sé nado ameaga seus interesses como defende suas reivindicagées de carater progressista, em particu- lar o desenvolvimento da inddstria nacional. Essa posigao é acertada, decorre de uma justa compreensao do carater da revolugao brasileira em sua primeira etapa, quando as necessidades j4 maduras do desen- volvimento da sociedade brasileira, que exigem solugdo imediata, sio exclusivamente as de carater antiimperialista e antifeudal. A burgue- sia nacional nao €, portanto, inimiga; por determinado periodo pode apoiar o movimento revolucionario contra o imperialismo ¢ contra o latifiindio e os restos feudais’’. 6+ 64, Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas, op. cit., p. 73 65. “Informe de Balango de Comité Central do PCB ao IV Congresso do PCB''d in Problemas, Dezembro! 1954 a Fevereiro/1955. n° 64, p. 65. 66. Idem, p. 61 215 [ A ‘‘Declaragao de Marco de 1958"’ resultou de uma grave convul- sao interna, que teve lugar no PCB apés as denancias contra ‘‘o culto da petsonalidade’’ feitas no XX Congresso do PCUS. Como nio po- deria deixar de ser, no decorrer de longos anos de uma visio estraté- gica falsa, sérias deformacGes haviam se acumulado no funcionamen- ta interno do PCB. Sem uma estratégia correta, nao era possivel ter uma politica de organizacio justa. O Partido Comunista é o instru- mento de transformacdo da sociedade capitalista em socialista, e uma politica volrada fundamentalmente para o desenvolvimento do capi- talismo teria que resultar numa concepcaio deformada do Partido Co- munista, de seus objetivos e métodos de funcionamento. O esmaga- mento da democracia interna passara a set uma constante na vida in- terna do PCB. Este aspecto, aliado ao afastamento cada vez mais fla- grante da orientagao politica do Partido das condigées nacionais ¢ 20 abalo provocado no movimento comunista internacional com as reve- lagdes feitas no XX Congresso do PCUS, fez com que explodisse a cri- s¢ que vinha se desenvolvendo no PCB. Afinal, em 1958, a direcdo e o Partido se reunificam em torno da ‘‘Declaracdo de Marco’’, que passou a ser considerada uma nova eta- pa na vida do PCB. Cabe analisar a validade de tal afirmagao, 4 qual nos referiamos no inicio deste artigo. Uma nova autocritica é feita, onde, diferentemente da autocritica de 1948, sao criticados os erros de ‘‘esquerda’’. «7 Dizia-se que ‘‘a esséncia de nossos erros politicos, cujas raizes mergulham no subjetivismo, consiste... numa comprteen- sio ‘esquerdista' do processo revolucionario"’. os Entretanto, nova- mente ,a autocritica estava voltada apenas para a tatica, deixando a concep¢ao estratégica intocada. Assim, na ‘‘Declaracgdo de Marco"’ continuava-se a fazer a al paracio mec4nica entre a luta contra o,imperialismo e o latifandio, de um lado, ¢ 0 capitalismo, de outro.) Dizia-se existir na sociedade brasileira duas contradigées fundamentais: “‘A primeira é a contradi- co entre a nacdo ¢ o imperialismo norte-americano € seus agentes in- ternos, A segunda é a contradicao entre as forcas produtivas em de- senvolvimento e as relacdes de produgao semifeudais na agricultura. O desenvolvimento econémico e social do Brasil torna necessaria a so- lucdo dessas duas contradicgdes fundamentais’’. oo A seguir assinalava- 67. Ver artigo de Luiz Carles Prestes, ‘Sao indispensaveis a critica ¢ a autoctitica de nossa atividade para compreender ¢ aplicat uma nova politica’, in PCB: vince anos de politica, op. cit.. pp. 29-36. 68, Idem, p. 34. é 69. ““Declaracdo sobte a politica do Partido Comunista Brasileiro de Margo de 1958", in PCB: vinte anos de politica, op. cit. p. 13 216 se que ‘‘a sociedade brasileira encerra também a contradigao entre 0 proletariado e a burguesia, que se expressa nas varias formas da luta de classes entre operarios ¢ capitalistas. Mas esta contradicao nao exi- ge uma solucao radical na etapa atual. Nas condigées de nosso pais, 0 desenvolvimento capizalista corresponde aos interesses do proletaria- do e de todo o pov revolucao no Brasil, por conseguinte, nao é ainda socialista,ymas antiimperialista e antifeudal, nacional e demo- cratica’’. 70 Permanece, portanto, a fidelidade a tese da necessidade de reali- zar a revolucao antiimperialista ¢ antifeudal para desenvolver o capi- talismo no Brasil. Como falar, nessas condigées, numa “‘autocritica profunda"’ ou numa nova etapa na vida do PCB? Sem diivida, algu- mas mudangas tiveram lugar na tatica, que passou a ser a da luta por um governo nacionalista ¢ democratico, na visio de um possivel ‘‘ca- minho pacifico — tese proveniente do XX Congresso do PCUS —, numa maior preocupa¢do com o movimento de massas em geral ¢ com o movimento nacionalista entio em desenvolvimento, em parti- cular. Ocorria também uma certa liberalizagio no Partido, frato da explosdo de descontenramento com o mandonismo imperante no periodo anterior. Entretanto, nao seria correto afirmar que com a “‘Declatacao de Marco’’, o ‘‘PCB iniciou sua longa caminhada em diregdo a uma ampla politica de massas’’, 11 pois, em primeiro lugar, se estaria ne- gando todo o passado de lutas do PCB, negando paginas da sua his- téria, como a formagio de uma ampla frente Gnica em 1935 — a Alianga Nacional Libertadora —, ¢,|em segundo lugar, seria exagerat ‘os éxitos reais que o Partido obteve 110 periodo pés-1958, esquecendo a grave derrota de 1964 — ‘eb De de que sua ligacao com as massas era na verdade muito débil.|Debilidade esta que provinha de muitos anos de erros acumulados, de uma visao estratégica da revolu- cao falsa e de direita, de orientacGes taticas imediatistas e desligadas de uma visio politica geral. Ao mesmo tempo, seria falso dizer que com a ‘‘Declaracio de Marco’' e, posteriormente, com o 5° ¢ 6° Congressos do PCB, teria sido superada a auséncia da democracia interna ¢ cortigidos os méto- dos mandonistas e autoritarios, como nos quer fazer crer L. Konder em seu livro citado. 72 Como é sabido, no 6° Congreso, realizado em 1967, da mesma mancira que no 4°, o que prevaleceu nao foi a opi- 70. Idem, p. 13. 71. Ver David Capistrano Filho, Vinte anos de PCB, op. cit. 72. Leandro Konder, A democracia ¢ as comunistas, op. cit., pp. 116-117, 217 nido da maioria dos militantes; ao contrario, diversas organizagdes que discordaram da orientacgao defendida pelo CC foram dissolvidas ¢ impedidas de se fazerem representar na plenaria do Congresso. Na verdade, continuaram os mesmos métodos, talvez um tanto liberali- zados, de imposicio de opinides e auséncia de debate democratico, como é mostrado agora pot Luiz Carlos Prestes em sua ‘‘Carta aos Co- munistas’’. Quanto ao problema da democracia, segundo os defensores da atual linha politica do PCB, a partir da ‘‘Declaragdo de Marco’’ pas- sou a prevalecer ‘‘uma tendéncia que reconhecia a necessidade de uma reflexdo nova em torno da ‘questo democratica’ — tanto ao ni- vel da atividade politico-partidaria como ao nivel da sociedade em geral’’. 25 Ao nivel da atividade politico-partidaria, 0 que a pratica rem mostrado € que a democracia interna permaneceu ausente da vi- da do PCB (vera ‘‘Carta aos Comunistas’’ de L. C. Prestes). Ao nivel da sociedade, o ‘‘reconhecimento de que havia um processo objetiva- mente favoravel 4 luta pela democracia vinculada ao préprio desen- volvimento capitalista’’, 74 nao constituia novidade no acervo das concepcées imperantes na direcao do PCB. Como vimos no decorrer da anilise das principais teses sobre o processo revolucionario no Bra- sil, que se sedimentam no curso de toda a historia do PCB, a visio da democracia sempre esteve associada 4 necessidade de desenvolver 0 apitalismo, a industrializacao capitalista do pais. [ Assim, o imperialismo e¢ o latifandio sempre foram encarados co- ‘mo os fatores que entravam o desenvolvimento capitalista livre ¢ in- dependente e o que seria o seu reflexo natural na vida politica — 0 processo de democratizacio. Segundo esta visdo, a revolucao democratico-burguesa (agraria ¢ antiimperialista ou, mais recente- mente, nacional e democratica) teria como tarefa principal remover esses entraves ¢ assegurar o desenvolvimento capitalista na democra- cia. Os periodos de maior autoritatismo ¢ repressdo nao passariam de percalcos no processo de democratizacio inerente ao desenvolyimen- to capitalista em curso,{apesar da permanéncia do imperialismo e do latifaindio. Sem diivida, essas teses so reafirmadas na ‘‘Declaragao de Mar- co” — e nao constituem, portanto, uma “‘reflexdo nova’’ — quando se diz: ‘‘A democratizacao do regime politico do pais, que tomou impulso com os acontecimentos de 1930, no segue o seu curso em li- nha reta, mas, enfrentando a oposicio das forcas reacionfrias ¢ pré- 73. Idem, ibidem, p. 104. 74, Idem, ibidem, p. 104. 218 < imperialistas, softe, em certos momentos, retrocessos ou brutais in- teftupgdes, como sucedeu com o Estado Novo, com a ofensiva feacio- naria de 1947 ou por ocasido do golpe de 1954. Mas o processo de de- mocratizacdo € uma tendéncia permanente’’. 7; E, mais adiante, afirma-se: ‘‘E na luta contra o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos que as forcas progressistas da sociedade brasilei- ra podem acelerar o desenvolvimento independente e 0 processo de democratizagao da vida politica do pais’’. 1 ‘Como ja tivemos oportunidade de assinalar, esse conjunto de concepgdes provém do desconhecimento das particularidades do capitalismo dependente num pais como o Brasil e da aplicagao dog- mAtica e mecanica de esquemas elaborados para realidades distintas. O desenvolvimento capitalista nas condigdes de dependéncia e asso- ciacdo crescente com as mulrinacionais levaria a que o capitalismo no Brasil adquirisse caracteristicas cada vez mais acentuadas de capitalismo monopolista com todas as sua implicagées, incluindo a tendéncia 4 reagao e ao autoritarismo. O que viria a predeminar, co- mo tendéncia, e isso ficou mais claro a partir do golpe de*1964, era o processo de limitacdo crescente das liberdades ¢ nado o de democrati- zacao. Realmente, a democracia — sempre muito limitada no Brasil — no passou de momentos de nossa histéria, quando as massas, fre- qiientemente dentro de um contexto internacional favoravel, como em 1945, a consquistaram através de grandes lutas. Nunca foi uma conseqiiéncia natural do desenvolvimento capitalista, retardatario ¢ dependente, selvagem e dificil. O socidlogo Florestan Fernandes demonstra de maneira funda- mentada (ver suas obras, principalmente A revolugdo burguesa no Brasil) as consequiéncias antidemocraticas e autoritarias do tipo de de- senvolvimento capitalista dependente que vem se dando no Brasil. Assim, ao examinar as caracteristicas da revolugao burguesa nos pai- ses capitalistas dependentes, assinala: ‘‘Ai, a revolugao burguesa combina — nem poderia deixar de fazé-lo — transformagao capita- lista e dominagao burguesa. Todavia, essa combinacao se processa em condicées econdmicas ¢ histérico-sociais especificas, que excluem qualquer probabilidade de ‘repetigdo histérica’ ou de ‘desencadea- mento automatico’ dos pré-requisitos do referido modelo democratico-burgués. Ao revés, 0 que se concretiza, embora com in- tensidade variavel, € uma forte dissociacio pragmatica entre desen- 75. ““Declaracao sobre a politica do Partido Comunista Brasileiro de Margo de 1958"", op. cit., p. 8. 76. Idem, p. 9. 219 volvimento capitalista e democracia; ou, usando-se uma nota¢ao so- ciolégica positiva: uma forte associagao racional entre desenyolvi- mento capitalista ¢ autocracia’’. 77 E acrescenta: ‘'O capitalismo de- pendente e subdesenvolvido é um capitalismo selvagem e¢ dificil, cuja viabilidade se decide, com freqiiéncia, por meios politicos e no terre- no politico. E, ao contrario do que se supés e ainda se supde em mui- tos citculos intelectuais é falso que as burguesias e os governos das na- cOes capitalistas hegemOnicas tenham qualquer interesse em inibir ou perturbar tal fluxo do elemento politico, pelo enfraquecimento pro- vocado das burguesias dependentes ou por outros meios. Se fizessem isso, estatiam fomentando a formacao de burguesias de espirito na- cionalista revolucionario (dentro do capitalismo privado)... Estariam, portanto, ttabalhando contra os seus interesses mais diretos, que con- sistem na continuidade do desenvolvimento capitalista dependente ¢ subdesenvolvido’’ . 15 As mesmas concepgdes, a que nos referimos acima, sobre as possi- bilidades de um desenvolvimento capitalista independente e demo- cratico, fruto de uma revolucao nacional e democratica, sob a hege- monia da classe operaria, mas com a participacdo da chamada bur- guesia nacional, foram reafirmadas nas Resolugdes do 5° ¢ do 6° Congressos do PCB, assim como nos documentos posteriores do seu Comité Central. O golpe de 1964 foi interpretado como um acidente no processo de democratizagao, que vinha se desenvolvendo desde 1930 com a industrializacdo capitalista. Tratar-se-ia, portanto, de derrotar a diradura para voltar ao leito normal do desenvolvimento capitalisea democratico. Esta € a concepg4o que continua a imperar ¢ é veiculada pelo semanario Voz da Unidade, que se apresenta como porta-voz do Comité Central do PCB. E se em algum sentido é possivel aceitar a tese do ‘‘inicio de uma nova fase na vida do Partido’’ a partir de 1958, seria exclusivamente no de que nesse momento teve inicio uma longa caminhada para po- sigdes cada vez mais de direita, em que alguns lances ‘‘esquerdistas’’ , principalmente as vésperas do golpe de 1964, nao passaram de fatos esporadicos, de excegéo que s6 vem confirmar a regra: uma tatica re- boquista em relacao 4 burguesia, tendo como pano de fundo a ma- nutencao da mesma estratégia direitista. | Ultimamente tornou-se moda a chamada “‘questao democrati- ‘ca’’. Leandro Londer escreve a respeito, criticando a Resolucao Politi- ca do 5° Congresso do PCB: ‘A democracia, na sociedade brasileira, 77. Florestan Fernandes, A revolugao burguesa no Brasil, op. cit., p. 292 78. Idem, ibidem, p. 293 220 ainda era concebida estreitamente como uma ‘etapa’ que precisava ser attavessada, mas deveria ser superada mais tarde por um regime socialista que, por representar um modo de producdo correspondente aos interesses da maioria da populagao (a massa trabalhadora), pode- tia estar dispensado de ser formalmente democratico. Essa limitacao ‘etapista’ mostrava que a democracia ainda nao era encarada em to- ! das as suas implicagdes:. ainda nao se reconhecia aquilo que, nas con- quistas democraticas realizadas sob o capitalismo e dentro de limites liberais, precisa ser preservado e elevado a nivel superior’. 19 A esta visio da democracia, L. Konder contrapée a concepco de Arménio Guedes, exposta na revista Novos Tempos so, segundo a qual ‘‘a de- mocracia, ao avangar, forcaria o governo a encarar a questao das transformacées revolucion4rias, socialistas. Nao havia, pois, uma mu- ralha entre a ‘questo democritica’ ¢ a ‘questo socialista’; a primei- fa penetrava na segunda’’. «1 A critica de L. Konder 4 Resolucao Politica do 5° Congreso se si- !tua a direita das concepcdes expostas nessa resolucdo; para o autor, as idéias de Arménio Guedes esto mais préximas da tese da ‘‘democra- cia como valor universal’’ de Carlos Nelson Coutinho, 4 qual empres- ta total solidariedade logo no inicio de seu livro. sz Em outtas pala- vras, L. Konder revela-se adepto da democracia burguesa — este, |sem davida, € 0 contetido real da ‘‘democracia como valor universal”’ 83 — ¢ gostatia de estendé-la 4 sociedade socialista. Esta a grande con- -volucionario que deve representar a passagem do capitalismo af tribuicdo teérica que é atribuida a A. Guedes no trecho citado: a de- mocracia burguesa imperando no regime socialista. E nessa diregdo que L. Konder espera que sejam superados os ‘‘elementos de ambi- giiidade’’ ainda existentes, segundo ele, na linha politica do PCB. Trata-se, portanto, de uma critica de direita, orientada no sentido de que nos proximos documentos do PCB se venha. a adotar a tese da “‘democracia como valor universal’’ ¢ se chegue 4 negacao do salto re- cialismo, ou seja, fis democracia burguesa 4 democracia socialista. 79, Leandro Londer, A democracia ¢ os comunistas, op. cit., p. 109. 80. Arménio Guedes, “‘Algumas idéias sobre a Frente Unica no Brasil’’, in Novos Tempos, n° 1, 1957. 81, Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas, op. cit., pp. 101-102. 82. Ver Carlos Nelson Coutinho, **A Democracia como valor universal’’, in Encontros com a Civilizacdo Brasileira, Ed, Civilizacao Brasileira, Rio de Janeiro, 1979, n° 9, pp. 33-47; ¢ Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas, op. ci 8-9 83, Carlos Nelson Coutinho, *‘A Democracia como valor universal 84, Leandro Konder, A democracia ¢ os comunistas, op. cit., p. 106. 221 Se o conjunto de idéias sobre a revolucdo brasileira, presente nos documentos do PCB, tem como eixo central a falsa concepcao de | uma revolucao de carater democratico-burgués no Brasil, que permi- : ta o desenvolvimento capitalista independente e democratico ¢, teo- fticamente, numa segunda etapa, a revolucdo socialista; as concepgdes apresentadas por L. Konder, C. N. Coutinho e outros adeptos de suas teses vio mais adiante: é a democracia burguesa ‘‘penerrando”’ no socialismo, ou seja, a tese do “‘socialismo democritico’’. as Eis a mais nova contribuicio “‘teérica’’ dos que chegaram a negacio do so- cialismo, mas evitam dizé-lo com todas as letras. Conclusdes — Voltando as questées que colocamos no inicio deste artigo, pensamos que a argumentacdo apresentada nos permite chegar a algumas conclusées fundamentais. A atual linha politica do PCB, no que se refere as suas principais concepgées estratégicas, nao constitui uma ruptura com o passado deste partido. Pelo contrario, representa a continuidade de uma mes- ma concep¢io estratégica de direita, cujas origens remontam ao final da década de 1920. A causa principal do surgimento e da permanéncia dessa concep- cao da revolugao brasileira consiste no dogmatismo, que matcou toda a elaboracao politica do PCB desde os primeiros anos apés a sua fun- dacgdo. A copia mecanica e dogmatica de modelos e esquemas elabo- rados para outras realidades, distintas da brasileira, resultou do débil conhecimento do marxismo e, principalmente, da realidade nacio- nal, que,o partido se propée a transformar. Se antes, nos primeiros decénios da existéncia do PCB, poderia ser compreensivel esse desconhecimento da realidade brasileira, hoje ele nao se justifica mais. E uma das principais razGes para isso reside no fato de atualmente j4 existir, em nosso pais, uma importante pro- ducao cultural propria, onde se destacam diversos trabalhos de anali- se ¢ de interpretacio da realidade econémica, social, politica e culru- ral. A alguns desses trabalhos tivemos oportunidade de fazer refe- réncia neste artigo. Assim, insistir, nos dias de hoje, ma concepgao de uma revolucao nacional e democratica, que remoya os obstaculos ao desenvolvimen- to capitalista independentre e¢ democratico constitui na verdade um anacronismo. Realmente, j4 existe toda uma elaboracdo tedrica sobre a dependéncia e 0 capitalismo dependente em paises com o Brasil, que deve servir de base a uma interpretaco correta e moderna da rea- 85. Ver entrevista de Arménio Guedes, in Jornal do Brasil, 28/10/1979. 222 lidade brasileira e a uma proposta estratégica que corresponda a essa analise. Ao mesmo tempo, assinalamos a existéncia de uma critica de di- teita 4 chamada “questao democratica’’ na linha politica do PCB, ‘que propée a visio da ‘‘democracia como valor universal’’ ou, em- outras palavras, o chamado “‘socialismo democratico’’, que, na prati- ca, significa a negacao do socialismo. O entendimento dos erros cometidos pelo PCB em sua historia esta ligado 4 compreensao das principais concepces falsas que, indu- bitavelmente, constituem sua causa determinante las concepgoes, a que nos referimos no desenrolar deste artigo, constituem precisamen- te a heranca a-qual o PCB deve renunciar pata poder“avangar rumo. aos objetivos da revolucao socialista. Entretanto, nao basta renunciar a uma determinada heranca, que mostrou na pratica ter falhado como perspectiva de um partido revo- | lucionario. E necessdrio formular um nova estratégia, que seja decor- “ réncia das reais contradicdes do capitalismo monopolista dependente que hoje se desenvolve no Brasil ¢ que tenha condig6es de mobilizar a classe operaria ¢ as grandes massas trabalhadoras para a luta pelo so- cialismo.|A concepsao de luta por um poder das forgas antimonopo- listas, que representa um passo decisivo rumo ao socialismo — expos- tana ‘‘Carta aos Comunistas’’ de Luiz Carlos Prestes — constitui, ao nosso ver, uma contribuigéo importante para a elaboracao da estraté- gia dos comunistas no Brasil de hoje. Cee ee * Anita Leoc&dia Prestes € militante do PC c fez parte do seu Comi- té Central até meados de 1979, quando reaunciou 20 cargo por di- vergénciss com o restante da diregdo. Ela € filha do ex-secretirio- geral Luiz Carlos Prestes ¢ da revoluciondria alemd Olga Benno, primeira esposa do lider comunista brasileiro. Olga foi presa no Brasil em 1935 ¢ acabou entregue a Hitler por ordem de Filinto Miiller, entio chefe de Policia: na Alemanha, foi fuzilada num campo de concenttacio. ’ 223

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