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Quadro Conceitual e Realidades Contextuais nnn] | Agao publica e economia: um quadro de andlise Jean-Louis Laville Traduzide do francés por Carlos A. A, Fettaz @ Arovjo Este capitulo atém-se a um retorno & originalidade da ago piiblica na democracia moderna e a um esclarecimento sobre as modalidades evolutivas de uma articulago sempre problemitica entre politica e economia. Ele se organiza, pois, em duas partes, cortespondendo a estas duas questes imbricadas, A primeira parte inicia-se mostrando aevidéncia da importancia da solidariedade na vida social. Mas nem todas as formas de solidariedade concernem & aco piblica, A problemdtica da aco publica conduz a pri- vilegiar uma solidariedade especificamente moderna, a solidariedade democratica con- trastando com a caridade e a filantropia, que repousam na desigualdade das condigoes. Mais precisamente, desde que se retenha uma definig&o da agao piiblica incluindo os dois polos do politico, respectivamente, a ago comum pelo engajamento piblico e a constituigdo de regras regendo a vida em coletividade, € possivel mostrar que esta bipolaridade do politico remete a duas concepgdes da solidariedade democratica. ‘Ao encarar concretamente as modalidades de constituig&io dos espagos piiblicos nas sociedades civis, em outras palavras, o pélo nao institucional do politico, cons- tata-se que numerosas formas de expresso que alimentam o debate piiblico se cons- tituem a partir de uma solidariedade interpessoal, recfproca e igualitaria. Ela autori- za uma tomada da palavra encontrando sua origem na vontade de reagir contra a defasagem entre a realidade social e os ideais democriticos, No que se refere ao pélo institucional do politico, ele nao é redutfvel a formas de dominagao. Ele inclui 0 estabelecimento do reconhecimento dos direitos simultanea- mente & elaborac&o de mecanismos de redistribuigao. Nisso, 0 politico institucional efetiva uma solidariedade garantida juridicamente com efeitos de redistribuigao, ‘A bipolaridade do politico é assim ligada a duas formas de solidariedade comple- mentares que se engendram mutuamente: uma solidariedade horizontal, oriunda das redes de socializagao priméria que se abrem para o espago piblico, ¢ uma solidariedade institucional, que se desdobra no registro da socializagao secundéria, particularmente através da obtencao de direitos. Em outras palavras, a dissociagdo entre sociedade civil ¢ ago publica freqiientemente praticada despreza a realidade hist6rica: desde o século XIX, uma série de conflitos, conduzidos em nome da solidariedade democratica, modelaram parcialmente o espago puiblico. As iniciativas da sociedade civil reclamaram e, em seguida, reforgaram as agdes piblicas em favor da generalizagao dos direitos. As instrumentalizagGes e tensdes n&o podem mascarar o carater essencial da articulagao entre interveng6es associativas e piiblicas na dinémica democrética. Esta dinamica demnocratica s6 podia questionar as modalidades de produgao e de distribuigdo de riquezas, mas ela se confrontou, nesta érea, com a concepcao da economia defensora de um mercado auto-regulado que dispensa mediagées politi- cas, Entretanto, sem jamais se impor totalmente, ela provocou uma restrigao das formas de ago puiblica em matéria de economia : A segunda parte deste texto € dedicada as grandes seqiiéncias histricas que po- dem ser distinguidas a partir dos tipos de relacées instauradas entre esferas politica e econdmica. Desse ponto de vista, desde a primeira metade do século XTX, existi- 2 ¢ economia sotidéria; uma perspectiva Internacional cao publ ag 2 OQ en/D7 s1n07-uDeF | esnpuD ep o1ponb wn :oJWoUED a DINGAd opsy. ram espagos ptiblicos populares manifestando-se particularmente através de uma abundancia associacionista, onde uma das principais reivindicagées foi a da organi- zag&o do trabalho (Chanial, 2001; Laville, 1999; Revue du Mauss, 2000). Diante do fracasso da profecia liberal, segundo a qual a supresso dos entraves ao mercado equilibraria, necessariamente, a oferta e a procura de trabalho, muitas reagdes asso- ciaram resolugaio da questo social e auto-organizacao popular. Nas associagées operdrias € camponesas interpenetram-se producZo em comum, ajuda miitua e rei- vindicagao coletiva. Elas esbogam o projeto de uma economia que poderia ser base- ada na fraternidade e na solidariedade, invalidando ao mesmo tempo a tese da descontinuidade entre espaco piiblico e economia (Laville, 2000). Entretanto, na medida em que progridem produtivismo capitalismo, esse ela de reciprocidade, atingido pela repressdio, se esvai. A solidariedade passa, progressiva- mente, a ter um outro significado, o de uma divida social entre grupos sociais e para com geragées passadas, que o Estado tem como missao fazer respeitar, canalizando 0s fluxos da redistribuigdo. Paralelamente, 0 associativismo pioneiro conquista seu espago, fazendo nascer ao mesmo tempo instituigdes diferentes como os sindicatos, as associagdes de socorros mutuos, as cooperativas € as associag6es sem fins lucr: tivos. Entretanto, este reconhecimento significa, paradoxalmente, o retraimento do projeto de um associacionismo solidério. Ele da lugar a organizacées de economia social que néo séo poupadas pela banalizagZo, O movimento sindical se distancia dele e pressiona pela instauragdo de um Estado-providéncia redistribuidor, bem como pelo reconhecimento de direitos sociais nas empresas. O Estado elabora um modo especifico de organizago, o social, que torna praticdvel a extensio da economia mercantil, conciliando-a com a cidadania dos trabalhadores. Entretanto, a seguridade obtida € paga com um abandono da interrogagao politica sobre a economia. © compromisso socioeconémico, obtido apés a Segunda Guerra Mundial, ali- mentou a esperanga de um progresso econdmico e social indefinido. Mas 0 neoliberalismo obrigou a virar a pagina dessa excepcional sinergia Estado-mercado. Ele se singularizou por um ataque sistemético as insténcias piblicas. Diante dessa ofensiva, a frgil articulagao entre altermundialismo e economia solidéria demons- tra o retorno de um questionamento politico sobre a economia no mesmo momento em que, segundo seus partidarios, a economia na sua versio liberal tinha conseguido impor-se definitivamente, O tempo da interrogagao sobre a contabilidade das ordens democratica e econdmica nio est4, pois, resolvido e este capitulo se termina com a caracterizagaio do momento atual com relago as outras situagées histéricas evocadas. Uma dinamica propria das democracias modernas No interior das sociedades divididas em ordens hierarquizadas, a honra se traduz pela conformidade com as qualidades atribuidas 4 ordem da qual se faz parte. Como o diz M. Weber (1995), a simetria no interior do grupo social € casada a assimetria entre grupos, cada um querendo preservar as marcas distintivas de seu estado e as- sim dele privar aqueles que nao s40 membros, visando manter um prestigio baseado na estratificagao social. Uma ordem social cuja estrutura se presume refletir uma transcendéncia, é subs- tituida, com a modernidade, por uma sociedade cujos processos de decisdes apelam para um debate sobre os fins que a coletividade se da, A dimensao teleol6gica ali menta-se com a confrontagao dos valores. E da distancia entre posigio social e aspi- rago a justica que nasce a nogio de “dignidade humana”, emancipando o individuo do grupo ao qual pertence para dotd-lo de uma historia individual. O modo de apre- ciagdo das contribuigées pessoais nao é mais indexado a uma ordem, ele se abre para formas diferenciadas de auto-realizagao. Entretanto, o advento de um pluralismo axioldgico é apenas uma tendéncia, os pertencimentos (de sexo, de raga, de classe, de tervit6rio...) permanecem pregnantes, a despeito do horizonte de emancipagao doravante perceptivel. Em suma, as relagdes de estima social sfo, nas sociedades modemnas, o desafio de uma luta permanente, nna qual os diferentes grupos se esforgam, no plano simbélico, para valorizar as capacide- des ligadas a seu modo de vida particular e demonstrar sua importdncia para os objetivos comuns (Honneth, 2000, p.154). Aessa luta simbélica, que P. Bourdieu situa numa “teoria puramente econémica do agir”, € uma assimilacao do sujeito a um agente, Honneth confere uma légica normativa, o modo de inscriga0 dos sujeitos em seu seio supondo, segundo ele, a passagem pelo sentimento de solidariedade. Para além do agir estratégico e instru- mental, para além dos determinismos sociais, 0 conceito engiobante de solidarieda- de designa as relacdes nas quais o sentimento de pertencimento envolve, precede e motiva as interagdes operadas pelos sujeitos. A solidariedade se define, ento, como uma motivagio da ago humana que ndo pode ser abordada no interesse coletivo, Sem negé-lo, ela o ultrapassa pela busca das condiges intersubjetivas da integridade pessoal, Existe uma abertura para a alteridade que nao dependeria de um paradigma utilitarista e que caracteriza a modernidade no que ela atenua o pertencimento as ordens, em proveito de uma igualdade de pertencimento & comunidade politica. O conceito de solidariedade encarando as rela- ‘Ges sociais numa perspectiva nao contratualista toma posstvel uma teoria social que nao seja focalizada no interesse. Ligado, por isso, A emergéncia da sociologia, ele permite identificar diferentes 16gicas de ago e admite que o interesse individual, se ele é uma motivac&o fundamental, no pode explicar todas as agGes humanas. Estima social e solidariedades A partir dessas premissas, para avangar na compreensdo da ago coletiva, con- vém situar as formas concretas de solidariedade que nelas se expressam. Um primeiro registro da solidariedade sublinha os pertencimentos herdados re- metendo a um espago comum nativo. Essas solidariedades herdadas, dando priori- dade a uma origem comum real ou imaginéria, longe de seem eliminadas na modernidade, nela sao reativadas de maneira recorrente como protegdes diante das incertezas sobre os valores. Contudo, sua solicitagdo nao é uma obrigacao, como na sociedade tradicional, ela se torna uma escolha: o refiigio na esfera privada ¢ as relagdes regidas pela tradic&o so af privilegiadas. Se ela guia-se assim pelo recurso A tradig&o, a modernidade torna poss{vel sobretudo a presenga de solidariedades construfdas, isto é, a afirmagao de bens comuns através dos quais sujeitos individu- alizados se engajam reciprocamente em relagdes de estima. Nem por isso estima significa igualdade. A diferenca é ilustrada por duas concepgées da solidariedade construida: solidariedade filantrépica e solidariedade democrdtica Com a solidariedade filantrépica, a ago para com outrem'se insere numa verso da cidadania responsével que integra deveres exercidos numa base voluntéria, os mais aquinhoados intervindo para aliviar os mais desprovidos e melhorar sua situagio. Se a solidariedade filantrpica pode “dignificar” o tratamento de problemas que néo teriam podido ser visualizados pelas populacdes que so vitimas deles, desprovidas para agir € serem ouvidas, ela contém 2 ameaca de uma “‘dadiva sem reciprocidade” (Ranci, 1990), s6 permitindo como retorno uma gratidao sem limites e criando uma divida que niio pode jamais ser honrada pelos beneficidrios. Os lagos de dependéncia pessoal que ela favorece correm 0 risco de aprisionar os donatétios na sua situago de inferioride- de, Em outras palavras, ela € portadora de um dispositivo de hierarquizacdo social e de manutengdo das desigualdades suportado nas redes sociais de proximidade. uma perspectiva internacional Agao publica e economia solidéria: -230 UD Pp CApONb wh ;ojWoUEDS 9 DINAAd op>y ¥@ Dene sino7-uoer | 5) A esta versio “benevolente”, opde-se uma versio da solidariedade como princf- pio de democratizagao da sociedade. Esta segunda versio supde uma igualdade de direito entre as pessoas que nela se engajam. A solidariedade democratica reivindica uma reciprocidade voluntéria estabelecida entre cidadaos livres. Nestas, a auto- organizacio € a expresso das relagdes de igualdade. Historicamente, ela assumiu as formas de agdes mais centradas na resposta a demandas ndo satisfeitas pelos grupos sociais envolvidos, servigos através da ajuda miitua e da reciprocidade entre pares Ela também adotou a forma de movimento social, buscando mudar as condigées de vida pela reivindicagao politica. Com a acentuac&o do pluralismo axiolégico, ele inclui ages criticando o sistema de delegago caracterfstico do protesto politico e querendo propor solugdes mais imediatas, nfo a partir das necessidades de uma categoria, mas através da discussdo entre as partes envolvidas; € 0 advento de uma reciptocidade multilateral (Gardin, 2004). O repertério das agdes coletivas solidatias , pois, complexo. Primeiramente, a solidariedade pode ser herdada, os participantes entregando-se a pertencimentos domésticos ou tradicionais. Em seguida, a solidariedade construida pode ser filan- tr6pica e homologar a desigualdade constitutiva entre doador e beneficiério. Final- mente, a solidariedade democrética no se condensa no movimento social, ela se amplia para a ajuda mitua e para a reunido de miiltiplas partes envolvidas. Entretan- to, apesar de Honneth, quando ele menciona a luta pelo reconhecimento, pelo viés da solidariedade, evocat sobretudo a figura do movimento social, com 0 risco de uma poda mitua, hé que se destacar que ele insiste, com razo, na relaco particular que mantém solidariedade democratica e obtengo de direitos subjetivos. Solidariedade democratica e direitos subjetivos Com efeito, na modernidade a relago jurfdica estipula o reconhecimento muituo, A introdugao dos direitos subjetivos, que sao os direitos civis, direitos negativos protegendo a pessoa diante do Estado; depois, os direitos politicos, direitos positi- vos garantindo a participago nos processos de formagio da vontade politica, afirma desde o.inicio a recusa as excegdes e aos privilégios, atribuindo esses direitos a cada homem enquanto ser livre, e no como titular de um estatuto particular. O respeito daf resultante nao se explica pela empatia, mas pelo postulado de uma racionalidade e de uma autonomia em cada cidadio, tornando concebivel o livre consentimento e a adesdo a normas juridicas comuns, E um processo de inovag&o institucional que é assim indissocidvel da modernidade democritica. O desafio de intimeras lutas sociais é a ampliagéio dos direitos individuais funda- mentais. Apés a instauragao dos direitos civis, os direitos politicos primitivamente limitados por consideragdes de sexo, de raga ou de fortuna foram gradativamente concedidos a todos os membros da comunidade politica, nao a partir do bem-querer das elites, mas apés 4rduas lutas reivindicativas, Depois, admitiu-se que 0 exercicio dos direitos politicos supunha condigdes de seguridade, de educacao, de satide; dai o advento dos direitos sociais, direitos positivos objetivando reduzir as desigualdades na distribuigdo dos bens elementares. A ampliago dos direitos se estende em dois niveis: a obtengdo de contetidos em direito mais ricos para cada membro da comuni- dade politica, para que os direitos possam ser realmente exercidos ¢ nao se limita- rem a garantias formais; a extenso do ntimero de pessoas e de grupos suscettveis de terem esses direitos concedidos, de modo que os dominios do arbitrario sejam cons- tantemente restringidos em nome de uma igualdade terica entre todos os homens. Por outro lado, os direitos subjetivos fornecem a oportunidade de se expressar pro- testos com relagao & justiga, permitindo ultrapassar a dependéncia, a solicitude e a benevoléncia com que so impregnadas, ao mesmo tempo, a solidariedade tradicio- nal ¢ a solidariedade filantrépica. Segundo Honneth, estima social e direito no sto separados, existe uma continui- dade entre solidariedade democratica e direito. Esta concepcio pode até ser prolonga- da pela afirmagio segundo a qual a solidariedade democrética reveste-se de duas fa- ces: uma face reciprocitéria designando o lago social voluntério entre cidadaos livres e iguais; uma face jurfdica e redistributiva designando as normas e as prestages estabelecidas pelo Estado para reforgar a coesdo social ¢ corrigir as desigualdades. A solidariedade democrética pode ser definida pela articulagiio de uma reciprocidade voluntéria respeitando a igualdade, de um lado; e, através de um reconhecimento juri- dico que assegura direitos e elabora as regras de uma redistribuigao publica, por outro lado. A solidariedade democrética que emana da ajuda miitua e da reivindicacio cole- tiva $6 pode emergir a partir da existéncia de direitos civis de alcance universal, mani- festando a realidade do respeito para com os outros. Em contrapartida, a solidariedade democratica abordada como uma reciprocidade voluntéria unindo cidadfios livres e iguais em direito, reagindo contra as desigualdades de condig6es, alimenta uma con- cepgao da aco publica na qual os poderes pitblicos so responsdveis pela instauragio de direitos permitindo conformar melhor a realidade com o princfpio de igualdade, inclusive mobilizando diferentes formas de redistribuiga Pode-se defender que a sociedade moderna corresponde & safda das sociedades de estatutos em que o prestigio de cada tum era adquirido pela conformidade de sua conduta com os valores do grupo estatutério. A comunidade politica moderna, ins- taurando direitos civis, engendra lacos de estima recfproca em que alguns deles se referem & democracia € nessa condigo participam da ampliagio dos direitos civis, mas também politicos e sociais Na sociedade moderna, a ordem do politico é levada a assumir a exigéncia de reconhecimento publico recfproco, A esse respeito, a lei que fornece a garantia obje- tiva de um reconhecimento segundo uma norma aceita por todos deve se articular com 0 reconhecimento inter-relacional bascado na igualdade (Hénaff, 2002). A ori- ginalidade da democracia moderna é fixar um horizonte de igualdade e de fraternidade que d& a possibilidade de um espaco reciprocitério inédito. Existe uma invengiio reciprocitéria moderna, pois a reciptocidade nao € 0 apandgio de relagdes primérias repousando nos lagos herdados, ¢ ela se expressa também pela auto-organizacao coletiva. Os grupos que se constituem assim comegam uma ago porque eles sentem na sociedade uma auséncia de considerag4o para com os problemas que eles esti- mam importantes ou porque eles suportam uma vivéncia que desqualifica devido ao déficit de inclus&o na cidadania. Seu esforgo coletivo €, pois, em parte dirigido aos poderes piiblicos aos quais eles dirigem reclamagdes em nome da igualdade. Em suma, a obra de Honneth concretiza a definicao do politico dada por Habermas, porque ela desenha os contornos empiricos do espago puiblico, informando ao mes- mo tempo sobre suas modalidades de constituigao e sobre as tensdes que o estruturam, As recomposi¢des do espago publico No que concerne ao processo de constituigdo do espago puiblico, as agdes cidadas que dele participam nao so apenas o fruto de uma ago racional; forgas emocionais ou afetivas af séo igualmente mobilizadas para tornar piiblicas questdes que eram da ordem do privado. A atividade comunicacional orientada para a justiga e a sincerida- de nao se reduz & troca de argumentos racionais, ela passa por atos que supdem uma convicgo ¢ um engajamento daqueles que os levam a cabo, tanto quanto esforcos de persuasao e até de sedugao. Em vez de ser abordado como um ideal de comunica- 0 racional, o conceito de espaco puiblico pode ser “sociologizado”, ao se interessar mais pelo proceso concreto pelo qual a separago entre a afirmacao democritica e @ realidade & questionada pelos cidadaos, cujas relagées so tegidas pelo princfpio de igualdade e de liberdade. Aprofundando assim a abordagem, sao as recusas de ional blica e economia solidéria: uma perspectiva internac 40 pul ae 250 9@ 0 9en/AB7 $1707-U09F | esNOUD ep o:poAb wn :o{WOUEDe @ DINGNd oD>w reconhecimento ofendendo os prinefpios democréticos que sfio entéo uma das prin- cipais molas da ago coletiva e da entrada em espaco ptiblico, O espago pitblico constitui simbolicamente a matriz da comunidade politica, mas ele é, também, nas formas de expresstio concretas através das quais ele se manifesta, uma arena de significacdes contestadas. Diferentes ptiblicos buscam nele se fazer ouvir e se opdem em controvérsias que nao excluem nem os comportamentos estratégicos, nem as tentativas de eliminag&o dos outros pontos de vista. Por exemplo, o espago ptiblico burgués, ao engendrar uma cultura distinta desta classe, lutou contra o absolutismo, mas reteve igualmente formas de expresstio popular. O espaco piiblico nasce de conflitos de que resulta uma filtragem dos discursos, alguns admissiveis em seu seio, outros rejeitados as margens. Donde o diagnéstico propagado de desfalecimento gradual do espaco puiblico. Sob 0 efeito da difusio de um modelo de comunicagtio promovido pelas midias de massa, ele abandonaria cada vez mais seu papel constitutivo de mediagio entre esfe- ras do mundo comum, Essa evolugao na qual o espaco ptiblico encontra-se obrigado pela presstio do poder administrativo e do mercado, agambarcado pelos imperativos sistémicos, foi abundantemente descrita. Nesse contexto, a vida democratica é entio suspensa a formagio de outras arenas de debates livres emanando da sociedade civil (Eme, 1993). Para se dar conta dessa tensao entre as dimensbes institufda e auténo- ma do espaco piiblico, convém falar de espaco publico policéntrico (Habermas, 1992, p. 175), de espagos ptiblicos plurais (Chanial, 1992, p. 68) ou considerar 0 espago pliblico como “um quadro estruturado onde se produzem a contestaco ou a negoci- aco cultural e ideolégica entre uma multidao de piblicos” (Eley, op. cit., 1992). Nessa reconfiguragiio permanente entre fechamento e abertura, as associagbes impulsionadas a partir de uma perspectiva de solidariedade democratica s%io ent&o determinantes para se opor a uma seletividade crescente na participagio no espago ptiblico e para se pleitear em favor de uma redugdo das desigualdades como condi- ao para um acesso livre. Sem essa reagao, os sentimentos de injustiga correriam 0 Tisco de s6 se expressar através de recusas, como 0 voto de protesto ou o recuo para as identidades herdadas; aqueles que se sentem rejeitados perderiam qualquer von- tade de se situar no espago ptiblico democratico ¢ qualquer confianga na capacidade que teria 0 direito de combater as experiéncias de desprezo que eles softem. Associagées e acdo publica A realidade associativa esté longe de ser insignificante na dindmica demooratica. Donde a insisténcia de varios autores sobre “as relagdes associativas” e a “posiggo eminente na sociedade civil” das associagées “ao redor das quais podem se cristali- zar espacos piiblicos auténomos” (Offe, 1989; Cohen; Arato, 1994). Essa valorizacao das associagbes néo deve conduzir A sua idealizago. As associ- ages nao escapam das evolucbes gerais da sociedade marcadas pelo predominio do dinheiro e do poder estatal. Particularmente, elas podem ser monopolizadas pelos objetivos de legitimagao do sistema politico pelo viés de procedimentos formaliza- dos visando & eficécia. A forma associativa pode ser utilizada pelo aparelho de Estado numa viséo funcional. £0 caso, por exemplo, quando os poderes puiblicos mobilizam as associag&es para organizar servicos ou para favorecer um acordo interinstitucional que as barreiras administrativas tornariam dificeis. Mais amplamente, as associag&es mantém relag6es estreitas com as politicas ptiblicas. As associagGes nZo so apenas expresso dos cidadaos, elas esto implicadas em relagdes de poder, porque elas “me- diam os conflitos ideoldgicos da sociedade global, contribuemn para a formagao das elites e para a estruturagao do poder local, e participam da definigao das politicas piiblicas, ao mesmo tempo em que legitimmam a esfera politico-administrativa’”, como o observa M. Barthélémy (2000, p. 16). Algumas delas esto institucionalizadas a tal ponto que elas se tornaram mais apéndices do aparelho do Estado que organismos independentes. Longe de expressar apenas a autonomia da sociedade civil, as associ- ages podem, pois, ser também encaradas “numa estratégia de controle social” como “9 prolongamento dos poderes institucionais, notadamente a Igreja, o Estado e as prefeituras que regulam e favorecem sua ago, com o objetivo de assegurar a adapta~ io e a integrago social dos individuos” (Ibidem, p. 59). . pois, importante se precaver contra o encantamento associativo. As associa- ges fazem parte de um “sistema politico” cuja légica é a racionalidade instrumen- tal, o que implica “comando, imposig&o, obrigago e dominagio” (Ladriére, 2001, p. 389-420). Mas convém nao cair por isso numa suspeita sistematica, A reflexio sobre a identidade e a vontade dos sujeitos democraticos nao saberia se dispensar de um levar em conta da agio associativa que liga estreitamente socializagio e individuagao democraticas. Existe uma “relago intrinseca” entre a democracia e as associagGes, Se todas as associagdes nado agem numa democratiza¢ao da sociedade, pois s6 0 fazem aquelas reivindicadoras de uma solidariedade democratica, isso nao impede que o fato associativo participe da ago piblica. Essa patticipagdo da aco associativa na ago publica confirmada pelos estudos historicos europeus (Evers; Laville, 2004) rejeita a concepgdo de uma sociedade civil como cavalo de Tréia do desengajamento do Estado. Mais precisamente, inter- vencdes publica e associativa nao esto segregadas numa relacdo de substituigao ou de concorréncia. Enquanto elas invocam em parte, em niveis distintos mas articula- dos, uma solidariedade democratica, elas participam da definico de novos compro- missos, suscetiveis de se traduzir seja pela influéncia crescente de légicas funcio- nais, seja por um reconhecimento da inadequagaio ¢ da incoeréncia dos sistemas que levam a articulagdes renovadas entre esses sistemas € os mundos vivenciados. Desse ponto de vista, convém estudar com aten¢%o 0 conjunto das interagdes entre poderes piiblicos e associagdes que se traduzem por efeitos muituos cuja intensidade e modalidades variam consideravelmente no tempo. Se as associagdes nfo podem ser apreendidas sem integrar a anélise da regulagdo ptiblica da qual elas s40 0 objeto, a0 mesmo tempo as formas que elas adotaram néio podem ser determinadas pela regulagao piiblica. A construcdo de campos de atividade nos quais intervém as associacdes nao pode ser inteiramente tomada a partir de uma perspectiva que torna aut6noma a ané- lise das politicas pttblicas. Essa construgao € historicamente influenciada pelas inici- ativas associativas de atores sociais diversificados que, pela sua existéncia, partici- pam da evolugdo das formas da regulacio publica. Ela no pode, portanto, ser enca- rada como o simples produto de uma construgiio “pablica”, mas antes como a resul- tante de processos de interagées entre iniciativas associativas e politicas pitblicas (Eme, 1996). A inovacio institucional visando ampliar os direitos a fim de que suas condigdes de exercicio nao hipotequem sua existéncia vem completar a colonizago sistemética da qual 0 espago puiblico é continuamente objeto. O. espaco piiblico é submetido 2 um duplo movimento: um procedimento instituidor de abertura para a formulagao de novos questionamentos emanando da sociedade civil, um mecanismo de encerramento sob a dominagao das Idgicas de sistema. Essa tensio entre amplia- io do espaco piiblico, através de posicionamentos sobre temas nao discutidos ante- tiormente, e restrig&o desse espago por monopolizago da expresso por parte dos Stupos sociais dominantes, constitui uma das molas da dinamica democratica. Na realidade hist6rica, essa dinamica democratica foi continuamente marcada pelo utilitarismo tendente a tornar absolutas economia de mercado ¢ sociedade de capitais. Essa naturalizagSo inerente A modernidade, periodicamente reatualizada, que retira do debate a economia, isolou a dinamica democratica. Sao essas relagdes entre demo- cracia e economia que a segunda parte procura colocar em perspectiva para abordar as dificuldades do presente, com a idéia central de que a a¢do ptiblica se inscreveu Aco poblica e economia solidaria: uma perspectiva internacional 270 82 O an/AD7 sin07-u0eF | esDUD ep C1poNb Wh :D}WoUD9 @ B2NaAd oDSy progressivamente na dependéncia da concepgtio dominante da economia e de que 0 papel atribufdo no seu interior &s associagdes € um balizador a este respeito. As relagées entre democracia e economia Antes mesmo de se concretizar as relagdes que acabam de ser evocadas, a saida das sociedades de estatuto, nas quais as relacdes entre grupos sociais eram reguladas pela tradig&o, traduziu-se pelo crescimento das incertezas, A uma sociedade expres- so de uma transcendéncia sucede uma sociedade confrontada com a incerteza sobre seus fundamentos (Lefort, 1981). Com a afirmagao da universalidade dos princfpios de liberdade e de igualdade, impSe-se a inquietude sobre as capacidades humanas de evitar 0 enfrentamento de todos contra todos. Como se abster do arrebatamento das paix6es, uma vez que as barreiras hierdrquicas nao garantem mais a coexisténcia entre os diferentes corpos? Essa interroga¢ao desemboca, como se sabe, numa resposta de um alcance con: derdvel: para se abster da violéncia das paixdes, importa dar mais lugar ao interesse; essa motivagao humana é portadora de harmonia social, pois “‘o doce comércio” se opée a guerra (Hirschmann, 1980). Desde a primeira metade do século XIX, a eco- nomia politica sugere pacificar a sociedade pela difusto da economia de mercado, A busca do interesse pessoal, que progressivamente se confunde como interesse mate- rial, € uma atividade civilizada e paoffica que autoriza uma resolugao do problema de confianga colocado por Hobbes sem passar por uma autoridade despética, A definicao de economia: uma questéo conflitual A entrada na modernidade democritica, se ela institui um tipo de relaco baseado na liberdade e na igualdade, nem por isso resolve a questo de sua regulagdo. O mercado se apresenta nesse contexto como um principio de coordenagio podendo contribuir para a resolugao desta. Por conter a forca destruidora das paixdes numa coletividade liberta de qualquer garantia exterior ou transcendente, 0 princfpio do mercado € dotado de uma virtude devida a “inocéncia e & dogura do comércio e do enriquecimento”. A esfera econdmica mercantil ganha uma importancia crescente na organizagao das relagdes entre individuos livres. As relagGes mercantis parecem suscetiveis de refrear a violéncia inerente &s rela- Ses humanas e o comportamento ditado pelo interesse econémico é dotado de um potencial pacificador num processo “que terminar esvaziando a nogo de interesse de qualquer conotago que nao seja econdmica” (Ibidem). A partir do século XIX, as, sociedades democréticas confiam uma parte de sua regulagiio ao mercado, movido por uma mao invisfvel, que fabrica 0 justo sem se preocupar com justi¢a, transfor- mando os vicios privados em beneficios piiblicas. Em um mundo em que paira a ameaca do caos, a procura por atividades lucrativas e a acumulagdo de riquezas, cuja condicdo reside na retirada das proibices que restrinjam os funcionamentos do mercado, parece poder fornecer um fundamento realista para uma ordem social vié- vel que apresente a vantagem da previsibilidade e da constancia, evitando ao mesmo tempo um retorno & ordem antiga. Entretanto, a economia mercantil nao péde realizar a promessa de paz social da qual ela era portadora. Pelo contrario, sua difusao fez nascer uma questo social cuja acuidade resulta da extens&o imprevista da pobreza. Diante dessa questo social, para os liberais, importa acelerar o processo de_safda das estruturas sociais hierarquizadas proprias do antigo regime e impulsionar ainda mais a efetivagio de uma ordem econémica baseada no interesse. Seu golpe consiste em postular que o advento de um mercado basta para realizar 0 projeto democratico e a paz social pela simples conjugagao dos interesses individuais, Seguindo Smith contra Rousseau (Ferry, 1991, p. 165-168), eles afirmam que 0 bem piblico é 0 produto desses inte- resses € nao pressupde um acordo das vontades. O contrato mercantil pode fazer sozinho 0 oficio de contrato social. O equilfbrio entre a oferta e a procura de trabalho nao pode senfo se estabelecer a partir do momento em que o Estado assegure 0 bom funcionamento dos mecanismos de mercado. O mercado garantindo o acesso ao trabalho bastaria para eliminar a pobreza. Da extensao dos direitos civis resultaria uma tendéncia & igualdade das condigées. Essa versio otimista é profundamente contestada pela amplitude do empobreci- mento que interpela essa pretensa auto-regulacao. Pelo contrdrio, a contradigdo en- tre a liberdade politica e a dominagao econdmica torna-se insuportdvel. Para muitos pensadores e operdrios confrontados com a miséria, a amplitude intolerdvel das de- sigualdades obriga a se voltar para um mecanismo de coordenac&o oposto ao inte- resse. A associagdo, como Iago social voluntério entre cidadfios livres e iguais, é entdo afirmada como outro principio de organizagao social. Em contextos tao dife- rentes quanto a América e a Europa, as experiéncias associacionistas se multipli- cam; elas misturam socorro mituo, produgao em comum e reivindicages reclaman- do uma regulago politica da economia. Confirmando os argumentos adiantados na primeira parte, o estudo hist6rico desses movimentos mostrou que eles poderiam ser inteiramente referidos ao interesse coletivo; pelo termo economia moral, E. P. ‘Thomson (1988) sublinha a expectativa de reconhecimento e de respeito que suben- tende as formas de auto-organizacao operdrias. Essa gramatica moral das lutas soci- ais, segundo a expresso de Honneth, é confirmada por B. Moore (1978) a propésito da Alemanha, explicando que a revolta no interior do proletariado nao vinha da caréncia econémica, mas partia da ameaga sentida sobre a identidade coletiva. O século XIX testemunha a imbricacao entre debates politicos ¢ praticas econd- micas. Qualquer que seja a diversidade das experiéncias iniciadas pelos trabalhado- res, sua especificidade pode ser medida por dois tragos: —o agrupamento voluntério se enrafza na referencia a um lago social democrati- co que se mantém pela operacionalizaco de uma atividade econdmica. A participa- gio nessa atividade nao pode ser desligada do laco social que a motivou; ~ a ado comum, por ela ser baseada na igualdade entre os membros, capacita esses membros para serem ouvidos e agir em vista de uma mudanga institucional Por essa dupla inscrig&o a0 mesmo tempo na esfera econ6mica e na esfera politi- ca, se expressa no espaco piblico a reivindicagao de um poder-agir na economia, a demanda de uma legitimacao da iniciativa, independentemente da detengao de um capital. E exatamente a solidariedade democratica que € mobilizada para que os exclufdos sejam admitidos no espaco publico e ao mesmo tempo para organizar a economia, A historiografia, sintetizada por N. Fraser (2003), revela que espacos piblicos populares foram criados como reago contra as exclusdes (de género, de classe, de sexo) inerentes ao espago piiblico burgués; uma das diferengas entre esses espagos populares e 0 espaco burgués era justamente incluir no espaco puiblico as questdes econémicas. Tratava-se de realcar a contradigio entre a afirmaco igualita- ria e a persisténcia de desigualdades como dominagées na democracia realmente existente. Tratava-se também de interrogar a compatibilidade entre a liberdade poli tica e a subservigneia econdmica, a0 mesmo tempo pelo apelo a uma intervencao piiblica e pela pratica da associagdo na organizagdo do trabalho, isto é, de uma eco- nomia baseada na solidariedade democratica. Essa tentativa de politizar a questo econdmica, pela demanda de legislag6es pro- tetoras dos trabalhadores, bem como pela instalagdo de atividades onde a rentabilidade do capital nao ocupasse o primeiro lugar, foi objeto de uma repressdo mortifera, sim- bolizada na Franga pelo esmagamento da revolugo de 1848, ou nos Estados Unidos pelo que H. Zinn (2002) chamou “a outra guerra civil”. As redes e organizag6es balbu- |a; uma perspectiva Internacional 5 Ago publica e economia sol 2a jwouose @ panand opdy 0€ C1 anAp7 syno7-upar | esNUD ep ospoAb UN 2 ciantes através das quais se construfa essa solidariedade democratica baseada na asso- ciagio igualitéria foram desmanteladas antes de terem podido se estabilizar. ‘A historia do século XIX 0 prova: a expans&o da economia de mercado niio se fez pela harmonia dos interesses, Longe disso. Foram as mudangas do quadro institucional que forneceram progressivamente as induistrias nascentes 2 forca de trabalho que elas reclamavam. Essa colocagao no trabalho se operou através da desestruturacao dos modos de vida tradicionais e da supressao de protegdes antigas. Inicialmente, a misé- ria e a pobreza empurram os camponeses para a cidade. Depois, apés esse éxodo, vem aerradicagao das formas de auto-organizagio coletiva. Finalmente, durante todo esse periodo, os poderes piblicos favorecem a solidariedade filantrépica em detri- mento de uma solidariedade democrética, sempre suspeita de esconder conluios re- volucionérios, Ao sair de uma fase de intensa criatividade e de violéncia, onde se enfrentaram diferentes possibilidades de construgao da economia, a instdncia estatal favorece uma economia mercantil constituida a partir da livre circulagéo das merca- dorias, na qual 0 poder nas unidades de produgao esta ligado & detengao do capital. A empresa moderna aparece dotada de uma conta de capital “a respeito do qual qual- quer medida tomada se torna objeto de célculo, isto & um objeto em fungao do qual so avaliadas as chances de troca lucrativa” (Weber, 1991, p. 15). A empresa capita- lista, pela acumulago de meios que ela autoriza, permite tirar vantagem da extensto do dominio mercantil de concorréncia. O reconhecimento da sociedade por agdes dé os meios para uma concentragio de capitais inédita, pois os direitos de propriedade podem ser trocados sem que os detentores tenham necessidade de se conhecer, a mediagao da bolsa garantindo paralelamente uma liquidez para seus bens. Na medida em que a conta:de capital tornou-se universal, ela € doravante ~ e com ela as chances de operacdes mercantis — tanto o horizonte da troca das mereadorias quanto aque- le da produgao (Ibidern), Desde ent 0 liberalismo econémico, apesar da contestacao marxista, se impée. A aceitagio do politico e da economia encontra-se assim modificada. Estado social e mercado: um compromisso sdcioecondmico O desencaixamento politico da economia é assim levado pelo liberalismo, mas contrariamente ao que péde estimar Polanyi, minimizando a dinamica democratica, ele jamais pOde se consumar inteiramente, pois ele teria significado uma inconcebi- vel perda de legitimidade. Os espagos piiblicos populares testemunhando um questionamento politico so- bre a economia nao foram apenas revoltas esporddicas, eles engendraram reivindi- cagdes conduzindo 2 institucionalizagao de formas juridicas de empresas néo tendo como base a maximizagdo do rendimento capitalista. O associacionismo pioneiro desemboca, apés lutas severas, e apesar de suas derrotas, em estatutos juridicos que retomam uma parte de suas demandas, a saber, a legislacdio de associagdes de pesso- as: drgtios de defesa como os sindicatos, combinagoes de agrupamentos de pessoas e de atividade econdmica que nfo sao controladas pelos investidores, como as coo- perativas e as organizagbes mutualistas, reuniGes para a ago comum com as associ- agées. Isto posto, esses estatutos introduzem diferenciagSes contrarias ao ela associacionista inicial. Os sindicatos se singularizam em seu papel de representagao de trabalhadores, As cooperatives so distintas das organizagoes mutualistas, as pri- meiras tornando-se uma forma particular de sociedade de capitais centrada na fun- cao de produgao ou de consumo, enquanto que as segundas se concentram na fun¢ao de socorro; as atividades criadas para defender uma identidade coletiva ajustando-se as regras do sistema do qual elas fazem parte, em retorno vao modificar profunda- mente as relag6es de ajuda miitua que estavam na sua origem. Quanto ao estatuto de associagdo, menos estreito no seu objeto, vé-se limitado desde quando ele é acoplado a uma atividade econdmica. Logicamente, as diferentes estruturas oriundas do associacionismo pioneiro aparecem cada vez mais separadas. A explosiio é induzida por estatutos separando o que, anteriormente, estava reunido, Essa especializacio denota a tendéncia & baixa da intervengao da sensibilidade associacionista na esfera politica. B verdade que as experiéncias conduzidas produzem efeitos importantes com as sociedades de socorro miituo que, pela previdéncia coletiva que elas ati vam, prefiguram ¢ modelam em parte os mecanismos de seguro. Entretanto, a légica de reagdo para com os efeitos do capitalismo se atenua em proveito de uma légica de adaptagao funcional a esse modo de produgao, Para além dos estatutos do que € denominado economia social (associagées, co- operativas, organizacdes mutualistas), os espagos ptiblicos populares, pela articula- 80 propria & solidariedade democratica entre agdo voluntéria e responsabilidade publica, fizeram avangar, sobretudo, os direitos sociais. Esses direitos sociais vao progressivamente atenuar a profundidade do abismo que separa os detentores do capital e os proletérios, possuidores apenas de sua forga de trabalho. Diante da misé- ria secretada pela revolugdo industrial, nasce a necessidade de normas sociais de justiga, certificadas pelo Estado social, suscetiveis de corrigir as numerosas pertur- bag6es engendradas pela difusio da economia mercantil. A proibicfo do trabalho das criangas e a limitag&o da duragao do trabalho sdo promulgadas por governos submetidos a pressdo operdria. O Estado, expresso da vontade geral, torna-se depo- sitério do interesse geral, que ele pode mobilizar gragas & agtio da administragao. Graduaimente, o Estado social, nos paises europeus onde ele adquire maior amplitu- de, torna-se o fiador da solidariedade; aos lagos solidérios horizontais que repousa- vam no engajamento sucedem direitos positivos de vocagao universal, contudo tor- nando a solidariedade mais abstrata ¢ a confiando ao Estado, Neste caso, o eld associacionista que havia constituido a primeira reagao da soci- edade contra as desregulamentagées ocasionadas pela difuséo do mercado, progres- sivamente cedeu o lugar a intervenco do Estado. O Estado elaborou um modo espe- cifico de organizagao, o social, que torna praticével a extens’o da economia mercan- til conciliando-a com a cidadania dos trabalhadores. Dado o lugar conferido a eco- nomia mercantil, as fraturas por ela introduzidas devem ser cortigidas pela interven- go reparadora de um Estado protetor, donde a concepeao de um direito social com- posto por um direito de trabalho na empresa e por uma protegao social destinada a premunir contra os principais riscos. A questéo social do século XIX desembocou na separagao do econ6mico, na sua acepgao de economia mercantil, e do social, modo juridico de protegao da sociedade que se elabora a partir do trabalho nos dois regis- tros ligados do direito do trabalho e da protegio social. Um tal compromisso basea- do na separagio e na complementaridade entre mercado e Estado social se reforga continuamente durante os trés primeiros quartos do século XX. Economia social, direito social, Estado social: evidentemente 0 social nao é ape- nas um viés para acalmar as paixées politicas, como o diz Donzelot, nem unicamente o dominio da influéncia da necessidade sobre a ago politica de que desconfia Arendt. Ele antes instaura um regime no qual a autonomia da economia de mercado é contra- riada por regras politicas conferindo formas de propriedade e de seguridade aos traba- Ihadores. O movimento politico operdrio nao se resume ao surgimento de experiéncias revoluciondrias fugazes, ele engendrou modos de institucionalizagao que, se eles nao puderam realizar a esperanga de uma sociedade igualitéria moderna, contudo impediram que o poder capitalista exercesse a dominag&o sem partilha. O processo de institucionalizagao evocado na parte precedente deste texto € atestado empiricamente pela invengao do social, tanto nas suas relagdes como em seus limites. Foi apés a Agao publica e economia solidaria: uma perspective internacional a0 ZO enia07 sino7-upar | asjipuD ap o1poNb wa :DJWOUODe @ DINgAd OpAY Segunda Guerra Mundial, sob a necessidade de escorar os consensos nacionais, que a complementatidade entre Estado e mercado ganha toda sua importéncia. O Estado keynesiano assume entio como tarefa favorecer o desenvolvimento econdmico atra- vés de novas ferramentas de conhecimento e de intervengao. O Estado concentra no- vos meios para a ago econémica num contexto de interpenetraco, muito mais acen- tuada que antes da guerra, da administragao e da economia mercantil. O investimento piiblico na ordenacio do territério e nos setores industriais mais sensiveis, a politica ativa em matéria de mercado do trabalho e de salérios permitem encontrar formule estdveis de acomodagdo entre os interesses préprios das empresas e os interesses ge- rais da sociedade, A livre determinagio dos saldrios pelos empregadores € substituida, sob 0 controle do Estado, pela negociagio periddica das convengées coletivas entre parceiros sociais, orientadas para os aumentos do salério nominal em conformidade com os ganhos de produtividade antecipados e a inflagao. Mas a principal inovacdo reside na importéncia assumida pelas rendas de trans- feréncia através das quais o Estado social se move para o que se chamard 0 Estado- providéncia: a instituigdo deste tenta realizar a promessa de proteger 0 cidado dos tiscos ligados & doenga, ao acidente, A maternidade, & velhice ou A inatividade forga- da. Dirigindo-se a uma populagéo marcada pela depressio dos anos 1930e& procura de justificativa para seus sacrificios de guerra, a generalizagiio da proteco social deve contribuir para a seguridade de todos. O Estado-providéncia prolonga as for- mas precedentes de Estado social com a seguridade social e a generalizagio dos sistemas de protegao social. O Estado enquadra e apdia o mercado tanto quanto ele corrige as desigualdades. A sinergia entre Estado e Mercado se manifesta particular- mente pela difusdo do estatuto salarial, gragas a um fluxo regular de criagdes de empregos e gracas a ganhos de produtividade elevados, permitinco negociagbes sa- lariais periédicas. O estatuto salarial realiza um casamento inédito entre trabalho e protegdes que faz dele um vetor privilegiado de integragao social. Um sistema predominantemente capitalista Nesse quadro, uma economia nao mercantil baseada na redistribuicdo publica vern completar a economia mercantil. As organizagdes mutualistas e as associagdes, que forneceram na 4rea da proteco social e das politicas sociais a matriz de numerosas acées pablicas, continuam a fazer parte da previdéncia coletiva como dos servigos sociais, com uma dependéncia crescente do Estado em termos de financiamento e de regulamentagao, A formagio desse vasto complexo de economia nao mercantil valida a intuigao de Mauss, segundo a qual a seguridade social constitui um prolongamento do espirito da dadiva, pelo misto de obrigacao e de liberdade contido no principio de mutualizagao. A existéncia desse conjunto confirma também a disting&o que ele adian- ta entre sistema capitalista ¢ sistema predominantemente capitalista. As instituigdes evolutivas da economia fazem coabitar economias freqiientemente opostas, cujas rela- Ges dissimétricas no impedem a co-presenga. Nao h4 um modo tinico de organiza- 40 da economia que seria a expressfio de uma ordem natural, mas um conjunto de formas de produgo e de repartigao que coexistem. Nao ha sociedades exclusivamente capitalistas... $6 ha sociedades que tém um regime, ou ainda — 0 que é ainda mais complicado — sistemas de regime de econo- mia, de organizago politica; elas tm costumes e mentalidades que se pode mais ou menos arbitrariamente definir pela predominancia de tal ou tal desses sistemas ou dessas instituig6es (Mauss, 1997, p. 565). Para Mauss, as representagGes individuais induzem agGes e préticas sociais que as instituigdes normalizam pela politica, tracando 0 quadro no qual as praticas podem se desenrolar ¢ influenciando regressivamente as representagées. As instituigdes so va- ridveis porque s40 convengées sociais que ao mesmo tempo expressam e delimitam 0 campo das possibilidades; seu estudo pode permitir adquirir “a consciéncia precisa dos fatos ¢ a apreensio, sendo a certeza de suas leis”, ele ajuda também a se desligar dessa “metafisica” de que so impregnadas “as palavras que terminam com iso”, como capitalismo (Ibidem, p. 535). Afirmar a existéncia de uma sociedade capitalista equivale a supor uma coordenagao perfeita das representag6es individuais; existe na verdade uma dominante capitalista, visto que “um sistema econémico se compde de mecanismos institucionais contraditérios, irredutiveis uns aos outros”. A aceitagio social dessa predominancia apdia-se no descrédito dos outros projetos visando a transformagiio da economia. Enquanto o projeto de revolugio social fracas- sa por ocultagio da dimenstio democritica, 0 projeto de economia social se dilui Uma franja crescente do movimento operdrio se desviou da auto-organizagao coletiva para se orientar no sentido de uma estratégia frontal de luta de classes, implicando numa organizagao centralizada ¢ numa abordagem do sindicato como uma correia de transmissio do partido. A prioridade dada & conquista do aparelho de Estado, o papel confiado as vanguardas, a focalizagao na propriedade coletiva dos meios de produgao na mudanga revolucionéria sistematizaram um desprezo dos qua- dros institucionais democréticos, reduzidos a superestruturas a servigo da burguesia. Essa negligéncia expressa para com 0 espago piiblico engendrou a confusio que se sabe entre controle do Estado e controle cidad&o, a estatizagao autoritdria das infraestruturas casando-se com a vigilancia policial das atividades politicas, num totalitarismo que constituiu uma repugnancia tal que ele forneceu argumentos cons- tantes ao liberalismo sobre a inanidade de qualquer pretensio alternativa. A economia social nao pode, por sua vez, restaurar um tal horizonte. Concebendo- se a partir da centralidade do modelo cooperativo, representando-se como um con- junto de empresas coletivas que devem se impor ao mercado para convencer de seu bom fundamento, ela se encerra numa viséo da mudanga pela consolidagao das expe- tiéncias econémicas; como se o valor da exemplaridade bastasse para difundir 0 modelo. O relativo sucesso econémico teve como contrapartida o retraimento do pro- jeto de mudanga social, através dos fenémenos bem conhecidos de isomorfismo institucional atenuando seus tragos espectficos e concorrendo para sua banalizagio. A constataciio de uma inversdo em que as relagées de atividade econémica primam sobre as relagdes de associacao originais, tal como operado por C. Vienney, pode ser considerada como o desfecho légico da trajetéria de uma economia social que redu- ziu sua dimenso sociopolitica aos funcionamentos internos das organizacées. Per- dendo-se na busca de um crescimento de seu peso econdmico, ela negligenciou as instancias politicas da mudanga para além do lobby corporativo e se concentrou em formas de propriedade de empresa em detrimento de uma reflexdo sobre a construcZo dos mercados e sobre o lugar dos outros principios econ6micos. A economia social padeceu igualmente pelo seu ecletismo ideolégico, integrando uma solidariedade fi- lantr6pica encorajada pelos poderes dos notaveis e agregando-a & solidariedade de- mocrdtica da qual se viu a maneira pela qual ela tinha sido constantemente reprimida, Altermundializa¢ao e novo questionamento politico da economia Contra uma anélise da “invengio do social” (Donzelot, 1984) que faz dela um meio para acalmar as paixSes politicas, importa lembrar que 0 social sé emerge como categoria separada a partir da despolitizagao da questo econémica. E a re- niincia a uma extensao do espago piblico na economia que faz emergir 0 social sob a responsabilidade estatal no século XIX. Simbolizando a fungdo de vigilancia e de protegao exercida pelo poder piiblico, 0 social constitui no século XX “uma das formas de legitimagao do politico”; mas apenas apds a Segunda Guerra Mundial 6 AcGo publica e economia soliddria: uma perspectiva internacionat 30 2n1407 $1n07-UDEF | @SNQUD 9p OPEN Wh :pIWOUOD® © Bonaad ondy “oO registrada ura mutago decisiva caracterizada por uma quédrupla extensio da economia, da industrializagfo, do assalariamento e da agdo social estatal (Lazar, 2000, p. 341-352). O casal formado pela economia de mercado ¢ 0 Estado social desemboca no compromisso fordista (Boyer, 1987) ¢ providencialista (Bélanger; Lévesque, 1991) proprio do perfodo de expans&o dos Trinta Gloriosos. Ele testemunha uma regulacio do mercado pelos direitos concedidos aos trabalhadores, bem como um movimento de desmercantilizagao de certas atividades atestado pela criagao de servigos sociais universais e gratuitos. Essas aquisicdes tém, contudo, contrapartidas que provém do espago nacional ao qual elas se limitam, como da auséncia de participagao, tanto dos assalariados na organizagao do trabalho quanto dos usuarios na definigdo dos servi- gos que Ihes so destinados. : O compromisso socioeconémico dos Trinta Gloriosos apresenta uma mistura particular de liberalismo econémico e de corretivo social repousando em duas ambi- gitidades pesadas em conseqiléncias. —O monopélio da criagdo de riquezas pela economia mercantil é af avalizado. O crescimento mercantil deve ser otimizado para que as politicas sociais ganhem mais, amplitude, pois elas sio condicionadas pelas retiradas efetuadas na economia de mercado. Em outras palavras, a solidariedade ¢ indexada as performances da econo- mia mercantil. — A economia nao mercantil se elaborou na “desprivatizagao” de atividades na satide, nos servigos sociais, na educagao. Anteriormente domésticas ou filantrépi- cas, elas foram assumidas pelo Estado fiador do interesse geral. Existia um consenso para que esses servigos fossem da algada da responsabilidade ptiblica, 0 que mani- festava sua “desmercantilizagao”, segundo a expressao de G. Esping-Andersen (1990). Mas os usuarios, vendo garantido seu acesso aos servigos gracas & gratuidade ou & modicidade dos pregos praticados, sao paralelamente exclufdos da concepgao de servigos que Ihes so, entretanto, destinados. “providencialismo”, segundo P. R. Bélanger e B. Lévesque (1991) faz do usudrio um submisso. Essa fraqueza constitutiva explica a crise interna do Estado-providéncia, identificavel desde os anos 1960 em diferentes movimentos de usuérios. Confortada pelo desmoronamento dos regimes comunistas, que valida o slogan segundo qual ndo haveria altetnativa vidvel, a ofensiva neoliberal se apdia em duas ambigilidades. A hipdtese defendida € a de que o potencial da economia de mercado é entravado por um conjunto de regras paralisantes para o impulso da ativi- dade. As politicas neoliberais embleméticas do final do século XX confiam nos mecanismos de mercado para substituir regulagSes consideradas como portadoras de rigidez. O compromisso fordista tinha sua coeréncia; 0 melhoramento dos direi- tos sociais ¢ do poder de compra, o consumo de massa tornado possivel pelo desen- volvimento de atividades industriais de forte crescimento de produtividade vinham compensar 0 peso das hierarquias e a desqualificacio das tarefas. A desagregagao dessa coeréncia coincide com a globalizagao que lhe é associada. A difusao do pro- gresso técnico, concomitante com uma internacionalizag&o das trocas e uma indus- tializagao de paises de nivel de vida baixo, provoca uma intensificagao da concor- réncia comercial entre as empresas, mas também entre os assalariados no interior de um pais, como entre pafses. A flexibilizagZo do trabalho (Nanteuil; El Akremi, 2005) caminha com um guestionamento do caréter nao mercantil de diferentes atividades. A burocratizacao, © desperdicio de recursos, a inadequagao com as demandas do usudrio seriam carac- terfsticas do servigo puiblico. Unico remédio: reencontrar af novamente a superiori- dade dos mecanismos de mercado privatizando os servigos ptiblicos (telecomunica- es, transportes, energia...) em nome da eficdcia econdmica. Além disso, a prote- go social nfo escapa de uma conversao parcial, através da extensdo de um mercado de seguro e da seguridade, Sao também as atividades precedentemente desmercantilizadas gragas ao Estado-providéncia que so atingidas: cultura, esporte e lazer, saiide, aco social, servigos dedicados as pessoas... A puisagem que se descobre nesse periodo de mutagbes € bem diferente daquela que oferecia 0 perfodo de expansio que a precedeu: as protegdes sociais ligadas a0 trabalho so questionadas, atividades como a informagio ou a cultura so anexadas pelo mercado, levando alguns a falar de capitalismo cultural ou cognitivo. A propria economia ndo mercantil, que tinha sido constituida para que a vida social fosse em parte preservada do mercado, adota referenciais quase mercantis. A extenso continua das trocas monetdrias restringe a capacidade de auto-organizagio das populag6es, que elas experimentavam, por exemplo, nas atividades nZio monetérias de auto-producio, e faz crescer sua dependéncia de rendas diretas ou indiretas (Cérézuelle, 1996); enfim, a concepgdo das trocas monetérias pelo modelo do mercado concorrente reduz a auto- nomia do setor nfio mercantil. Assistimos, verdadeiramente, a um triunfo cultural do mercado no tltimo quarto do século XX, a tal ponto que os arautos do liberalismo apresentam como tinico modelo possivel. Mas em face desse determinismo econémi- coe diante da agravagio inaudita das desigualdades, tanto em nivel nacional quanto internacional, protestos comecaram a se fazer ouvir nas reuniGes da “antimundializagao”. Essas grandes manifestagdes colocaram em maus lencéis o pessimismo veiculado pelo discurso da crise do politico e do recuo individualista. Quando os Estados pareciam estar irremediavelmente abalados pela globalizagao e os motivos da ago humana pas- siveis de ser reduzidos ao estrito interesse material, aparecem hoje formas inéditas de engajamento piiblico. Blas apelam para uma solidariedade renovada que se recusa a se deixar prender nas fronteiras estreitas do Estado-nagio. Uma contribui¢o maior dos féruns sociais, simbolos de uma sociedade cfvica inter- nacional a emergir, € a abertura para novas concepgdes da mudanca, O sentimento de impoténcia que os f6runs permitiram ultrapassar no vinha apenas da forga da ideolo- gia neoliberal, ele se atinha também 2s dificuldades em recolocar em debate as visdes alternativas amplamente dominadas por vanguardas impregnadas de tradigZo autorita- ria, Estas, ao se arrogarem um direito de interpretaco das reivindicagGes e ages cole~ tivas, invalidaram qualquer tentativa que ndo Ihes parecia capaz de “inverter o siste- ma”, © sucesso dos féruns reside em sua emancipacio dessa ret6rica, Numerosas inici- ativas, de tamanhos variados, puderam af ter seu espaco. A presenga de atores descon- fiados diante de qualquer pretenstio em deter a verdade do social-histérico, mobilizados pelo encontro, pesou na inflexao do antimundialismo para o “altermundialismo”, do encontro que so esperados a reflexo e um aumento de inteligibilidade suscetfveis de alimentar a ago, nfo do carisma profético ou da imposigao de uma linha politica. Como defende Whitaker, um dos iniciadores do Férum Mundial, pela sua organizacéo frégil, mas original, os féruns preservam a diversidade no seu interior, desempenhando um papel de incubador de movimentos, e nao de movimento social. Evidentemente, com 0 tempo, as questes sobre 0 controle, a lideranga, a instrumentalizacao pelas organizacOes mais estraturadas tormam-se mais presentes. As tensGes que daf resultam, entretanto, nao fariam esquecer a amplitude da participagao explicando-se pela mutualizagao das experiéncias e a confrontag%o que eles permitem. Privilegiando a troca em detrimento das palavras de ordem, os foruns foram os catalisadores de um desejo de politica permanecido anteriormente difuso. Sua dinami- cas6 pode se manter se, para além dos encontros simbdlicos, uma outra mundializacao se construa no quotidiano; donde o aco a operar entre politica e economia. Sabendo que os equilfbrios sociais-democratas do século XX nao podem mais ser mantidos no estado em que se encontram e que colocar a economia sob a depen- Agéo publica e economia soliddria: uma perspectiva intemacional 30 9 C1 @nMK_7 s’n07-uDEF | OsNOUD ap o1pEAb WA :D1WOUOD® @ DZNGAd ODS¥ déncia do politico conduz ao totalitarismo, o desafio consiste em inventar novas formas de regulagao democrética da economia, Essa exigéncia supde questionar a principal mensagem ideol6gica do neoliberalismo, a saber, que s6 a economia de mercado € criadora de riquezas e de empregos. Com efeito, a realicade nao corresponde a essa representaco, as formas de economia sio plurais. A economia de mercado coabita com uma economia ptiblica e também com prestagées efetuadas gratuitamente em quadros familiais, amicais e associativos. Existem, pois, “outras economias” baseadas nas solidariedades e € importante que a difamagao sistematica de que elas sdo objeto dé lugar a umn verdadeiro conhecimento, tornando-as mais visiveis. Levé-las em conta e amplificé-las é uma condig&o para que cada um possa retomar poder nos seus atos. Donde a imbricagao entre a aspirago politica a uma outra mundializagio e 0 reconhecimento de miiltiplas iniciativas solidérias. Nao € por acaso que os debates dos féruns sucessivos concedem um lugar crescente & economia solidéria, pois se trata de ligar a contestagao politica da globalizag&o atual a préticas de cidadania econémica. A articulacao entre resisténcia ¢ construgao passa pela introducao de comportamentos solidérios nos atos econémicos mais cortentes (criagdes de novos servigos ¢ modos de trocas, produg&o, comércio, consumo, poupanga...). Uma abor- dagem renovada da mudanga social se precisa assim: 4 colocagdo em debate de praticas visando a democratizagao da economia permite atacar concretamente a “na- turalizagZo” da economia mercantil dominante. Como o mostrou Mauss, trata-se, reconhecendo ao mesmo tempo a legitimidade da economia de mercado, de desconstruir 0 reducionismo que interpreta qualquer forma econémica apenas a par- tir do interesse material. O estudo histérico ¢ empirico dos fendmenos econdmicos evidencia sua realidade plural. Essa diversidade deve ser preservada por meios vari- ados; por exemplo, abrindo 0 servico pablico expresso dos cidadaos que dele sto 08 usuarios, suprimindo as discriminagGes negativas das quais sao vitimas as inicia- tivas de economia solidéria, dando lugar na legislago a empresas nas quais a proprie- dade nao pertence aos detentores de capitais, mas as partes participantes na ativida- de, enquadrando ao mesmo tempo institucionalmente 0 mercado através das regras referentes & justiga e aos direitos sociais. Ameacada pelo desejo de poder, a pluralidade torna-se penhor de uma sociedade humana. Diversidades politica e econdmica se apdiam € se mantém mutuamente, ao mesmo tempo em que reforgam os didlogos interculturais. Nao é um transtorno brutal que pode dar lugar a tais transformacdes. Ao imaginério da ruptura sucede um imaginério das “hibridagdes”. Os féruns esbo- gam um esforgo de elaboragao coletiva caminhando nesse sentido. E verdade que os apelos para uma revolugao violenta ainda se fazem ouvir, mas eles so recobertos Por outras vozes fazendo referéncia a um mundo menos desigual, onde as escolhas econdmicas sejam submetidas a uma apreciagao politica permanente. A adogao da denominagao altermundializacao sublinha, contra as invocacées simplistas de uma harmonia restaurada entre economia e sociedade, 0 cardter indis- pensdvel de anélises e de agdes centradas na possibilidade de “um outro mundo”, sem eludir os problemas de transi¢éo ¢ com a consciéncia de que a aceitagao da democracia profbe qualquer sonho de reconciliagao final. Eis porque, inversamente a observagdes que olham com suspeita a altermundializagao, € possivel escolher a aposta da confianga em face do que se busca nessa constelagao: entre a contestagao dos dogmas ultraliberais ¢ a recusa dos excessivamente faceis apelos & ruptura cuja histéria do século XX mostrou a inanidade, Nessa perspectiva, ao mesmo tempo preservando a disting&o conceitual entre esferas politica e econdmica, convém ad- mitir que o prosseguimento do processo de democratizagao nas sociedades contem- poraneas apela para uma democratizagao da economia, o que supée, concomitantemente, regulagdes piblicas renovadas e a penetragio dos princfpios democraticos nas atividades de produgio, de troca, de poupanga ¢ de consumo. Se~ nio, a esfera politica s6 pode se restringir continuamente, 0 economismo subtraindo da deliberagdo publica um niimero crescente de assuntos Conclusdo Em reagiio a um neoliberalismo que invoca a liberdade econ6mica para invalidar a preocupagdo com a igualdade, a possibilidade de uma democratizagaio da socieda- de esti doravante ligada a um proceso de reapropriagdo democrética da economia enquanto atividade social. Essa reinscrig%io da economia em normas democraticas no pode emanar da restauragao do compromisso anterior, que subordinava a solida- riedade ao crescimento mercantil; ela também nao pode vir de um projeto de mudan- ga global que suporia um controle politico sobre a economia. Ela sé pode se apoiar em priticas, formas de engajamento cidadao alimentando, segundo os tet mos de Mauss, um movimento econdmico de baixo e protestando contra a banalizagéo das formas de injustiga. Ao mesmo tempo, essas praticas esto destinadas a marginalidade se elas ndo impulsionarem uma cria¢do institucional homologando e encorajando a insergdo dos mercados em regras de direito, a mobilizago dos princfpios de recipro- cidade e de redistribuigdo além do mercado, a diversidade das formas de empresa. A questi colocada €, pois, a de instituigdes que sejam capazes de assegurar a pluralizagao da economia, para inscrevé-la num quadro democratico, o que a légica do ganho material compromete quando ela se torna tinica e sem limites. © problema no é escolher entre sociedade civil e Estado, mas encarar uma de- mocratizagio recfproca da sociedade civil e dos poderes ptiblicos (Chanial, 2001a, p. 288-289; Walzer, 1997, 2000). O Estado democratico s6 pode reencontrar uma legitimidade se ele integrar em seu interior possibilidades de participag&o crescente para os assalariados ¢ os usudrios, ¢ se ele for revezado por um associacionismo impregnaco de solidariedade democrética, O Estado, quanto a ele, tem como res- ponsabilidade facilitar a expresso e 0 engajamento voluntério, expressao dessa so- lidariedade democrdtica, para que a anomia ou as outras formas de solidariedade nfio ocupem toda a esfera social. O Estado social promoveu uma concepedo da soli- dariedade orientada para os direitos individuais ¢ a redistribuigao; permanecendo indispens4vel, ela nfo basta mais se ela nao for ampliada & promogao de bens co- muns ¢ de relagées sociais baseadas no respeito dos principios de liberdade e de igualdade. Essa fertilizac&o cruzada da intervengao publica e da sociedade civil pela referéncia comum a solidariedade democrética no poderé advir se a monopolizacao da economia pelo mercado e a naturalizago do capitalismo vier Ihe retirar toda faculdade de desenvolvimento. Nao serviria para nada apelar para uma tal hibridag&io se nenhum espago de realizagao se abrisse para ela. Em suma, a pluralizagao da democracia e da economia entram em ressondncia. A democratizagao recfproca da sociedade civil e da acao piiblica € congruente com uma economia fundada na pluralidade dos princfpios econémicos e das formas de propriedade. Essa perspectiva de articulacao renovada entre sociedade civil e ago piiblica que sublinha uma diferenciagao analitica, mas refuta uma separagao empirica entre espago puiblico ¢ economia, afirma uma concepgao das mudangas sociais, das mudangas que “no so de modo nenhum comandadas por essas alternativas revolu- ciondrias radicais, essas escolhas brutais entre duas formas de sociedade contradi- torias”, mas que “se fazem e se fardo por procedimentos de construgao de grupos € de instituigdes novas, ao lado e acima das antigas” (Mauss, op. cit., p. 265). Trata-se de escapar de um imagindrio da ruptura para continuar essa paciente elaboragao coletiva que é a inveng4o democrética Agao publica e economia solidéria: uma perspectiva internacional 370

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