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JACOBY, Russel. O fir da utopia: politica e cultura na era da apatia ‘Tradugdo de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2001. Ademir Luiz da Silva" A palavra “utopia” significa, em grego, “lugar que nao existe” € foi popularizada, no século XVI, pelo fildsofo inglés Thomas Morus, que a utilizou para batizar uma ilha imaginria onde criou as bases tebricas do que seria um Estado perfeito. Um lugar de paz, harmonia, bonanga, livre dos males da guerra e, sobretudo, da intolerancia religiosa, De fato ‘um lugar que nunca existiu. O tempo passou e o termo “utopia” ganhou muitos outros signi- ficados. Porém, nunca a imagem da terra paradisfaca descrita por Thoms ‘Morus foi esquecida. Boa parte da humanidade passow os iltimas séculos acreditando poder chegar, em um futuro préximo ou distante, a esse Ingar inexistente. Muitas vezes matando ou morrendo em nome dese sonho. Hoje, no entanto, a illha de Morus parece destinada a ser tragada pelo mar revolto da dura realidade. Ao menos ¢ isto que defende o livro O fim da wopia: politica e cultura na era da apatia, do bistoriador norte-americano Russell Jacoby. Obra que pode ser deserita, grosso ‘modo, como uma reflexao sobre os caminhos que levaram 0 Ocicente. a0 estado de apatia generalizada em que se enconira atualmente. Para entender 0 raciocinio de Jacoby é preciso conhecer sua concepgtio de utdpico. Paraele, utopia é a “erenga de que 0 futuro pode superar fundamentalmente © presente”. Este €, como o proprio autor admite, o sentido mais amplo e menos ameagador da palavra, Existem >” Mestie em Historia das Sociedades Agririas pela Universidade Federal de Goids E-mail: ut de fato poucas idéias realmente originais no livro. As citagdes sito conta das &s centenas, ¢ as melhores passagens, 6 justo observar, esto entre aspas. O que nao depée necessariamente contra Jacoby. O fin da wopia €0 substrato final de uma longa discusso tedrica que tem sido travada na academia hi décadas, Sua natureza & mesmo a de sintese. Em certos momentos faz lembrar 0 polémico O fim da hisiéria eo tlltimo homem, de Francis Fukuyama, sem contudo ter uma tese to hombastica quanto este. Jacoby e Fukuyama, apesar de freqiientarem os cfrculos intelec- tuais norte-americanos, tiveram trajet6rias académicas diversas. Com a notdvel diferenga de que Jacoby, a primeira vista, ndo € Zo condes- cendente com o liberalismo democratico quanto seu colega nipo- americano O jun da wopia é um livro de teoria escrito com um olho na comunidade académica, seu principal pablico, e outro no leitor médio, cada vez, mais intezessado nesse tipo de discussao. Esse fenémeno cultural tem transformado teses universitérias em campedis de vendas. Portanto, nada de elucbracdes impenetraveis ou hermetismos eruditos. A clareza € uma de suas principais caracteristicas e virtudes, Em um texto fluente enxulo, por vezes irSnico, dcido em certas péginas, fazendo crer que algumas vingangas pessoais foram realizadas nas entrelinhas do livro, Jacoby denuncia a total falta de norte em que se encontra nosso tempo. Epoca em que as principais manchetes politicas a ocupar os noticidrios dizem respeito a escdndalos sexuais na Casa Branca. Epoca em que graves dentincias contra a miliondria inddstia dos cigarros, ou acordos de paz na Irlanda do Norte, parecem pouco atraentes em comparacio com 0 julgamento do astro de futebol ameticano O. J. Simpson. Epoca em que a disseminagao epidémica da Aids na Africa passa praticamente desapercebida, Como se v8, desde a composi¢go do livro até hoje, 0 cenario Politico transformou-se radicalmente em funcao dos atentados terroristas de 11 de setembro aos Estados Unidos. As notfcias vindas da Casa Branca mudaram de tom: de pedidos piiblicos de perdao passaram a promessas paiblicas de vinganca. Mas ainds assim nfo se pode dizer que a tese basica do autor tenha sido ultrapassada pela tragédia. Pelo contrério: cla, de um modo especialmente cruel, reforga a idéia de que um desastre eminente nos espera no futuro. Dessa ver encarnado em um conflito mortal entre Ocidente e Oriente 178 SILVA, Ademir Laiz da. O Jim de utopia Jacoby aponta 0 ano de 1955 como o comego do fim da utopia. A primeira pega de dominé a cair, provocando 0 efeito cascata, foi derrubada pelo entio novo secretério-geral do Partido Comunista Soviético, Nikita Kruchev, a0 acusar © endeusado Stalin de assassino, maniaco e mentiroso, Essas demtincias colocavam a nu o fato de que a experiéncia socialista russa nfo era exatamente o paraiso que muitos acreditavam, Imediatamente os partidos comunistas de todo © globo entraram em erise de identidade, A crise parecou superada quando eclo- diu a Revoluc&o Cubana, na virada para os anos 60, Em seu rastro seguiu-se uma nova safra de ideologias prontas para serem defendidas com ardor: black power, feminismo, luta pelos diteitos civis, protestos contra a Guerra do Vietnd ete. Porém, esses movimentos perderam 0 vigor inicial com o tempo ¢, 20 cabo de pouco menos de wés décadas, diante da queda da Unio Soviética e da aceleracao da glohalizagio, parecem arcaicos, verdadeiras pegas de museu. Foram substituidos pela falicia do multiculturalismo, teses vagas, carentes de contetido, que pretendem nos fazem crer que 86 existem duas escolhas: a Ku Klux Klan ou o pluralismo cultural, Para Jacoby, oadvento do multiculturalismo como uma idgia sacrossanta, acima de qualquer suspeita, é a maior prova do fim da utopia. A uniformidade cultural sustenta-se através da uniformidade politica e econémica. Sob ‘esse signo “o futuro fica parecendo o presente com mais opgies”. Portanto, acabou-se a discusstio: todos esto certas. Um dos principais termometro usados por Jacoby para detectar estado de apatiareinamte a juventude, Para ele, os jovens, tradicional combustivel das esquerdas e portanto utdpicos por definigao, esti cada vez mais descrentes do futuro. O idealismo deu lugar & sensacao “de gue 0 gue era possivel a geragdes anteriores jé ndo é para esta”. A fascinante idéia de revolugdo que levava multidées de jovens a abandonar suas vidas burguesas em troca do sonho revolucionério, como um dia aconteceu com 0 promissor académico de medicina argentino Ernesto “Che” Guevara, nao mais atrai, Musnio a figura romantica de Guevara, antes venerado como hersi e martir, hoje se confiunde entre as estampas de camisetas de bandas de rock pesado. Tomou-se um feone pop, ne melhor estilo Andy Warhol. Para Jacoby, ¢ inegdvel que se “o marxismo do século XTX era materialista e determinista; 0 do fim do século XX € idealista ¢ incoerente” Historia Revista, 7 (12) = 177-180, jansdez. 2002 179 Outro aspecto fundamental é 0 papel do intelectual na sociedade contemporanea, pois se os jovens representam o combusi{vel da utopia, 605 intelectuais séio seu motor. A concepgaio moderna de intelectual teria surgido na Franga do século XIX, para definir uma classe de pessoas eruditas, independentes ¢ politicamente engajadas. Ou seja, nao bastava ser letrado, tinha de participar. Como advento do marxismo os intelectuais passaram a ser vistos come hesitantes, oportunistas e lacaios da burguesia. Foram acusados de terem se tornado uma classe de burocratas, sobretudo dentro do regime stalinista, usando o conkecimento para monopolizar 0 poder, abandonando os operdrios. O autor cita o romance O livre do riso edo esquecimenio, do escritor tcheco Milan Kundera, para lembrar- nos de que, nos paises ocupados pela URSS, “no jargio politico da época, ‘intelectual? era xingamento Porém, nas ultimas décadas, a natureza da atuagao dos inte- Jectuais na sociedade mudou radicalmente, De figuras ut6picas, profetas de teses revoluciondrias, muitas vezes atuando de forma marginal, passaram a ser um “grupo profissional com interesses profissionais”. Ocupam cargos importantes, na academia ¢ fora dela, ¢ capitalizam isto. Jacoby aponta que é sintomitico o fato de que celebridades intelectuais como Corne] West e Camille Paglia, qual estrelas da misica e do cinema, tenham agentes para organizar suas agendas e cobrar devidamente por suas concomridas conferéncias, Algo impensével para osintelectuais ut6picos do inicio do século XX. Em poucas palavras: ser intelectual passou de condigao a profissio. ‘Mas, posto tudo isto, pergunto: pode o homem viver sem utopia? O excesso de escripulos fez Jacoby recusar-se a bater 0 martelo. Infe- lizmente, ao concluir sua argumentagao, ele cometeu o mesmo erro que seu confrade Francis Fukuyama, em O fim da hisi6ria e 0 tltimo homem. Apés declarar a morte da histéria, Fukuyama, admitiu ser possivel sua ressurreigao, caso a imponderével vontade humana assim o desejasse Jacoby, igualmente, piso em ovos no fechamento de sua obra. Proclamou o fim da utopia, mas deixou as portas abertas para seu possivel retorno, remetendo ao fato de que se esperava uma longa era de apatia na seqiiéncia da conformista década de 50. Ao contrario, vieram os incendiérios anos 60. Pergunta Jacoby, hesitante: “Quem poderd garantir que o futuro nao nos reserva surpresas semelhantes’”” 180 SILVA, Ademir Luiz ds. © fim da wropta

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