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AQUILES, ENEIAS, DOM QUIXOTE, ROCAMBOLE1

Machado de Assis
Estes quatro heris, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como
os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua Ilada; as vrias Iladas formam a epopeia
do esprito humano. Na infncia o heri foi Aquiles, o guerreiro juvenil, altivo,
colrico, mas simples, desafetado, largamente talhado em granito, e destacando um
perfil eterno no cu da loura Hlade. Irritado, acolhe-se s tendas; quando os gregos
perecem, sai armado em guerra e trava esse imortal combate com Heitor, que nenhum
homem de gosto l sem admirao; depois, vencido o inimigo, cede o despojo ao velho
Pramo, nessa outra cena, que ningum mais igualou ou nem h de igualar Esta a
Ilada dos primeiros anos, das auroras do esprito, a infncia da arte. Enias o
segundo heri, valente e viajor como um alferes romano potico em todo o caso,
melanclico, civilizado, mistura de esprito grego e latino. Prolongou-se este Enias
pela Idade Mdia, fez-se soldado cristo, com o nome de Tancredo, e acabou em
cavalarias altas e baixas. As cavalarias, depois de estromparem os corpos gente,
passaram a estrompar os ouvidos e a pacincia, e da surgiu o Dom Quixote, que foi o
terceiro heri, alma generosa e nobre, mas ridcula nos atos, embora sublime nas
intenes. Ainda nesse terceiro heri luzia um pouco da luz aquileida, com as cores
modernas, luz que o nosso gs brilhante e prtico de todo fez empalidecer. Tocou a vez
a Rocambole. Este heri, vendo arrasado o palcio de Pramo e desfeitos os moinhos da
Mancha, lanou mo do que lhe restava e fez-se heri de polcia, ps-se a lutar com o
cdigo e o senso comum. O sculo prtico, esperto e censurvel; seu heri deve ter
feies consoantes a estas qualidades de bom cunho. E porque a epopeia pede algum
maravilhoso, Rocambole fez-se inverossmil, morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal
qual como um capoeira em dia de procisso. Veja o leitor, se no h um fio secreto que
liga os quatro heris. certo que grande a distncia entre o heri de Homero e o de
Ponson du Terrail, entre Tria e o xilindr. Mas questo de ponto de vista. Os olhos
so outros; outro o quadro; mas a admirao a mesma, e igualmente merecida.
Outrora excitavam pasmo aquelas descomunais lanas argivas. Hoje admiramos os
alapes, os nomes postios, as barbas postias, as aventuras postias. Ao cabo, tudo
admirar.
1 Publicado originalmente na coluna Histria de 15 dias, revista Illustrao
Brasileira, 15/01/1877, sob o pseudnimo Manasss.

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