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consideragées psicanaliticas a margem de um conto de Guimaraes Rosa por Leyla Perrone-Moisés —Linconscient —dréle de mot! —Freud n’en a pas trouvé de meilleur, et il n'y a pas & revenir, Ce mot a linconvénient ’étre négatif, ce qui permet d'y supposer n'importe quoi au monde, sans compter le reste. Pourquoi pas? A chose inapercue, Ie nom de partané convient aussi bien que de walle part. J. Lacan (Télévision, p. 15) A grande limitacao da leitura psicanalitica dos textos literdrios é a trans- formagao da singularidade em generalidade e, inversamente, o enquadramento forgado de um discurso plural em um esquema prévio, visando a «verdade» de um significado tiltimo ¢ origindrio. O que ainda agtava essa limitagko €0o facto de essa «verdade» ser frequentemente atribuida 4 pessoa do autor, quando se sabe que, em sua travessia escritural, o grande esctitor € como © navegante de Fernando Pessoa: «Aqui ao Ieme sou mais do que cu» Além disso, as «verdades» a que chega a psicandlise literdria sio pouco variadas: a explicagdo seré sempre de ordem sexual; os signos verbais, con- siderados como sintomas, levario a uma classificagio dentro de um pequeno repertério de psicoses ¢ neuroses, dependentes de alguns complexos cléssi- cos, dentre os quais o de Edipo sera praticamente inevitével. O préprio 31 Freud reconhecia «a monotonia das solugdes oferecidas pela psicanélisen (Ging psychanalyses, p. 301), monotonia que nao perturba o terapeuta mas torna o analista-escritor repetitive. Como bom estilista que eta, Freud sabia que a repeticdo € uma fraqueza escritural, ¢ é desta que ele se desculpa. Apesar desses inconvenientes da leitura psicanalitica do texto literétio (e sem falar do maior, o absurdo da psicandlise de um defunto ou de um ausente, isto é, uma fala sem resposta), nao é possivel, actualmente, enfren- tar um texto que carreie lembrangas, sonhos, afectos, desejos (e que obra literdria se faz fora disso?), sem levar em conta a descoberta freudiana. Se, No trato com esses fenémenos psiquicos, ignorarmos o saber psicanalftico, acabaremos por recorrer (ou por subentender) vagas nogées de psicologia, datadas de pelo menos um século, marcadas pelo idealismo cldssico e pelo moralismo a ele inerente. A recente contribuicéo de Lacan e seus discipulos & ciéncia psicana- Iftica oferece-nos a possibilidade de evitar alguns escolhos da leitura psica- nalitica de uma obra literéria. Ao colocar, como ponto de partida de sua teoria, que «o inconsciente ¢ estruturado como uma linguagem», ¢ ao pto- por um trabalho de tipo sintdctico, que busca captar a cadeia de signi cantes ¢ nfo o significado tiltimo (vazio), essa corrente psicanalftica nos permite: 1) lembrar que o texto literdtio € antes de mais nada, obra de linguagem; 2) abandonar a miragem de uma interpretacdo tltima e defi- nitiva; 3) privilegiar a produc&o do sentido ¢ nao a troca enganosa de sentidos plenos e prévios; 4) dispensar o biografismo, que confunde indi- viduo falante com enunciador. Uma critica literdria de inspiraco lacaniana buscard, no uma realidade desejada e representada pelas palavras, mas a realidade processual do desejo, inserita ¢ ocultada nas palavras ¢ em seus interstfcios, desejo tornado letra; niio a arqueologia desse desejo (na histéria pessoal do escritor), mas o aqui e agora de sua inscri¢do no discurso. Estas consideragSes prévias poderiam estender-se longamente, para apresentar de modo mais completo, mais preciso ¢ mais subtil o que é particular (¢ para nés, estudiosos do literdrio, vantajoso) na psicanélise laca- niana. Mas nosso objectivo, aqui, é restringir a reflexdo tedrica ao minimo, para passar 4 prética de uma andlise particular que poder4, na melhor das hipéteses, sugerir o alcance de uma critica literdria inspirada no lacanismo. Escolhemos, como objecto de anélise, um conto de Guimaraes Rosa: «Nenhum, nenhuma» (Primeiras Est6rias) Como todas as escolhas, esta tem suas razOes conscientes e incons- cientes. As inconscientes tém a ver com 0 «desejo do analista», e isto foge aA competéncia do analista ¢ ao interesse dos leitores. Quanto As conscien- tes: para evitar a facilidade enganosa de uma anélise decifradora de sim- bolos (tipo «Chave dos sonhos») e diagnosticadora de duvidosos traumas ‘ou neuroses, escolhemos um texto que jf é uma auto-anilise e que apre- senta explicitamente (em nfvel de consciéncia) o mais clissico dos com- plexos: o de Edipo. , que consiste em arrancar, a custo, da meméria um episédio fundamental da infancia. Nao € outro o processo do tratamento freudiano: levantar o recalque, a fim de desnudar a fixagio que explicaria a histéria psiquiea ulterior do individuo (ou a falta dessa histéria, jf que a neurose se carac- teriza pela repeticio ahistérica). A tomada de consciéncia daquilo que, até entio, permanecia inconsciente, é o caminho da cura: «Poder-se-ia definir 0 tratamento psicanalitico como uma educagio progressiva para superar, em cada um de nds, os residuos da infancia» (Freud, Cing legons sur la psychanalyse, p. 57). Tntimeras so as obras literdrias nascidas de tal trabalho de rememo- rizagio, mas poucos sfo os escritores que apresentam, como Guimaries Rosa, tio nitida consciéncia do processo, das resisténcias que devem ser vencidas e do objectivo salvador que deve ser alcangado. Quando © relato € uma reconstituicio racionalizada do passado, toma formas coerentes, Iégicas, flui facilmente — falsamente. Eo que ocorre nas memétias de infancia «classicas», relatos «completos» ¢ «indiscutiveis» do que «realmente» se passou. Quando a meméria pretende abrir caminho para o inconsciente, evantando recalques ¢ incidindo nos dolorosos pontos de fixacao, 0 processo é drduo, penoso, e a narrativa vacilante. Em «Ne- nhum, nenhuma», as lembrancas dos «irreversos grandes factos» afloram fragmentariamente, em «reflexos, relampagos, lampejos — pesados em obs- curidade». Segundo Freud, os dados mais obscuros cotrespondem a pontos em que o trabalho de recalque foi mais intenso, Guimaraes Rosa apresenta essas lembrancas de infancia como arrancadas dificilmente da obscuridade, n§o porque elas sejam distantes no tempo (Freud mostrou que nao ha motivo, a no ser o recalque, para que nos esquecamos de nossa infincias cf, Névrose, psychose et perversion, p. 114), mas porque elas resistem ao esforgo da consciéncia. Esse trabalho obstinado se manifesta, no conto, pela reiteracio de verbos com o prefixo re: recordar, religar(-me), remem- brar, retroceder, reter, revolver, reconbecer, reeuperar, retomar, represen- dar, que lutam com: retardar, refugiar(-me), reperder. PRIMEIRAS ESTORIAS I — AS MARGENS DA ALEGRIA 2 aU re bk JL — FAMIGERADO- 8 BALM AS AAG I — SOROCO, SUA MAE, SUA FILHA ... 4 =F A sak te scan ~ IV - A MENINA DE LA. IC) eer Y = OS IRMAOS DAGOBE . AL ek Agaaialas g — A TERCEIRA MARGEM DO RIO .... 31 19 es ae VII — PIRLIMPSIQUICE wea WA PE tonto VI = Sane NENHUMA .. yaa 5 IX — FATALIDADE are oo a 2 (6 # yd X = SEQUENCIA PRIMEIRAS ESTORIAS 1L* pagina do indice / 1962 G. Rosa vé bem o que ha de insidioso no jogo entre as lembrangas inftidas ¢ as lembrangas vagas, desconfiando das primeiras ¢ insistindo em penetrar as segundas: «Na prdpria preciso com que outras passagens lembradas se oferecem, de ‘entre impressées confusas, talvex se agite a maligna astdcia da porcio escura de ‘n6$ mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retar~ dar que perscrutemos qualquer verdade> (p. 51). 36 Sigmund nao o ditia melhor. O narrador rosiano também percebe que, por vezes, o melhor caminho € adormecer a consciéncia, num estado de semi-sono que facilite o aflora- mento dos «grandes factos» encobertos: «Venho a me lembrar. Quando amadorno» (p. 55). O jogo da meméria é um esconde-esconde; os «relampagos» ¢ «lam- Pejos» so ‘constantemente toldados por «nuvens», «serras € serras», por «uma muralha de fadiga». E 0 que chega a consciéncia vem de muito longe, filtrado e enfraquecido: «86 agora é que assoma, muito Jento, 0 dificil claro xeminiscente, ao termo talvez de longufssima viagem, vindo ferirlhe a consciéncia, $6 no chegam até nds, de outro modo, as estrelas» (p. 51) © recalque, que concilia precariamente 0 ego com o inconsciente, tolda o que a consciéncia nao suportaria: «As nuvens so para nfo serem vistas, Mesmo um menino sabe, as vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir—beirando entre 4 paz ¢ a angustiae (p, 52). O caminho da remembranga deve ser percortido de trés para diante, de baixo para cima: «como um riachinho, as voltas, que tentasse subir a montanha» (p. 54). E exactamente o que diz Freud: «Era preciso reproduzir cronol mente toda essa cadeia de lembrangas Patogénicas, mas na ordem inversa, a iltima primeizo e a primeira no fim> (Cing legons sur la psychanalyse, p. 13). O afrontamento entre a intengio de consciéncia e a forca reactiva do recalque ¢, mais do que um jogo, uma luta. As Jembrangas afloram, mas So imediatamente recobertas: «Entio, o facto se dissolve. As lembrangas sio outras distincias, Eram coisas que paravam jd a beira de um grande sono» (p. 55); «Reperdida a remembranga, a representagio de tudo se desordena: é uma ponte, ponte,—mas que, 2 certa hora, se acabou, patece'que. Lutase com a meméria» (p. 56). Nos momentos em que a dificuldade de se lembrar de pessoas ¢ acon- tecimentos se acentua, o narrador apela para os objectos que as cercavam. Processo de metonimia, apontado por Freud como riqufssimo material analitico: #Sabemos que, em muitas pessoas, as primeiras Jembrangas de infincia tém por contetido impressées quotidianas ¢ indiferentes, que nfo puderam produzir um efeito afectivo no vivido, mesmo numa crianga, ¢ que, no entanto, foram anotadas com todos os pormenores, poderiamos dizer: com um luxo de porme- nores —enquanto episédios contemponineos niio eram conservados na meméria, mesmo se, na €poca, segundo testemunho dos pais, estes haviam impressionado intensamente a crianga» (Névrose, psychose et perversion, p. 116). E Freud dé, como exemplo, um professor de Filologia que se «esque- cera» totalmente da morte da av6, mas se lembrava nitidamente de uma taga de sorvete sobre uma mesa, imagem contemporinea a perda da parenta querida. No conto de G, Rosa, os desfalecimentos da meméria com relagdio a pessoas so imediatamente compensados por um luxo de pormenores rela- tivos a objectos. O «homem sem aspecto», encontrado na casa-de-fazenda, & suprido, metonimicamente, pela «escrivaninha vermelha», objecto verbal tio importante na estrutura do conto que reservamos para mais tarde sua andlise. Quando as lembrangas relativas 4 Nenha ¢ & Moga tendem a esvair- -se, uma série de objectos invade © campo da meméria: casticais, bats, arcas, canastras, 0 oratério, registros de santos, porta-retratos de cristal, altas camas de torneado, um catre com cabeceira dourada, o comprido espeto de ferro na mio da preta, o batedor de chocolate de jacarandé, alguidares, pichorras, canecos de estanho (cf. p. 52). Com extraordindrio faro psicanalitico, o narrador explica esse processo de usar as coisas como intermedisrias: etalvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram» (p. 52). As coisas «mais perduram», niio mate- rialmente —o Menino «nunca mais voltou» aquela casa, portanto nfo é a persisténcia material das coisas que o ajuda a lembrar-se; as coisas mais perduram na memoria, gracas ao processo de deslocamento ou translagao, que fez o professor de Filologia citado por Freud lembrar-se apenas, e tio bem, da taga de sorvete. Uma anélise superficial dos objectos tecupetados pelo nartador do conto bastaria para revelar-nos sua simbologia sexual, mas 0 que aqui nos interessa nao é esse tipo de facilidade interpretativa, mas a riqueza e a autoconsciéncia do processo de deslocamento, que sempre se manifesta, no conto, quando ha uma dificuldade maior de meméria. «Cerra-se a névoa, © escurecido, hi uma muralha de fadiga, Orientar-me! [...] Havia um fio de barbante, que a gente enrolava num pauzinho» (p. 54). A imagem seguinte € a da Moga, coerente com a metéfora do barbante usada também por Freud para figurar a relacio da crianga com a mie (a bobina, o jogo do fort-da). Ha portanto evidentes semelhangas entre o processo escritural posto em funcionamento no conto de Guimaries Rosa e 0 proceso utilizado pela psicandlise freudiana: o relato de antigos acontecimentes, a associagao livre, a luta com a censura e o recalque. Entretanto, G. R., como todo escritor, ‘est menos entregue A interpretagio de outro — é menos «inocentes — do 37 que o paciente médio da cura psicanalitica; o esctitor é muito mais manhoso € muito menos passivo do que qualquer paciente, seu relato € uma auto- -andlise carregada de um saber psicanalitico que se adianta ao saber do ana- lista, ou o dispensa. Tudo se passa como se o escritor jf deixasse ao crftico psicanalftico eventual indicagées precisas para o encaminhamento da andlise, numa auto-andlise j4 tio avangada que parece orientada pelo conhecimento da psicandlise (nfo interessando aqui averiguar se o escritor possula ou nao tais conhecimentos; todo grande escritor os possui mesmo que nao tenha lido Freud). Como diz Lacan: «os poetas, que nfo sabem o que dizem, como é do conhecimento de todos, entretanto dizem sempre as coisas antes dos outros» (Le Sénzinaire, livre II, p. 16). Por outro lado, esse relato literdrio esté longe de ser um material bruto ¢ aparentemente desordenado, que o analista deve remontar; o relato literdrio se apresenta como uma claboragio secundéria, uma formalizagio dos dados do inconsciente pela intervengio de uma consciéncia ordenadora; esse puzzle contém, nele mesmo, as regras de sua (re)montagem. © gran de consciéncia varia de autor para autor. Em «Nenhum, nenhuma», a presenga do Menino como personagem vista pelo narrador indicia j4 um primeiro grau de claboragio. Freud chama a atengo para esse dado, frequente nos sonhos (a pessoa que sonha se vé como personagem ao lado de outras): «Cada vez que, numa lembranga, a propria pessoa do sonhador entra assim em cena, como um objecto entre outros, pode-se reivindicar essa oposigio entre © eu que age € 0 eu que se lembra como prova de que a impressio origindria sofreu um remancjamento» (Névrose, psychose et perversion, p. 131). No conto de Guimaraes Rosa existe, além desse indice, a divisio expressa do eu que age ¢ do eu que se lembra, indicada por tipos gré- ficos diferentes. Os esforcos da meméria e os comentarios ou metéforas a eles relativos aparecem, no conto, em negritos. O pronome ew aparece nesses negritos do narrador, 0 Menino no relato. No fim do conto, 0 que se lembra e o que age na histéria, fundem-se: «O Menino chegara. Nunca mais soube nada do Moso, nem quem era, vindo junto comigo» (p. 57, sublinhado por nés). A partir daf, até a palavra final, temos a 1.* pessoa. Mas, ao invés de termos, no fim, uma conciliagio dessas duas pessoas num ego estavel, o que temos ¢ a dtivida sobre esse ego. Dissemos que queriamos evitar a facilidade da interpretagao tépica de simbolos. Entretanto, alguns elementos da prépria histéria permanecem inexplicados a uma primeira leitura, convidando (tentando?) o leitor «psi- canalista» a interpretar, com apoio em observagées de Freud. E 0 caso, por exemplo, da seguinte «visio»: «A Moga trazia a agua, vinha com nas duas mios 0 copo cheio as beiras, sortindo igual, sem deixar cair fora uma tinica gota—a gente pensava que cla devia de ter nascido assim, com aquele copo de égua pela borda, e conservélo até a hora de desnascer: dele nada se detramasser (p. 54) Ora, que a Moga ofereca a velhinha um copo de 4gua, com solicitude, gentileza € cuidado, é facto que nfo necessita qualquer explicagao; 0 acto esté em perfeita harmonia com as caracteristicas «psicolégicas» da perso- nagem, poderia funcionar como um trago para a melhor caracterizagio da «personalidade» da Moga, Mas seria apenas isso? Esse acto «natural» é investido pelo desejo do narrador, expresso de dois modos: 0 modo do devaneio— «a gente pensava que...» — transformado em modo impera- tivo — «dele nada se derramasse». Em uma de suas mais célebres andlises («Dora»), Freud se refere precisamente a ideia de «molhado»: «Com a. ajuda de relagdes facilmente reconstitufveis, 3 ideia de ‘molhado’ que cabe, entre os pensementos do sonho, o papel de intersecgio de vérios cir. culos de representagées [...] Dora sabe que as pessoas se molham também durante as relagies sexuais, que 0 homem dé i mulher, durante o scoplamento, algo de Kquido em forma de gotas, Ela sabe que esse é precisamente 0 perigo, que sua tarefa & preservar seus Srgios genitais dessa humectagio [...] ‘Molhado’ equivale aqui a ‘aviltado'» (Cing psychanalyses, p. 67). «Sem deixar cair uma Gnica gota», diz o narrador do conto. Ora, a interpretacio sexual dada por Freud caberia aqui sem que se forgasse a leitura nesse sentido, pois o conto deixa finalmente claro que a Moga pre- serva sua virgindade e que ¢ Menino desejava que sua mie assim tivesse procedido. A dgua como sit‘vlo de pureza é algo tao antigo ¢ universal que a oferenda imaculada da Moca poderia ser interpretada sem o recurso a Freud, Entretanto, a leitura sexual freudiana dé maior precisio a esssa interpretagiio ¢, de certa forma, a inverte. Outro aspecto temitico do conto que convida a uma leitura 4 luz de Freud é 0 cardcter romanesco, e até mesmo de «conto de fadas», dado pelo narrador (através do Menino) a esse incidente de infancia: «Ela poderia ser a princesa no castelo, na torre. Em redor da altura da torre do castelo, nfo deviam de revoar as negras aguias? O Homem, velho, quieto ¢ sem falar, seria, na realidade, © pai da Moga» (p. 52); «O Menino sorriu. Perguntou: “Ela beladormecen?'> (p. 53). Em «O romance familiar dos neuréticos» (Névrose, psychose et per- version, p. 157), Freud se refere 4 «actividade fantasmatica» das criangas em determinado ponto de seu desenvolvimento, quando elas tendem a subs- tituir seus pais verdadeiros por outros mais «elevados». E Marthe Robert, em Sur le papier, estabelece uma relagio entre esses «fantasmas romanes- os» ¢ a atrac¢io das criangas pelos contos de fadas, transposi¢Go idealizada da situago da crianga na famflia e, segundo ela, germe de todo o romanesco. A hipétese de Marthe Robert € a de que os romancistas sejam individuos que nunca superaram totalmente essa fase do «romance familiar», © narrador rosiano imagina a Moga como uma princesa na torre. Em redor da torre, «ndo deviam de revoar as negras dguias?», Impée-se ime diatamente ao leitor «psicanalista» a lembranga da leituta que Freud faz do abutre, em Uma Recordagio de Infancia de Leonardo da Vinci, E. esse leitor seria tentado a responder ao narrador: sim, psicanaliticamente falando, «deviarn de revoar as negras guiasy. Por mais sedutor que seja o caminho da interpretagio tépica de sim- bolos, nfo € este 0 que aqui queremos privilegiar. Numa anélise inspirada pelo lacanismo, nao so essas interpretagdes tépicas que se buscam, mas a estrutura de uma rede de significantes, que se dé a Jeitura como a letra do desejo. A andlise de tipo lacaniano buscaré a ordem subjacente que a letra, a0 mesmo tempo, recalca e comemora. E importante notat aqui mais uma diferenga fundamental entre o discurso neurético no contexto da andlise e o discurso do escritor. Segundo Freud, o neurético tem um apego docntio ao passado, ao qual ele ergue monumentos (cf. Cing lecons sur la psychanalyse, p. 16). Mas os monu- mentos comemorativos dos neuréticos so sintomas; os monumentos ergui- dos pelo escritor so obras de linguagem que funcionam, nfo como simples sintomas, mas como superaciio, no plano simbélico, dos impasses do ima- gindrio, A ordem da letra, no discurso de qualquer neurético, apresenta uma certa formalizagio e, por isso, tem algo de uma arte rudimentar: «Posso assegurar-lhes que € muito frequente que se facam, inconscientemente, tais coisas, que as condensemos, por assim dizer, num poema» (Freud, Neévrose, psychose et perversion, p. 125). Mas, para que essa ordem alcance um valor artistico, € preciso que ela seja supraformalizada num sentido de univer salidade, que ela aleance uma estruturagfo que nio é a forma fechada do discurso neurdtico mas, pelo contrério, a forma aberta que permite a outros inconscientes nela se reconhecer e por ela se esclarecer. E 0 que acontece no conto de Guimariies Rosa. Para buscar essa ordem da letra numa obra de linguagem, aplicaremos nossa «atencio flutuante» nao directamente as imagens da obra, mas a recorréncia de significantes (processo que o préprio Freud utilizou, e que Lacan privilegia). O sentido pode induzir-nos ao erro, mas a letra nao mente. Uma primeira leitura do conto de G. R. j& nos permite sentir a impor- tancia dos significantes Newha velbinba, niio sé pela insistente repetigio dos mesmos, mas sobretudo por seu poder de irradiagio f6nica. Em torno dessas duas palavras encontraremos numerosas outras, pertencentes 4 mesma familia fonica. Primeiramente, as duas palavras j4 tém afinidades entre si: os fonemas da palavra Nenba esto contidos na palavra velbinha; ou, se se quiser, a palavra velbinha reitera fonemas de Nenha, a eles acrescentando outros nfo de todo estranhos, Vejamos como a palavra velhinha se desdobra, nos trechos do conto referentes 4 personagem Nenha: an thi — nha eS + Ss velha mulher(es) pequenina velhissima velha enrugadinha vida velhissima caminharia vibrava velhez Jamparina vento encolhera nenhuma invioléivel ilha sem ninguém visual mole * Nenha madressilvas alheada rugazinhas incomutivel familia * babinha imutdvel acomodadinha ‘vagueia rosmaninhos viver menina ancianissima velhez engragadinho dissolve comidinha adivinhava sorrisinho. borboletinha adivinhava vinha nao reconhecia ninguém conhecimento estranhos * Laterais palatalizadas na fala brasileira. Evidencia-se a predominincia dos fonemas nasais, que se encontram na palavra Newba, signo compacto, nucleo de significagio, né de onde se irradiam os significantes significados do texto. Afora as palavras que figu- tam no conto, o signo Newha remete a outros parentescos de significante ¢ de significado. Nena quer dizer boneca (a Nenha € tratada pela Moga como uma boneca, e 0 Menino queria brincar com ela); Neha € também semelhante a wené, ¢ quase idéntica, na fala brasileira, a ménia (canto finebre); nena é ainda a forma aferética de inbenha (decrépita). Por estas associagGes, realiza-se a fusio da vida e da morte, do nascer ¢ do desnascer. © parentesco de todas estas palavras é tio préximo que, no Dicio- niério de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, elas se seguem a curta dis- tancia. E, logo depois delas, encontraremos as palavras nenbunz, nenbuma, Sendo #ené-inhenha (bebé dectépito, «menina ancianissiman), nenanénia (brinquedo ¢ canto fiinebre), Nenha é nenhuma e ninguém: perdeu-se «a tradigio do nome ¢ pessoa daquela Nenha, velhissima»; «Alguém, antes de morrer, ainda se lembrava de que nao se lembrava: ela seria apenas a mée de uma outra, de uma outra, para tris» (p. 55). A Nenha velhinha pertence a uma sucessiio paradigmatica de mulheres mortas, & qual ela escapou nio se sabe como, nao para ficar «viva» mas para ficar «perpétua», num estado em que vida e morte se confundem ¢ indiferem: - (p. 50); «Aquela mesa escrivaninha cheirava tio bom, a madeira vermelha, a gaveta, o Menino gostaria de guardar para si a revista, com as figuras coloridas; mas nao teve anime de pedir. © Moco escreveu o bilhete, era para a Mosa, ali © depositou, O que estava nele, nio se sabe, nunca maisy (p. 56). O cheito, a cor ¢ 0 «nunca mais» siio as constantes das duas citagées. «Infancia € coisa, coisa?» Infancia € 0 cheiro ¢ a cor do nunca mais? © segredo (bilhete cujo teor se desconhece) da infancia esti depositado no objecto-signo, esquecido-inesquecivel naquela casa-de-fazenda onde se situa o nenhures do inconsciente: «A mansio, estranha, fugindo, atrés de serras e serras, sempre, ¢ & beira da mata de algum rio, que proibe o imaginar. Ou talvez nao tenha sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem to longe? Nao é possfvel saber-se, nunca mais (p. 50). Tudo emana da esctivaninha vermelha, ¢ para cla converge: ¢la guarda © imaginério romanesco da revista colorida; ela recebe a letra do bilhete cujo significado, ignorado, finalmente ¢ 0 do proprio gesto de escrevé-lo e confié-lo a um canal de comunicagio inusitado e incerto. Depositatia da meméria, a esctivaninha concentra o real (da experiéncia téctil, olfactiva e visual), 0 imaginério (da re-vista ilustrada) € 0 simbélico virtual (do bilhete). Nesse intrincamento reside a «verdade» do ew, que a rememora e comemora. A experiéncia que se 1é em «Nenhum, nenhuma» é a da diffcil constituicio do ew para qualquer sujeito, ¢ a da problemética afirmagio do ex na linguagem poética. O sujeito, para constituir-se, precisa passat por identificagées narcisistas: 0 Menino se mira nas diferentes personagens adultas do conto. Cada uma dessas personagens vai assumir um papel psi- quico. As figuras masculinas do Velho («sem rosto», «alto», ade costas», que «podava as roseiras») e do Pai («que tinha bigodes» ¢ dava «ordens para levantarem o muro novo, no quintal») personificam a Lei e constituem © super-ego do Menino, A Mae acaba por reforcar essas figuras legiferan- tes, na medida cm que ela é um agente da censura: «olhava se eu nio Yasgara minha roupa, se tinha ainda no pescoco, sem perder nenhum, os santos de todas as medalhinhas» (p. 57). Com relagio ao Mogo, 0 Menino passa da «ira de rivalidadess a uma triste identificaga «0 Menino sentia: que, se, de um jeito, fosse ele poder gostar, por querer, desse mogo, entio, de algum modo, era como se ele ficasse mais perto da Moca, ‘Go Tinda, to longe, para sempre, na soledade» (p. 57). S6 a Moga é totalmente preservada, no palco do imagindrio: «A Moga, de formosura tio extremada, vestida de preto, e ela era alta, alva, alva; parecia estar de madrinha num casamento, ou num teatro?> (p. 53). Ao desconhecer seus pais, 0 Menino opta por esse imaginério a que a Moga Pertence por «natureza», ¢ 0 Moco por necessidade funcional de identifi- cago. Gragas 4 Moga e ao Mogo, o Menino cria, para si, um eu imaginétio, Mas, como anio se viu mais a Moga» (p. 56) ¢ «nunca mais soube nada do Mogo» (p. 57), esse eu imagindrio fica sem suporte, fixado, imobilizado. O Menino nfo pode crescer, nfo pode ser nem Pai, nem Mie; nem um, nem outra; nenhum, nenhuma. O Menino busca situar-se, em caréncia de identidade: «Atordoado, 9 Menino, tornado quase incOnscio, como s¢ nfo fosse nin- guém, ow se todos uma pessoa s6, uma s6 vida fossem: ele, a Moga, 0 Moga, 0 Homem velho ¢ a Nenha, velhinha» (p. 56). Essa experiéneia ocorre a beira de um abismo, que é 0 negativo anun- iado pelo titulo «Nenhum, nenhuma». Como diz Lacan, «o sujeito € nin- guém» (Le Séminaire, livre I, p. 72); nfo se situa nem no ego, nem no super-ego, nem no id, mas deve vir a ser na intersecgao conflituosa dessas trés instincias. «Tem horas em que, de repente, 0 mundo vira pequenininho, mas noutro de-repente ele jd torna a ser demais de grande, outra vez, A gente deve de esperar © tetceiro pensamento» (p. 57) O zeal € muito pequeno, o imagindrio, demasiadamente grande; sé 0 simbélico permitiria ajusté-los. E na fala que 0 sujeito efectuaré a passa- gem para o simbélico, «Remembrar» € 0 caminho; re-yrembrar: reconsti- tuir, numa proviséria unidade, os membros dispersos do corpo disjunto, Entretanto, o discurso remembrante do narrador de «Nenhum, ne- nhuma», nfo conduz a uma sintese, a unificagdo do sujeito numa «perso- nalidade» enfim delineada, mas interrompe-se bruscamente numa interro- Bago: «eu?» Essa interrogagdo final desmascara o ew imaginério do nartador. Tratando do discurso no processo analitico, Lacan diz que este, paradoxalmente, «sé vale na medida em que tropega ou mesmo se inter- rompe», cortando assim um «falso discurso». E prossegue: «Esse corte da cadeia signifieante é 0 tinico que verifica a estrutura do sujeito como descontinuidade no real [...] Enunciagio que se denuncia, enun- ciado que se renuncia, ignorincia que se dissipa, ocasifo que se perde, 0 que resta aqui sendo o rasto daguilo que deve ser para cair do ser?» (Ecrits II, pp. 160-161). Como auto-anilise, 0 conto de Guimaries Rosa termina num «buraco de discurso». Sua estrutura nao € a de uma busca que desemboca num achado, mas a de uma busca suspensa, tarefa inconclusa que se entrega, como tal, ao leitor. Busca fundamental que é a da constituicio do sujeito, na revivéncia de suas origens ¢ na assuncio de seu vir-a-ser. Chegamos ao fundo do conto de Guimaraes Rosa? «Nenhuns olhos tém fundo; a vida, também, nfion (p. 51). O texto potico é 0 olhar cego e vidente desse fundo sem fundo. NOTA “V. Serge Leclaire, «L’inconscient, ou Yordre de la lettre», in Psyehanalyser. Consideragées tedricas a este respeito nos levariam a estender-nos mais do que o desejivel. Basta lembrar, aqui, que si0 singnimos; que a Teta € absiricio, com relasio to corpo, ¢ materializagio desse corpo agem; que, letra, mesa tempo, recalca (anula) ¢ aponta pare a realidade ao desejo, sendo ela 2 marea pela qual podemos aceder 4 economia do prazer, a0 real do inconsciente; que a letra nao pode ser lida isoladamente, mas somente no conjunto cujas relagées a tornam significativa, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: Joio Guimaries Rosa, Primeiras Estdrfas, Rio, Liv. José Olympio Editora, 1962. Sigmund Freud, Cirg psychanalyses, Paris, Presses Universitaires de France, 1954. Idem, Cing lecons sur la psychanalyse, Paris, Petite Bibliothtque Payot, 1977. Idem, Névrose, psychose et perversion, Paris, Presses Universitaires de France, 1973. Jacques Lacan, Ecrits (1, ID, Patis, Seuil, 1971. Idem, Télévision, Paris, Seuil, 1974. Idem, Le Sémtinaire, livre II: Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1978. ‘Serge Leclaite, Psychanalyser, Paris, Seuil, 1968. Marthe Robert, Sur le papier, Paris, Grasset, 1967.

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