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ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE Maria Célia Delduque * Silvia Badim Marques * Luiz Carlos Romero * | Advogala penqusaors da Fandasso ‘Ova Cour (Foca); epeilita rn Dirito Suits pela Facade de Side Pllc da Universidade de Sio Paulo (FSPIUSP);doutoranda em Sade Publica pla FSPPUSP, Geldogue@focrzbr 1 Bachar co Dir; peageisdora (Colaboradara ds Frocnz Bras smese cm Side Pablica ela FSP/ USP, dowtoranda em Sade Pili pela FSPIUSE, sbaim@focruz be » Métio:conultorLeidaiva do Scoado Federal specials om Sade Pblca pela FSP/USP rometo@scnado gocbe A satide precisa de jufzes epidemiologistas! The health system needs epidemiological judges! RESUMO O presente artigo aborda ofenimeno da “judicializagao” das politcas de sate, que surge ds vésperts dos 20 anos da Constituigto Brasileira de 1988 ¢ insere a satide como um direito de todos, a partir de um caso concreto ocorrido ‘no municipio de Sao José do Rio Preto, Sao Paulo. O objetivo é a disertardo sobre os principais aspectos juridico-legais da decisao judicial proferida naguele ‘munictpio,e suas implicagoes na politica de saside local, relacionando-os & onda de decsbesjudiciais sobre o tema da satide, ocorrido na atualidade, bem como ao referencialtebrico de Niklas Luhmann e sua teoria des sstemas. PALAVRAS-CHAVE: Foliticas de saside; Direito 2 saside; Devisoes judiciais; Sistema Unico de Satide, ABSTRACT The present article approaches the phenomenon of judicialization” af the health policies, which starts on the eve of the 20 years of the Constituigao Brasileina of 1988 and puas health as a right of everybodt, from a concrete case that occurred in the city of Sto José do Rio Preto, Sto Paulo, Brazil. The aim is to dissert about the principal legal and juridical aspects of the judicial decision ‘pronounced in that city and its implications in the local health policy, relating them to the judicial decisions on health, occurring nowadays as well as the theoretical referential of Niklas Lubmann and the systems theory. KEYWORDS: Health policy: Right to health; Judicial decisions; National Health System. See Dee, Rio de ani, 3,081, 8087, jibe 2009 DELDUQUE. MCs MARQUES,S.B;ROMERO,LLC + Asap de jis plein? INTRODUGAO ‘A Consticuigio Federal de 1988 foi positiva em nosso ondenamento juridico gerando uma nova condicéo juridico-formal para o sistema piblico de saide brasile- ro. O artigo 6° da Constituigio Federal insere a satide no rol dos direitos sociais tutelados pelo ordenamento juridico patrio e 0 artigo 194 reconhece a satide como parte integrante do sistema de seguridade social do pais. Os artigos 196 a 201 por sua vez, instituem uma «estrutura politica complexa e abrangente para o cuidado com a satide da populacio brasileira, coma organizagio de um Sistema Unico de Satide (SUS) que integra a Unio, os Estados, os Munictpios e o Distrito Federal, formando uma rede regionalizada c hierarquizada, com diregdo tinica em cada esfera de Governo e participagio da comunidade, destinada a garantir, de forma sistémica, «o dircito & satde de todos os cidadios. Ressalta-se que 0 artigo 196 da Cons deral diz expressamente que esse dircito sera garantido igao Fe- mediante politicas sociais ¢ econdmicas que visem & redusio do risco de doenga e de outros agravos e a0 acesso universal e igualitirio as ages e servigos para a sua promocio, protecio ¢ recuperacio da satide. Duas conseqiiéncias inevitéveis decorrem da lei- tura de tais dispositivos constitucionais: a confirmagio inequivoca de que a saiide & um direito de todos os idados brasileiros, © qual pode ser exercido perante 0 Poder Judici 0 papel estratégico do Estado, como implementador io, em caso de lest ou ameaga de lest0!; de politicas publicas e prestador de servigos piblicos de saiide, voltados & efetivagio deste direito social. Faria (2004) observa que os direitos sociais neces- sitam de uma ampla e complexa gama de programas governamentaise politicasdirigidas a segmentos espect- ficos da sociedade. Como salienta Massa-Arzabe (2006) ‘em relagio a0 artigo 196 da Constituigio Federal, as politicas puiblicas constituem a propria garantia do direito social a satide. A positivacio do dircito a satide, portanto, traz, por um lado, implicagées inovadoras para a atuacio dos Poderes Legislativo e Executive do Estado, como formuladores e implementadores de politicas piiblicas de satide. Por outro lado, traz implicagoes igualmente inovadoras para a atuagao do Poder Judiciério, o qual passa a decidir questdes relacionadas & garantia real do direito& satide que por sua prépria natureza é permeado por questdes politicas ¢ técnicas. Na esteira comemorativa dos 20 anos da inscrigao constitucional da satide como direito ¢ da instituiga0 do SUS, merece destaque o fenémeno que vem sendo chamado de ‘judicializacao das politicas de sade’ Noartigo em questo, entende-se judicializagio da politica de satide & luz do referencial te6rico de Niklas Luhmann, como a sobreposigao das decisdes judiciais 20 arcabougo normativo elaborado pelo sistema politico’. Asmanifestagbesjudiciais, proferidas nos casos con- acabam por contrastar, muitas vezes, ccomas diretrizes politicas formalizadas para aefetivagio deste direito sob a perspectiva coletiva e distributiva. ‘Assim, o artigo analisa um evento recente que indica a adogio de um novo padrio no ambito do process judicial na satide, com essa classe de implicagdes. "Antigo 58, XXX, da Constiuio Federal exablee expresamente que "ki a ex da sprecago do Poder Jliciro ksi ou ameaga dco" + Camping (2002) com base materia dos sistas labora plo iso slmio Niklas Luhmana sstnta qu oor iia da politica quando 0 der uo, po central do sistema jai, pas a tar além dos limite estate deste sistema, pastas operat com framenasprprias do sims polio, em ter apd para ano, exceendo assim a ansdo queso stemapoltico pode exter na sociedad, qual sca avomada de decsoescolevamente culate, Ea sobepeig ds dec judi ao seabougs eormaivecaborade pel ema poco Seem Eda, i Se ig, 33,8. 8p BOT, ja tbe. 2009 8l 82 DDELDUQUE. MC: MARQUES,SB; ROMERO, + Assi pride jie plein! Em julho de 2008, o juiz.da 2+ Vara da Fazenda de Sio José do Rio Preto em Sio Paulo, acatando 0 pedido do Ministério Publico, obrigou a Secretaria Municipal de Satide a vacinar toda a populagio do municfpio contra.a meningite, frente a um surto com 13 casos em tum dos baittos. ‘A promororia de Justica, frente a um abaixo- assinado de mais de 600 pessoas, €0 temor coletivo da doenga que levou dezenas de familias abandonarem um condominio localizado no bairro no qual foi constatado 6 surto de meningite’, ingressou com uma ago civil piiblica em julzo, reivindicando o acesso de todos os moradores do municipio & vacinacio contra a docnea. Ressalta-se que, como a vacina disponibilizada pelo SUS destinava-se apenas a alguns grupos vulneriveis, como criangas portadoras de cardiopatias, a vacinagio de pessoas fora daqueles grupos estava acontecendo apenas em clinicas privadas. Frente ao surto relatado € a0 direito & satide garantido constitucionalmente, a promotoria entendeu que todos os moradores deveriam ter acesso a este insumo. A autoridade sani bloqueio do foco da doenga pela vacinagdo dos grupos de risco, identificados por critérios epidemiolégicos. A ria j4 havia providenciado 0 Secretaria Municipal de Satide apelou da deciso argu- mentando em favor da correcio da estratégia adotada pelos epidemiologistas do municipio para o controle do surto, Salientou, ademais, em sua defesa, que nio existe ro Brasil 0 ntimero de doses necessérias para imunizar toda a populacio de Sto José do Rio Preto, 0 que di cultaria o cumprimento da decisio no prazo estabelecido pelo juiz de primeira instincia’. © julgador em segunda instancia, no entanto, negou o apelo da autoridade sani- tdria e manteve a decisio da primeira instancia. Esse episodio traz. duas novidades com relagio & intervengio do Poder Judicidtio em questbes de sade, pois ela passa a alcancar a saide puiblica ea intervir na prescriglo terapéutica que subsidiou a atuagio politica da autoridade sanitiria daquele municipio. Até entio, as decis6es judiciais na satide restringiam-se a intervir sobre a atengio a satide individual. Na situagao relatada, 6 Poder Judicidrio intervém em agdes de controle de doengas ou de aleance coletivo, isto é no ambito de atuagio clissica da saide publica. O segundo aspecto constitui uma mudanca bem mais radical, jf que até o ‘momento, ajurisprudéncia reconhecia, como salientam Marques ¢ Dallari (2007) ¢ Romero (2008), prevalén- cia da prescrigdo médica individual sobre qualquer outro argumento de nacureea politi - As decisses judiciais nao intervinham diretamente sobre a prescrigio médi «a, sob 0 argumento de que o médico € 0 profissional mais indicado para determinar qual tratamento ou medicamento € neces: io no caso e, sendo assim, que no cabe ao Judicidrio interferir em decisdes de natureza técnica € na atuagio profissional, por nao dispor dos conhecimentos para tanto. A decisao do Tribunal de Justia do Distrito Federal € Territérios (TJDFT)’, de 2005, diz: Nao cabe ao judicidrio intervir na escolha do medi- camento a ser ministrado, de forma a interferir no diagnéstico médico realizado por profisional capa- citado que prescreven o medicamento que entendew ‘Acestratégia indicada nos casos de surtos de doengas infecciosas em que hé vacina e que ocorrem de forma limitada é a vacinagao de bloqueio dos focos. Assim, os epidemiologistas responsiveis pelo controle do caso sob » Disponivel em hupulkimosequnda.ig.com befbras/2008/07/3juie orden vacnacao_contra_meningit cm. sio_ pret. sp_1486096.hunl, Aces em 34082008, “ Disponivel em: pf nel detalle_ nti php2cigo- 647. Aco em 30/8/2008, » Proceso" 2002.01.1.085 3693, also 215.163, jalgado em 18/04/05 See Dee, Rio de ani, 3,081, 8087, jibe 2009 DELDUQUE. MCs MARQUES,S.B;ROMERO,LLC + Asap de jis plein? analise,estavam respaldados pelo recomendado pela boa pritica epidemiolégica. A vacinagio de toda a comuni- dade, quando os focos sio em pequeno niimero ou em «casos geograficamentelimitados, pode representar uma cstratégia de baixaeficéciae, portanto, de risco de disse- minagao da doenga em razao da dispersio de recursos ¢ consequence perda da oportunidade de intervir no que for necessério ~ 0 bloqueio dos focos. Todavia, na decisio judicial sob anilise, 0 Poder rio entendeu, com base nos prineipios constitu- cionais que garantem a satide como um diteto integral universal, que a vacina deveria ser disponibilizada a todos os moradores do municipio de Sio José do Rio Preto, ¢ nao apenas Aqueles elencados pela autoridade sanitéria, por criétios epidemiolégicos. Admite-se que o desenvolvimento de politicas publicas, inclusive as sociais, se deve ao advento do es- tado social de direito, os quaisincluem o rol de direitos fundamentais dos cidadios e direitos sociais como 0 dircito A educagio e saide. E tais direitos fundamentais ‘io materializados através de uma intervencio positiva do Estado. O dircito social & satide depende, necessa- riamente, da tomada de decisées coletivas pelo sistema politico, a serem formalizadas e implementadas por meio da elaboracio de politicas piiblicas e da prestacio de servigos piblicos. E, assim, vinculam ativamente © sistema politico ¢ o juridico para sua garantia. No caso em questo, o Poder Exccutivo € 0 prin- cipal protagonista do sistema politico, por ser 0 exe- ‘cutor das politicas piblicas materializadoras do direito a sade. E, com base em critérios epidemiolégicos, que visam 0 controle coletivo da doenga, estabeleceu condicionantes para a vacinagio em massa € para a prevengio da doenga na populagio. Todavia, essas determinagdes nao foram consideradas pelo Poder Judiciétio a0 formular a sua decisio. Alguns estudiosos de Direito (Bucct, 2006; Grav, 2000; Fae JuNIOR., 2005) tém se debrugado sobre o ema das politcas publicas. Para Grau (2000, p. 21) «a expresio politicas priblica designa todas as atuagées do Extado, cobrindo todas as formas de intervengao do poder piiblico na vida social. Bucci (2006, p. 241), por sua ver, define politicas puiblicas como: programas de agao governamental visando a coorde- nar os meios a disposicio do Entado e as atividades privadas, para a realizagio de objetivos socialmente relevantese politicamente determinados. Bucci (2006), ainda, discorre sobre a expressio ju- ridica das politicas piblicas, declarando que o programa de agio governamental constituido de um conjunto de medidas articuladas visando realizar objetivos de ordem piiblica ou concretizar um direito, tem forma exterior recomhecivel pelo sistema juridico, Este suporte legal das ppoliticas puiblicas, pode ir desde as disposigdes consti- tucionais, passando pelo arcabougo legal ¢ infralegal, até os contratos, Como todo dicito garantido constitucionalmente, a satide pode ser tutelada pela via judicial. As questoes, {que envolvem conflitos relacionados 20 dieito social 4 satide podem ser levadas a jutzo ¢ ser objeto da atua- ‘20 judicial. Como 0 exercicio do direito a satide esta intrinsecamente relacionado 4 elaboracio de politicas de satide e prestagio de servigos puiblicos de satide, a prestagio jurisdicional tendea inovar nos casos concretos « Sv (1999, p. 289-290) conceit os dito soci como prestasSc posts proporionadas pelo Eta dita oa indreaments, enuncidas cm noma . Acesso em: 2 ago. 2008. ‘Santos, MLL. Politicas Piblicas (econdmicas) ¢ controle, Revista da Associagao dos Magistrados Brasileiros, Brasilia, v. 5, n. 12, 2002 ‘Suva, J.A. Gurso de diveito constitucional positive. 16. ed. ‘Sao Paulo: Malhciros, 1999. ‘Trusner, G. Alienating justice: on the surplus value of the twelth camel, In: NetkeN, D.; Prunan, J. (Ed.) Consequences of legal autopoieses. Dartmouth: Aldershot, 2001. p. 21-44. ‘Vittas Boas Fito, O. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. So Paulo: Max Limonad, 2006. Reseido:Stemb/2008 Aprovao: Dezembro/2008 Seem Eda, i Se ig, 33,8. 8p BOT, ja tbe. 2009 87

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