Você está na página 1de 2
Conto de um leitor viajante - Stella Maria Ferreira Publicado em 19 de agosto de 2014 por Editora LiteraCidade PLC-2014-PROSA / 1° lugar — contos avulsos Conto de um leitor viajante As férias chegaram. De t4o cansado, nao planejara absolutamente nenhuma atividade. A ideia do deslocamento, no entanto, me perseguia hé cerca de uma semana. Lembrei de Baudelaire e de sua visceral necessidade de estar onde nao estava, de viajar para os lugares mais distantes, de geograficamente esquivar-se de pensamentos que naquele instante de repouso pareciam ameagadores. Estava inquieto. Nao que isso fosse estranho. Eu era naturalmente inquieto. Seriam os livros que sempre tinha 4 mao? Era o que a mie repetira por toda a minha adolescéncia. Dizia que estava sempre ‘no mundo da lua’. Eu me irritava e gritava que era poeta das idas e vindas; era artista. Ela ficava ainda mais nervosa, Era 0 feijao. E..hoje trabalho num escritério de advocacia e a poesia ficou de lado, Momentos de inquietagio como os desta eu, o sonho. E sonho ‘nao se colocava na mesa’, dizii manhi, porém, lembravam-me de mim. Antes. Quando tudo era poesia ¢ eu me deslocava om facilidade para onde queria em minha mente, Peguei o caderno de anotagies que estava na cabeceira e escrevi par para me encontrar. Viajar para saber de mim.”. Troquei de roupa. °A saida, o porteiro me perguntou algo sobre meu retorno — haveria manutengio do sistema de gis naquela tarde. Desculpei-me dizendo ser dificil marcar 0 hordrio da volta. Pediria uma outra visita para o apartamento se houvesse desencontro. Como saberia da volta se nfio sabia para onde iria? Queria a poesia da incerteza, a rima do desengano, o verso do talve: amorosamente artistico uma vez mais. Nao sentia receio algum. Queria respirar aquele ar Era um barzinho simpitico. Pedi café e biscoitos enquanto lia algumas dezenas de prospectos de viagens, passeios e produtos venda colecionados ao longo do ano. A ilha parecia convidativa. Sorri ao lembrar de Alan de Botton e a descricao de suas férias numa ilha paradisiaca em A arte de viajar. Nao seria uma mé ideia fugir para outros ares. O aroma do café fez com que eu fechasse os olhos e, entdo, 14 estava cu chegando na ilha. As malas sendo trazidas para o imenso quarto. Uma porta dava saida direto para uma linda praia. Sentei-me na areia morna. O som alto das gaivotas, que pareciam brincar, era encantador e repousante. O vento assobiava o texto que cu ansiava escrever. “A nota da vida incompleta aguarda o acorde na dependéncia do préximo passo. A forga de ousar. Sem a escolha de parar, Sem o medo no olhar. A carne na pena. O sangue na tinta. Poesia pronta.”. Abri os olhos e o caderno de notas estava na minha frente, sobre a mesa do barzinho e as palavras que eu ouvira na ilha do panfleto ali escrit durara anos ¢ cla foi perseverante ¢ ficl. . A arte me encontrara. A procura Fui para casa. O porteiro perguntou-me se o passeio fora bom e eu disse ter sido a melhor viagem da minha vida. O Des Esseintes de Huysmans sentado num café viajou para Londres. Eu, para uma ilha. Pares na arte, Pares na vida. Sintese biografica: Stella Maria Ferreira é Mestre e Doutora em Ciéncia da Literatura pela UFRJ. Conta com cinco artigos publicados em livros; uma resenha publicada na Revista ‘Poesia Sempre’ da Fundagao Biblioteca Nacional e um livro recentemente publicado, intitulado ‘Café literario com Wilde e Nietzsche’. Atua como professora de Inglés na Rede Municipal do Rio de Janeiro,

Você também pode gostar