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Meméria: Defesa notavel Teoria e Debate n° 74 - novembro/dezembro 2007 publicado em 13/10/2009 Escrito no cércere em 1973, "Em Cémara Lenta" motivou nova priséo de Tapajés. Em sua defesa, Antonio Candido escreveu brilhante parecer por Elofsa Aragéo Maués* Em 1977, pouco se podia falar no Brasil sobre a luta armada que grupos de esquerda haviam travado contra 0 regime militar. O tema era proibido pelo governo e, ao mesmo tempo, recente e traumatico para as esquerdas, que na casio ainda nao tinham feito um balanco piblico da experiéncia e da derrota. Esse silncio foi rompido por Renato Tapajés ao lancar, naquele mesmo ano, o romance Em Cmara Lenta, Era a primeira obra nacional a trazer uma reflexdo critica sobre as estratégias da guerrilha e a denunciar 0 emprego brutal da tortura pela represséo. ‘Tapajés participara da Ala Vermelha - agrupamento urbano de influéncia maoista que empreendeu acdes armadas - e por isso cumpriu pena de 1969 a 1974, No cércere, mais precisamente em 1973 na Penitencidria do Carandiru, em So Paulo, escreveu os originais em folhas de papel de seda, com letras miidas. Dobradas até se tornarem minuisculas, as folhas eram envolvidas com durex para ficar impermedveis. Quando os pals de Tapajés 0 visitavam na prisdo, levavam ao sair a pequena capsula sob a lingua e, assim, sem despertar suspeitas na vigiléncia, transportavam os originais do futuro livro. Em um minucioso trabalho, eles foram datilografando todos os trechos que recebiam, de modo que, ao ser liberado da prisio em 1974, Tapajés encontrou o texto completo de sua narrativa. Publicado pela editora Alfa-Omega, de Fernando Mangarielo, o romance acabou se destacando entre os setores mais préximos a oposico ao regime, o que levou a um fato inusitado: em julho de 1977 Tapaiés foi preso em ‘So Paulo, tendo ficado dez dias incomunicavel, sob a acusaco de que Em cdmara lenta era um “instrumento de guerra revolucionéria" Isso apesar de o livro no ter sido proibido e no ter, do ponto de vista legal, nenhum empecitho & sua circulacéo, Somente 15 dias depois da prisdo de Tapajés, a obra foi censurada e sua venda proibida, Para 0 processo ento imputado pela Justiga Militar contra Renato Tapajés e Fernando Mangarielo, o advogado ‘Aldo Lins ¢ Silva solicitou um parecer critico! ao professor Antonio Candido sobre o romance. E este parecer, até hoje inédito?, que Teoria e Debate publica a seguir. © documento fala por si mesmo. Vale ressaltar, no entanto, o rigor € a lucidez desse critico literdrio a quem ja foram atribuidos tantos elogios. Mais uma vez, & possivel compreender o porqué. *Bloisa Aragdo Maués é editora de livros e mestranda em Histéria Social pela Universidade de Sao Paulo Notas 1 Em entrevista a esta revista, 0 advogado Aldo Lins e Silva, que defendeu Renato Tapajés no processo referente ao livro, citou mais dois importantes pareceristas que o auxiliaram: "No julgamento, estavam presentes artistas, intelectuais, que ficaram melo decepcionados com a conciséo de minha defesa. Como eu tinha juntado ao processo trés pareceres, um de Antonio Candido, outro de Paulo Emilio Salles Gomes e outro de Barbosa Lima Sobrinho, no dia do julgamento nao tinha mais nada a fazer, era sé dizer algumas palavras formais. © promotor fez uma acusacéo feroz, falou mais de uma hora e mela, e respondi com a maior sobriedade. Comecel a ler a carta do Barbosa Lima sobre o livro, em seguida a do Paulo Emilio Salles Gomes depois a de Antonio Candido, uma beleza de parecer! Ele foi absolvido por unanimidade". In: Teoria e Debate, 1°40, fev/mar/abr 1999, p. 30. 2 Cépia do parecer foi cedida por Renato Tapajés a Mario Augusto Medeiros da Silva e consta de sua dissertaco de mestrado: Preliidios & noturnos: ficcdes, revisdes soes e trajetérias de um projeto politico. Dissertacdo de Mestrado, Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Unicamp, 2006. A Mario Augusto, nossos agradecimentos. Leia abaixo a defesa escrita por Antonio Candido: Parecer Tendo sido indicado como Perito no Processo movido contra o escritor Renato Tapajés, por causa da publicagio de seu romance "Em cémara lenta”, penso que os pontos importantes, no caso, so os seguintes: 1, este livro 6 subversivo? 2. a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou & prética de atos subversivos? Antecipo que a resposta é - "Nao", ~ pelos motivos abaixo discriminados. 1. "Em cémara lenta" no é um livro subversivo, devido a uma série de razdes. Em primeiro lugar, porque € um romance e, portanto, escrito num tipo de discurso marcado pela predominancia da “fungo poética’ Gakobson), isto é, a que se caracteriza pelo fato da palavra ter a si mesma como finalidade principal; pelo fato da palavra ser trabalhada em funglo das suas propriedades especificas. No discurso literdrio existem, claro, outras fungées da linguagem, como a “referencial”, cuja finalidade é a representacao objetiva do mundo interior e exterior, Mas 0s diversos tipos de discurso se caracterizam pela predominancia, ndo a exclusividade de fungées. Na linguagem quotidiana, no discurso administrativo ou cientifico, por exemplo, predomina a funcao referencial, que visa a informar, a exprimir diretamente o que Percebemos ou inferimos da realidade. Na linguagem literéria, predomina a funcao poética, que visa a realcar as qualidades estéticas da palavra. Nao se pode, portanto, tomar como informative, como documento, um discurso de tipo literdrio, que visa a criar um universo especifico, diferente da realidade, embora a tenha como matéria-prima e procure tomar o seu lugar. Um erro vulgar consiste em pensar que a forca da literatura very da realidade que descreve; quando, de fato, esta forca provém do teor estético da linguagem usada. O sentimento real, por exemplo, nao basta para fazer literatura, porque, ao contrério do que tendemos a Pensar, 0 que nos toca nao é a autenticidade objetiva disso ou daquilo, mas a eficiéncia estética do discurso, que faz parecer auténtico isso ou aquilo (mesmo que no o seja) A estas consideracdes é preciso juntar outra, de grande importncia: a que se refere ao cardter de ambiguidade do discurso literério, Neste, as coisas, os sentimentos, as idéias, nunca tém um tnico significado, mas varios; e isto faz a sua forca. Dai a necessidade de "interpretacdo", que ¢ 0 modo de ler literatura, sendo uma tentativa de estabelecer quais s80 os sentidos possivels, de cujo concurso se forma 0, ou se formam os, significados dominantes. Pelo exposto, vemos que é arriscado tomar como documento um romance, que foi construido deliberadamente como obra literaria, portanto artificial, com predominio da fungao poética e alta taxa de ambigiidade. "Madame Bovary", de Flaubert, é pré ou contra 0 adultério? "A busca do tempo perdido", de Proust, é uma apologia ou uma condenago do homossexualismo? "Sob o olhar do Ocidente", de Conrad, exalta ou denigre 05 revolucionérios? Todas estas questdes sdo secundérias e, na verdade, inécuas, Quando alcanca o devido nivel literario, o romance ultrapassa tais dilemas e se apresenta como um feixe de possibilidades de significar. Como a vida, ele pode nos deixar perplexos, nos levar ao tacteio, ao erro de visdo; mas, como ela, enriquece, enquanto totalidade de experiéncia, "Em cdmara lenta" no é um retrato documentério, continuo ¢ fiel da realidade, E escrito conforme uma técnica requintada de fragmentacdo do real, mistura de planos temporais, visdo rotativa, - tudo ordenado em torno da acdo que se completa aos poucos ¢ dé nome ao livro. E nao apresenta um significado, mas uma série eles, tantos, quantas séo as faces da realidade e os correspondentes angulos de visdo. 2. Isso leva a segunda pergunta: a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou a pratica de atos subversivos? No meu entender, néo. Um leitor de "Em cémara lenta” pode se interessar pelos dramas pessoais, pela sucesso de atos, pelo suspense das cenas, pelas imagens potticas, etc. E, sobretudo, pelo mistério lentamente desvendado da cena central recorrente; do ato que vai se perfazendo aos pedagos, até compor uma ago total, Trata-se, pois, de interesse cuja natureza é sobretudo estética. E claro que 0 leitor podera ter uma visdo panoramica de atos revoluciondrios, apresentados nas suas diversas dimensdes e podendo, sem diivida, constituir uma visdo politica, um modo de conceber a participacdo nos problemas do nosso tempo. Mas no vejo, em momento algum, convite & prética, induzimento, ou sequer sugesto por meio de embelezamento ou realce do que é descrito, - como ocorre nos romances doutrinarios e, em geral, alegéricos, que estiveram em moda sobretudo até o século XVIII. "Em cémara lenta" nada tem a ver este género, hoje relegado ao segundo time da ficco. E note-se que no livro no ha sequer (como ¢ freqiiente nos romances de cunho naturalista) descrigo pormenorizada de atos revolucionarios. Como vimos, a narrativa, muito moderna, é descontinua, fragmentada, procede por flashes que adquirem certo tom de irrealidade e entra por vezes na dimenso atemporal, que nos arranca do quotidiano presente para entrar, no universo da fabula realista 3. Alguém poderé fazer uma reflexio como esta: admitindo embora isso tudo, a leitura de um livro no pode, entre as suas diversas interpretagdes possiveis, lever entre outras @ uma conclusao de ordem prética? Portanto, uma pessoa que Ié "Em cdmara lenta", mesmo plenamente capacitada da sua natureza de produto ficcional, no pode extrair uma determinada conclusao de vida? Apesar de toda a neutralidade de Flaubert, 0 leltor de "Madame Bovary" n&o pode, por sua conta, concluir que o adultério é bom? - Sim, isso é possivel. E possivel que o leitor de "Em cémara lenta", tudo sentido, tudo vivido, tudo pesado, tire da sua interpretacao uma concluséo prética do que leu. E qual seria ela? Poderia (voltando ao nosso tema) ser um convite, ou induzimento & subverso? ‘Admitindo para argumentar e por dever de probidade este plano meramente pragmatico e portanto secundério de leitura, que ndo me interessa enquanto critico literério, eu concluiria, mais uma vez, pela resposta negativa que antecipei no comego, Com efeito, note-se que a partir da pagina 186 o livro vai tecendo uma série de dividas, de proposicdes alternativas, de criticas ao tipo de atividade descrita, Ressalvando a ambiguidade dos textos literérios, o que pessoalmente infiro, se me situo neste plano, é uma sugestao, indireta, no formulada, mas poderosa, contra a subversio, Sugestao contra a eventual inutilidade de tudo que se descreveu. Parece haver no fim do livro, com efeito, uma atmosfera que faz sentir como so intiteis os tipos de acdo que nutrem a narrativa; como é negativo 0 caréter isolado e quase anti-social do guerrilheiro; como é vazia a acco humana que ndo se enquadra nos designios, na vontade dos outros homens, de uma coletividade. 4, Resumindo para concluir: em qualquer nivel que me coloque, sou levado a negar que “Em cémara lenta” constitua um incentivo ou sequer um mero exemplo para atividade subversiva. E se fosse necessério extrair dele uma ligé0, como dos velhos romances alegéricos, eu concluiria que é, antes, 0 contrério. Esta € a opinigo que emito, cénscio da minha responsabilidade ¢ com base em andlise atenta, como professor, critico e estudioso da literatura. ‘S80 Paulo, 12 de fevereiro de 1978 Antonio Candido de Mello e Souza Professor Titular Aposentado da Universidade de Sé0 PauloCoordenador do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas

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