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AUGUSTO SANTOS SILVA JOSE MADUREIRA PINTO (orgs.) METODOLOGIA DAS CIENCIAS SOCIAIS Biblioteca das Ciéncias do Homem Edicoes Afrontamento Titulo: Metodologia das Ciéncias Socials Organizadores: A. Santos Silva e J. Madureira Pinto © 1986, Edigées Afrontamento Edigto: Edigdes Afrontamento/R, Costa Cabral, 859/Porto N® de Edigao: 270 Colecgéo: Biblioteca das Ciéncias do Homem/Sociologia, Epistemologia/6 itografia Ach. Brito INTRODUCAO UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS Augusto Santos Silva José Madureira Pinto 1. AS CIENCIAS SOCIAIS COMO CIENCIAS O titulo geral desta obra colectiva é: Metodologia das Ciéncias Sociais. Todos os capftulos, de diversos autores, se enquadram nesse trabalho permanente de andlise critica dos métodos de pesquisa — quer dizer, dos processos e problemas da investi- gacdo empirica — a que chamamos metodologia. Alguns dos capitulos referem-se as ciéncias sociais, em geral; a maioria reporta-se a disciplinas particulares, como a so- ciologia, a economia, a psicologia social e a antropologia. Mas: o que sdo as ciéncias sociais? Visto que usamos o plural, como se distin- guem elas? E 0 que as aproxima, j4 que as inclufmos num conjunto? Num registo to simples e consensual quanto possivel, esta introdugdo tentard si- tuar as varias disciplinas a que os outros textos em seguida aludirdo. Uma formula elementar para dar conta do objectivo comumasciénciassociaisco- + j (sit. megaria por dizer que todas _procuram coythecer\a realidade, Mas o que € conhecer? ‘sy /, uma questo desde Togo HlosOhica, Estamos j4, porém, longe das velhas que- : relas de escola entre empiristas (de acordo com os quais a experiénciae a sensacdo se- riam as tinicas fontes de conhecimento) e inatistas (que desqualificavam a experiéncia em nome de ideias inatas). Para a sua ultrapassagem, a contribuigao de Kant Yevelou- \é ecisiva: os nossos conhecimentos comecam pela experiéncia sensivel, mas esta é mediatizada por conceitos, € organizada e estruturada por quadros categoriais ‘POprios do nosso espirito..Ao sustentar, ao mesmo tempo, o papel activo do sujeito na cogni¢ao e a possibilidade do conhecimento objectivo do mundo exterior, a ideia de que o conhecimento é mais do que uma crenca e a de que constitui uma elaboracZo “~> 10 A. SANTOS SILVA/J. MADUREIRA PINTO intelectual (nunca mero registo passivo de sensagées), Kant definiu as modemas coor- denadas filoséficas do problema. Maisrecentemente, algumasdisciplinas cientificas demonstramqueoconhecimen- to nio é um estado mas sim um proceso — processo complexo de adaptagao activae ‘Griadora do homem ao meio envolvente, implicando artitulagdes entre pritica e pensa- mento, vivéncias e representacdes/operades simbélicas. Especificamente, a psicolo- gia dé-nos argumentos sobre argumentos para erradicar de vez o empirismo mais vul- gar. A propria percepco jamais poderia ser assimilada a uma impressio fotografica: Oque percepcionamos é j4 um conjunto de informacées seleccionadas.e estmituradas Seauials ceras leis de orpMnIGe scan da experiéncia passada, das necessida- des praticas, da a0gio dos sujeitas. ~~ __-Aepistemologia genética” de Jean Piaget constitui a mais importante teoria psi- Colégica do processo de conhecimento. O conjunto de estruturas cognitivas de que ca- da organismo dispde em cada fase do seu desenvolvimento —e a que chamamos inte- ligéncia — € progressivamente construido através da sua acgdo. A inteligéncia nao é “contemplativa" mas "transformadora", operatéria, sendo as operagées intelectuais acces interiorizadas e coordenadas estruturalmente. Pelo Conhecimento, os sujeitos assimilam a realidade aos seus conceitos e operagdes, construindo. Tepresentagdes que Ihes pemmitem acomodar-se aos objectos — resultando destas relagdes reciprocas sU- cessivos estados de equilibrio mental cada vez mais estéveis, Para 0 nosso prop6sito, 0 ponto nodal da contribuicao psicolégica reside na supe- racdo dos dualismos redutores que opdem em termos absolutos sujeito e realidade ex- terior, ao mostrar como os processos cognitivos se articulam com as ‘outras compo- nentes das condutas. Tese continuamente reforgada pelas pesquisas em histéria das mentalidades ¢ sociologia do conhecimento — que, por sua vez, elucidam como as Praticas e as estruturas sociais condicionam, em cada contexto espdcio-temporal, as re Presentacdes e operacdes simbélicas, das mais esquemiticase elementares as mais ela- boradas e controladas. Portanto: ao_procurarmos.canhecer.a realidade social, vamos construindo, a res- Peito dela, mediante quadros categoriais, operadores Idgicos de classificagao, orde- Tlagdo, et., Medtante processos complexos influenciados ainda pelas nossas necessi- dades, vivencias, interesses — vamos construindo instrumentos que nos i tam informagio sobre essa realidade © modos de a tomar itaioval oe confundem com eta— arfitular de conhecimento de que se reclamam as disciplinas sociais Constitui criagao hist6rica recente. A emergéncia dessa maneira peculiar de por proble- mas € propor solugGes testaveis a que se chama, em sentido lato, método cientifico — mas serd mais adequada a éxpressdo "estratégia de investigacdo cientifica" (1) —re- Monta apenas ao século XVIL A ciéncia moderna — a que aposta, desde Galileu, na (1) MARIO BUNGE, Epistemologia. Curso de Actualizacién, Reimp. da 1* ed. castelhana, Barce- ona, Ariel, 1981, pp. 28-30, 44. | UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS au combinagdo da "teoria" e da "experiéncia", da dedugdo ¢ da observacio sistematica — possui menos de quatrocentos anos de vida. E, por outro lado, uma criacdo particular da civilizacdo europeia, na qual conse- guiu os quadros institucionais que vieram a permitir os desenvolvimentos teoricos, as aplicagées tecnolégicas e o impacto social tipicos da ciéncia contemporanea, Porisso, a historia das ciéncias ndo se pode resumir A narrativa ou até a critica retrospectiva de ideias, descobertas ou invengées; é uma reconstrugio analitica do desenvolvimento das condigées internas da investigacdo cientifica (dos principios, meios e resultados te6ricos) e das suas condigGes sociais: quer dizer, € ainda andlise dos variados modos como as estruturas, as priticas e os projectos caracteristicos das diversas sociedades em que a ciéncia se foi consolidando influenciaram aqueles princfpios, meios e resul- tados. Entre os mediadores dessas influgncias cabe um lugar decisivo 4s condigdes instinucionais em que se desenrola a actividade de pesquisa, aos factores Telativos & rganizaca ientifico (estrutura de poder no interior dele, processos de s0- cializagao profissional vigentes, sistemas de ensino e outros circuitos de difusao de re- sultados, sistemas de carreiras e recompensas consagrados, etc.). Os conhecimentos produzidos pela ciéncia, € periodicamente compilados pelos manuais, dependem da estrutura e funcionamento da ciéncia como instituicdo e siste- maespectfico de produgao de conhecimentos_Estruturae funcionamento por sua vez Condicionados por outras instituigdes e dindmicas sociais — sobretudo nas nagées i dustriais avangadas, em que a investigacdo e a tecnologia desempenham um papel cru- cial e, por isso, esto sujeitas a intensas procuras e pressdes de diversa proveniéncia (politica, militar, econémica...). A estratégia da investigacao cientifica no pode, pois, ser definida, & maneira da filosofia classica, invocando normas ldgicas tidas por imutdveis e procurando fixar para sempre as condigdes de possibilidade e de coeréncia da ciéncia. O ponto de vis- taepistemolégico que agora prevalece distingue-se precisamente por procurar estabe- leceruma reflexdo sobre a ciéncia efectiva, a ciéncia que se faz, aceitando a histori dade dos princfpios de que ela parte, dos processos que utiliza e dos resultados a que chega. Nestes termos, a que se referem os estudiosos dos comportamentos humanos quando afirmam produzirem conhecimentos cientificos? O que quer hoje dizer a pala- vra "ciéncia"? . . a Eis um tema de debates complexos e apaixonados. Mas, ao n{vel introdutério em que nos situamos, e j4 conscientes de que, como modo de conhecimento, a ciéncia é uma representagao, intelectualmente construfda, is — parece possivel avan- Gar objectivos e caracteristicas sobre os quais ha algum consenso e que, se articula- dos, a individualizam de outras formas de conhecimento. ‘Assim, a maioria dos especialistas coloca como eta das citncias a epleagd de fenémenos (considerando embora varios tipos de explicagao) de modo a tomn4-los in- teligiveis. Para ld chegar, ciéncia comega por ser definir racionalmente, a um nivel va- Wavel de generalidade, problemas susceptiveis de resolucdo através de uma activida- de de pesquisa. Como a hist6ria comprova, cada disciplina s6 acede ao estatuto de 2 A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO ciéncia quando constréi_o seu gbjecto. proprio — quando, delimitando um conjunto de problemas soluciondveis, abandona as questdes cuja abordagem se poderia fazer apenas no registo da filosofia, da religiao ou da ideologia, e se situa a um nivel de abstracgdo e generalidade que Ihe permite elucidar regularidades, formular leis, cons- truir modelos interpretativos. Em consequéncia, ciéncia é também procurar solugdes para problemas. Ela pré- pria elabora ¢ testa os mieios necessérios: conjuntos coerentes de conceitos e relagdes entre conceitos — as teorias —, uma linguagem conceptual adequada e tanto quanto possivel exclusiva, instrumentos técnicos de recolha e tratamento de informagao, mé- todos de pesquisa. E desenvolve um complexo processo, em que, partindo de princf- pios pressupostos e/ou de axiométicas explicitas, vai construindo sistemas de rela- Ges conceptuais, primeiro assumidos hipoteticamente e logo submetidos ao fogo cru- zado de sucessivas provas de validacdo, para chegar a resultados transformados de imediato ou a prazo emi ROvSE PIODTERS Ora, a maxima peculiaridade da estratégia cientifica est nessas varias e continuas provas de validagdo. As explicacées s6 sAo cientificas se testaveis —e, Pportanto, vir- tualmente refutdveis, Masha varias instdncias de controlo das teorias explicativas: a ‘sua adequagio aomadelo l6gico-matematico de inteli gibilidade que temorientadoara- cionalidade que os cientistas tendem a tomar por critério tltimo do seu labor; acompa- tibilidade com as outras teorias, e mais geralmente com os paradigmas e ainda com as problematicas proprias das disciplinas em que se enquadram (e essa compatibilida- de pode bem ser conflitual); a sistematicida er dizer, as qualidades de rigore coeréncia intema, a exaustividade da explicagao proposta, as possibilidades heuristi- cas apresentadas; a gperacionalidade na construcdo e interpretacao de informacio (de “dados empiticos"), ou seja, a SUa Utilidade' para a orientagdo das operacdes técnicas de recolha e tratamento e para a integracdo dos factos que elas produzem — e opera- cionalidade eventualmente ainda na producdo de previsées verificdveis. Esta descri¢do elementar evita os nds problematicos da definigdo da estratégia de investigagao cientffica. Dois deles sao, nas ciéncias sociais, especialmente importan- tes: a relacdo entre as vérias instancias de controlo das explicagdes — e, em particu- lar, os modos como se faz 0 confronto entre construcdo teérica e pesquisa empfrica; a telagdo entre 0 conhecimento cientifico, tal como os critérios anteriores 0 caracteri- zam, € 0 senso comum. Por isso mesmo, a eles serdo dedicados, respectivamente, os capitulos IT e I do presente volume. 2. FORMACAO E DESENVOLVIMENTO. Examinémos o sentido que adquire a palavra “ciéncia" na formula "cigncias so- ciais". Mas, se sabemos jé as normas Idgicas, tedricas e metodolégicas a que tém de UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 3 obedecer disciplinas como a economia, a sociologia ou a hist6ria — ainda nao esclare- cemos porque as qualificamos a todas como saciais, e porque as di $e Ficard talvez decepcionado quem procurar respostas nas definigdes que déo mui- tos manuais sobre o objecto das respectivas especialidades: elas recobrem-se umas as Outras, parecem demasiado vagas. Mesmoas classificagées globais propostas porim. portantes epistemdlogos raramente coincidem e sdo por vezes excessivamente norma- tivas. Apostamos, pela nossa parte, na combinagdo de algum pragmatismo e algum nor- mativismo. Assim, teremos em conta que as ciéncias sociais 40 uma criagdo histéri- capcente-de uma civlizagao; e o seu desenvolvimento tom sido mateade ror ses Factores: sua propria evolugao teérica, o dinamismo de outras ciéncias e formas de saber, as caracteristicas desiguais de diferentes contextos institucionais e, em geral, sociais. Constituem, portanto, um continente intelectual heterogéneo, fracturado, cuja onfiguracao global € 0 resultado conjunitural de ur fé uma historia que continua. Ao mes- Io (eripo Poti, rocUra SOS PETS ee paus. Ro mes: patriménio, situando-nos na prospectiva. Os homens sdo seres sociais. As suas acgGes desdobram-se em praticas materiais € simbélicas, relages com a natureza e relagdes com outros homens, no ambito de grupos com varias dimensdes, dos grupos elementares como as familias até 2s orga- nizagées vastas a que chamamos sociedades. Pelas suas préticas criam instituigoes, modos de conduta que ocorrem e se reproduzem em longos segmentos espdcio-tem- Porais; criam novas realidades materiais, paisagens ou técnicas, alimentos ou po- voagées; criam acontecimentos; criam, em suma, materialidades sociais com proprie- dades estruturais proprias e que, por seu lado, condicionam decisivamente a pro- dugdo das praticas que as produzem e reproduzem. Hoje, compreendemos quase instintivamente quanto a realidade planetéria em, que vivemos constitui uma realidade social, quio marcada est4 elas acgdes huma- Ras, mesmo Nos seus aspectos aparentemente mais "naturais". Mas isso ndo basta pa- ra definir os princfpios de que partem as ciéncias sociais. E se jd Aristételes assinala- va.acondicdo social do homem, a andlise cientifico-social da realidade é um fenéme- no bem recente. Com efeito, a perspectiva crucial desta andlise —capaz de articularracionalmente estruturas € praticas sociais — s6 se consolida durante 08 tiltimos duzentos anos, atra- vés de um longo e complexo processo nogao de Sociedadé como ordem laica estabelecida por Vico e Hobbes); o principio\, EAU ESSE ORE TAG POTEET to ae ates prep augnuaivaments (propos por Van correntes, consolidado por Condorcet, Quételet e outros); a categoria de mudfanga 20! (legada por Rousseau); e ideias similares. T 5 contribuigoes sistematicas mais decisivas do século XVIII parecem ser, contu- do, as de Montesquieu e Adam Ferguson. O primeiro procurou perceber os regimes ‘electual. Foi necessdria a formagao de uma‘ nogio de sociedade, distinta das nocées tradicionais Ge civilizatao, poliaca ov moral, | Genomes estudos que nao as filosofias da histdria, da moral e da politica — 14 - A. SANTOS SILVA/J. MADUREIRA PINTO Politicos relacionando-os com as totalidades sociais respectivas, insistindo na interde- pendéncia dos factos humanos e propondo-se chegar a leis, definidas no sentido cien- tifico e j4 nao no juridico. O segundo estabeleceu principios que se tomnariam centrais: no estudo dos grupos reside o “método" mais correcto; os comportamentos e até as consciéncias individuais séo socialmente condicionados; a andlise deve integrar a observacdo e os testemunhos empiricos. Finalmente, ng inicio do século XIX, varios autores evidenciam "; rofundidade do‘social--@) — as estruturas sociais nunca equivalem A soma de activi- dades conscientes que pudessem ser apercebidas e caracterizadas no mero plano indi- vidual, —— Q Social ¢ itredutivel ag individual: sem a consolidacdo desta tese nao haveria ciéncTas-sociais. Mas elas também ndo se formariam.sem a dindmica e o impacto crescentes do saber Iégico-matematico, fisico e bioldgico, que elaborava um modelo de estratégia de investigagdo que ia servindo de referencial aos estudiosos sociais. E sem as profundas transformagdes econémicas, demograficas, politicas e culturais das nagées oitocentistas do Ocidente. E num mundo alterado pela industrializacdo, a urba- nizacdo e o crescimento_populacional, as ea eclosao dos movi- mentos is i, imento de novas instincias e padrées de sociali- zagdo, etc., que é fundada uma ciéncia, a sociologia, que disciplinas j4 cultivadas, co- mo a economia, primeiro, e, depois, a historia, a geografia ou a demografia se tor- nam cientificas —e que umas ¢ outras ganham titulos de legitimidade e meios institu- cionais de produgo e reproduco. Assim, o processo bissecular de constituigdo das ciéncias sociais de hoje apresen- tadiversas componentes: intelectuais; institucionais; e sociais, no sentido lato do ter- mo. E um processo que varia de pais para pais, dependendo bastante das caracteristi cas dos Estados , das relagSes de forga entre grupos sociais, das organizacées univer- sitérias, das dindmicas de crescimento econémico, das doutrinas e ideologias. Mas, se considerarmos o modelo que tem dominado internacionalmente, polarizado na In- glaterra, Franga, Alemanha e Estados Unidos, ressaltardo trés vectores de desenvolvi- mento: 0 que leva os estudos sobre as condutas humanas a seguirem estratégias de in- vestigagdo cientifica, construindo explicagdes logicamente coerentes e referidas a observac6es e materiais empfricos, e submetendo-as a provas de validagao; o que leva esses estudos cientificamente orientados a centrarem-se sobre relagdes sociais (préti- cas, instituigdes, estruturas); e o que leva a sua institucionalizagao em aparelhos de produgao especializada e a sua integracdo nos sistemas de ensino, condigdes de uma reprodugdo alargada e controlada de conhecimentos. Ora, os trés vectores encontram-se, muitas vezes, dissociados. As propostas pre- gursoras de um Giambattista Vico,no.século_XYILL,.ou. mesmo dé“Karl_Mai XIX, s6 seriam aceites € desenvolvidas em momentos posteriores, por causa de con- dices sécio-institucionais desfavordveis, A economia € a primeira a emergir como (2) Expresso de PAUL CLAVAL, Les Mythes Fondateurs des Sciences Sociales, Paris, P.UF., 1980. UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS IS ciéncia, a definir um objecto préprio (um sistema de relagdes conceptuais expressa- mente construfdo), a desenvolver modelos tedricos e complexas formalizacdes Iégi- co-mateméticas. Contudo, durante toda a centiria passada, ela foi dominada por um paradigma individualista que a impediu de assumir-se como ciéncia social e dialogar produtivamente com as restantes — situacao s6 alterada pela viragem keynesiana para a macroeconomia ¢ pela integraco universitéria do marxismo, Por sua vez, foi ja no século XX que a hist6ria se constituiu irreversivelmente como ciéncia — no obstan- te ser um saber ha muitos séculos legitimado, produzido e difundido nas instituigdes de ensino, e nao obstante terem jd os romAnticos cultivado a historia nacional e social dos "povos”. Neste processo de desenvolvimento o papel da sociologia revelou-se crucial. Foi através das interrogagées a que esta nova ciéncia, atenta & especificidade dos grupos sociais e apostando nas teorias de sintese, submeteu as disciplinas anteriores que se forjou o padrao de explicagao tfpico da investigacdo cientifico-social. Marx desconhe- cia-se a si proprio como socidlogo — mas, de facto, foi colocando-se do ponto de vista relacional e globalizante que ele transformou a histéria e a economia, insistindo em que o que importa é analisar as relagées sociais entre os homens a todos os niveis de acco, econémico, politico, ideolégico, Foi assim que élaborou o conceito de prati- ca (cujarelevanciaest4 precisamente em articulara ac¢do individual comcondicionan- tes extra ou supra-individuais, e sublinhar a relacionacao do agente com a naturezae ‘com os outros agentes); o de classe (que permite evidenciar os fundamentos estrutu- rais da diversidade de posigdes na hierarquia social e as determinantes dos conflitos); a Iégica de explicagao estrutural. Nos fins do século XIX, Durkheim reforca o prin- cipio daexterioridade e constrangimento dos factos sociais relativamente ao individuo e elabora as primeiras regras metodoldgicas sistemAticas. Pouco mais tarde, 0 terceiro grande fundador, Max Weber, alarga a perspectiva sociolégica & andlise da interac¢o edo sentido da acgdo —e reflecte também explicitamente sobre a interseccao entre essa perspectiva e as da hist6ria e da economia. Reciprocamente, as restantes disciplinas, se capitalizam as novas perspectivas e estratégias de pesquisa trazidas pela sociologia, enriquecem-na com os seus préprios contributos: a hist6ria e a antropologia com a consciéncia da historicidade das estrutu- Tas, 0 relativismo cultural, a aten¢4o 3 diferenga e A mudanga; a lingufstica, a semiolo- gia e a antropologia com o estudo dos processos simbélicos; a psicandlise com a va- lorizagao do inconsciente; a economia com a andlise da accdo racional instrumental e 0 desenvolvimento da formalizacdo e modelizagao; a etnografia e a geografia com as técnicas de observacao directa; etc. Nos princfpios do século XX, a sociologia est4 em vias de consolidago teéricae institucional. Estabelece-se a antropologia social. Surge a ideia de uma semiologia, como ciéncia Zeral dos signos, e inicia-se a linguistica estrutural. Em curso est a ruptura que fard da hist6ria uma ciéncia social decorpo migino Fa inteiro. Prepara-se a viragem para a macroeconomia, Jd depois da II Guerra, a geografia afirmar-se-4 também co- mo ciéncia social. Entretanto, a complexidade crescente da prépria realidade contem- Pordnea, os avangos tedrico-metodoldgicos e condi¢ées institucionais favordveis pro- 16 A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO vocam a eclosdo de incontaveis disciplinas particulares — sejam elas sub-disciplinas de uma ciéncia (assim a economia do trabalho, a sociologia da educagio, etc.), sejam cruzamentos interdisciplinares que ganham autonomia (a psicolinguistica, a sociolo- gia do direito, a ciéncia politica. ..). 3. DIFERENTES PERSPECTIVAS DE ANALISE Q universo que designamos por ciéncias sociais — ou formulas aparentadas — constitui 0 resultado presente e provisério do proceso histérico, intelectual e sécio- institucional, bissecular, sumariamente descrito no ponto anterior. Por isso, cada uma dessas ciéncias configura-se como instituigao social: porque sistema de produgdo especializada de conhecimentos que se auto-alimenta e reproduz, através de praticas reguladas de investigacdo, ensino e prestagao de servigos, e de canais de comuni- cacao mais ou menos intensa com multiplas instancias de poder, visdes do mundo, ideologias. Cada uma possui a sua propria histéria, no decurso da qual acumulou um patriménio especifico de paradigmas, teorias, técnicas e métodos, obras de referéncia © manuais de ensino, circuitos de difusdo de resultados, esquemas de formagao, com- peténcias, costumes e inércias profissionais. Cada uma elaborou, pois, a sua propria cultura, e os seus especialistas esto por norma dispostos a defendé-la e valorizd-la —, correlativamente, muito relutantes a dialogar de forma aberta comas culturas ca- racteristicas das outras disciplinas @), Assim, s6_na aparéncia é paradoxal a posicao atic if determinasao do objects Siemon tusiewa que a economia eno fade eect os economistas fazem, a geografia o que fazem os gedgrafos,e-par af fora. Ela assinala com justeza quanto a divisdo de trabalho e estatuto entre as ciéncias tem de arbitrario e relativo as condigdes sécio-institucionais que em cada momento histérico e em cada pais a determinam. Acresce que essa divisdo tende a ser hier4rquica e no apenas ho- tizontal: envolve distingGes e barreiras entre 4reas disciplinares favorecidas e desva- lorizadas (pelos poderes cientificos, pdliticos, econémicos. ..),com consequéncias de- cisivas ao nivel dos papéis e dos estatutos sociais dos especialistas, dos financia- mentos, do ensino, etc. Pense-se, por exemplo, nas varias ordens de factores implica- dos na distingdo entre economia e geografia econémica. Nao podemos, contudo, ficar por este tipo de constatagoes. Se socidlogos, psicé- | @) Poderia até definir-se como etnocentrismo essa dificuldade corrente dos cientistas sociais para Jf sertareme ioterpretarem resultados de deas de saber que nfo a sua, Cf, PIERRE BOURDIEU, "Répon- se aux économistes", Economies et Saciétés, vol. XVII, 0° 10, 1984, pp. 23-24, e 0 capitulo I deste volume. UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 7 logos ou historiadores "fazem coi ferentes, torna-se necessdrio detectar os con- tetidos tedrico-metodoldgicos de tais diferencas. Nao basta invocar generalidades da hist6ria da institucionalizagao como ciéncia dos estudos sobre as sociedades — tenha- mos, agora, particularmente em conta as diferencas especificamente tedricas (no sen- tido lato do termo) que esse mesmo proceso foi produzindo. + Diferencas tedricas, insista-se, Conuém lembrar que hé uma concepeio errénea [ as persistente, segundo a qual as ciéncias sociais estudariam realidades distintas, ou \— sectores distntos, compatinienades, da fealdade av aWeTongas aaltGoas pr ferengas analiticas provi- riam de diferencas entre objectos reais. Tal concepedo hd muito que vem sendo ultra- passada pelos especialistas. Jd no século XIX, um Comte ou um Marx alertavam pa- Ta que, por exemplo, os fenémenos econémicos so também sociais ¢ politicos. Po- rém,a contribuigdo sistemtica mais relevante, aquela a que hoje recorremos, perten: eu, na, 2 Como conceito de "fendmeno social total, ele estabeleceu dois princ{pios. Qual-j D quer facto, quer ocorra em sociedades arcaicas quer em modernas, ¢ xO) rid jonal; pode, pois, ser apreendido a partir de Angulos distintos, acen- Ttuando cada um destes apenas certas dimensées. Todo o-comportamento remete juer dizer: constelacdes com-| elementares relacdes enti ‘A economia, a psicologia ou a sociologia distinguem-se, nao porque na realidade haja factos exclusivamente econémicos, psicolégicos ou sociolégicos, mas porque -Sricas distintas e constroem distintos objectos cientificos (os quais, como ja vimos, sdo sempre de natureza abstracto-formal, embora mais ou me- nos especificados). Nao se nega que algumas disciplinas tendam a privilegiar dominios reais diversos — as sociedades que os historiadores e os antropélogos mais estudam sdo realmente diferentes das que a generalidade dos socidlogos tém fo- cado. Mas isso € secundario em relagao ao vector principal de diferenciagdo — que é de ordem conceptual, que radica na diversidade das épticas de andlise seguidas. E capital perceber que 0 econdmico, o politico ou o simbélico ndo constituem com- partimentos estanques — séo dimensées inerentes a toda a acco social, estéo nela profundamente interligadas. Se designamos certas formas de conduta por econémi- cas, outras por politicas, outras por simbélicas, ndo é porque umas sejam na realida- de exclusivamente econémicas, outras politicas e outras simbélicas — pelo contrério, aaccdo humana, tomada na sua intrinseca complexidade, é ao mesmo tempo econdmi- ca, politica e simbélica; se designamos, pois, certas formas de conduta por econémi- cas, fazemo-loem virtude de uma classificacdo/seleccdo intelectual nossa, a qual privi- legia certas dimensées, certos aspectos, em detrimento dos restantes, em fungao da perspectiva que adoptarnos (e que tem, no caso, correspondéncia na gretha analitina propria da ciéncia econémica). . Voom S6 yam comand ore sio tio precérias e flutuantes as fronteiras entre in — falando em termos gerais, elas perspectivam, de diferentes ma: eiras, a mesma realidade; e é precisamente por esta ser muito complexa que se faz \ Ne Weg ately eo pallette nan ey cB | Adee eee ma 18 wes ro (r A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO mister, para tomé-ta inieligivel, multip tos tedrico-metodoldgicos “. "Toma se agora necessério esclarecer que a palavra "perspectiva” € aqui usada em sentido amplo. Dizer que cadaciéncia social perspectivade formasspecificaarealidan i ist jemais ¢ dizer que cada.ciéncia, pelo menos tendencial. 9 articulado de questoes — a sua problematic. determina um certo mimero de proble- lemética;(é) constréi conjuntos a i ados cruciais que servem de mode- mi quadro orientador As pesquisas produzidas na sua drea — as paradigrnas. © capitulo II desenvolverd estes tépicos. Resta-nos, por ora, antes de esbocar- mos um esquema possivel de diferenciagio das ciéncias sociais pelas suas perspecti- Vas tebricas, sublinhar quatro pontos — que, ndo o impossibilitando, obrigam contu- do a relativizé-lo. _ ° “Primeiro: no decurso do seu desenvolvimento histérico, tadas as cincias |) dado varias vezes de problematic e, consequentemente, os sistemas de relag (~ Septuais que definem os seus objectos. Algumas dessas mudangas s4o radicais — basta pensar na que a geografia conheceu, j4 no nosso século, e que a levou a assu- mir-se explicitamente como disciplina social. 2 Segundo: na generalidade dos casos, cada ciéncia, em cada fase de evalucio,tem | i ym mas varios paradi ie, portanto, pers- -z)) pectivas analiticas diversas e mesmo antagénicas. ‘Aeconomia, asociologia, a psicolo- bia, ahist6ria, etc., passam permanentemente por grandes controvérsias te6rico-mete- _ = dolbgicas, conhecem situagdes de aguda conflitualidade interna, Essa conflitualidade © fiem & um subproduto de hipotético atraso cientifico, nem é sinal de uma suposta fra- “als” queza intrinseca aos estudos sociais, nem parece inteiramente superdvel por meios especificamente cientificos: ela decorre, no fundo, da estreita articulago, neste tipo \ Geestudos, das teorias cientificas com postulados ideolégicos e visdes do mundo (e, portanto, através de complexas mediagdes — integradas no conjunto de condigées s6- rip instivucionais da pratica cientifica— com a conflitualidade de interesses entre di- versos grupos sociais). Terceiro: os mais fortes desses patadigmas que. i interior. decada ciéncia social so, de facto, transdisciplinares, isto. €, atravess jas ciéncias. Eis 2) SGue acontece com as duas referéncias teérico-ideol6gicas paradigmiéticas mais Per” Sitentes desde hé cem anos: 0 liberalismo e o marxismo. Mas sao transdisciplinares Outros paradigmas menos globalizantes ou duradouros, como o funcionalismo, & fe- Enomenologia, a andlise sistémica ou o estruturalismo. at (@ esuzar) prisms, prineipios ¢ insrumen- (4) Reencontramos aqui a relagio dialéctica entre conhecimento ¢ realidade que examingmos ponts 1. Nofundo, o que explicaapluralidade das cigncias sociais € a conjugagto de dois facios: 8 o Fiexidade real da acgao humana, exigindo niveis eelaboragbes analiticas Complexos; ¢ anaturera SFT Kimativa ¢ parcelar 40 conhecimento cieniifico, que nega a possibilidade de um conhecimento woul, unitério, do real. UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS : 19 4 E, no entanto (quarto e uiltimo ponto), os paradigmas nio se tém.em rigor, revela- do completamente incomunicaveis. Se considerarmos os seus nticleos duros, o anta- S*” gonismo tedrico é indubitavel; como indubitavel € que as condigées institucionais do trabalho cientifico alimentam e intensificam a conflitualidade. Tem sido possivel, po- - rém, cruzar em certas dreas, fecundar reciprocamente diferentes paradigmas, até or is distantes. E que — entre outras razdes, mas esta é crucial para o re- gisto do presente volume — a ciéncia tem capacidade para reelaborare transformar as referéncias culturais € ideolégicas a que se liga e avaliar os limites de conhecimento por elas impost Em conclus divisdo de trabalho entre as disciplinas é sempre flutuante e pro- vis6ria, porque, de um lado, é em grande parte fruto de condigdes sécio-institucio- nais vatidveis; e, do outro, as disciplinas ndo sdo elas préprias corpos tedrico-meto- dolégicos unitérios e estanques. No entanto, a diferenciacao por disciplinas — reas esistemasde produgdo de conhecimentoshistoricamente consolidadose institucionali- zados, quadros organizadores de problemdticas, paradigmas, instrumentos tedri- co-metodolégicos — continua a revelar-se, convenientemente relativizada, o melhor meio de obter uma visio global dos estudos sobre a acco social. Esbocemos entio, ao nivel introdutério, elementar, em que nos queremos situar, essa visdo. Em rigor, ela nao uma classificacdo, visto ser singularmente dificil cum. prir os requisitos de exclusividade e exaustividade na categorizagao de um universo do flutuante como aquele que nos interessa. Procuraremos, apenas, chegar-a-um-gea— dro orientador. Que tenha_em conta os cruzamentos, as interaced ias ~PEISpECUVE,quet dir aiterdsciplinandade cfc mas que recuse mnammente iscursos que pretendem fundar, por decreto filoséfico ou epistemolégico e ao arrepio das dinamicas reais de investigagdo, novas ciéncias "totais". Por tiltimo, importa deixar bem claro que o nosso quadro orientador nem é meramente descritivo, nem teoricamente asséptico: como qualquer esforgo de sistematizagdo, envolve toma- das de posi¢o epistemoldgica ¢ teérica sobre o conjunto, e cada uma, das ciéncias so- ciais; considerando os varios passados e patriménios acumulados, situar-se-4 tam- ‘bém na prospectiva. . 4, AS VARIAS CIENCIAS SOCIAIS s que 0 adjectivo "social" dist S 2: esr dade social” e “ciéncias sociais". Na primeira, queremos sublinhar que o mundo, ma- terial e simbélico, esté — sbretudo hoje — profundamente marcado pela acco dos homens, mesmo nos aspectos que parecem puramente fisicos. Na segunda, quere- mos qualificar o ponto de vista analitico que caracteriza um conjunto de disciplinas, que nestas se impés apés o complexo, desigual (e inacabado) processo historico su- 20 A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO mariado em 2. — 0 ponto de vista que procura explicar articuladamente as priticas € ‘as estruturas sociais, quer dizer, as condutas humanas:€ as condigées materiais € sim- bélicas que delas resultam ¢, por sua vez, as determinam. ‘Trate-se, como também ficou mostrado, de uma tarefa intelectual que exige 0 ac- cionamento de varias perspectivas analiticas, no sentido lato: varias probleméticas e, instrumentos tedrico-metodologicos. A diversidade © pluralidade de tais perspectivas constitui, enfim, um bomcritério de diferenciagao entre as ciéncias. Neste contexto, ¢Psicologiy tem-se afirmado como disciplina peculiar, e de char- neira. Atravessada i 5 debates, a ruptura com OS pressupostos ideolégi- cos de cardcter individual lista a cuja poderosa influéncia estd sujeita revela-se dificil cere por isso mesmo a questio serd retomada no capitulo I. Mas —e na exacta medi- da em que se vai ‘ultrapassando o velhoe bloqueador dualismo entre individuoe socie- dade _-crescem as raz6es para integrar a psicologia no universo das ciéncias sociai se contribuicdes da perspectiva analitica que explora s40 decisivas para a explicacdo amiculada de estruturas e praticas sociais. ‘Nos termos gerais impostos pelo cardcter introdut6rio deste texto, digamos que 05 psicélogos trazem duas grandes contribuicées. Em primeiro lugar, fazendo a pon- te entre estudos bioldégicos ¢ sociais evidenciam a interacgdo entre determinantes biolégicas e culturais (logo sociais) das condutas (provando, alias, como se veré tam- bém no capitulo I, que a distingdo entre essas determinantes est4 longe de assumir a forma de antagonismo). Em segundo lugar, elucidam aquilo a que chamam as fungées psicolégicas, quer dizer, as estruturas ‘pdsicas e interdependentes implicadas nas condutas e que desempenham certos papéis na ‘adaptagio (em sentido lato) dos ho- mens ao meio. De facto, todos nds dispomos de mecanismos sensoriais de recolha de infor- magio sobre o meio & de formas de tratamento complexo € selectivo dessa infor- magio, em fungdo das necessidades e accoes (percepgic). Pela aprendizagem ¢ @ meméria,adquirimos informagdessobre regularidades, organizamo-las,armazenamo- -las e utilizamo-las, constituindo modalidades de resposta adquiridas € adaptadas a certas situagées. Mas dispomos de modalidades de adaptagdo mais gerais, a que cha- fnamos inteligéncia. Dispomos da fungdo semidtica — somos capazes de comunicar por signos, nomeadamente pela linguagem. Definimos objectivos para as nossas con- Butas e utilizamos com mais ou menos intensidade as fungGes e a energia que pode- mos afectar para atingi-los (motivagao), em niveis de actividade que vao do sono & emogio. A distingdo entre as fungdes 6 analitica e relativa: elas estio interligadas, e cada uma corresponde a varios "mecanismos” (aspectos, ‘modalidades psiquicas). Mas s40 estruturas basicas das condutas, € € perspectiva caracteristica da psicologia elucidar as suas dinamicas e interrelagoes —e dai que confira importincia cruci: ial ao modo cO- mo as determinantes da acca individual se organizam como personalidade )- (5) Seguimos a clasificagto (e as respectivas condighes de possibilidade ¢ limites) apresentados por MAURICE REUCHLIN, Psychologie, 3 ¢8. Fev Paris, PUF. 1979, pp- 32-38 (1* ed.: 1977). — UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 21 Essas estruturas, saliente-se, so bdsicas no sentido de serem gerais — e sé nestes termos parece justo dizer-se que a psicologia "parte" do individuo (em rigor, do que € comum aos individuos). Nao sio — longe disso — mecanismos simples, nem muito menos factores por si sds explicativos do desenrolar das acgdes humanas efectivas. Ao contrario, disciplina de fronteira, a psicologia faz constantemente apelo a varidveis biolégicas e sociais para analisar a percep¢ao, a meméria, a inteligéncia, etc. (¢ 0 uso do singular ndo nos deve fazer esquecer que cada um dos conceitos re- mete para uma pluralidade de momentos e dimens6es). Assim, ela forece constante- mente resultados que as outras ciéncias tomam como “dados", pontos de partida para pesquisas diversamente perspectivadas —mas "dados" problematizdveis precisamen- te no quadro dessas varias perspectivas. 7 a Ora, uma delas é a que tem informado o desenvolvimento ep Reiclogiay— esea persistente incomunicabilidade recfproca entre os psicdlogos ¢ outrotespectilistas so- ciais nos obrigou a alongar a apresentacdo anterior, poderemos ser agora mais bre-- ves, visto que, por um lado, j4 faldmos bastante das contribuices inovadoras trazi das pela sociologia e, por outro, ha um consenso mfnimo para definir a sua perspecti- va tedrica prépria. Diremos, entdo, que a andlise sociolégica investiga os variados modos como as acces dos homens s4o condicionadas Por relagGes estabelecidas ao nivel dos grupos e organizagdes em que se inserem e cujas caracteristicas elas prd- prias produzem e reproduzem (e transformam): as familias, os cfreulos de vizinharica, as colectividades locais, os meios profissionais, os aparelhos institucionais, os Esta- dos, as sociedades-nagées, etc. Consequentemente, so problemas centrais para a so- ciologia os dos fundamentos (normativos e simbélicos) da accdo, dos processos de socializacao e sociabilidade, da éstratificagéo, dos movimentos de integrago, confli- to e mudanca; no plano metodolégico, é essa mesma perspectiva que tem levado ao privilegiamento de estratégias de construgdo de informacdo empirica como as descri- tas nos capftulos IV, V e VII deste volume. Repare-se que se trata de uma perspectiva tio ampla como a da psicologia— por- que nao h4 comportamento algum que ndo seja condicionado pelas propriedades e Processos dos grupos e organizacées. Trata-se, sim, de outra perspectiva — impres- cindivel, porque as caracteristicas dos grupos, sendo estruturadas, nunca Tepresentam © mero agregado das caracteristicas dos individuos que os compéem. Nascida directa- mente das duas grandes revolugées que iniciaram a Europa contemporinea — a Fran- cesa ¢ a Industrial — a sociologia foi levada a adoptar uma postura globalizante e a Privilegiar a andlise das sociedades industriais. Mas tem vindo a assimilar crescente- mente as virtualidades das pesquisas mais "regionais” e a interessar-se mesmo pelos mundos pré-industriais de hoje ou do passada Uma apresentacao suméria Gaon be problemas mais delicados. Profun- Gamente marcada pelos conflitos enue paradigmas antagénicos, muito permeavel a postulados ideolégicos, apeteceria escrever que hé tantas ciéncias econémicas quan- “Actescente-se que € por se situar a este nivel analitico geral que a psicologia pode usar tio frequente- ‘mente 0 método experimental. 2 A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO tas as escolas principais (neo-clissica, keynesiana, marxista...). Estas questdes serdo contudo' desenvolvidas nos capitulos I, III e VIII do volume. Ao nivel introdutério em que estamos, talvez seja possivel um esbogo tipificador que leve em conta a inten- sa pluralidade tedrica existente. Digamos, pois, que tal como os psicdlogos centram a sua tengo nas estruturas psicolégicas gerais das condutas e os sociélogos as perspectivam como condiciona- Gas pelas dindmicas de grupos e organizagées sociais, os economistas tém sobremudo em conta que os homens esto, directa ou indirectamente, envolvidos em processos de transformacao pratica da natureza e assim se relacionam, relacionando-se entre si, com 0s recursos materiais, geralmente escassos, em cada momento disponiveis. Por- tanto, os economistas analisam os variados modos como as praticas sociais sao me- diatizadas pela relagdo com os recursos. E, consequentemente, estudam os processos através dos quais administramos recursos raros em ordem & produgio e circulagdo de bens e servicos; e, por razGes andlogas as dos sociélogos, focam em particular os pro- cessos caracteristicos das sociedades industriais. Isto mesmo explica que, durante muito tempo, os economistas tendessem a construir modelos interpretativos das formas como as unidades de produgio e de consumo adaptam meios raros de usos alternativos aos fins perseguidos, para optimi- zar a relagdo meios/fins — ou seja, modelos interpretativos da racionalidade instru- mental dominante no capitalismo ocidental modemo. Por isso ainda, seleccionaram como objecto de investigagio privilegiado 0 processo de coordenacao de decisdes € comportamentos de agentes t{pico desse capitalismo —o mercado. Nesta base, equa- cionaram um vasto conjunto de problemas centrais, que vao das formas de. concor- réncia 4s componentes da despesa nacional, ou da reparticao do rendimento as polit cas financeiras dos Estados; e-desenvolveram processos sofisticados de formali zacio. . Parecem hoje vistveis os limites desta abordagem cléssica, que afunilou a perspectiva da andlise econémica reduzindo-a ao estudo de um sé sistema econémico (alids, idealizado) e sacrificou 4 modelizacdo e a formalizacdo a explicagao das confi- guragSes econdmicas reais (bem mais complexas do que os principios postulados pe- Tos modelos). A reconsideragdo das determinantes sociais € institucionais das condu- tas e processos de regulagdo propriamente “econémicos”, dos problemas da repro- dugdo social, e o abandono de principios teérico-metodolégicos que se foram transfor- mando em rituais solugdes de facilidade (como a imagem ideal do homo oeconomi- cus, 0 uso mégico da cldusula coeteris paribus, etc.) — vém permitindo uma nova cla- rificacdo do que é a perspectiva analitica da economia e do seu lugar no aN ciéncias sociais.. Estd hoje também relativamente clarificada a perspectiva caracteristica df geogra- (fia, centrada nas dimensées espaciais da vida social. Mas talvez seja ttil rele1 7 ‘mo se processou a su initegraco no referido universo, porque perceberemos © ponto de vista comum a todas as disciplinas sociais. A geografia é: a) um velho sa- ber, cujas origens se faz remontar, normalmente, a Herédoto; b) uma recente discipli- na académica, cuja institucionalizacdo pelo ensino data dos fins do século passado € UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 23 injcios do actual; c) uma novissima ciéncia social, como tal se assumindo, explicita- mente, apenas desde os anos 50. Para a tiltima transformagio foi necess4rio abandonar as concepgées tradicionais que a definiam como o estudo da diferenciagdo regional da superficie terrestre, ou mesmo das relagSes entre homens e meio fisico — porque foi necessério compreen- der que o espago € um sistema no qual se relacionam elementos do meio fisico e do meio social, que as paisagens, por exemplo, s6 constituem objecto de estudo porque resultam de criagSes/apropriagdes humanas. A geografia passou a ir buscar modelos jdndo as ciéncias naturais mas as sociais; desde logo 4 economia — para a elucidacao das incidéncias espaciais da producio, distribuigdo e consumo de bens e servigos, das redes de transportes, etc. —, e depois & sociologia, a antropologia, & propria psi- cologia social (é que, actualmente, o gedgrafo nao analisa apenas os problemas pos- tos pela reparticdo, na superficie terrestre, das actividades e das obras dos homens, mas ainda, e com intensidade crescente, as representagées, as vivéncias do espaco). Entretanto, é esta mesma aproximacdo que permite a geografia explorar proficuamen- te a sua vertente ecolégica, mostrando quanto os grupos humanos pertencem ao meio que apropriam — e desempenhar assim, como a psicologia, um papel de charneira en- te ciéncias sociais e naturais. Os agentes sociais comunicam entre si utilizando diversos sistemas de signos e, designadamente, esse sistema particular que é a linguagem. A andlise das praticas so- ciais s6 lucra, por isso, em ser levada a cabo também na perspectiva da comuni- cago, quer dizer, na dos processos simbélicos (produgao, circulagdo e recepgao de sentido) que as atravessam e estruturam. Cresceg as ciéncias que desenvolvem essa perspectiva mas de signos ou como estudo dos sistemas de 3 sia acerca da delimitacdo precisa do objecto é pouco relevante para os nossos propési tos), e a linguistica, como andlise da linguagem de dupla articulagéo — s6 aprove tam com relacionar aqueles sistemas com as circunstAncias sociais reais da comuni- cacao, cresce consequentemente a conviccdo de que o lugar delas é também no univer- So teérico que designamos pela formula de ciéncias sociais ou por férmulas afins. Delimitdmos cinco grandes formacées cientificas (associando, pelas razées atras evidenciadas, semiologia e linguistica), na base de que todas analisam as mesmas rea- lidades, os mesmos fenénemos ("sociais totais"), embora privilegiando cada uma de- las uma perspectiva propria de andlise: centrando-se a psicologia nas estruturas psfqui- cas gerais, a sociologia nas determinag6es imputdveis a grupos e organizagées, a eco- nomia na mediatizacdo das relagdes sociais pelas relagdes com os recursos, a geogra- fia no espaco, a semiologia ¢ a linguistica na comunicagdo: /-#>parémyimprescindivel considerar agora duas ciéncias peculiares: {histériak a ia. Bn termos muito simples, o centro de interesse da hist6ria facdio 0 da antropologia a diversidade intercultural. Os historiado= S, AS pequense enrie. dades tradicionais do mundo actual, sejam elas sosiedades (emt fes (Sem escrita, sem Estado ‘ou sem maquinaria, as definigdes divergem) da Africa, Asia ou América Latina, se- 24 A. SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO jam as colectividades rurais das nagées industralizadas, ou mesmo certos enclaves pe- culiares do espaco social urbano. Circunscrevem assith dominios e constroem insta. mentos analiticos especificos: métodos e técnicas (a andlise de fontes em historia, ou a observacao participante em antropologia); modelos tebricos, que, em geral, resul. tam de reelaboragées — complexas — dos da economia, sociologia, psicologia, geo- grafia e semiologia/linguistica, em ordem a adequié-los ao estudo de sociedades rrito ‘menos diferenciadas do que as nossas (0 que explica, por um lado, a interdisciplinari- dade efectiva tipica das pesquisas hist6ricas e antropol6gicas; e, por outro, que, quan- tomais perto se situam elas das sociedades actuais, mais tende a desaparecera frontei. Ta entre as duas disciplinas e as restantes — sobretudo, a sociologia). Mas hist6ria ¢ antropologia constituem também duas maneiras — complementa- Tes entre si — de perspectivar as varias ciéncias sociais. Analisando, reconstruindo in. lectualmente socit outros nosso, industrial e modemo, no quadro e para o estudo do qual elabordmos as cién- las sociais — elas sao sempre analise e valoriza la diferenca, outros mo- dos de vida, outras formas de acco, outras culturas. Assui i atitude eminentemente relativizadora—que se revela indispensdvel na economia, nasociolo. gia, na geografia, na psicologia, na linguistica, nas quais a compreensde do que € de 16s diferente (grupos, classes, nagGes, economias, imagindrios, civilizagées) surge Como condigdo sine qua non de eficécia explicativa a um nimero cada vez maior de in. vestigadores. T ser — antropolégi- I as: conscis vei lo etnocentrista (ver capitulos Te VI), conscientes de que nao h4 princfpios ou propriedades substantivas univer. Sais, de que ndo hé "natureza humana” independente da variedade de contextos reais, de que nao hé modos de vida superiores e inferiores. E si ou devem ser hisroricas: Conscientes de que as sociedades esto instaladas na mudanca, da multiplicidade dos tempos sociais, atentas a irreversibilidade e & singularidade dos factos e A espessura hist6rica das estruturas sociais, Quadro geral: a um nfvel, psicologia, sociologia, economia, geografia, semiolo- sia/lingufstica; noutro plano, cruzando-se com estas, disciplinas auténomase 20 mes. mo tempo maneiras de perspectivar todas as restantes — histéria e antropologia. A distingao parece ter em conta os critérios formulados em 2. e 3.. As dreas retidas constituem, por um lado, sistemas institucionalizados de produgao de conhecimen- tos, consolidados por uma hist6ria propria, um patriménio conceptual acumulado, es- quemas de reprodugio eficientes (como o ensino, a investigacao e as aplicagdes téen: cas, politicas ou clfnicas). Nao é por acaso que a semiologia — aquela cuja institucio- nalizagao € mais recente e precdria — surge aqui pouco individualizada. Por outro la- do, trata-se de saberes diferenciados segundo diversas perspectivas te6ricas, quer di- er, diversas _problemiéticas e objectos cientificos — e, em consequéncia, separam. ~Ros os problemas centrais que cada um formula, as teorias e os instrumentos técnico. ~metodolégicos que cada um acciona, i UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 25 ‘Ao mesmo tempo, pensamos resultar claro que s6 a um nivel muito geral como aquele a que nos referimos € possivel uma justificagdo légica da divisdo de trabalho intelectual estabelecida, Sao manifestas a provisoriedade, a fragilidade e a relativa ar- bitrariedade das fronteiras — as maneiras de perspectivar a realidade apresentadas no se excluem, antes se completam e solicitam umas as outras; s6 limitadamente au- to-suficiente, nenhuma conse gue por si s6 dar conta das configuragées sociais concre- tas, seja qual for a sua dimensio. Deste modo precavidos, melhor perceberemos o que se passa quando adoptamos niveis mais especificos de caracterizagao dos estudos sociais. Deparamos com va- riadissimas sub-disciplinas, desigualmente desenvolvidase autonomizadas consoante 08 contextos institucionais: por exemplo, e relativamente a sociologia, com sociolo- gias da educagio, do trabalho, das classes sociais, da juventude, etc., etc. Mas o fac- to saliente estd na intensidade do cruzamento interdisciplinar efectivo aescala sub-dis- ciplinar, mau grado as barreiras institucionais e as inércias profissionais: psicolin- guistica, sociologia econémica, sociolinguistica, geografia econémica, psicologia econémica—a lista poderia prosseguir. Quando se delimitam objectos suficientemen- te especificos para a investigacio, a pluridisciplinaridade torna-se inevitdvel: porisso mesmo falamos, por exemplo, em ciéncias da educagio para designar a convergéncia de abordagens dos economistas, sociélogos, historiadores e psicdlogos que se espe- cializaram na anélise, a partir das suas perspectivas préprias, dos problemas da edu- cago 6), A consideragao conjunta da interdisciplinaridade "regional" efectiva e da diferen- ciagdo genérica, pelas respectivas perspectivas teéricas, de grandes dreas cientificas permitir-nos-4 compreender aindaos estatutos de que gozam trés disciplinas de que se faz mister, agora, falar: a ciéncia politica, a demografia e a psicologia so. Permanece uma certa coniovecia quanto ¥ dete itagdo precisa da problemética da primeira; pela nossa parte, insistiremos apenas em que, nascida do direito, da histéria e da sociologia, a andlise dos problemas relativos as relagdes de poder entre individuos e grupos ¢ ao exercicio do poder por organizagées de base territorial po- dendo recorrer a violéncia fisica (Max Weber) — essa andlise tem de ser predominan- temente referenciada a perspectiva sociolégica, sob pena de cair nas tentacoes (alis, tradicionais) de isolaro Estado da totalidade social ou assumir posturas mais normat vas do que explicativas, Quanto a demografia, € interessante notar o seguinte. Saber antigo, cuja passa- gem ao nivel de disciplina analitica é bem localizavel (na obra de John Graunt, ainda no século XVII), a demografia foi muitas vezes reduzida a "estatistica”, no sentido original do termo, a0 levantamento quantitativo da dimensio, composiga0e movimen- (6) F. por vezes. € mesmo do cruzamenta nmdutive da pecanica cientifiea @ de formas da eanheri mento ¢ interpretagao que ndo obedecem estritamente as suas regras (tal como ficaram descritas em 1.) que se trata: caso da andlise literdria, na qual contribuigdes da hist6ria, da sociologia ou da semiologia séo combinadas com abordagens estéticas € filos6ficas; ou dos estudos juridicos que combinam saberes normativos como 0 direito ¢ disciplinas como a sociologia juridica e a ciéncia politica. a eee ate on a 26 A, SANTOS SILVAIJ. MADUREIRA PINTO to da populacao. Ora, os demégrafos que pretendem passar da descrigfio & explicacdo (Aciéncia, portanto) assinalam justamente que sé por referéncia aos princfpios e teo. rias de ciéncias sociais cum a sociologiae 4 economia € possivel elucidar as determi- nantes dos aspectos demogréficos das condutas — sugerindo-se, por vezes, com al- ‘gumas boas raz6es, ser preferivel falar em sociologia da populagao. A imterdisciplinaridade inerente 4 Psicologia social é talvez mais clara: chameira entre psicologia ¢ sociologia, quer do ponto de vista da problemética e das teorias, quer quanto aos métodos de pesquisa. O leitor encontraré nos capftulos I, IV e IX su. ficientes desenvolvimentos demonstrativos da afirmagdo. Retenha-se apenas, desde 44, a ideia central: 0 estudo dos problemas da interacgdo entre individuos, da dinamica de pequenos grupos, das representagdes do mundo social, em tomo dos quais a psi- cologia social tem conquistado autonomia teérica e institucional, vive da aplicagdo confluente das perspectivas analfticas da psicologia e’da sociologia, tal como foram atrds caracterizadas. Uma ultima observagao, antes de encerrarmos a breve discussiio sobre inter- disciplinaridade. Sustentamos que, do ponto de vista teérico-metodolégico (me- nosprezando os condicionalismos s6cio-institucionais), sempre que se deixa o nivel geral de diferenciagao de perspectivas analiticas, as praticas de investigagao pluridisci- plinar se impdem como facto incontomavel. Importa, contudo, contrariar as tentati- vas recorrentes — que tém por si as vantagens aparentes da facilidade — de unifi- cacao das ciéncias, de criagdo da ciéncia social "global" ou mesmo da ciéncia fisico- bioldgico-social, por "decreto epistemolégico". Ora, pensamos que as estratégias inter-(ou pluri-) discipli jutivas quando representam ‘conceptuais efectivas e equilibradas entre disciplinas constituidas; quer dizer, longe de implicarem a anulagao completadas particularidades do desenvolvimento e do patriménio de cada ciéncia, antes as capitalizam em seu fa- vor. Por isso mesmo, elas tém resultado, ndo ao nivel dos sistemas gerais fechados, mas sim a nfveis "regionais": na andlise pluriperspectivada de problemas bem delimi- tados. fica; se conseguirmos compreender as razbes da sua Pluralidade e diversidade, e como essa mesma diversidade, sem se anular, conduz a aproximagées e cruzamentos interdisciplinares eficientes — estaremos em melhores ondigGes para analisar e org ficamente as praticas de pesquisa efectiva e UMA VISAO GLOBAL SOBRE AS CIENCIAS SOCIAIS 27 ORIENTACAO BIBLIOGRAFICA Para 0 conjunto dos problemas abordados no texto —e, especialmente, para os da plura- Jidade e conflitualidade interna das ciéncias sociais — é fundamental 0 livro de A, SEDAS. NUNES, Questées Preliminares sobre as Ciéncias Sociais (8* ed. rev., Lisboa, Pre- senga/G.LS., 1984). A caracterizago suméria da estratégia de investigagio cientifica deverd ser desenvolvida recorrendo aos capftulos II e XI deste mesmo volume; aos materiais recolhi- dos por A. SEDAS NUNES, Sobre o Problema do Conhecimento nas Ciéncias Sociais, 5* ed., Lisboa, G.LS., 1981; e a obras de epistemologia geral — por exemplo, MARIO BUN- GE, Epistemologia. Curso de Actualizacién, reimp. da 1* ed. castelhana, Barcelona, Ariel, 1981 e ARMANDO DE CASTRO, Teoria do Conhecimento Cientifico, 4 vols. publica- dos, Porto, Limiar, 1975-1982. E bastante util, ainda, a leitura de JEAN PIAGET, Psicolo- gia e Epistemologia, trad. portuguesa, Lisboa, Dom Quixote, 1972 (ed. original: 1970). Em PAUL CLAVAL, Les Mythes Fondateurs des Sciences Sociales, Paris, P.UF., 1980, ou TOM BOTTOMORE e ROBERT NISBET (eds.), A History of Sociological Anal- ysis, Londres, Heinemann, 1978, encontram-se andlises desenvolvidas do processo historico de formagio das ciéncias sociais. Foram-nos muito titeis — e sé-lo-4o decerto ao leitor — as apresentagdes das varias ciéncias contidas em : VITORINO MAGALHAES GODINHO, As Ciéncias Humanas. Ensino Superior e Investigagdo Cientffica em Portugal, Lisboa, Socieda- de Portuguesa de Ciéncias Humanas e Sociais, 1981, cap. 1 (visdo global do autor que, en- tre nés, mais tem mostrado a historicizag4o das ciéncias sociais); ANTHONY GIDDENS, Sociology: a Brief but Critical Introduction, Londres, Macmillan, 1982 (0 autor mostra {justamente como a andlise sociolégica deve ser também antropolégica e hist6rica); PETER WORSLEY (dir), Introdugdo a Sociologia, trad. portuguesa, 5* ed., Lisboa, Dom Quixote, 1983, ed, orig.: 1970 (0 cap. I situa a disciplina no conjunto dos estudos sociais); MAURI- CE REUCHLIN, Psychologie, 3* ed. rev., Paris, P.U-F. 1979; PAUL CLAVAL, Géogra- phie Humaine et Economique Contemporaine, Paris, P.U.F., 1984; JEAN-MARIE ALBER- TINI e AHMED SILEM, Comprendre les Théories Economiques, 2 vols., Paris, Seuil, 1983. No ensaio de Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciéncias (Universida- de de Coimbra, 1986), publicado j4 depois de a presente introdugao ter sido elaborada, encon- trard o leitor uma reflexao fascinante sobre a encruzilhada de perspectivas que anima o pensa- ‘mento cientifico contemporaneo e o desenvolvimento de questdes que, vista a sua complexi- dade, nao puderam ser aqui analisadas.

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