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6. GUILHERME DE OCKHAME A CRISE DA ESCOLASTICA A. Onominalismo de Guilherme de Ockham Guilherme de Ockham (1284-1349) foi talvez 0 filésofo mais influente do sée.x1V ¢ teve intimeros seguidores assim como adversirios nesse periodo, devido a suas posigdes originais e, sob certos aspectos revolucionsrias, principalmente nos campos da logica, da metafisica e da teoria politica Franciscano, nascido na Inglaterra, estudou na Universidade de Oxford. Seu comentirio a0 Livro das sentengas de Pedro Lombardo,! um exercicio escoléstico comum na época, levantou no entanto suspeitas de heresia, e Ockham foi convocado a Avignon, na Franca, entio sede da lgrejae residéncia do papa, para ser questionadc La envolveu-se nas célebres controvérsias entre os franciscanos e o papa Jodo XX, centre o papa ¢ o imperador da Alemanha, Luis da Baviera, que apoiou os francis- canos.2 Ockham escreveu entao varias obras de cun‘n0 politico, no espirito da Ordem, Franciscana, criticando o carter mundano da Igreja ¢ seu envolvimento na politica da época e defendendo uma separagio entre o poder espiritual, aributo do papa, ¢ 0 poder politic atributo do imperador.? Trata-se na verdade de mais um momento de eclosio da crise politica que se encontrana origem mesma do Sacro Império Romano Germinico com Carlos Magno, que mencionamos acima (\(3.A), e que eclodiré novamente dois séculos mais tarde, no contexto da Reforma protestante. A influéncia de Ockham esta relacionada, porém, mais 4 sua obra légica e meta fisica, na qual assume ume posigdo nominalista frente & célebre questo dos univer- sais, uma discussio que percorreu praticamente toda afilosofia medieval, constituin- do-se em uma das quest6es mais centrais da ontologia na tradiofilosética. Essa questio origina-se principalmente do comentério de Boécio (480-524) a0 Isagoge (por sua vez um comentério as Categorias de Aristételes) de Porfiri ). Nesse comentario, Boécio refere-se a famosa questio sobre a natureza dos géneros e espécies (os universais): Seriam entidades existentes em si mesmas, ou entidades mentais? Seriam independentes das coisas, ou existiriam nelas? Essa obra feve grande influéneia na [dade Média, diferentes pensadores tomando posi acerca das diferentes possibilidades de resposta BI Iwrc1acho A HistORIA Da FILOSOFIA Basicamente temos quatro grandes linhas de tratamento desse tema, As mais tradicionais sio o realismo platonico ¢ 0 realismo aristotélico, adotadas pelos segui- dores desses filésofos. Segundo 0 realismo platénico, génetos c espécies (tais como “animal mamifero” e “cavalo” seriam formas ou idéias, portanto entidades dotadas euma existéncia autdnoma, pertencentes ao mundo das idéias eindependentes tanto das coisas concretas (“este cavalo”) quanto de nossos pensamentos (“o conceito de cavalo”). Para 0 realismo aristotélico, posigao adotada por exemplo por Sdo Tomas de Aquino,* géneros e espécies existem nas coisas, como formas da substincia individual, e podem ser conhecidos por nés através da abstragio, em que des- tacamos do particular o universal, isto 6, percebemos que este individu é um cavalo, um animal mamifero etc. O conceitualismo foi desenvolvido sobretudo por Pedro Abelardo (1079-1142), em sua Légica para principiantes onde sustenta que os universais sdo apenas conceitos, ou seja, predicados de sentengas que descrevem 0 objeto (“Isto é um cavalo”), existindo portanto na mente como meio de unir ou relacionar objetos particulares dotados das mesmas caracteristicas ou qualidades. Ockham adota 0 nominalismo, posi¢ao inaugurada em uma versio mais radical por Roscelino (sée.xi!), que afirma serem os universais apenas palavras, flats voc. sons emitidos, nfo havendo nenhuma entidade real correspondente a eles. O nomi- nalismo de Ockham é, no entanto, mais sofisticado c elaborado do que do sée.x Na verdade, Ockham defende um misto de nominalismo ¢ conceitualismo, pois entende o universal como um termo que corresponde a tim conceito por meio do qual nos referimos a essas qualidades ou caracteristicas. O universal é assim a referéncial deum termo, endo ume entidade, mas tampouco & apenas uma palavra, jé que existe fo correlato mental, o conceito, por meio do qual a referencia é feita, Sua posigao foi muito influente no séc.xtv, dando origem a varios desdobramentos por seus segui- dores. B emrelagdo a essa questio que devemos entender a famosa férmula conhecida como “limina (cu navalha) de Ockham”: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem,S isto é, nao devemos multiplicar a existéncia dos entes além do Fs -aquenio devemos supor aexisténcia deentidades metafisicas, como no realismo platénico, jé que essas entidades nfo s6 nao explicam adequada~ mente a natureza das coisas particulares, como carecem elas proprias de explicagao. A “navalha de Ockham” é, portanto, um “principio de economia”, segundo o qual ‘nossa ontologia (teoria sobre o real) deve supor apenas a possibilidade de existéncia do minimo necessério. Termos e conceitos sio suficientes, assim, para dar conta do problema dos universais, ndo havendo a necessidade de supor a existéncia de entidades reais universais ssa questio, no entanto, serd retomada na filosofia moderna, prevalecendo as, pposigdes conceitualistas (Locke, séc.Xvil) e nominalistas (Hobbes, séc.xvi). Conti hua sendo discutida na filosofia contemporanea, ¢ hé mesmo autores que adotam verses do realismo em areas especificas da filosofia, como a l6gica e a filosofia da matemética.® © nominalismo tem sido também bastante discutido na filosofia da linguagem contempordnea, devido a sua valorizagio da linguagem e postura antime- FILOSOFIA MEDIEVAL B. A crise da escolastica contexto de Ockham, o séc.x1V, & conhecido como o periodo de “dissol sintese da escolistica”. Com efeito, a partir desse momento 0 modelo caracteristico da escolistica, a integracao entre as verdades da razio, campo da filosofia, ¢ as verdades da fé, campo da teologia, em um sistema unificado, racional c logicamente construido, comega a enfrentar dificuldades. A pr6pria introdugo do sistema de Aristétcles a partir do final do séc.xit jd representa de certa forma uma ruptura no nterior da filosofia cristd, cujo paradigma dominante fora até entio o platonismo, basicamente em sua versio agostiniana, embora existissem outras. Com o aris- totelismo ctistio passamos a ter no um, mas dois paradigmas fundamentais de formulagao de uma filosofia crit. Ora, isso é problematico na medida em que se trata de uma posigdo filoséfica doutrindria que nao admite com facilidade a plurali dade. Alm disso, 0 averroismo, de grande influéncia nesse periodo apesar das proibigdes, defendia a separagao radical entre os dois campos, da razio e da fé, da filosofia eda teologia, essa tendéncia teve virios seguidores nesta época, O préprio Ockham foi um defensor da separacao entre filosofia e teologia, sustentando que a filosofia nao é capaz de demonstrar a verdade dos artigos da fé, e que as verdades necessirias pata a salvago pertencem apenas ao campo da teologia. Essa posigio encontra um paralelo em suas crticas, que mencionamos acima, ao poder politico do papa, ¢ na defesa da separagao radical entre o poder do rei e o da lereja. E claro que isso que podemos denominar “crise da escoléstica” néo significa de forma alguma.o seu fim. Ha ainda importantes representantes da escolistica dois ou trés séoulos depois. Dois grandes escolisticos dos sées.xv-xvm, Francisco Suérez (1548-1617) e Joao de Sio Tomas (1589-1644), so praticamente contemporiineos deMontaigne e de Descartes. A filosofia escoléstica co proprio tomismo, sobrevivem noperiodo moderno, e até hoje encontram adeptos como, por exemplo, oneotomismo de Jacques Maritain (1882-1973). Porém, écerto, tanto de um ponto de vista historico quanto conceitual, que o pensamento escolistico entra em crise e declinio a parti do sée. xiv. Osée,xV traz um pensamento inovador, o humanism renascentista, que por sua vez prenuncia 0 perfodo moderno com suas novas teorias filoséficas e cientificas, ¢ profundas tranformagées no mundo europeu. E nessa nova diregio que a partir de ent se desenvolverd o pensamento. QuADRO SINGTICO + Transigdo do helenismo para o cristianismo: o pensamento filoséfico cristo surge no contexto do helenismo + 0 pensamento de santo Agostinho (354430) representa, no contexto do cristianismo, a primeira grande obra filoséfica desde a Antigitidade clissica, abrindo o caminho para o desenvolvimento da filosofia medieval e aproximando © cristianismo do platonismo. | 134 InIciacAO A HistOnia DA FILOSOPIA + Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109) é um dos iniciadores da escolistica © formulador do célebre argumento ontoldgico, que ilustra o estilo medieval de filosofar ¢ o tratamento de questdes aproximando a teologia da filosofia a0 investigar racionalmente os fundamentos da f& crist + A presenca dos frabes na Peninsula Ibérica traz um novo conhecimento da losofia e da cincia gregas, sobretudo de tradigdo aristotélica, para a Europa ocidental + A filosofia de so Tomas de Aquino (1224-74) representa uma aproximagio centre 0 cristianismo e o aristotelismo, assim como santo Agostinho representou 1 aproximacio com o platonismo, trazendo com isso a abertura de um novo ‘caminho para o desenvolvimento da escoléstica + Guilherme de Ockham (1285-1349) € o pensador mais representativo do final da escoléstica, autor de uma obra original e controvertida pelas posigdes que assume na filosofia, na teologia ena politic Letruras ADICIONAIS A principal fonte de nosso conhecimento das obtas dos filésofos ¢ teblogos do inicio da filosofia cristae da filosofia medieval provém da edigao elaborada na Franca pelo abade Jacques Paul Migne, intitulada Patrologia latina (1844-55), em 218 volumes; ¢ Patrologia graeca (1857-66) em 166 volumes. Hi edigdes de textos dos fil6sofos examinados acima na cole¢o “Os Pensadores” (Sio Paulo, Abril Cultural, varias edigdes) «+ Abelardo, Pedro. Légica para prineipiantes, Petrépolis, Vozes, 1994; Sao Paulo, Abril Cultural As seguintes obras sobre a filosofia medieval sao particularmente tteis: + Bochner, P. & E. Gilson, Histéria da filosofia crist@. Petropolis, Vozes, 1982. + Gilson, E. 4 filosofia na Idacle Média. Sa Paulo, Martins Fontes, 1995. + Libera, A. de, A fllosofia medieval. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, QuEsTOES E TEMAS PARA DISCUSSAO | Bence dere Tiateeeval C oeterincinen| rierica ncmeecdy recorre para defini-lo. | 2. Como se pode entender os principais fatores que explicam 0 surgimento da | filosofia cristi? | 3. Qual a relagiio entre a filosofia groga pagiie o cristianismo? | FILosonA MEDIEVAL doinicio saga pelo olumes; ores” Paulo, 4. Como 0 filésofos ¢ teSlogos cristos justificam a apropriagio da filosofia sgrega pagi pelo cristianismo? Em que sentido a filosofia de santo Agostinho pode ser entendida como um “platonismo cristo”. mportfincia da nogio de “interioridade” na filosofia de santo Agosti- 7. Como se pode caracterizar a “escolastica”? 8. Por que a prova da existéncia de Deus de santo Anselmo é conhecida como “argumento ontol6gico”? 9. Quais as origens da filosofia drabe e qual a sua importéncia para o desenvol- vimento da filosofia ocidental? 10, Em que sentido a filosofia de so Tomas de Aquino pode ser entendida como “aristotelismo cris de Aquino? 12, Compare e contraste a prova da existéncia de Deus de so Tomas de Aquino coma de santo Anselmo, 13. Como podemos interpretar a posigtio de Guilherme de Ockham frente & questo dos universais? | 111, Qual o sentido das “cinco vias” da prova da existéncia de Deus por sio Tomés, 14, Qual o significado da “crise da escolistica” do séc.xIv?

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