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| | : Introdugao ROMANTISMO, MESSIANISMO E MARXISMO NA FILOSOFIA DA HISTORIA DE WALTER BENJAMIN ‘Walter Benjamin nio é um autor como os outros: sua obra fragmentada, inacabada, is vezes hermética, fiequentemente anacrBnica e, no entanto, sem- pre atual, ocupa um lugar singulas, vealmente tinico, no panorame intelectual € politico do séeulo XX, Erale, ances de edo, um eritico lierdtio, um “homem de letras” e no um flésof, como prevendia Hannah Arendt!” Na venlade, como Gershom Scholer, acredito que ce era um fildsofo, mesmo quando escrevia sobre arte ou lieratu~ ra O ponto de vista de Adorno € semelhante 20 de Scholem, como explica em ‘uma carta (inédita) a Hannah Arendt: “A meu ver, © que define o significado de Benjamin para minha propria existéncia intelectual é cvidente: acsséncia de seu. pensamento enquanto pensamento floséfico. Jamais pude encarar sua obra a pact de outta perspectiva(..). Certamente estou consciente da dis seus escritos € toda a concepgio cradicional da flosofi..”” THAW. Amnon, "Walter Benjamin” em Vie palinigus (Pais, Gallimard, 1974), p. 248. 2G. Scwouan, Walter Benjansin und sein Engel (Prankfare, Subekamp, 1983), p- 14-5: “Benjamin era um flésofo, Ele o foi durante todas as eapas em todas as eseras de sua atividade, Apareacemente escreveu sobsetudo a respeito de temas de literatura de arte, is vezes também sobee assuntos que se acham na fronteita entre a literatura ‘ea politica, mas muito pouco sobre questéer convencionaliuente consideradas © aceitas como temas de filosofia pura. No entanto, em codas esas dreds sua intaigso ‘vem da experigncia come fldsofe” Carta cicada por G. Sous, “Thinking through Benjamin: an introductory ey", em G, Sutra (org), Philorphy, Aesthetics, History (Chicago, ‘The Univesity of (Chicago Pres, 1989), p vibe. A daca da carta ni foi mencionada mas, de acordo com 9 contexto, deve ser de 1967. ‘A recepyio de Benjamin, principalmente na Franga, estava voleada prioritaria- -mence para a vertenteestética de sua obra, com uma certatendéncia.a consideri-lo sobretudo um historiador da culrurat. Ora, sem negligenciar esse aspecto de sua obra, é preciso reconhecer o alcance muito mais amplo de seu pensamento, que visa nada menos do que uma nova compreensio da hist6ria humana. Os escritos sobreare lireratura podem ser compreenudidos somente em relagioa esa visio de conjunto que os ilumina a partir de dentro. Sua reflexéo constitui um todo rho qual arte, hstéria,culcura, politica, literatura e ceologia sto inseparives Estamos habituados a clasificar as diferentes filosofias da histéria conforme seu carder progressista ou conservador,revoluciondrio ou nostilgico do pasado, Walter Benjamin escapa a essa clasificages. Ele € um critica revoluciondrio da filosofia do progresso, um adversiio marxista do "progessismo”, wm nostilgico do passado que sonha com o futuro, um romAntico partidirio do materialism, Ele é em todas as acepgbes da palavra, “inclassifcével”. Adorno o definia, com razio, como um pensador “distanciado de odas as correntes"'. Sua obra se presenta, realmente, como uma espécie de loco erritico & margem das grandes tendéncias da filosofia contemporsnes, Portanto, néo adianta tentar recruté-lo para um dos dois grandes campos que disputam, atualmente, a hegemonia no paleo (ou seria conveniente dizer no mercado?) das ideas: 0 modernismo e o pés-modernismo. Jiegen Habermas parece hesit depois deter denunciado em seu artigo de 1966.0 antievolucionismo de Benjamin como conttaditério com 0 materialismo histérico, afirma em seu Discun filosfico da modernidade que a polémica de Benjamin contra “o nivelamento social-evolucionista do materialism hist 0" édirgida contra “a degeneragéo da conse ia modeena do tempo” visa assim, “eavivar” essa consciéncia. Mas ele no chega a integrar ema seu “discus * Entre as excoyies enconcram-se: D. BrNsaTb, Walter Benjamin: sontinelle mesiamique d le gauche da pole (Pais, Plon, 1990); S. Mosbs, Lange de Ubiaoire: Rosen, Ben nin, Schoen (Pass, Seuil, 1992); J. M. Gaanans, Hitore et nératon chee Wailer Benjamin (Pais, Harmatan, 1994) fed. bras: Hiéra narrago em Walter Benjamin, Sto Paulo, Perspectiva, 2004]; A. Misra, Pree et catastrophe, Water Benjamin et ‘histoire Pars, Kir, 1996) * Em um artigo publicado no Le Monde de 31 de maio de 1969. 1“ filos6fico da modernidade” os principais conceitos benjaminianas ~ como 0 “tempo-de-agora” [/estzeif], esse auténtico instante que interrompe o continuo da histéria, que the parece visivelmente inspirado em um “emdlgama” entre cexperigncias surrealista e temas da misticajudaica’ ‘Uma tarefaigualmente impossve seria transformar Benj -moderno avant la etre, Sua deslegitimacio do Grande Relato da modernidade ocidental, sua desconstrugao do discurso do progresso, sua defesa apaixonada da descontinuidade hist6rica situam-se a uma distincia incomensurével do olhar desenvolto dos pés-modernos sobre a sociedade arual, apresentada como um ‘mundo em que os grandes relatos inalmente acabaram e foram substituidos por ‘em auror pos- ‘jogos de linguagem’ “flexives" ¢ “agonfstcos”” ‘A concepsao da histéria de Benjamin ado é pés-moderna, antes de tudo porque, longe de estar “muito além de todos 0s relatos” — supondo-se que isto seja possivel ~ ela constitui uma forma heterodoxa do rclato da emancipagio: inspirando-se em fontes messdnicas e maraistas, ea utiliza « nostalgia do pas- sado como método revolucionario de ertica do presente’. Seu pensamento:n8o é entdo, nem “moderno” (no sentido habermasiano) nem “pés-moderno” (no sentido de Lyocard), mas consiste sobretudo em uma critica moderna d moder- nidade (capitalista/industral), inspirada em referéneias culturais ¢ hiscéricas pré-capitalistas Entre as tentativas de interpretasio de sua obra, hi uma que me parece particularmente discutivel: a que exé poder situé-la no mesmo campo filoséfico ‘que Martin Heidegger. Hannah Arendt, em seu emocionante ensaio dos anos, 77 Hance, "Lactate de W. Benjamin’, Revue descigu, 1p. 112, ¢Ledicour ‘pilesophique dela moderie Pai, Gallimatd, 1988), p. 12-8 fed. brass Discensa ‘flaca ds modernidede, Sto Palo, Martins Fonts, 2002} 7 JoR Lromnp, La condition pcemaderne (Pats, Gaile, 1979), p. 23-34 fed. bras, ‘A condigto pis moderna, Rio de Janeio, Jost Olympio, 2002) * Umunivessiro pé-modemo ques interes por Walter Benjamin reconhece que sia ideia de uma peda onde algo inacabado no passado, que deve ser eparada no fuuto, ‘impede qualquer concepgio do presente como agonistic” ¢é, enti, contaditria com a conduta pés-modema. Cf. A. Bexsasa, “Tradition and Experience: Walker Benjamins ‘On Some Morifsin Baudelaire” em A. Bente (org), The Problems af ‘Modernity: Adorno and Benjamin (Londaes, Routedge,1989), p- 137-9. 5 1960, infelizmente coneribuiu para essa confusio, afirmando, contra todas as ‘evidéncias, que "na realidade, sem saber, Benjamin tinha muito mais em comum [com Heidegger] do que com as sutilezas dialéticas de seus amigos marxistas”. (Ora, Benjamin nfo deizou diividas sobre os sentimentos de hostilidade ao au- tor de Sere sempo’, muito antes que ele manifestasse sua adeséo 20 III Reich. Em uma carta a Scholem, em 20 de janeiro de 1930, trata do “embate de rrossas duas maneiras, muito diferentes, de encara a histéria”e, pouco depois, em 25 de abril, fala a seu amigo de um projeto de letura critica, com Brecht, vvisando “demolir Heidegger”. Em Das Passagen-Werk {Livro das passagens], ele ‘menciona um dos principais pontos de sua critica: “E em vio que Heidegger tenta salvar a historia para 2 fenomenologia, de forma abstrata, grag &‘his- toricidade (Geschichlichket)". Quando, em 1938, a Internationale Literatur, uma publicegéo stalinista editada em Moscou, apresenta-o, em reagio a1 uma passagem do seu artigo sobre as Afinidadeseleinas™ de Goethe (1922), como “pattidério de Heidegger”, cle nfo consegue deixar de comentar, em uma carta Gretel Adorno (20 de julho de 1938): “Grande é miséria dessa literatura.” CCertamente ¢ possivel comparar as concepsées do tempo histérico nos dois autores, para delimitar as proximidades: o tema da excatologia, 2 concepcio hhcideggeriana da “temporaidade auténtica’, a abertura do passado. Se considerar- ‘mos, como Lucien Goldmann, que Histiria econsciéncia de clase", de Lukes, foi uma das fontes ocultas de Sere tempo", poderiamos supor que Benjamin e Heidegger inspiraram-se na mesma obra. No entanto, em uma série de questbes HE Asano, “Walter Benjamin’, op. cic, p. 300. M. Huosccen Soin und Zi (1927) (Tibingen, Max Niemeyer, 2001) fd. bres Ser sompo, Ri de Jani, ones, 2001]. Todas as nota asinalads com * so nos da eadogio * JW Gost, Die Wahloerwandachafen (Zxique, Diogenes, 1996) ed bras: Aft dtdes elvis, Sa Paulo, Nova Alexandii, 2003) "°W. Busan, Corespondance (ead. Guy Peidemange, Paris, Aubier- Montaigne, 1979), 1, p. 28, 35 Up. 258 [ed. bras: Cormpondénce, Sho Paulo, Perspect, 1993] ¢ GSV, 1, p. 577 3. Lucie, Gechicre und Klacenbeungfsns (1923) (Bett, Lacheethind, 1968) fe. bras: Hisriae consincadeclae, Sho Palo, Matins Fontes, 2003) "1, Gounntao, Lubes Heeger Pais, Denod/ Gonthier, 1973) 16 ‘comuns, os dois pensadores divergem radicalmente, Pazece-me evidente que Benjamin néo foi "pastidicio” de Heidegger, ndo 6 porque leo nega categori- camente, mas pela boa tazio de que sua concepsio crkica da temporalidade ji estava, no essencial,definida no curso dos anos 1915-1925, ou seja,m «da publicagio de Ser e tempo (1927). antes ‘Asteses "Sobre o conceito de histria' (1940) de Walcer Benjamin constituem tum dos textos filosbficose politicos mais importantes do século XX. No pensa- ‘mento revolucionériotalvez seja o documento mais sigificative desde a5 "Teses sobre Feuerbach” de Marx. Texto enigmético, alusivo, até mesmo sibilino, seu hhermerismo é conseclado de imagens, de alegorias, de iluminagées, semeado de estranhos paradoxos,atravessado por fulgurantes intuigbes, Para conseguir interpreta ese documento, parece-me indispensive scui-lo ‘pa continuidade da obra benjaminiana. Tentemos delimitar, no movimento de seu pensamento, of momentos que preparam ou anunciam 0 texto de 1940. A Glosofia da histria ce Benjamin se apoia em txts Fontes muico diferentes: ‘© Romantismo aleméo, 0 messianismo judaico, o marxismo, Nao se trata de uma combinagio ou “sintest”eclética desas eés perspectivas (aparentemente) incompativeis, mas da invencéo, a partir destas, de uma nova concep, pro- fundamence original. Nao podemos explicar seu itinerrio por uma ou outra “influencia’: as distintascorrentes de pensamento, os diversos autores que cita, (os escritos de seus amigos sio materiais com que cle constr6i um edificio pré- Pio, elementos com os quais val realizar uma operacéo de fas alquimica, para fabricar com cles 0 ouro dos filsofos. Acexpressio “flosofia da historia” correo risco de nos induzir a0 erro, Nao hé, em Benjamin, um sistema filosdfco: toda a sua rellexto toma a forma do ensaio (ou do fragmento — quando nio da citagfo pura e simples, em que as passagens iradas de seu contexto sio colocadas a servigo de seu préprio itineritio. Toda tentativa de sistematizagdo desse “pensamento poético” (Hannah Arend) é "TK Manx eB ENGtis, “Thesen aber Feuerbach em Mars-Engel-lrbuch 2003, Die deutsche Ideologie (Bertin, Akademie Verlag, 2004) fed. bras. A ideolegia ademas, Sio Paulo, Boitempo, 2007, trad. Rubens Enderle, Néio Schneider ¢ Laciano Cavini Marorana}.

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