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DEXADO 95 Ensaio sobre a filosofia da Fisiologia do gosto Marcelo Campos Galuppo! Resumo: O presente enssio pretende tratar da contribuiglo da obra A Bsiologia do Gosto, de BrillatSavari, para o desenvolvimento da gustronomia. A parte da vinculagio entre fliciade e aimentagio & dadisincio entre o comer animal eo aimentar-se humano, o autor ensina-nos que o prazer da mesa reside, antes de do, na amizade € ‘x coavivncia que ea proporciona, bem como na distingio cult nvolvda pela mesa e por seus muitos prazeres. Um exemplo de como isso ocorre pode ser encontrado no conto A fists de Babe, de Karen Blixen, Palavras-chave: gastronomia, Brilat Savarin, oso, Abstract: The present essay intends t deal with the contribution of Bil Savara's The Physiology of the Taste forthe development of the gastronomy. With the interconnection between happiness and. fooling, the author teaches us that the table's pleasure ies in the fiendship and in che relationship that it provides and in the distinction berween animal eating and human feeding, as well asin the cultural dstinetion involved by the table and its many pleasures. An example of how this occurs can be found in the novel Babette Feast, of Karen Biixen. Keywords: gastronomy, Brat Savarin, philosophy BRILLAT-SAVARIN E O DESENVOLVI- TO DA GASTRONOMIA da gastronomia est cheia de grandes nomes ios ensinaram que o ato de alimentar é algo mais nutri 0 proprio corpo. Sé para lembrar alguns, em (0 lugar aparece o nome de Apicius (século I J,0 gastronomo romano que escreveu o primeiro ido culinitio do ocidente: De re coguinaria | Dow on rots do ICIUS, 1987). Ha duas estérias reputadas a ele que Poiznor dr PUC Msn GUNA eth cine Ban Se ae BH, v. 2, n8, p. 93424, nov. 2006 Accel. Le pet teh 16. revelam muito do que é o gastrénomo. A primeira delas nos diz que, certa vez, Apicius ouvira dizer que os figos produzidos em uma das colénias romanas ram mais saborosos que aqueles produzidos na metropole. Ele alugou um barco, foi 4 colénia, provou um figo ¢ voltou para tris, ja que o fruto nfo lhe parecera tio bom assim. A segunda est6ria nos diz que Apicius gastou toda a sua fortuna em banquetes Quando descobriu que o que ainda Ihe sobrava nao era suficiente para manter 0 mesmo padrio gastronémico que mantivera até entio, preferiu suicidar-se (REVEL, 1996). Vatel, possivel inventor do creme de Chantilly, € 0 nome sempre lembrado quando se pensa em morrer por causa da gastronomia. O principe de Condé o encarregou, em 1671, de preparar uma festa de 3000 comensais para Luiz XIV. Quando Vatel, depois de série de outros desastres, desconfiou (equivocadamente) que os peixes para o almogo da sexta-feira, em uma época em que bom cristio no comeria carne naquele dia, nfo chegariam a tempo, preferiu a morte a desonta de servir um almoco ao rei sem peixes (MADAME DE SEVIGNE, 2003) ¢, portanto, sem as pieces de resistance Outro grande nome é 0 de Caréme, 0 criador da grande cozinha francesa, sobre quem um de seus empregadores, o Czar Alexandre I, disse: "Nao sabjamos que o que ele fazia era ensinar-nos a comer" (ROBUCHON, 2001, p. 220). Caréme escreveu, certa vez, algo que explica bem sua contribui¢io para o surgimento da grande cozinha, em que a apresentacio a ser tio importante quanto le, que se envolveu também com a arquitetura’ disse: "As belas artes so cinco: a pintura, a escultura, 8H, p. 98-124, now. 2008 Cincia&Conhecimente 4 poesia e a arquitetura, cujo ramo principal é itserie". também, na historia da gastronomia, nomes de énomos que. no eram, ptopriamente, finheiros, como Grimod de la Reyniére ¢ Cus fimod de la Reyniére foi o responsivel pelo jimento da critica gastronémica como género tico. Com seu jornal, 0 Admanach des gourmands EYNIERE, 2003), cle também inaugurou a blicidade culindria ¢ os jiris de degustacio. sua vez, era o responsivel pelo bem-estar de Jeo Bonaparte; quando seu império comegou a © imperador pediu-lhe que inventasse uma bremesa que lembrasse o sangue dos soldados nceses sobre as neves russas. Cussy inventou, entio, xangos com chantilly. los. escritores ¢ artistas também foram trOnomos, ¢ deixaram grandes contribuigdes para a tronomia. O escritor Alexandre Dumas, por gemplo, escreveu O grande dicionério da coxinha, e conta- que 0 compositor Rossini, um glutio, certa vez foi 0 Café Anglais © pediu que Ihe servissem um filé mal sao, coberto com trufas, foe gras e molho démi-glace. o servi-lo, © garcom teve vergonha da simplicidade jp prato (sendo a simplicidade um postulado ronémico) ¢, para que ninguém visse do que se lava, serviu-o de costas para o salio: surgia os ios (literalmente: de costas viradas) Rossini. jentanto, no panteio dos gastrénomos, o primeiro €0 do Brillat-Savarin, cuja obra, a Fisiologia do wo, marca 0 inicio da fixacio do cédigo da tronomia como um conhecimento ligado a iniria mas distinto da mesma. A publicagio da Frodo de sobeemesas 4 BH, v. 2, 8p. 93-124, nov. 2006 Fisiologia do gosto corr atamente ao petiodo eat queda: Ruropancaniey ncantar pelo cmodimo ea se\rornar refinads Sr maneiras € 108 enejos, periodo bem deserito Pee ‘Camporesi em seu livro Hedonismo ¢ ‘de viver no século das uses (CAMPORESI, 1996): Bste € 0 petiodo, por txemplo, em que a Buropa PAS * consumir em larga ecala 0 café ¢ 0 chocolate, ‘egiando locais © Fituais proptios para 0 consume estes produtos que permitisam aos europees extrairer deles mais do que Pe povos que os efiaram foram capazes de conseguit Jean-Anthelme Billa Saver nasceu em 1755 € morreu em 1826 (ROBUCHON, 2001). Viveu, portant, 71 anos, © que Es muito para a €poca, ¢ Meribuia sua Tongevidade gastronomia (BRILLAT- SAVARIN, 1995, p. 158 € $8): Paradoxalmente, su alimentagio estava longe aquela hoje dita saudavel Gheso, BrillatSavarin se descrev™ como gastr6foro, elguéan. exe, formal, NEDSS SS apresenta antes da propria pessoa. ‘Um obeso, do tipo batrigudo, €, 2° entanto, longevo, gracas, M sua opiniio, & comida. interessante que, em s€0 VEO, le tenha consciéncia dos inconvenientes (quase dhe apenas de ordem ‘stética) da obesidade, ¢ Jf soubesse como cmagrecet: "discricio no comes moderacio no $00, mericios « pe € & caval” (BRILLATSAVARIN, 1595, p- 230). No entanto, se Dem gue ja haja em sua bea uma discriminacio das ‘comidas em funcio de sua ‘constituigao calérica, a Sua iaéia de regime J& fag femagrecimento ea um POve? istinta da n0582, POI comp prescrevia, aos que queriam emagrecet, & substituigio da m do café por chocolate (BRILLAT-SAVARIN, 1995, PF 232) eee GienciasGonhetcimentCh Fr 2n8 p, 89-124, nov 2008 llatSavarin era, além de _—_gastronomo, volucionario, médico amador, philasophe ¢ gistrado, Talvez sua profissio explique a atitude que representa na gastronomia: a tarefa do gastrnomo ‘atarefa de submeter A prova ¢ julgar os sabores, para ir deles sua verdade: 0 gosto. Dois meses antes de sua morte, Brillat-Savarin ublicou seu livro, pensado durante quase toda a sua , cujo titulo completo & Fisiolagia do gost: itacoes de gastronomia transcendente. Vejamos, inicialmente, a primeira palavra do titul logia. Ela pode nos iludir, se esperarmos encontrar um tratado de medicina. Nao se trata, como o nome pode parecer indicar, de desctever os mecanismos pelos quais nosso corpo sente o sabor. O fermo fisiologia aparece no livro porque Brillat- warin concebe 0 corpo como uma méquina que trinsforma o alimento em energia (ONFRAY, 1999, p. E para descobrir como isso ocorre, cle adota no método a observacio das reagbes do corpo, ivando disso leis sobre 0 gosto. Como diz Onfray, desde o preficio sabemos que o livro é uma cassficagio de materiais reunidos durante muito tempo: a ‘observacio preside a teora, esupde-se haver algo a mais que escrever sobre o assunto, além de um novo livro de linda, Trata-se, realmente, de langar as bases de uma nova eiéncia, cuja genealogia é a experimentagio (ONERAY, 1999, p. 101). e| js Brillar-Savarin no almeja por descobrit eis sobre 1pOI5| no sentimos 0 gosto, mas leis sobre como conseguir sentir, eG0|4 melhor forma possivel, o gosto, € por isso sua Folia no & propriamente uma fisiologia descritiva, fms um conhecimento de ordem normativa. No ela&Conhecimento BH, v.2, 28, p. 93-124, nov. 2006 entanto, como um recurso de autoridade, seu & consiste em, pela linguagem, dar uma aparéncis ciéncia aquilo que nao é uma ciénci sxemplo, na seguinte definicio: "a sede é o sentin interior da necessidade de beber" através de uma tautologia como essa, Brilla-Savarin tenta fazer ciéncia, ou a0 mem discurso cientifico; ele produz enunciados dest pura de prop aaxioma, equacio): © hi ciéncia mais rigorosa que define o mesmo pelo mesmo? Aqui, risco de erro; Brilla-Savasin esti protegido cor forga maligna qué arruina a (BARTHES, 1981, p.26). Em segundo lugar, Brillat-Savarin faz med Apesar de ser um texto nitidamente normativo, gastronémica. Ao contririo, meditagio, elas convidam 4 reflex Onfray, "a pritica da refeicio deve uma reflexio sobre a questio alimentar" (O 1999, p. 101). Discernimento, uma caract encial A profissio de magistrado, é a a intelectual necessiria para se produzir uma m B € disso que se trata no livro. Sé as entender como, em um livro sobre mesa, ha meditayies sobre O. fim do mundo (a de 10), Os sonbos (a de méimero 19), © Da me niimero 26). Pois a gastronomia é um fim qu todas as coisas humans BH, v.2, 8, p, 99-124, nov. 2006 A Finalmente, em terceiro lugar, Brillat-Savarin se refere fi gastronomia transcendente, uma verdadeira filosofia gistrondmica. O termo transcendente, aqui, refere-se 40 que é mais clevado dentro de um ramo do conhecimento, como afirma Littré (ONFRAY, 1999, p. 87). Segundo Onfray, trata-se de uma disciplina Yconstituida, obtida apés sintese das miltiplas manciras teéricas de entender a questio da alimentacio em sua relagio com o homem" (ONFRAY, 1999, p. 87). Uma disciplina que, como se eri, é, pelo menos para Brillat-Savarin, a mais importante de todas, pois esti intimamente ligada & felicidade humana. 2, ALIMENTAR-SE E COMER A Fisiolgia do gosto, de Brillat-Savarin, uma verdadeira Bllosofia do gosto, parte do sensualismo de Condillac, Segundo 0 qual, sem os sentidos, serfamos como uma fstitua de mirmore. No homem, os sentidos nao stituem a epiderme do seu ser, como ibém so o instrumento que © coloca em contato © meio ambiente ¢, portanto, com os outros jomens. Esta é também a crenga de Brillat-Savarin, fara quem "os sentidos sio os Stgios por meio dos ‘© homem se pée em relagio com os objetos teriores" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 33). contritio da classificagio usual, Brillat- 1 scis, ¢ no cinco, sentidos corporais, , a andigo, 0 gosto, 0 olfato, 0 tato eo gen fou amor fisico, que impele os sexos um para 0 outro, cuja finalidade & a reproducio da espécie". centa O autor, sobre este ultimo sentido, a ite observacao: "F espantoso que um sentid portante como este tiltimo tenha sido ignor 101 XQ BH v= (24, nav. 2008 102 quase até o tempo de Buffon, e tenha sido.confundido, ou melhor, anexado ao tato" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. p.33). E claro que esta tiltima observacio, como se constatari, tem um papel importante no pensamento do autor. De outro lado, Brillat-Savarin é, talvez, 0 primeiro autor a constatar a impossibilidade de se separar o olfato do gosto, a ponto de quase constituirem um mesmo sentido. Como ele diz: "sem a participacio do olfato, nio ha degustacio completa, como também sou tentado a supor que o olfato e 0 gosto formam um tinico sentido, do qual a boca é o laboratério eo nariz do qual um e outro para 'ARIN, 1995, a chaminé; ou, para falar mais exatamente, serve para a degustacio dos corpos tateis a degustacao dos gases" (BRILLAT-SAV p. 46), Com relacio ao gosto, ele é definido na obra como ndo 0 "sentido pelo qual apreciamos tudo 0 que é sipido ou esculento" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 33), aquele que "nos poe em contato com os corpos sipidos, por meio da sensacio que causam no érgio destinado a aprecid-los" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 41). Esta iiltima observagio abre caminho, hovamente, para uma questo epistemolégica. O gosto é um mecanismo pelo qual tomamos conhecimento da realidade Ao contririo do racionalismo idealista, que sempre privilegiou a audicio e, sobretudo, a visio, Brillat Savarin concede ao gosto uma dignidade que geralmente lhe é negada pela filosofia, mas faz isto porque, para infelicidade de muitos filsofos, o gosto, assim como 0 tato e o olfato, faz parte da vida humana. Como lembra Michel Onfray, BH, v.2,n8, p. 83-124, nov. 2006 Giencia&Conhecimento Com umd A i uma Rolat aficml Bart como] preci gostal alime Cie ‘0 gosto coloca em evidéncia 0 compo: mastigacio, degluticio, igestio, excrecio, cle € excessivo 20 mostrar {quanto © homem é matéria. F, entre os familiares do bsoluto e das idéias puras, ninguém quer alimentar esse fénero de lembranca. Somente os sensualistss, como Condillac os materalistas, como Diderot, os hedonistas, ‘como La Mettrie, concederam a rodos os sentidos, sem fexcesio, a dignidade que merecem, BrillarSavarin se fnscreve na linha dos pensadores audaciosos que fandaram a modernidade. (ONFRAY, 1999, p- 85) Com ele, 0 eu cartesiano ganha, indissociavelmente, um corpo. ‘Aidéia de gosto de Brillat-Savarin revela nil apenas ima epistemologia, mas também, como observa Roland Barthes, uma cosmologia. Brillat-Savarin afirma que 1 sensagio do gosto é uma operacio quimica que se fz por via «mida, como diziamos antigamente, ou se, preciso que as moléculassipidas sejam dissolvides num fBuido qualquer, para poderem a seguir ser absorvidas pelas terminagies nervosas, papas ow sugadores, que Forram 0 interior do aparelho gustativo" (BRILLAT- SAVARIN, 1995, p. 44) Barthes vé ai uma idéia cosmolégica, que identifica, | como principio de toda realidade, o estado liquido. E preciso reduzir 0 alimento a este estado para sentit 0 gosto, Somente neste estado 0 gosto, a esséncia do alimento, pode ser revelado. Diz Barthes: 'A olimentagio, pelo tratamento de suas substincias, toma uma dimensio cosmog6nica. O estado verdadciro dda alimentagio, aquele que determina a transformacio tnomana do alimento, pensa BrilarSavarin, é o estado tiguido: 0 gosto decorre de uma operagio quimica que sempre se fiz pela via cimida (.) A agua € alimentar fandamentalmente, a alimentagio é um banho interior, © SS ae ‘Géncia&Conhecimento BH, v 2, nT, p. 87-106, maio. 2006 GeaatGotedmeo Oe a pee este banho - precisio sobre a qual insiste BrillatSavarin = nfo € apenas vital, € também causa de felicidade, paradistaco; pois € dele que depende o gosto, quer dizer, a felicidade de comer. O liquido € o estado anterior & posterior do alimento, sua histia total, e, portanto, sua verdade. (BARTHES, 1981, p. 13) E o estado liquido que separa o gosto do tato: alguém. experimente colocar pé de café diretamente na boca: a sensacio imediata é a sensacio tatil, e somente quando © po comecar a liberar, na saliva liquida, seu sabor, é que interviri o sentido do gosto. Segundo Brillat-Savarin, "o gosto tem por excitadores © apetite, a fome e a sede, é a base de varias operagdes que resultam no crescimento, desenvolvimento € consetvagio do individuo, ¢ na reparagio de suas petdas causadas pelas evaporagdes vitais" (BRILLAT- SAVARIN, 1995, p. 41). O gosto esti, portanto, indissociavelmente ligado ao apetite, instinto ligado a conservagio da energia da propria vida. Como diz Brillat-Savarin, "O Universo nada significa sem a vida, ¢ tudo o que vive se alimenta" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 15). Em outra passagem ele afirma: ‘© movimento e a vida ocasionam, no corpo vivo, uma continua perda de substincia; e 0 corpo humano, essa ‘maquina tio complicada', deixaria de funcionar se a Providéncia nio o tivesse equipado de um meio que © avisa quando suas forcas nio estio mais em equiltbrio com suas necessidades. Esse monitor € 0 apette. Entende-se por essa palavra a primeien indicagio da necessidade de comer. (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 8) ‘Aqui se revcla, também, uma antropologia: 0 corpo é, em sua esséncia, uma miquina de transformar alimentos em energia (ONFRAY, 1999, p. 84) Somente um ser vivo pode transformar alimentos em. comida, ¢, portanto, podemos definir a morte como a incapacidade de fazé-lo, BH v.2.n6 p. 9% Ciénela&Conhesimento On, 0 prazer advindo da satisfagio do apetite esta ente ligado ao gosto. Esta idéia liga o sentido 0 gosto € o sentido genésico mantém uma relacio intima ¢ particular: o primeiro egura a conservacio do individu; 0 segundo, da epécie" (ONFRAY, 1999, p. 88). S6 que, no homem, satisfacio do apetite (alimentar ou sexual) nao é i Como diz Onfray, "comer é acalmar um po que faz saber quanto o atormenta a perda da jrgia consubstancial 4 vida, no que ela tem de mais, io. A partir dessa necessidade natural, os mens elaboraram uma possibilidade cultural: a arte de se alimentat" (ONFRAY, 1999, p. 88). De todos os sentidos, diz Brillat-Savarin, incluindo- Portanto © genésico, 0 gosto é 0 mais apto a porcionar prazer. E isso por cinco razdes: 1) Porque o prazer de comer, praticado com moderagio, Eo tinieo que no se acompanha de fadiga; 2) Porque € tum prazer de todos os tempos, de todas as idades e de todas as condici 0s outros € até mesmo nos consolar da auséncia destes; 3) Porque pode se misturar a todos 4) Porque as impresses que recebe so ao mesmo tempo mais duradouras © mais dependentes de nossa vontade; 5) Enfim, porque ao comermos experimentamos um certo bem-estar indefinivel © paticul Porque, 20 comermos, reparamos nossas perdas © prolongamos nossa existéncia, (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 50), que vem da conseiéncia instintiva; isto Jo comentar esta ultima caracteristica, Roland thes chama atencio para o fato de que este bem- é descrito por Brillat-Savarin como uma luisance, luminescéncia que emana do corpo que atinge o zr pelo gosto, e que é perceptivel no proprio rosto le quem se alimentou: sia Conhecimento BH, v2.8, p 83-124, nov. 2006 105 106 a fisionomia se expande, 0 colorido se acentua, os olhos ham, enquanto 0 cérebto se refresca e um doce penetra todo o corpo, A luminescéncia € evidentemente uum atributo erético: ela reenvia a0 estado de uma ‘matéria a0 mesmo tempo incendiada e molhada (..) O corpo do gourmet é visto, assim, como uma pintura docemente radiosa, iluminada a partir do. interior. GARTHES, 1981, p. 10 € 11) No homem, o gosto envolve, segundo o autor, trés tipos de sensacdes: a direta, a completa ea refletida, 0 que comeca a revelar a natureza complexa e cultural do prazer a ele ligado. Como diz Brillat-Savarin, eta é aquela primeira impressio que nasce do trabalho imediato dos érgios da boca, enquanto 0 corpo apreciivel se acha ainda na parte anterior da lingua. A sensacio completa é a que se compe dessa primeira impressio e daguela que nasce quando © alimento abandona sua primeita posicio, passa para fundo da boca, impregnando todo 0 érgio com seu gosto e seu perfume. Enfim, a sensagio tefleida é © julgamento feito pela alma sobte as impresses que © ‘rgio Ihe transmite. (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 47) entam de modo Obviamente esas sensagdes se apre: gradativo, 0 que significa, em primeiro lugar, que partimos de sensacdes mais simples para mais complexas. Em segundo lugar, isso ja indica que nem todos estio aptos a retirar do alimento todo o prazer que dele pode decorrer, porque a sensagio completa sé se revela se, ao ato animal de comer, actescentarmos tempo, € a sensagio refletida s6 se revela se ao tempo necessirio acrescentarmos a reflexao do espirito. A questio do tempo desempenha um papel central na Fisiologia do Gosto, Sem tempo sio possiveis nem a sensacio completa, nem a refletida. Como diz Brillat-Savarin, "os que comem depressa ¢ sem atencio nao discernem as impressdes BH, v.2, n8, p. 93-124, nov. 2006 Cincia&Conhecimento segundo grau; estas so 0 apandgio exclusivo de pequeno mimero de eleitos, ¢ é deste modo que s podem classificar, por ordem de exceléncia, as li substincias submetidas a seu exame" IRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 45). com a sensacio completa e com a sensacio tida, e portanto com a intervengio do tempo e da flexio, que passamos do ato animal de nos limentar para o ato propriamente humano de comer. © livro Fisiologia do gosto inicia-se por vinte forismos. O segundo aforismo afirma: "Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de sspirito sabe comer" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. preciso frisar que ato humano de comer é flicalmente diferente do ato de alimentar-se dos ele niio conhece limitagio em seus "tudo 0 que é comestivel submete-se a seu 10 apetite; 0 que implica, como conseqiiéncia a, poderes de degustacio proporcionais a0 IBtenso uso que fard desses poderes. De fato, 0 jomem * (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 51). Mais isso, 0 homem é 0 tinico ser que é capaz de sticar seu alimento, de alterar a sua natureza de frodo a produzir novos sabores’. Portanto, 0 gosto, pesar de todo sensualismo em que s t-Savarin, ou antes por causa dele, nos separa demais animais. Sobre isso diz o autor: "o prazer comer, nds 0 temos em comum com os animais; poe apenas a fome € 0 que € preciso para satisfaze- prazer da mesa € proprio da espécie humana; inspira 107 | \ | sa Ba deags peeved Aplciog eoait meine a fil a cs dail Reese Aconethara 605) sia (igedet 0 alimentos igen Sooristénigeiameate tspotioes,—_cagoetrsda BH, v.2, 8, p. 93-124, nov. 2006 supde cuidados preliminares com a preparagio da ‘olha do local e a reuniio dos no a fome, 0 menos o apetite; © prazer da mesa, na maioria das vezes, independe de ambos" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p.170). O comer, nos homens, apesar de ligado refeigio, com a es convidados. O prazer de comer exige, a0 apetite de sobrevivéncia, é algo que se descola de: apetite. Se bem que seja por cle influenciado, Ihe é també n distinto, o que permite que, no homem, o apetite no seja sindnimo, pura e simplesmente, de fome. Podemos comer, 20 contrario dos demais animais, e geralmente é isto que acontece, para saciar idades que estio além do aspecto olégico. Como observa Onfray, out meramente fis is neces: os homens fazem das obrigagdes narurais um magnifica terreno da experiéncia ideolégica (..). O animal tem que caga, Sente desejo sexual? Ele copula, apés algumas bares. Desde sempre os homens procuriram complicar tudo, es sua virtude. Tém sede? Eles elaboram complexas beberagens e fazem fermentar as bebidas, preparam 0 catabi, uma mistura de sidra ¢ inho, inventam © populo acrescentando agar, eravos dente, batizam o mélicrate casando o leite € 0 mel fazem o mulsum ou 0 oximel, o hipoctaz ou a malvasia, Qualquer coisa, contanto que seja dificil, ‘Tém fome? Eles cozinham, fabsicam ¢ inventam 0 grio de lotus em geléia, of bolinhos glutinosos de arroz com osmathe, 0 FI de, Fugu, mortal quando mal-preparado, o creme de cencyales com fécula, a vulva ou a teta da leitoa recheada a lingua do pavio ou olhos de peixes cozidos na gua Desejam saciar sua fome sexual? Fles brilhatio com a ‘mesma engenhosidade que na cozinha e escolherio entre a masturbagio e o casamento (ue, aliés, sio parentes), frodistaca ¢ of trajes de couro. O animal o ignora: 08 batriquios nao bebem uisque, os gastepodes nio corinham e renas niio segalam enum antilope. ©. cexotismo ¢ a pastronomia, tanto quanto a religifo, a arte € a metafisica, distinguem os homens dos animais, (ONFRAY, 1999, p. 95-96) Txto significa que, no homem, é o espirito que alimenta © corpo ¢, a0 alimenti-lo, o educa. Comer tem, no homem, uma dimensio civilizadora, de violéncia* contra a natureza. Pois todos nés nascemos desejando apenas um alimento: o leite. E se nfio aprendéssemos a comer, o tinico restaurante que continuaria a ser fieqiientado seria o seio materno. ividentemente, por tris disso esta a idéia da formacio sabor, 0 sabor que busca, cada vez mais, a iplexidade. E, a gastronomia surge exatamente no ‘momento em que © homem busca meios para atingir ‘esses sabores complexos. Por que alguns alimentos, eomo as alfaces, geralmente se comem cruas, outras, mo as batatas, geralmente se comem cozidas, ¢ ras, como os tomates, se comem indiferentemente ou cozidos? Por que alguns alimentos, como os colis, se comem verdes, e outros, como as boras, se comem maduros? Diz Brillat-Savarin que € 8 gastronomia que fixa o ponto de esculéncia de cada substincia alimentar, pois nem todos se apresentam nas rmesmas circunstineias. Umas devem ser apresentadas antes de terem chegado a seu completo, desenvolvimento, como as aleaparras, 08 aspargos, os leitdes, 08 pombos destinados a papinhas © outros animais que se comem na primeira infincia; outras, 90) momento em que atingiram a perfeicio, como os mel6es’, a maior paste das frutas, 0 carneiro, 0 boi € todos os animais adultos; outras, ainda, quando ‘comesam a se decompor, como as nésperas, a galinhola, « sobrerudo 0 faisio"; outras, enfim, como a batata e a mandioca, depois que as suas qualidades nocivas foram retiradas. (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 58-59). BH, v.2, 8, p. 93-124, nov. 2006 109 femal dt Fnolopar obverragio © eeepc ceria 0 tea em Bela Seain desea Se cami ‘ekagem € dm epee pe dha eto flsioabatido deve vr eit aD gee oe algae horas ea thas Diss de soso sar por ln srs pone {quem compareceu a uum banquere suntuoso, numa sala ornada de espelhos, flores, pinturas, esculeuras, aromatizada de perfumes, enriquecida de helas mulheres, repleta de sons de uma suave harmonia; este afirmamos, rio precisari de um grande esforco para se eonvencer de que todas as ciéncias foram chamadas para realcar cenguadrar adequadamente os prazeres do. gosto. (GRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 39). A refcigao perfeita ¢ aquela em que todos os sentidos sio chamados a um go70 que se tornou universal (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 172). 3,0 CORPO QUE ALIMENTA O ESPiRITO {Uma parte da verdade sobre a gastronomia é, como se viu, que © espirito alimenta o cospo do gastronomo. Mas isso nio diz toda a verdade da gastronomia, Pois fambém o corpo alimenta espitito. O primeiro e ‘mais imediato exemplo que podemos indicar disso esta Ino filme A festa de Babette, baseado no conto hhoménimo de Karen Blixen (BLIXEN, 2006, p. 24 a {), tio bem comentados por Rubem Alves (ALVES, 1991). Nele, € © corpo que alimenta o espirito. O Iconto narra a est6ria de um pastor protestante que linha duas filhas. Um aspirante a oficial do exército arqués vem visitar sua tia, na cidade em que 1a 0 pastor, e se apaixona pela mais velha das irmas, dindo sua mio em casamento ao pai. O pastor sponde que 0 casamento nao sera possivel, pois sua a € 0 seu braco direito, e, se ela se for, sua munidade ficara sem seu braco direito. O militar arte e vai construir sua carreira. Algum tempo depois, grande cantor lirico vem & cidade e se apaixona cla segunda filha. O pastor Ihe nega 0 desejo de levi- para Paris, onde desenvolveria seu canto, pois a filha imiis jovem é seu braco esquerdo, e, se ela se for, sua {Dénca&Conhecimento BH, v.2, 1.8, p. 93-424, nov. 2006 112 comunidade ficari sem ele. O cantor se vai, o pastor morre ¢ as filhas envelhecem. Em um dia de tempestade, uma mulher bate 4 porta delas com um: carta do cantor lirico, na qual se diz. que ela, Babette era cozinheira em Paris e tivera que fugit por causa da revolucio. As irmis dizem a Babette que nao poderic pagar pelos seus servicos, mas ela responde que quer apenas comida ¢ um local para dormir. No dia seguinte, comeca o longo aptendizado de Babette Elas ensinam-lhe como preparar 0 prato bisico da alimentagio daquela comunidade, que consiste em uma papa de peixe seco, pio € cerveja. Babette passari doze anos preparando 0 mesmo prato, até que algo acontece. A iinica ligacio que Babette mantém com a Franca é uma amiga que, todo ano, no dia do aniversario de Babette, joga na loteria em seu nome. E naquele ano Babette ganha uma pequena fortuna no »go. Esta chegando o dia do aniversitio do pastor morto h muito tempo, no qual os figis se retinem para cultuar sua meméria. As irmas pensam que Babette agora rica, partira. Mas Babette Ihes pede um iltimo favor: preparar um jantar francés em homenagem ao centenario do nascimento do pastor. As irmas consentem, ¢ Babette vai para Copenhagen para encomendar os ingredientes. U m dia antes do jantar, omecam a chegar codornas, cristais, uma tartaruga vigantesca, Ic vinhos, linhos. As irmas acham aquilo estranho; uma delas sonha que Babette é uma bruxa. Atemorizadas, retinem a comunidade e contam Ihe ae stia. Todos combinam que participario do festim, mas que, para nao se enfeiticarem, niio sentirio gosto de nada. Tudo ocorre como o planejado, menos um fato: chegou, para visitar a tia, 0 aspirante que pedira a mao da irma mais velha em casamento que ra era um alto oficial do exército. Ele nio participou do pacto. Todos se sentam 4 mesa, ¢ Canela Baba os a papi cont medi inte seni vik aquel Jem dpa valial conil com sd qu spill ning gank Angi Babette serve o primeiro prato: um consommé de tartaruga, acompanhado de um jerez amontilado. Todos estranham © sabor, mas apenas o general ‘comenta: "Amontilado!" (BLIXEN, 2006, p. 51). Mas (05 comensais agem como se continuassem a comer a papa de cerveja e peixe seco. No entanto, algo comeca a acontecer: Antes do jantar, os membros da comunidade estavam se digladiado verbalmente por causa das mfgoas que havia entre cles. Mas agora, a medida que © jantar avanca (gracas, talvez, a intervencio do general, que nio sabe do pacto de nio Sentir gosto) e 4 medida que Babette serve os pratos, Dinis demidof, calls en sarcophages, salada, queijos ¢ giteau tice raisins ef flgues mis, acompanhados de grandes Yinhos, algo acontece. O sabor contamina aquclas pessoas, que vio se tornando déceis. O climax ocorre quando Babette serve o prato principal: as cailles em Surmphaees. Quando o general as vé, comenta (no filme): "Mas sio cailles em sarcaphages! Certa vez, em Pais, participei de uma disputa hipica. Como venci, ‘meu oponente, um general francés, levou-me para jantar no restaurante Café Anglais. Lit ele me disse que aguele restaurante era, diferentemente de todos os emais, chefiado por uma mulher tio genial que, depois de provar seus pratos, ele acreditava que nio fala a pena duclar por qualquer outra mulher", A fomida comeca a transformar os motadores da unidade: eles passam a se perdoar. Apés o jantar, as duas irmis vieram agradecer a Babette pelo bem cla fez.a todos. Aproveitaram a oportunidade para despedir dela. E. entio, vem a surpresa. Babette ponde: "Nao vou mais embora. Nio tenho mais iguém na Franga, nem dinheiro. O dinheiro que ci na loteria, gastei todo neste jantar, jantar igual que servia quando era chefe de cozinha na Café gis” (BLIXEN, 2006, p. 58). Rubem Alves 113 BH, v. 2,18, p. 93-124, nov. 2006 14 completa: o que ocorre no jantar, que transforma 0 Animo dos comensais, é algo muito singular. Geralmente, © corpo transforma a comida, incorporando-a ao proprio corpo. Mas ha um evento em que o alimento, por suas proptiedades, transforma © corpo. Tiata-se da eucaristia. O banquete de Babette um banquete eucaristico, diz Rubem Alves (1991). Um outro exemplo ¢ dado por Nina Hotta. Ela diz em seu livro, Nao ¢ spa (1996), que ha comidas, como 0 mingau, que sio comidas da alma, O efeito que elas Produzem é antes na alma do que no corpo. O mingau, por exemplo, consola. E isto ocorre porque © espirito, altetado pelo alimento, produz uma alteragio no préprio corpo. Aqui entra em cena a Gourmandise, que Brillat-Savarin define como sendo "uma preferéncia apaixonada, tacional e habitual pelos objetos que agradam o Paladar. Fla é inimiga dos excessos, todo homem que come até a indigestio ou se embriaga corre o risco de set cortado da lista dos gastrénomos" (BRILLAT- | SAVARIN, 1995, p. 137). Se for o corpo que alimenta aalma, ¢ a transforma pelo alimento, entio é preciso que 0 processo de se alimentar se pauite pelos padrds do espirito, o que nos conduz ao aforismo de niimero X: "Os que se empanturram ou se embriagam no sabem comer nem beber" (BRILLAT-SAVARIN, | 1995, p. 15). Se, como ele diz no aforismo II, s6 0 homem de espirito sabe comer, entio o gourmet é, antes de qualquer coisa, aquele cujo apetite esta submetido, tio propriamente a moderagio, mas A precisio. Precisio quanto 4 quantidade, pois comer pouco ou comer muito nao é proprio daquele que quer buscar, ‘no ato de comer, prazer. Mas também precisio quanto a qualidade, pois é preciso buscar 0 alimento correto Giéncia&Conhecimento BH, v. 2 n.8-p, 99-124, now. 2008 —ee was _ibciaGonhecimento para produzir uma determinada sensagio. Ora, gastronomo sabe disso. Ele sabe, por exemplo, que é preciso que a textura e a temperatura dos alimentos servidos em uma refeico variem, se deseja extrair dela ‘o maior prazer possivel. E Brillat-Savarin levava a sétio tal precisio, quando falava, por exemplo, da superioridade, até hoje reconhecida, do frango gordo de Bresse sobre os demais frangos da Franca (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 80). Exatamente por isso, as duas grandes virtudes do cozinheito sio a exatidio e o discernimento. Usar banana prata no lugar da banana caturra pode estragar um prato. Podemos entio falar em uma ética do cozinheiro, baseada nestas duas virtudes, a exatidio ¢ © discernimento. Como diz Roland Barthes, dessa ética fazem parte dois prineipios: "o primeito é legal, castrador: é a exatidio (‘De todas as qualidades do corinheito, a mais indispensivel € a exatidio'); encontramos aqui a regra clissica: nio ha arte sem esforco, nao ha prazer sem ordem; o segundo é bem conhecido das morais da falta: é 0 discernimento, que permite separar com finura o bem do mal” (BARTHES, 1981, p. 16). Exatidio ¢ discernimento que Brillat-Savarin revela, dentre outras, na seguinte fase: "de todas as qualidades do cozinheiro, a mais, indispensével € a pontualidade" (BRILLAT- SAVARIN, 1995, p. 64). 4. ALIMENTAR O OUTRO No entanto, é preciso, aqui, fugir de um equivoco. A fruicio do gosto é, de todos os sentidos, 0 mais coletivo. Nao se pode gozar plenamente dos prazetes da mesa sozinho. O aforismo XX da Fisiologia do gosto introduz esse tema. Diz cle: "Entreter um convidado é ‘Giéncia&Conhecimento BH, v. 2, n.8, p. 93-124, nov. 2006 i encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 16). Brillat-Savarin sabia que um dos prazeres da mesa, ¢ talvez 0 maior deles, consistiria em compartilharmos a refeigio. com —_nossos companheitos. A palavra companbeiro nao entra aqui por acaso. Btimologicamente, companheiros sio aqueles que partilham do mesmo pio. O prazer da mesa é um prazer coletivo e depende de termos, 20 nosso lado, pessoas amadas. $6 como uma excecio alguém pode ter prazer em comer sozinho. Nos, seres humanos, somo seres que nos reunimos para comet. Mesmo os monges enclausurados tém suas refeicées coletivamente, ainda “que no mais completo siléncio. Roland Barthes comenta que a alimentagio esta essencialmente ligada ao convivio, 3 sociabilidade. Vivemos juntos ¢, por isso, comemos juntos. Isso introduz 0 tema da conversac: come-se em bando: esta € a lei universal. Esta sociabilidade gastrondmica pode tomar muitas formas, scjam ilibis sejam nuances, segundo as sociedades e as épocas. Para Brillat Savarin, a coletividade gastronémica € essencialmente mundana, e a sua figura ritual é a conversagio. A mesa é o lugar geométrico de todos os assuntos de entretenimento; € como se 0 prazer alimentar os vivificasse, 0s fizesse rentascer. (BARTHES, 1981, p. 29). O tema da conversa, por sua vez, introduz o tema da bebida. © vinho tem um papel fundamental nos prazeres da mesa. Fi que ele é um catalisador da conversacio, Para Brillat-Savarin, © vinho nao € nada além de um condutor 20 éxtase. A ruzio disto esti clara: 0 vinho faz parte da alimentagio, © 4 alimentagio, para BrillatSavarin, é essencialmente BH, v2 n8, p. 98-124, nov. 2006 Ciéncia&Conhecimento "7 convivencial; 0 vinho, entio, nio pode assumir um_ protocolo solitrio: bebe-se a0 mesmo tempo em que come, € come-se sempre em grupo (..) O vinho, para Brilla-Savarin, nfo tem nenhum privikégio particular: como a alimentagio e com el, ele amplifica ligeiramente ‘0 compo, (0 torna "luminescente)) mas nto o muda. E ‘uma antidtoga, (BARTHES, 1981, p. 12) so pode tornar compreensivel a seguinte frase de Bailar Savarin: "O champagne, que é excitante em primeiros efeitos, & estupefaciente a seguir” RILLAT-SAVARIN, 1995, p. 153). O vinho, como 0 spagne, nto produz, em si, prazer. F. preciso saber dito adequadamente para que ele produza prazer. jm uso parcimonioso ou exagerado retira todo o prizer que o homem de espirito pode ter. Isto quer fet que a funcio da gastronomia, como Brillat- Gwarin indica o tempo todo, é ensinar a se alimentar. >, como ji foi indicado, pata se alimentar € precis fm de tempo ¢ teflexiio, moderacio, exatidio wivio. 1 boa comida, ¢ est relacionada, antes de tudo, a0 ivio. Podemos distinguir "o prazer de comer € yet da mesa, um fazendo eco ao prazet solitirio, 0 butro ao prazer com o prdximo. O primeiro supde a 1, a necessidade animal, a precisio. Assim que est tisfeito, aparece o segundo, que se define como ‘a msacio refletida que nasce das divers Grcunstincias dos fatos, dos locais, das coisas ¢ das, pessons que acompanham a refeigio'. Do prazer de comer a0 prazet da mesa, vemos toda a distincia que para 0 dado bruto do artificio, a gulodice da tronomia" (ONERAY, 1999, p. 95). BH, v.2, 2.8, p. 93-124, nov. 2006 118 5. GASTRONOMIA E FELICIDADE, Ha uma estéria, narrada por Brillat-Savarin, que, apesar de longa, revela bem o principio acima apontado, razdio pela qual é melhor transcrevé se do capitulo 60, que se chama: Influéncia da gastronomia sobre a felicidade conjugal. Diz o autor a A gastronomia, enfim, quando partlhada, exerce a mais nia influéncia sobre a felicidade que se pode encontrar ria uniio conjugal. Dois esposos gastrOnomos tm, 20 menos uma vez por dia, uma ocasio agradivel de se reunit: pois, mesmo os que dormem em leitos separados (€ hi um grande mimero deles), a0 menos com possuem um tema de conversagio sempre n nilo apenas do que comem, mas do que ‘omeram, do que iio comer, do que observaram na cas dos outros, dos pratos em moda, de novas invencdes, etc etc; € sabemos que as conversas familiares (chit chat) so cheias de encantos. Certamente a misica também oferece atrativos muito fortes para os que a apreciam; mas ela precisa ser tocada,e isso requer esforco. Als, is vezes se esti. constipa pactcura, os instru estio desafinados, e a misica fo sai, Ao contririo, uma necessidade pactilhada chama is Feding, que 2 felicidade da vida. F Franga, niio escapou ao moralista in :maneia diversa como dois casais encerram a sua jornada, 3s dois maridos sio irmios; 0 mais velho é um lorde, e conseqiientemente possuidor de tod familia; 0 mais novo, marido de Pamela, foi deserdado por causa desse casamento, e vive num estado de pobreza ja. O lorde e sua mulher chegam i de jantar vindos de ditegdes opostas, satidam-se fiamente, embora niio se tenham visto durante dia Sentam-se a uma mesa esplendidamente servida, ‘Trata a gal afor "A felicl esi afir exceml a de des BH, v.2, n8, p. 98-124, nov. 2008 Citncia&Conhecimento cr wo cereadosdelctiosengalanados,servemse em saci € omer sem prazer. Depois que or domésicos se | ream, uma expéce de converagao se extibelece ene Gls que logo se transforma em acrimdni isco; os dos se levantam furowamente e v0 medtar, cada qual em seus aposenton sobre a8 doguas da vires. Sou izma, 20 conto € acolo com o mais ero desvlo as mae doces carcias quando chega a seu modesto Alojamento,Senta-se junto utna mesa frugal mas 2 Comia que the €servide podeta ndo ser excelente? Foi 2 propria Pimela que a preparoul Elks comem com Alicia, conversnd sobre es problemas, eos projet | seus amores Una ania garafa de madira os ada 2 Prolongar a refigio ea conversa; seguir, mesmo kro Or eect; , anon tanapotes de um amor partthad, tim sono tangle os fk exquecer0 presente e sonhar } com um futuro melhor. Toda a honta 4 gastronomia, tal } Como tapreentamos a nostos leores,« contano que clan afte ohomem de sits ocupades nem do que tte deve 3 si fortuna! Pisa como os vicios de Sardanapalo no fier os homens se volarem contra as mulheres, também os exestos de Vitiondo podem fazer volar a cotta 4 ein sabismente prepara, Sea gattonomia se teinsforina em glutoner, 1 voraciade, devaidlo, dl perde seu nome © suas | vantagen aide non algae ents ma do moral, Soe tntard com consahon, ov na do médic, que a traarh com remédon. (BRILLATSAVARIN, 1995, p. 145). Tiata-se, pois, de alcangar a felicidade. Em que medida a gastronomia pode contribuir para a felicidade? No aforismo IX da Fisiologia do gosto, Brillat-Savarin afirma: "A descoberta de um novo manjar causa mais cidade ao género humano que a descoberta de uma estrela" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 15). A firmacio é notavel por dizer o dbvio. Ninguém, com e¢i0 talvez do seu descobridor, ficari exaltado com a descoberta de uma nova estrela. E mesmo seu escobridor provavelmente comemorari 0 fato, nio (Olircia&Conhecimento BH, v.2, 7, p. 107-126, maio. 2008 420 ‘BH, v. 2,8, p. 93-124, nov. 2006 vendo estrelas, mas regalando-se com uma grande refeicio e um bom vinho. No entanto, a maioria dos homens geralmente nao da a devida importancia aos prazeres da mesa. Baqui que intervém nao a cozinha, mas a gastronomia € seu catiter civilizador”. BrillatSavarin diz que "a gastronomia é 0 conhecimento fundamentado de tudo © que se refere ao homem, na medida em que cle se alimenta" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 57). Podemos afirmar que o objeto da gastronomia nao é, como podem pensar alguns, a boa mesa", mas a felicidade que se atinge por meio da boa mesa. Nao se s de forca, tornar o homem de proporcionar-lhe © maior prazer que cle, enquanto ser que se alimenta, pode trata de, com cami escravo de regras, mas atingir Para isso, a gastronomia cré ser possivel captar 0 da alimento, que Brillat in chama de asmazémaz"fiel 4 filosofia da esséncia, espirito, a esséncia de ca BrillatSavarin atribui a0 osmazéma uma sorte de poder espiritual: ele é (..) o absoluto mesmo do gosto: um tipo de alcool da carne" (BARTHES, 1981, p. Osmazéma que, como todo principio do prazer (ou pelo menos do gosto), é liquido € soliivel em liquido. A culinétia trata exatamente de revelar (acentuar) ou extrair este principio dos alimentos. Ha nartado por Brill principe de Soubisse resolven dar uma festa, e pediv um cardapio a seu cozinheiro. O cozinheiro the entregou 0 cardipio cujo primeiro item era cingiienta um caso, Savarin, que revela isso. Certa vez 0 pernis de porco. E 0 nobre disse: indo estis exagerando? Cingienta pemnis de porco! Queres segalar todo o men regimento?’ "Nao, meu ja&Conhecimento fisica ty incall principe, apenas um apareceri na mesa; mas preciso dos festantes para meu molho ferrugem, meus ealdos, minhas Satis me roubando, Bertrand, ¢ esse item no passari ‘Ah’, diz 0 artista, mal contendo a célera,'o senhor no conhece nossos recursos! Ondene, © farei com que esses cinqiienta pernis de porco aos quais se ope entrem num fiasco de eristl nfo maior que 0 ‘meu polegar. Que responder a uma assercio tio positiva? © principe sorriu, baixou a eabegae o item foi aprovado, (BRILLATSAVARIN, 1995, p. 60). $e a sabemos do que trata a gastronomia, resta saber duas coisas: quem pode ser gastr6nomo ¢ 0 que é realmente necessirio para a boa mesa. Segundo Brillat- warin, nem todos estio destinados a serem gastronomos". Ha alguns homens a quem os 6rgios essitios para a gastronomia, principalmente queles destinados a sentir o gosto € 0 cheiro dos fosto, o natiz € os olhos compridos; seja qual for o s suem algo de alongado no porte. Tém SAVARIN, 1995, p. 149). Neste caso, nfio ha nada a Tier, a nao ser tesignar-se a uma vida de prazeres limitados. Outros ha que, por natureza, foram quinhoados pela natureza com o dom para a gstronomia. Brillat-Savarin os descreve desta forma: obusto, baixo, pele morena, cabelo crespo ¢ ombros Iigos, que (tenha) um rosto redondo, 0 queixo Iproeminente, os libios grossos e a boca de um inte" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 150). Ha finda aqueles que, pelo seu oficio, estio predestinados seem gastronomos: os banqueiros, os médicos, os homens de letras e os religiosos (BRILLAT- SAVARIN, 1995, p. 151 e ss). Seja por constituicio isso, 0 retrato é o do proprio autor. 121 Baila Saari eps tneoe por Mente Senladoor genom A ls dein o apa 13 de ° Nevamem Glog ida&Conhecimento BH, v2, n8, p. 83-124, nov. 2006 122 De outro lado, Brillat-Savarin indica que nao sio gastronomos "os distraidos, os tagarelas, os atarefados, os ambiciosos, os que querem faze duas coi mesmo tempo, e comem apenas para encher o estémago" (BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 147). E isso porque estes 6 podem, quando muito, sentir a sensacao simples, ¢ nio a sensacio completa e a refletida, produzidas pela boa mesa. O comet humano nio é, como jé foi dito, um simples alimentar se. Ele exige fruicio. E sem respeito pelo préprio ato de alimentar-se nio é possivel a fruicio. s a0 O que é necessatio, finalmente, para que se tenha uma boa mesa? Brilla comida ao menos passivel, born vinho, comensais agradaveis ¢ tempo sufi \T-SAVARIN, 1995, p. 173). Aqui é importante retomar o Pamela: Certamente a mesa do irmfo rico era farta na primeira e na segunda condicio, mas Ihe terceira e a quarta, O irmio pobre, no entanto, dispunha de todas elas: ele tinha uma boa mesa Savarin retine quatro condicdes: 0 de Para se realizarem essas quatro condicdes, Brillat- Savarin recomenda doze regras Que © niimeto de comensais nfo exceda doze, a fim de que a conversacio possa ser constantemente al: que cles sejam escolhidos de tal maneira que suas ocupasies sejam variadas, seus gostos anilogos, ¢ com pontos de contato suficientes no ser preciso recorrer i odiosa fotmalidade das apresentacSes; que a sala de jantar se} ituminada com luxo, a toalha de mesa sejz impecavelmente limpa, ¢ a temperatura ambiente vasie entre 16 ¢ 20° C; que os homens sejam espirituosos sem prete demasiadamente coquetes; que ot prat escolhidos com requinte, mas em nimero pequeno; ¢ os vinhos de primeira qualidade; que a progressio, para os BH, v.2, n8, p. 93-124, nov. 2006 Gincia&Conhecimento Pang ini 4 ga a fis longee jul a longs 36: 6 ALVES APICI Jaco BART wl BLISE Sto Pall BRILL Leas CANO Lue canta Ciencall primeiros, seja dos mais substanciais aos mais leves, © pana os segundos, dos mais suaves aos mais perfumados; ‘que 0 desenrolar da refeicio sea moderado, sendo 0 jantar a tlkima tarefa da jornada; e que os comensais se comportem como viajantes que devem chegar juntos 30 ‘mesmo objetivo; que o café seja servido bem quente, € 0s lcores especialmente escolhidos por um conhecedor; que a sala que deve receber os comensais seja bastante cespacosa para comportar um jogo de cartas 208 que nto podem passar sem ele, mas que sobre espago suficiente para os coléquios pés-prandiais, que os convidados scjam setidos pelo prazer da boa companhia, e animados pela esperanga de que a noitada nfo passari sem alguma satisfgio ulterior, que o ch no seja demasiadamente forte; que as totradas sejam artsticamente amanteigadas 0 ponche preparado com cuidado; que a retirada niio comece antes da onze, mas que 4 meia-noite todos cestejam deitados. BRILLAT-SAVARIN, 1995, p. 174) a concluit, uma iiltima constatagio que retoma 0 do texto. Brillat-Savarin atribuia sua longevidade gastronomia. Sabemos que isso nada tem a ver com fisiologia do corpo humano. Sua alimentagio estava Jongevidade? E. que o segredo da gastronomia é um é que o homem pode ser feliz comendo. REFERENCIAS IVES. Rubem A. O posta, 0 guerre, o prefta. Petropolis: Vores, 1991, ICIUS. L'art culate, Testo estabelecido, traduzido e comentado por jes André, Paris: Les Belles Lettres, 1987. ITHES, Roland, Lecture de Brilat Savarin, In: BRILLAT-SAVARIN, edu got. Patis + Hermann, 1981, p. 7 33. EN, N Anedate do destin. 2.04. Sio Paulo: Cosac e Naif, 2006, p. 24 a 60. ILLAT-SAVARIN. A fiiligia do goss. Sio Paulo: Companhia das Haas, 1995. Piero, Hedoiamo ¢ exotime: a aete de viver no século das [ines. Sic Paulo: UNESP, 1996. EAREME, Antonin, Le Pair pitorequ. Pats: Mercure de France, 2003 BH, v.2, n8, p. 93-124, nov. 2006

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