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NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA Traduca: ‘Marco Aurélio Nogueira editora brasiliense Copyright© by race Ang Lib. «1, Pale Monza 106 ii, ilo orga: Lateral e democrats Copyright © da ado Bras: Ear Brasense SA Nenduma parte desta publica pode ser grave ‘amasenas em sea lero, price por eos ecco elon ue” sem ator privindeeitor ator beset Satan ie, 22— Tae EPO; IDI SHo Palo SP ne Fx (ec) 218.88 asin con “ev dorstrasiert com br Indice @ Democracia ¢ igualdade , vo. a 2. 1s. M4. 15. 16, v7. Bibliografia ‘A liberdade dos antigos ¢ dos modernos ..-..+. 7 ‘Os direitos do homem . Osiimites do poder do Estado « Liberdade contra poder antagonismo ¢ fecundo « Deimocracia dos antigs e dos modemos « O encuntro entre liberalism e democracia Individualismo e organicismo -..-« Liberais e democratas no século XIX Atirania da maioria .....+ Liberalismo e utilitarismo ‘A democracia representative .....e++ Liberalismo e democracia na Italia .. ‘A democracia diante do socislismo - O novo liberalismo Democracia e ingoverabilidade 1. A liberdade dos antigos e dos modernos A caisténci atual de regimes denominados liberal skenoeritios ou de demoeraca ibera eva a eer que li Ulsoe democraciasejam interdependentes, No en lan, o problema das relaghes entre eles €extremamente Copies, ewido menos linear: Na acepyao mais eomumn th is termos, por Miberalismo” entende-se uma de tersinada eoacepgao de Estado, na qual 0 Estado tem panleresefungde imitadas,e como tal se contrapetan- trav Estado absoluto guanto ao Estado que hoje cha- sats de social po a entende-se uma das ‘ois Formas de governo, em particular aquelas em que Crowder no estas mgs de um s6 ou de poueos, mas ck tos, os melhor, da maior parte, como tal se contr two as formas autoerateas, como'a monarauia€ a ai aria Um Estado liberal no € neessariamente demo critico: ao contrério, realiza-se historicamente em socie- ules ns quais a participagdo no governo € bastante res tit, lmitada is classes possuidoras. Um governo demo- critic ndo dé vida necessariamente a um Estado liberal: ‘sw conttiio, o Estado liberal elisic foi posto em ese * NORBERTO BOBBIO pelo progressive processo de democratizagio produzido pela gradual ampliagao do sufragio até o sufrégio uni- versal ‘Sob a forma da contraposiglo entre liberdade dos ‘modernos ¢ liberdade dos antigos, a antitese entre libera- lismo e democracia foi enunciada e sutilmente defendida por Benjamin Constant (1767-1830) no eélebre discurso pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818, do qual € possivel fazer comegar a historia das dificeis e controver- tidas relagies entre as duas exigncias fundamentais de que naseeram os Estados contemporineos nos paises ‘econdmica esocialmente mais desenvolvidos: a exigéncia, deur: fado, delimitar o poder e, de outro, de distribui-lo. © objetivo dos antigos — escreve cle — era a distri- ‘buigdo do poder politico entre todos os cidados de ‘uma mesma patria: era isso que eles chamavam de liberdade, O objetivo dos modernos é a seguranca nas fruigies privadas: eles chamam de liberdade is garantias acordadas pelas instituigdes para aquelas fruigbes.' Como liberal sincero, Constant considerava que es- ‘ses dois objetivos estavam em contraste entre si. A parti- cipacio direta nas decisies coletivas termina por subme- ter oindividuo & autoridade do todo e por torna-lo nao li ‘yre como privado;¢ isso enquanto aliberdade do privadoé precisamente aquilo que o cidadio exige hoje do poder pliblico. Conelufa: (0) Beinn Conse, De le Liberé des Anions Comparde celle sry Mores I618 in Collect Compe des Outages, vl, past 7 Pri Bechet Libri, 1820, 258 (ad. I B. Constant, inode ¢ ttadoco de Unto Cron, Roms, amon eave 195, p. 25D, LIBERALISMO E DEMOCRACIA ° Nao podemos mais usufrir da liberdade dos antigos, ‘que era constituida pela participagao ativa e cons- tante no poder coletive, A nossa liberdade deve, a0 contrario, ser constituida pela fruigdo pacifica da dependéncia privada.? Constant eitava os antigos, mas tinha diante de si inv alvo bem mais préximo: Jean-Jacques Rousseau. De fato, 0 autor do Contrato Social havia inventado, nao sem fortes sugestes dos pensadores cléssicos, uma re- ppiblica na qual © poder soberano, uma ver instituido pela concordada vontade de todos, torna-se infalivel € “ido precisa dar garantias aos stiditos, pois é impossivel ‘que © corpe queira ofender a todos os seus membros”. Nao «jue Rousseau tenha levado 0 prinefpio da vontade teeral ao ponto de deseonhecer a necessidade de limitar 0 vor do Estado: atribuir @ ele a paternidade da “demo- crivin totalitéria” € uma polémica tio generalizada ‘quanto errénea, Embora sustentando que 0 pacto social «lio corpo politico um poder absoluto, Rousseau tam: Iném sustenta.queo corpo soberano, da sua parte, no ode sobrecasregar 0s siditos com nenhuma cadeia que Sef initil & comunidade’’* Mas & certo que esses li mites" nie sho pré-constituides ao nascimento do Es ado, como quer a doutrina dos direitos naturais, que tevresenta o niicleo doutrinal do Estado liberal. De fato cembora admitindo que “tudo aquilo que, com 0 pacto social, cada um aliena de seu poder... € unicamente a tmirle de tudo aquilo cujo uso é importante para a co- 2) Trad cp 282 (G)Ied- Rowse, Du Cotrat Soci 1. (ras itn 3.. Rovssen, sin’ ag Pe Aang) Ta, Ute 1970, p73. (2) Trad. sep © NORBERTO BOBEIO munidade", Rousseau conelui que "o nico corpo sobe- amo 6 juiz dessa importanc (Trad cop. 744 2. Os direitos do homem {0 pressuposto filosbfico do Estado liberal, entend dio Gomo Estado limitado em contraposigio ao Estado lbsoluto, €4 doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): dow trina segundo a qual © homem, todos os homens, indis- criminadamente, tem por naturera.e, portanto, indepen tientemente de sua propria vontade, e menos ainda da ventade de alguns poucos ou de apenas um, certs di moo direito& vids A liberdade, & seiaeanca, &leicidade — direitos esses que o Estado, ou Ihais coneretamente aqueles que num determinado mo- iucuio histérico detém o poder legitimo de exercer a for- si para obter a obedigncia a seus comandos devem res- pwilar,e portanto nfo inva, e a0 mesmo tempo prote contra toda possivel invasio por parte dos outros) ‘trbuir a alguém um direito significa reconhecer que cle ten a faculdade de fazer ou nfo fazer algo conforme ‘cu desejoe também o poder de resisir,reeorrendo, em Siltima instaneia,&forga (pr6pria ou dos outros), contra o ‘eventual transgressor, 0 qual tem em conseqiéncia o de- reilos funclamente b NORHERTO BOBBIO ver (ow a obrigagdo) de se abster de qualquer ato que possa de algum modo interferir naquela faculdade de fa- zet o ni fazer. “Direito” e "dever" so duas nogies pertencentes a linguagem prescritiva, ¢ enquanto tais pressuptem a existéncia de uma norma ou regra de con- duta que atribui a um sujeito a faculdade de fazer ou no fazer alguma coisa ao mesmo tempo em que impoe ‘quem quer que seja a abstengdo de toda ago capaz. de impedir, seia por que modo for, o exercicio daquela fa- ceuldade. Pode-se definir 0 jusnaturalismo como a dou- trina segundo a qual existem ieis nao postas pela vontade humana — que por isso mesmo precedem a formagao de todo grupo social e sfo reconheciveis através da pesquisa racional — das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou juridica, direitos e deveres que sio, pelo proprio fato de serem derivados de uma lei natural, direi- tos e deveres naturais, Falou-se do jusnaturalismo como pressuposto “filos6fico” do liberalismo porque ele serve para fundar os limites do poder & base de uma coneepeao geral e hipotética da natureza do homem que prescinde de toda verificagio empirica e de toda prova hist6rica. No capitulo II do Segundo Tratado sobre o Governo, Lo- eke, um dos pais do liberalismo moderno, parte do esta- ido de natureza deserito como um estado de perfeita li- berdade e igualdade, governado por uma lei da natureza que ‘ensina a todos os homens, desde que desejem con- sulla, que, sendo todos iguais ¢ independentes, rninguém deve provocar danos aos demais no que se refere A vida, A saiide, dliberdade ou is posses." (0) John Locke, Two Treaties of Government (169), 6 (a8 1 Parson org) Trim, Let, 3 SAD, p23 LIMERALISMO E DEMOCRACTA Bw Essa deserigdo é fruto da reconstrugao fantastica de uum presumivel estado originario do homem, cujo ti ‘objetivo € 0 de aduzir uma boa razio para justificar os limites do poder do Estado. A doutrina dos direitos natu- tis, de fato, esti na base das Declaragdes dos Direitos ‘prvclamadas nos Estados Unidos da América do Norte(a ‘comegar de 1776) e na Franca revolucionéria (a comecar tle 1769), através das quais se afirma o principio funda- wal co Estado liberal como Estado limita 0 objetivo de toda associagio politica & a conserva: io dos direitos naturais € no prescritiveis do ho- ‘mom (art, 2° da Declaragao dos Direitos do Homem ceil Cidadao, 1789). Enquanto teoria diversificadamente elaborada por Ilisofos, te6logos e juristas, a doutrina dos direitos do Inmet pode ser eonsiderada como a racionalizacdo pos- tuna do estado de coisas a que conduziu, especialmente tun Inglaterra e muitos séculos antes, a luta entre a mo- tunraviia¢ as outras forgas sociais, que se concluiu com a ceaneessao da Magna Carta por parte de Joao Sem Terra (5), quando as faculdades e os poderes que nos sécu- fw futuros sero chamados de ‘direitos do homem" sto jyvouhecidos sob o nome de “liberdade" (libertares, Inunchives. freedom), ow seja, como esieras individuais He aan de posse de bens protegidos perante © poder ‘nutes cei, Embora esta e as sucessivas cartas tenham ‘forma juriliea de concessbes soberanas, elas sao de fa- Juve resultado de um verdadeiro pacto entre partes con: apstas no que-diz. respeito aos direitos © deveres reci: proves ua relagdo politica, isto é, na relagdo entre dever te pratugao (por parte do soberano) e dever de obedién- ‘4a (no qual consiste a assim chamada “obrigacao polit «par parte do sidito), comumente chamado de pac- “ NORRERTO BOBBIO tum subiectionis. Noma carta das “liberdades" 0 objeto principal do acordo so as formas e os limites da obe- ‘igneia, ou seja, a obrigacKo politica, e correlativamente as formas e os limites do direito de comandar. Essas an- figas eartas, como de resto as cartas constitucionais ve~ ° jroyées* das monarquias constitucionais da idade da res- {auragio e depois (entre as qua 0 estatuto albertino de 1848), tem a figura juridica da concessio, que é um ato unilateral, embora sejam de fato resultado de um acor- {do bilateral. Sto por isso uma tipiea forma de fice ju- ridica, que tem por objetivo salvaguardar o principio da fuperioridade do rei, e portanto assegurar a perma: Ga da forma de governo mondrguica, nao obstante a ‘corrida limitagio dos poderes tradicionais do detentor do poder supremo. Naturalmente, mesmo nesse caso, 0 curso hist6rico ‘que di origem & urna determinada ordenagio juridica ea sua jusfiieagio racional apresentam:se com os termes invertidos{ historicamente, 0 Estado liberal nasce de time coutnia e progressiva erosio do poder absoluto do tele, efi eFiodos histricos de crise mais agud, de uma fuptura revolucionéria (exemplares os casos da Inglater- “Fa do steulo XVI e da Franca do fim do séeulo XVID: racionalmente, 0 Estado liberal éjustificado como 0 re- resultado de um acordo entre individvosinicialmente fi ‘res que cowereionam estabelecer os vinculos estrita- Tnente siecessarios uma convivéncia pacifiea e dura: dloura:JEnquanto 0 curso historico procede de um estado iniial'de servidio a estados sucessivos de conquista de ‘espagos de liberdade por parte dos sujeitos, através de tim processo de gradual liberalizaglo, a doutrina percor- Teo-eaminho inverso, na medida em que parte da hipbte- Sede um estado inicial de liberdade, e apenas enquanto (2) Em fans origo ators (NT) LIBERALISMO E DEMOCRACTA 8 cconcebe o homem como naturalmente livre € que conse- ue construir a sociedade politica como uma sociedade ‘cam soberania limitada. Em substancia, a doutrina, es- evialmente a doutrina dos direitos naturais, inverte 0 iandamento do curso histérieo, colocando no inicio como Tundamento, e portanto como prius, aguilo que ¢ histori- niente 0 resultado, o posterius. ‘Afirmagio dos direitos naturais ¢ teoria do contrato social, ou contratualismo, estao estreitamente figados. A igia de que 0 exercicio do poder politico apenas é lest finw se fundado sobre © consenso daqueles. sobre os ‘auais deve ser exercido (também esta é uma tese lockea- ana), © portanto sobre um acordo entre aqueles que deci lon submeter-se a um poder supetior e com aqueles a syuem esse poder & confiado, é uma idéia que deriva da inessuposigao de que os individuos tém direitos que nao slepnudem da instituigdo de um soberano e que a institui- ‘gto «lo soberano tem a principal fungo de permitir a Janina explicitagao desses direitos compativel com a srnuranca social{ O que une a doutrina dos dirsitos do contratualismo € a eomum concepgao indivi 30 segundo a qual pri- ividuo singular com seus interesses € ws eardneias, que tomam a forma de direitos em Ja assungao de uma hipotética lei da natureza, € soviedade, e nfo vice-versa como sustenta 0 of- fem todas as suas formas, segundo 0 qual a noelevlade € anterior aos individuos ou, conforme a for- mila aristotslica destinada a ter éxito ao longo dos séeu- lis, ela 6 anterior as partes.YO contratualismo moder: hus tepresenta uma yerdadeira feviravolta na hist6ria do ppensaimento politico dominado pelo organicismo na me- sida em que, subvertendo as relagées entre individuo scivdkide, faz da sociedade nfo mais um fato natural, a evistir independentemente da vontade dos individuos, rs NORBERTO BOBBIO mas um corpo artifical, eriado pelos individuos & sua imagem esemethanea e para a satisfac de seus interes: ses carénciase 0 mais amplo exercici de seus dieit Por sua ver, 0 acordo que dé origem ao Estado & possivel porque, segundo a teoria do direito natural, existe na naturera uma lei que atribu a todos os individuos alguns direitos fundamentais de que oindividuo apenas pode se ddespir vluntariamente, dentro dos limites em ave esta renincla, concordada com a anéloga renGincie de todos os outros, permita a composicio de uma lire e ordenada Sem essa verdadeirarevolugo copernicana, & base da qual © problema do Estado passou a ser visto nto ‘mais da parte do poder soberano mas da parte dos sid- tos, ni seria possivel a doutrina do Estado liberal, ave & inprimis a doutrina dos limits juridicos do poder esta- {allSem individualism ndo ha liberaismo, 3. Os limites do poder do Estado Valow-se até aqui genericamente de Estado limitado nde limites do Estado, Deve-se agora precisar que essa ‘reso compreende dois aspectos diversos do proble- tit axpectos que nem sempre slo bem distinguidos: a) th limites dos poderes;b) os limites das funcdes do Esta- tio, A outrina liberal compreende a ambos, embora Immun cles ser tratados Separadamente, um excluindo © tiutrn{O iberalisma uma dovtrina do Estado limitado tants von respite aos seus poderes quanto as suas fun- joes Wo nosy corrente que serve para representar © pric tiwtité Fstado de direito; @ nogio corrente para repre- tur sexundo € Estado muiximo |Embora o liberal inweeneeba o Estado tanto como Esiado de direito quan- team Estado minimo, pode oeorrer um Estado de di teil que no seia mimo (por exemplo, o Estado social ‘tempordineo) e pode-se também conceber um Estado iniinwe que no seja um Estado de direto (tal como, com respeito & esfera econémica, o Leviatd hobbesiano, ‘ea mesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da thalayra e fiberal em economia). Enguanto 0 Estado de * [NORBERTO BORBIO iteto se contrapie ao Estado absoluto entendido como Tegibues solutws, 0 Estado minimo se contrapée a0 Esta~ doméximo: deve-se, entio, dizer que o Estado liberal se fafirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direitoe contra 0 Estado méximo em defesa do Estado minimo, ainda que nem sempre os dois movimen- tos de emancipaczo coineidam historia epraticamente: ’Por Estado de direto entende-se geralmente um Es tado.em que os poderes puiblicos sio reguiados por nor sas gerais (as leis fundamentais ov constitucionsis) ¢ ddever ser exercidos no Ambito das leis que 0s regula, Salvo o diteito do cidadao de revorrer a win juz indepen- dente para fazer'com que seia reconhecido e refutado 0 abuso ou excesso de poder. Assim entendido, o Esta 4 de direto reflte a velha dovtrina — associnds aos Wssicos e transmitida através das dovtrinas_politicas tmedievais — da superioridade do governo das leis sobre 6 governo dos homens, segundo a formule lex facit re~ gem,’ douttina essa sobrevivente inclusive na idade do fbsolutismo, quandoa méxima princeps legibus solurus* éentendida no sentido de que o soberano no estava su- Jelto as leis positivas que ele proprio emanava, mas esta- ‘a sujeito as leis divinas ou naturais¢ as leis fundamen. {ais do reino, Por outro lado, quando se fala de Estado td dreito no ambito da doutrina liberal do Estado, deve- se actescentar & definic2o tradicional uma determinacio Ulterior: a constitucionalizagto dos direitos naturals, ou seia, a transformagio desses direitos em direitos juridi- camente protegidos, isto 6, em verdadeiros direitos posi- fivos. Na doutrina iberal, Estado de diteito significa nto 56 subordinagio dos poderes piblicos de qualquer grau (7H. Bratn, De Legis ot Comucadiibus Angle, B, Woo bin one), Cambridge, Mass Hararé Users Pros, 1968, v2 p39. (8) Ubpiano, Dig. 13.3 LIBERALISMO E DEMOCRACIA 8 as leis gerais do pais, limite que ¢ puramente formal, ‘mas também subordinagio das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais con derados constitucionalmente, e portanto em linha de principio “invioléveis” (esse adjetivo se encontra no art. 2° da constituicio italiana), Desse ponto de vista pode-se falar de Estado de direito em sentido forte para disti tauislo do Estado de direito em sentido fraco, que é 0 Es- ado nio-despético, isto é, dirigido no pelos homens, ‘mas pelas leis, e do Estado de direito em sentido fraquis- simo, tal como o Estado kelseniano segundo o qual, uma ver resolvido o Estado no seu ordenamento juridico, todo Estado é Estado de direito (e a propria nogio de Estado de direito perde toda forca qualificadora), Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele préptio da doutrina liberal, so parte integrante todos ‘0s mecanismos constitucionais que impedem ou obstacu- lizam 0 exercicio arbitrario e ilegitimo do poder e impe- ddem ou desencorajam 0 abuso ou o exercicio ilegal do poder. Desses mecanismos os mais importantes sao: 1) 0 ‘controle do Poder Executivo por parte do Poder Lexisla- tivo: ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe 0 Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe ‘em titima instancia o Poder Legislative e a orientagio politica; 2) o eventual controle do parlamento no exeret- civ do Poder Legislativo ordinario por parte de uma corte iutisdicional a quem se pede @ averiguagio da const ‘ucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do go- verno local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura inde- pendente do poder politico. | 4. Liberdade contra poder oe a na adr rio Gos abusos do poder Em outras palavras, sho garantias Sin te de era a Se date rae tna or avcmana oe med te ate ae me TaD a ora, a ae De fos manos anid go enti ta il poo nbee eT LIBERALISMO 1: DEMOCRACTA a internacional,|No pensamento liberal, teoria do controle ddo poder e teoria da limitagao das tarefas do Estado pro- teedem no mesmo passo: pode-se até mesmo dizer que a segunda é a conditio sine qua non da primeira, no senti- do de que o controle dos abusos do poder 6 tanto mais fé- cil quanto mais restrito € o Ambito em que o Estado pode cestender @ propria interveng30, ou mais breve e simples tniente no sentido de que o Estado minimo & mais contro- tivel do que o Estado maximo: Do ponto de vista do indi- viduo, do qual se poe 0 liberatismo, o Estado & conce- hide como um mal necessério; e enquanto mal, embora nevessario (e nisso o liberalismo se distingue do anar- ‘guismo), 0 Estado deve se intrometer o menos possivel na tesfera de ago dos individuos. As vésperas da revolugto americana, Thomas Paine (1737-1809), autor de um en- Ssaio em defesa dos direitos do homem, expressou cor ‘grande clareza tal pensamento: [A sociedade & produzida por nossas caréncias ¢ 0 governo por nossa perversidade; a primeira promove ‘a nossa felicidade positivamente mantendo juntos 08 tnossos afetos, 0 segundo negativamente mantendo sob freio os nossos vicios. Uma encoraja as relacdes, ‘outro cria as distingSes. A primeira protege, 0 se gundo pune. A sociedade é sob qualquer condicio tuma bénedo; o governo, inclusive na sua melhor for- ‘ma, nada mais & do que um mal necessério, e na sua piot forma é insuportavel.* Uma ver definida a liberdade no sentido predomi- ‘ante da doutrina liberal como liberdade em relaea0 a0 (9) Tomas Paine, Common Sens (1778 (ait in Thoms Pie ir elt Cora Mag org) Er Riv, 178. 2 NORBERTO BOBBIO Estado, 0 processo de formagio do Estado liberal pode ser identifieado com o progressivo alargamento da esfera de liberdade do individuo, diante dos poderes piblicos (para usar os termos de Paine), com a progressiva eman- cipacdo da sociedade ou da sociedade civil, no sentido hegeliano e marxiano, em relaglo ao Estado. As duas principais esferas nas quais ocorre essa emancipagio sao ‘aesfera religiosa ou em geral espiritual ¢ a esfera econ- mica ou dos interesses materiais, Segundo a conhecida tese weberiana sobre as relagdes entre ética calvinista © espirito do eapitalismo, os dois processos estio estreita: ‘mente ligados. Mas, independentemente dessa discutida conexio, é um fato que a historia do Estado liberal coin- cide, de um lado, com o fim dos Estados confessionais ¢ ccom a formagio do Estado neutro ou agnéstico quanto ‘us erengas religiosas de seus cidadaos, e, de outro lado, com o fim dos privilégios e dos vineulos feudais ¢ com ‘aexigéncia de livre disposigio dos bens e da liberdade de troca, que assinala o nascimento e 0 desenvolvimento da sociedade mercantil burguesa. Sob esse aspecto, a concepsio liberal do Estado con: trapde-se as varias formas de paternalismo, segundo as quais 0 Estado deve tomar conta de seus séditos tal ‘como 0 pai de seus fillos, posto que os siditos sio consi- dlorados como perenemente menores de idade. Um dos fins a que se prope Locke com os seus Dois Ensaios s0- bre o Governo 60 de demonstrar que o poder civil, nas- ‘ido para garantir a liberdade c a propriedade dos indivi ‘duos que se associam com o propésito de se autogover- nar 6 distinto do governo paterno e mais ainda do patro- nal. O paternalismo também é um dos alvos methor de- finidos e golpeados por Kant (1724-1804), para quem ‘um governo fundado sobre o principio da benevo- Iéneia para com 0 povo, como o governo de um pai sobre os fos, isto é, um governo paternalista (im- erium paternale), no qual 0s siditos, tal como fi- thos menores incapazes de distinguir o itil do preju dicial, estio obrigados a se comportar apenas passi- vamente, para esperar que o chefe do Estado julgue de que modo devem eles ser felizes e para aguardar apenas da sua bondade que ele 0 queira, um gover: ‘no assim 60 pior despotismo que se possa imaginar.” Kant preocupa-se, sobretudo, com a liberdade mo- ral.dos individuos. Sob o aspecto da liberdade econdmica ‘ou da methor maneira de prover aos proprios interesses materiais, nao menos clara e conhecida é a preocupagaio de Adam Smith, para quem, “segundo o sistema da li- berdade natural”, 0 soberano tem apenas trés deveres de grande importincia, vale dizer, a defesa da sociedade contra os inimigos externos, a protegio de todo individuo das ofensas que a ele possam dirigir os outros individuos, 0 provimento das obras piblicas que nao poderiam ser executadas se confiadas a iniciativa privada. Embora, possam ser distantes os pontos de partida de cada um ddcles{ tanto em Kant quanto em Smith a doutrina dos limites das tarefas do Estado funda-se sobre o primado «la liberdade do individuo com respeito ao poder sobera- nove, em conseqiiéncia, sobre a subordinagio dos deveres «losoberano aos direitos ou interesses do individuo.? ‘Ao final do século das Declaragaes dos Direitos, de Kant e de Smith, Wilhelm von Humboldt (1767-1835) escreve a sintese mais perfeita do ideal liberal do Estado, ‘com as Idéias para um “Ensaio sobre os Limites da Ati- (10) E. Kan, Uber de Gemeinpruc: Des mag in der hei richie ssi, tug abor ike fre Pras (183) ra. Sop dat comune ‘Questo vere pata tea mn ve pt la ra. Ka, Ser Pai ea soi della Stra del Dito, Tai, Ue, 1586, p88, ay NORBERTO HOBBIO vidade do Estado"*(1792). Como se nao bastasse o titulo, ppara compreender a intengio do autor podemos reconres Pindsima inserida no primeiro capitulo, extraida de Mi rabeau pait © sificil € promulgar apenas as leis necessirias € permanecer sempre fil a principio verdadelramen- Pe constitucional da sociedade, o de se proteger do furor de governar, a mais funesta doenga dos gover- nos modernos. ‘Sobre o ponto de partida do individuo em sua inetd: vel singularidade e variedade, 0 pensamento de Hum- Boldt é seco e conciso, O verdadeiro objetivo do homem, firma, € 0 maximo desenvolvimento de suas faculdades. Em vista do alcance desse fim, a méxima fundamental ‘que deve guiar 0 Estado ideal &a seguinte: ‘© homiem verdadeiramente razodvel no pode dese~ jar outro Estado que ndo aquele no qual cada indi’ ‘gue possa gozar da mais ilimitada liberdade de de Senvelver a si meso, em sua singularidade incon- fundivel, e a natureza fisica nao receba das miios do homem outra forma que nfo a que cada indivi: Guo. na medida de suas caréncias ¢ inclinagdes, @ fla pode dar por seu livre-arbitrio, com as Gnicas entrigdes que derivam dos limites de suas Forgas © de seu direito." ‘Aconseqiéncia que Humboldt extrai dessa premis: sa é que o Estado nio deve se imiscuir “na esfera dos (an) W. von Haribo, en 2 cine “Vere die Green de uate bein (1792) ad Hee rer “Sagi sl Lit del it rE Seta org) Babs 1 Mio, 196 P62) LUIBERALISMO E DEMOCRACIA B negécios privados dos cidados, salvo se esses neg6cios traduzirem imediatamente numa ofensa ao direito de um por parte de outro”. Ao lado da subversio das relagbes| tradicionais entre individuos e Estado, proprio da con- cepgio orginica, ocorre também, com respeito @ essas proprias relagdes, @ subversio dos nexos entre meio € fim:(segundo Humboldt, o Estado nao € um fim em si ‘mesmo, mas apenas um meio “para a formagio do ho: ‘mem’, Se o Estado tem um fim dltimo, esse & 0 de “‘ele- var 0s Gidadios ao ponto de poderem cles perseguir es pnlaneamente o fim do Estado, movidos pela Gnica ideia da vantagem que a organizacdo estatal a eles ofere- ce para o alcance dos préprios objtivos individuais”* Repetidas vezes se afirma no ensaio que fim do Estado é apenas a “seguranga”, entendida como a “certeza da I bberdade no ambito da lei. Un Trae. p. 6, (13) Trad p98. (09) rad tp 1. 5. O antagonismo é fecundo ‘Ao lado do tema da liberdade individual como fim Ainico do Estado e do tema do Estado como meio ¢ nao ‘como fim em si mesmo, o escrito de Humboldt apresenta ‘um outro motivo de grande interesse para a reconstrugio da doutrina liberal: 0 elogio da “variedade". Numa cer- rada eritiea ao Estado providencial, ao Estado que de- monstra excessiva solicitude para com o “bem-estar” dos cidadiios (uma eritica que prefigura a andloga denGncia dos presumiveis equivocos do Estado assistencial por parte do neoliberalismo contemporaneo), Humboldt ex plea que a intervengio do governo para além das tarefas {que le eabem — relativas & ordem externa e & ordem interna — termina por eriar na sociedade comportamer tos uniformes que sufocam a natural variedade dos caré teres e das disposigaes. Aquilo a que os governos tendem, 1 despeito dos individuos, sio 0 bem-estar e a calma: “Mas o que o homem persegue e deve perseguir & algo completamente diverso, évariedade e atividade"* Quem (9) Trad cp. 6 LIBERALISMO E DEMOCRACIA pensa diversamente suscita a fundada suspeita de consi- derar os homens como autématos. "De decénio em decé: rio” — anota (mas 0 que nao teria afirmado diante da “cela de ago” do Estado burocritico de hoje?) — “au- mentam, na maior parte dos Estados, o pessoal dos fun- cionarios e os arquivos, enquanto diminui a liberdade ‘dos siditos”.* Conclui: "Desconsideram-se assim 08 bo- mens... para ocuparem-se das coisas; as energias para interessarem-se pelos resultados”."” esse modo, a defesa do individuo contra a tentagao «lo Estado de prover ao seu bem-estar golpeia no apenas a esfera dos interesses, mas também a esfera moral; hoje estamos demasiadamente influenciados pela critica ex- lusivamente econdmica ao Welfare State para nos dar- mos conta de que o primeiro liberalismo nasce com uma forte carga ética, com a eritiea do paternalismo, tendo a sua principal razao de ser na defesa da autonomia da ‘pessoa humana, Sob esse aspecto, Humboldt vincula-se 1 Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith, aque de resto antes de ser um economista foi um moralis- ta, a liberdade tem um valor moral ‘Ao tema da variedade individual contraposta a uni fonnvidade estatal vincula-se o outro tema caracteristico & inovador do pensamento liberal: a fecundidade do anta- twonismo, A tradicional concepcao orgiinica da sociedade ‘stima a harmonia, a concérdia mesmo que forgada, a ‘subordinagio segulada e controlada das partes ao todo, ‘tdenando 0 conflito como elemento de desordem e de tlesagregagdo social. Ao contraio disso, em todas as eor- inles de pensamento que se contrapdem ao organicismo finmarse a idéia de que o contraste entre individuos € ‘:rupos em concorréncia entre si (inclusive entre Estados, (09) Fra. 9.73, * NORBERTO BOBBIO donde o elogio da guerra como formadora da virtude dos povos) & benéfico e & uma condicao necessiria do pro- ‘resto téenico e moral da humanidade, o qual apenas se explicita na contraposi¢ao de opinides e de interesses di vversos, desde que desenvolvida essa contraposigio no de- bate das idéias para a busca da verdade, na competigto ‘econémica para o aleance do maior bem-estar social, na Iuta politica para a selegdo dos melhores governantes, Compreende-se assim como é que, partindo dessa con- cepedo geral do homem e da sua histéria, a liberdade individual entendida como emancipagio dos vinculos que a tradieao, 0 costume, as autotidades sacras e pro- fanas impuseram aos individuos no decorrer dos séculos, tome-se uma condigdo necessaria para permitir (junta mente com a expresso da “variedade” dos cardteres in: viduais) 0 contlito e, no conflito, 0 aperfeicoamento reci proco. No ensaio Idéia de uma Hist6ria Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784), Kant expressou com ‘6 maximo despreendimento a convicgao de que 0 anta- sgonismo é “o meio de que se serve a natureza para reali zar 0 desenvolvimento de todas as suas disposigoes”,™ entendendo por “antagonismo” a tendéncia do homem de satisfazer os proprios interesses em coneorréncia com fs interesses de todos os demais: uma tendéncia que exci- ta todas as suas energias, 0 induz a veneer a inclinagio & reguiga e a conquistar um posto entre os seus consécios. Sobre o significado nao apenas econ6mico mas moral da sociedade antag6nica contraposta & sociedade harmdni- cca, Kant formula um juizo que pode muito bem ser con- siderado como o nticleo essencial do pensamento liberal: (18) E.Kant, ees cine llgemeinn Geachche in webirseicher Asch, 1784 eet, Lena a Storia Unverle dal Pt di Vt Co. LIBERALISMO E DEMOCRACIA » ‘Sem a insocialidade, todos os talentos permanece- riam fechados numa vida pastoral arcddica...; sem ela 08 hhomens, tal como as boas ovelhas conduzidas ao pasto- twin, nao dariam valor algum a existéncia”. E do enun- lo desse juizo categ6rico extrai o seguinte hino a sa- piiéneia da eriagao: Devemos, entlo, dar gragas & natureza pela intra- labilidade que gera, pela invejosa emulagao da vai dade, pela eupidez jamais satisfeira de possuir e de dominar! Sem isso, todas as excelentes disposigdes naturais intrinsecas & humanidade permaneceriam elernamente adormecidas sem qualquer desenvol- vimento.” ‘Como teoria do Estado limitado, o liberalismo con- Iuupoe o Estado de direito ao Estado absoluto ¢ o Estado mo ao Estado maximo. Através da teoria do pro- iuresso mediante o antagonismo, entra em campo a con- Lraposigdo entre os livres Estados europeus e 0 despotis- inv oriental. A categoria do despotismo é antiga e sempre ove, além do seu significado analitico, um forte valor ico, Com a expanstio do pensamento liberal, a ela se acrescenta tima ulterior conotagdo negativa: precisa- cate en decorséncia da submissio geral — pela qual, ‘com jf havia dito Maquiavel, o principado do Turco & novernado “por um prineipe e todos os outros so ser- vas", ou eno, como did Hegel (1770-1831), nos rei- tins despticos do Oriente “apenas um é livre" —, os a (0) NeMachorli If Principe 9p. 4, in Pte le Oper, lara one eli, Mondads, 199, yop 1 ) GW Hep, Vrsungen er de Phibsophie der Geschichte i econ sla Pf dle Sera, Flere, La Nao Talla, 1947, p88" %” NORBERTO BOBBIO Estados despaticos sto estaciondrios ¢ iméveis, nao es: tando sujeitos & lei do progresso indefinido que vale ape- nas para a Europa civil. Desse ponto de vista, o Estado liberal converte-se, mais que numa categoria politi ral, também num critério de interpretagao historica, 6. Democracia dos antigos e dos modernos Como teoria do Estado (e também como chave de interpretagao da histéria), 0 liberalismo & moderno, en- quanto a democracia, como forma de governo, é antiga. crsamento politico grego nos transmitiu uma eélebre Aipotogia das formas de governo das quais uma é a demo: racia, definida como governo dos muitos, dos mais, da iniotia, ow dos pobres (mas onde os pobres tomam a slinnteira & sinal de que poder pertence ao pléthos, & ‘uuassa), em suma, segundo a propria composic’o da pa- Invra, como governo do povo, em contraposigio a0 g0- sen le uns poweos. Seja o que for que se diga, a verda- tle & que, nao obstante o transcorrer dos séculos ¢ todas ns diseussdes que se travaram em torno da diversidade da ioeracia dos antigos com respeito & demoeracia dos lernos, 0 significado descritivo geral do termo nao se lterou, embora se altere, conforme os tempos ¢ as dou- {tinas, 0 seu significado valorativo, segundo 0 qual 0 g0- ‘yemnw do povo pode ser preferivel ao governo de um ou de ppoucos e vice-versa. O que se considera que foi alterado tna passagem da democracia dos antigos a democracia NORBERTO ROBBIO dos modernos, ao menos no julgamento dos que véem como itil tal contraposigao, nao & 0 titular do poder poli tico, que é sempre 0 “povo”, entendido como 0 conjunto dos cidadios a que cabe em tiltima instAncia o direito de tomar as decisdes coletivas, mas © modo (mais ou menos amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que, através das Declaragdes dos Direitos, nasce o Estado constitucional moderno, os autores do Federalista con: trapdem a democracia direta dos antigos e das cidades medievais A democracia representativa, que € © ‘nico ‘governo popular possivel num grande Estado, Hamilton se exprime do seguinte modo: E impossivel ler a respeito das pequenas repiiblicas dda Grécia e da Italia sem provar sentimentos de hor- ror ¢ desgosto pelas agitagdes a que estavam elas submetidas, e pela répida sucesso de revolugoes ue as mantinham num estado de perpétua incerte- 2a entre os estidios extremos da tirania e da anar- quia ‘Madison the faz eco: defensor de governos populares jamais se encon- traré to embaragado em considerar 0 cardter € 0 destino deles como quando apreciar a facilidade ‘com que degeneram aquelas formas corruptas do vi- ver politico.” (22) A Humilon, Jaye, Mason, The Federal (1738) (edit 4 Federale, MAA ©. Neg (rs). Boone, tt Maino, 1980 P89. (23) Tra. le 9.8 LIBERALISMO E DEMOCRACTA a Afirmar que 0 defeito da democracia citadina fosse o asitar-se das facgdes era, na realidade, um pretexto € refletia o antigo e sempre recorrente desprezo pelo povo por parte dos grupos oligarquicos: as divisBes entre par- {es contrapostas itiam se reproduzir sob a forma de par- tidos nas assembléias dos representantes. O que, a0 con Iririo, constituia a Gnica e sélida razio da democracia ropresentativa eram objetivamente as grandes dimensbes dos Estados modernos, a comecar da propria unio das troze coldnias inglesas, a respeito de cuja constitui¢zo ts esctitores do Federalista estavam discutindo. Havia econhecido isso 0 proprio Rousseau, admirador apai- onado dos antigos que tinha tomado a defesa da de- hncraeia direta sustentando que “a soberania nfo pode sr representada” ¢, portanto, “o povo inglés cré ser livre, mas se equivoca redondamente; s6 0 € durante clvigaio dos membros do parlamento; tio logo sio esses ‘lito, ele volta a ser eseravo, ndo é mais nada’” Rous- tein, entretanto, também estava convencido de que “inna verdadeira demoeracia jamais existiv nem existi- i", pois exige, aeima de tudo, um Estado muito peque- tno, “ho qual seja féeil ao povo se reunir"; em segundo lugar, “una grande simplicidade de costumes”; além do inais, “uma grande igualdade de condighes e fortunas"; vor fin, “pouco ow nada de lux0", Donde era levado a ccaneluis: “Se existisse um povo de deuses, seria gover: slo democraticamente. Mas um govern assim perfeito thio é feito para os homens".® Tanto os autores do Fede rulista quanto os constituintes franceses estavam conven- witlos de que o nico governo democratico adequado a tum povo de homens era a democracia representativa, ayuela forma de governo em que © povo mio toma ele (26) 2.3. Rowueun, trv Comaret Soot, 1, 15 trad cit, p. 802). o NORBERTO BOBBIO ‘mesmo as decisdes que Ihe dizem respeito, mas elege seus, préprios representantes, que devem por ele decidir. Mas flo pensavam realmente que instituindo uma democ ‘ia representativa acabariam por enfraquecer o principio do governo popular. Prova disso & que a primeira consti tuigo eserita dos estados da América do Norte, a da Vir- ‘inia (1776) — mas a mesma formula se encontra tam. bbém nas constituigies sucessivas —, diz: “Todo o poder repousa no povo e, em conseqiiéncia, dele deriva; os ma- sistrados slo os seus fiducidrios e servidores, e durante todo o tempo responséveis perante ele"; 0 artigo 3° da Declaragto de 1789 repete: “O principio de toda sobera- nia reside essencialmente na nacio. Nenhum corpo, ne- hum individuo pode exercer uma autoridade que no ‘emane expressamente da nagao". A parte o fato de que 0 exereicio direto do poder de decisio por parte dos cida- «ios no € incompativel com o exer ircto através de representantes eleitos, como demonstra a existéncia de constituigbes. como a italiana vigente (que previu © instituto do referendum popular, embora apenas com cficécia ab-rogativa), tanto a democracia direta quanto a indireta descendem do mesmo principio da soberania popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades © pelas formas com que essa soberania é exercida, De resto, a democracia representativa também nas da conviegio de que os representantes eleitos pelos cidadios estariam em condigdes de avaliar quais seriam 0s interesses gerais melhor do que os proprios cidadaos, fechados demais na contemplagio de seus proprios inte resses particulares; portanto, a democracia indireta seria mais adequada precisamente para o aleance dos fins a que fora predisposta a soberania popular. Também sob esse aspecto a contraposicao entre democracia dos anti- ‘gos e democracia dos modernos termina por ser desviat ‘e,na medida em que a segunda se apresenta, ou & apre- LIBERALISMO H DEMOCRACTA 3s sentada, como mais perfeita, com respeito ao fim, do que primeira, Para Madison, a delegagio da acto do g0- vyerno a um pequeno nimero de cidadios de provada se bedoria tornaria “menos provavel 0 sacrificio do bem do paisa consideragdes particularistas ¢transitérias” 2 Mas isso desde que o deputado, uma ver eleito, se comportas- se ndo como um homem de confianga dos eleitores que 0 linham posto no parlamento, mas como um representan- eda nacao inteira, Para que a democracia fosse em sen tido proprio representativa, era necessério que fosse ex- ‘luido mandato vinculatério do eleitor para com 0 elei- to, earacteristico do Estado de estamentos, no qual os cestamentos, as corporagies, os corpos coletivos transmi tiam ao soberano, através de seus delegados, as suas T vindicagbes particulares. Também nessa matéri nnamento vinha da Inglaterra. Burke havia dito: Exprimir uma opiniao € um direito de todo homem; ‘dos eleitores é uma opinido que pesa e deve ser res- peitada, e um representante precisa estar sempre pronto a escuticla... Mas instrugdes imperativas ‘mandatos aos quais 0 membro das Assembléias deve cexpressa e cegamente obedecer, tais coisas sio com: pletamente estranhas as leis dessa terra.” Para tornar inclusive formalmente vinculatoria @ svparagio entre representante e representado, os consti- Iuintes franceses, seguindo a opiniao efieazmente expos li por Sigyés (1748-1836), introduziram na constituigio ile 1791 a proibigdode mandatoimperativo com 0 art.72, tla sec. IIL, do eap. 1, do titulo IL, que prescreve: representantes nomeados nos departamentos no sero (26) The Fert. 8-96. (Em Elman Burkes pete che Concason of the Pallonhis Being hand Dab Elec Te Works 3. Doe, 1922p 1, % NoRBERTO HOBBIO representantes de um departamento particular, mas da nagio inteira, ¢ no podera ser dado a eles nenhum mat dato’ Desde entio, a proibigdo feita aos representantes: de receber umm mandato vinculatério da parte de seus eleitores tornar-se-4 um principio essencial ao funciona mento do sistema parlamentar, 0 qual, exatamente em virtude desse prineipio, distingue-se do vetho Estado de ‘estamentos em que vigora 0 prineipio oposto da repre- sentago corporativa fundada sobre o vineulo de manda- to do delegado que ¢ institucionalmente chamado a de- fender os interesses da corporagdo, disso nao se podendo distanciar sob pena de perder o dieito de representacao, ‘A dissolugao do Estado de estamento liberta o individuo na sua singularidade e na sua autonomia: é ao individuo enquanto tal, no a0 membro de uma corporacdo, que ccabe o direito de eleger 0s representantes da nagio — 0s quais sio chamados pelos individuos singulares para re presentar @ nagdo em seu conjunto e devem, portanto, desenvolver su agi e tomar suas decisdes sem qualquer vineulo de mandato, Se por democracia moderna enten de-se a democracia representativa, e se a demoeracia re presentativa é inerente a desvinculagdo do representante {da nagio com respeito a0 singular individuo representa: ‘do € a0s seus interesses particularistas, entio a democra: cia moderna pressupde a atomizagio da nacio e @ sua recomposigio num nivel mais elevado e ao mesmo tempo mais restrito que & 0 das assembléias parlamentares. Mas tal processo de atomizagio é 0 mesmo processo do ‘qual nasceu a concepetio do Estado liberal, cujo funda- ‘mento deve ser buscado, como se disse, na afirmagao dos direitos naturais einviolaveis do individuo. (28) Paraum coment sre tema, ser P. Wome Lopez deta SS Ee ee ee re 7. Democracia e igualdade © fiberalismo dos modernos e a democracia dos an tins foram freqllentemente considerados antitéticos, no sentido de que os democratas da antigiidade nio conhe- nn nem a doulvina dos direitos naturais nem o dever siado de limitar « propria atividade ao minimo ne- ‘cessirio para a sobrevivéneia da comunidade. De outra parte os moderns Uberais nasceram exprimindo uma tprafunda deseonfianga para com toda forma de governo ponular, tendo sustentado e defendido 0 surgi restrito thurauite todo 0 arco do século XIX e também posterior inte, 34 a democracia moderna no s6 no é incompa- Hivel cai © liberatismo como pode dele ser considerada, sul nnuitos aspeetos e 20 menos até um certo ponto, um natural prosseguimento, ‘Com uma eondiggo: que se tome 0 termo “demo- * em seu significado juridico-institucional e nto no ‘ico, ou seja, num significado mais procedimental do ‘que substancial, E inegivel que historicamente “demo: ‘cracia teve dois significados prevalecentes, 20 menos na ‘origem, conforme se ponha em maior evidéncia o conjun- to das regras cuja observincia é necesséria para que o * [NORBERTO BOBBIO poder politico seja efetivamente distribuido entre a maior parte dos cidadiis, as assim chamadas regras do jogo, fou o ideal em que um governo democritico deveria sé inspirar, que é o da igualdade. A base dessa distingao ccostuma-se distinguir a democracia formal da substan: cial, ou, através de uma outra conhecida formulagio, ‘democracia como governo do povo da democracia como ‘governo para o povo. No &o caso, aqui, de repetir aind: uma vez que nessas duas acepgies a palavra ““democra- cia” 6 usada em dois significados diversos:o sufi para produzirem inGteis e interminéveis discussées, ‘como a dedicada a saber se ¢ mais democritico um regi- ‘me em que a democracia formal nfo se faz acompanhar de uma ampla igualdade ou o regime em que uma ampla igualdade 6 obtida através de um governo despético. Desde que na longa historia da teoria democritica se combinam elementos de método e motivos ideais, que apenas se encontram fundidos na teoria rousseauniana, nna qual o ideal fortemente igualitario que a move s6 en- contra realizagao na formagio da vontade geral, ambos (05 signifieados so historicamente legitimos. Mas a legi- timidade hist6rica de seu uso ndo permite nenhuma ila clo sobre a eventual presenca de elementos conotatives Dos dois significados, € o primeiro que esta histori- ‘camente ligado 3 formagio do Estado liberal. No caso de se assumir o segundo, o problema das relagbes entre libe- ralismo e demoeracia torna-se muito complexo, tendo jé dado lugar, ¢ hd motivos para erer que continuard a dar lugar, a debates inconclusivos. De fato, nesse modo 0 problema das relagbes entre liberalismo e democracia se resolve no dificil problema das relagbes entre liberdade e igualdade, um problema que pressupde uma resposta uunivoea a essas duas perguntas: “Qual liberdade? Qual igualdade?”. JeMOCRACIA » \Em seus significados mais amplos, quando se esten: dam a esfera econdmica respectivamente o direito a li herdade co direito aigualdade, como ocorre nas doutrinas, ‘opostasdoliberismo* e doigualitarismo, iberdade eigual- Alade sio valores antitéticos, no sentido de que nfo se pode realizar plenamente um sem limitar fortemente 0 ‘outro: uma sociedade liberal-liberista € inevitavelmente ‘fo-igualitéria, assim como uma sociedade igualitaria é inevitavelmente ndo-liberal. Libertarismo e igualitarismo {undam suas raizes em concepgtes do homem e da socie- dlade profundamente diversas: individualista, conflitua- lista € pluralista a liberal; totalizante, harménica © mo- hista aigualitéria.’Para o liberal, o fim principal & a ex- ppansto da perscinalidade individual, mesmo se o desen- volvimento da personalidade mais rica e dotada puder se afirmar em detrimento do desenvolvimento da persona- lidavle mais pobre e menos dotada; para o igualitario, 0 mi principal 60 desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de Ibersade dos singulares.. | A tinica forma de igualdade que nao s6 é compativel ‘oom a liberdade tal como entendida pela doutrina libe- ral, ns que é inclusive por essa solicitada, & a igualdade i liberdade: © que signifies que cada um deve gozar de ‘nua fiberdade quanto compativel com a Tiberdade dos ‘mutts, podendo fazer tudo o que ndo ofenda a igual li- hheriade dos outros.\Praticament desde as origens do studo liberal essa forma de igualdade inspira dois prin- lpios fundamentais, que sio enunciades em normas cvonstitucionais: a) a igualdade perante a lei; >) (©) Como ler claro so longo do texto, ¢parilarmente no cap ub 1, af malian false em "eri para desgar sored © ‘lw do iberatsmo eeonimio, do ve-carbae,feando otro “be io” reseed pats ouninese do Halen poles. (8. 7) dade dos direitos,'O primeico pode ser encontrado nas, constituigies francesas de 1791, 1793 ¢ 1798; e depois agradativamente no art. 1° da Carta de 1814, no art. 6° dda constituigdo belga de 1830, no art. 24 do estatuto al Dertino (1848). De igual dimensao é considerada a XIV Emenda da Constituigao dos Estados Unidos, que deseja assegurada a cada cidadio "a igual protegdo das leis". O segundo encontra-se afirmad solenemente no art. 1° da Declaragio dos Direitos do Homem ¢ do Cidadao de 1789: “Os homens nascem ¢ devem permanecer livres e iguais em seus direitos”. Ambos os prinefpios atravessam toda a hist6ria do constitucionalismo moderno ¢ estio conjuntamente expressos no art. 3°, primeiro paragrafo, da constituigio italiana vigente: “Todos os cidadaos témn idéntica dignidade social e so iguais perante a lei’ ( principio da igualdade perante a lei pode ser in terpretado restritivamente como uma diversa formulagio do principio que circula em todos os tribunais: “A lei é igual para todos” Nesse sentido significa simplesmente ‘que o juiz deve ser imparcial na aplicagao da lei e, como tal, faz parte integrante dos remédios constitutivos © aplicativos do Estado de direito, sendo assim inerente a0 Estado liberal pela ja mencionada identificagdo do Esta do liberal com o Estado de direito. Extensivamente isso significa que todos os cidados devem ser submetidos as mesmas leis e devem, portanto, ser suprimidas e nao re- tomadas as leis espectficas das singulares ordens ou es- tados: 0 prinefpio é igualitério porque elimina uma dis criminagio precedente. No predmbulo da constituigao de 1791, lé-se que os constituintes desejaram abolir “irre. ‘vogavelmente as instituigdes que feriam a liberdade © igualdade dos direitos”, ¢ entre tais instituigdes so in- cluidas as mais caracteristicas instituigdes feudais. O predimbulo se encerra com uma frase: “Nao existem mais para parte alguma da nagio, nem para algum individuo, LIBERALISMO E DEMOCRACIA, a ‘qualquer privilégio ou excecio ao direito comum de to- ddos os franceses”, que ilustra a contrario, como melhor iilo se poderia desejar, o significado do prinefpio da iqualdade diante da lei como recusa da sociedade por eslamentos e, assim, ainda uma vez, como afirmagio da sociedade em que os sujeitos origindrios sio apenas os Individuos ut singull Quanto a igualdade nos ou dos direitos, ela repre senla um momento ulterior na equalizagio dos indivi duos com respeito & igualdade perante a lei entendida como exclusio das diseriminagdes da sociedade por es- lumentos: significa © igual gozo por parte dos cidadiios de alguns direitos fundamentais constitucionalmente ga- rantidos. Enquanto a igualdade perante a lei pode ser Iinterpretada como uma forma especifica e historicamen- (c determinada de igualdade juridica (por exemplo, no de todos de ter acesso a jurisdigdo comum ou aos ipais cargos civis e militares, independentemente do hnaseimento), a igualdade nos direitos compreeende a iqualdade em todos os direitos fundamentais enumera- los numa constituigao, tanto que podem ser definidos vom fundamentais aqueles, e somente aqueles, que «levem ser gozados por todos os cidados sem discrimi- tungies derivadas da classe social, do sexo, da religiao, da raya, etc, © elenco dos direitos fundamentais varia de é)maea para época, de povo para povo, € por isso no se pode fixar um elenco de uma vez por todas: pode-se ape- 1s dizer que sao fundamentais os direitos que numa de- tcriminada constituigio so atribuidos a todos os cida- «lh indistintamente, em suma, aqueles diante dos quais twas os eidadaos sto iguais. 8. O encontro entre liberalismo e democracia Nenhum dos prinefpios de igualdade, acima ilustra- 4dos, vinculados ao surgimento do Estado liberal, tem a ‘ver com o igualitarismo democritico, 0 qual se estende 440 ponto de perseguit o ideal de uma certa equaliza¢a0 econdmica, estranha & tradigdo do pensamento liberal. Este se projetou até a aceitagio, além da igualdade juri dic, da igualdade das oportunidades, que prevé a equa- lizagao dos pontos de partida, mas nfo dos pontos de chegada:Com respeiio, porianto, aos varios significados possiveis de igualdade, liberalismo e democracia esto destinados a nfo se encontrar, o que explica, entre ou- tras coisas, a contraposicao histérica entre eles durante ‘uma longa fase. Em que sentido, entio, a democracia pode ser considerada como o prosseguimento e o aperfei ‘coamento do Estado liberal, so ponto mesmo de justifi- car 0 uso da expressio “iberal-democracia” para desi: ‘nar um certo nimero de regimes atuais? Nao sé o libera- listno é compativel com a democracia, mas a democracia pode serconsiderada como o natural desenvolvimento do Estado liberal apenas se tomada no pelo lado de seu LIBERAL SMO F DEMOCRACIA a que 6, como se viu, a soberania popular. O Ginico modo de tornar possivel excreivio da soberania popular & a atribuigio ao maior mimero de cidadaos do dircito de participar direta e indiretamente na tomada das decisdes coletivas; em outras palavras, a maior extensio dos reitos politicos até o limite ditimo do sufrégio universal masculino e feminino, salvo o limite da idade (que em xgeral coincide com s majoridade). Embora muitos escri- tores liberais tertham contestado a opertunidade da ex: onsio do stfrigio e no momento da formacao do Estado liberal a participacio no voto fosse consentida apenas aos proprietarios, & verdade € que 0 sufrigio universal nao & em linha de psineipio contririo nem ao Estado de direito nem a0 Estado minimo. Ao contrério, deve-se di ver que se foi formando uma tal interdependéncia entre tum ¢ outto que, engvanto ne inicio puderam se formar Estados liberais que no erar demoeraticos {a nfo ser nas doclaragdes de principio), hoje Estados liberais ndo- demoeraticos nfo seriam mais coneebiveis, nem Estados idemocriticas que no fossem também liberais. Existem, '8) que hoje o método les fundamentais da pessoa, que est Es J; b) que a salvaguasda desses direitos seja neces pari a correto furcionamento do método democré- ‘Com respeito ao priaeire ponto deve-se observar © ane segue: a maior garantia de que 0s direitos de liber- shuk:scjam protegidos contra a tendéncia dos governan- tes se fimité-los e suprimi-los esté.na possibifidade que ‘vidas tenham de defendé-los contra os eventuais huss, O melhor remédio contra 0 abuso de poder sob ‘qwaluer forma — mesmo que “melhor” no queira realmente dizer nem timo nem infalivel — & 2 partici- pagio direta ou indireta dos cidadios, do maior némero de cidadios, na formagio das leis. Sob esse aspecto, os direitos politicos sio um complemento natural dos direi- tos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as co~ nhecidas expressdes tornadas eélebres por Jellinek (1851 -1911), 0$ iura activae civitatis constituem @ melhor sal- vaguarda que num regime nao fundado sobre a sobera- nia popular depende unicamente do direito natural de resistencia & opressto. ‘Com respeito ao segundo ponto, que se refere no mais necessidade da democracia para a sobrevivéncia do Estado liberal, mas, a0 contrério, ao reconhecimento dos direitos invioléveis da pessoa sobre os quais se funda 0 Estado liberal para o bom funcionamento da democra- cia, deve-se observar que a participacio no voto pode ser considerada como correto ¢ eficaz exercicio de um poder politico, isto é, 0 poder de influenciar a formagio das decisdes coletivas, apenas caso se desenvolva livremente, quer dizer, apenas seo individuo se dirige as urnas para expressar 0 proprio voto goza das liberdades de opinio, de imprensa, de reunido, de associagao, de todas as li berdades que constituem a esséneia do Estado liberal, ¢ {que enquanto tais passam por pressupostos necessérios para que a participagao seja real e nao ficticia. Tdeais liberais e método democratico vieram gra- dualmente se combinando num modo tal que, se & ver dade que 0s direitos de liberdade foram desde o inicio a ‘condigio necesséria para a direta aplicagio das regras do jogo democritico, & igualmente verdadeiro que, em se- ‘guida, 0 desenvolvimento da democracia se tornow 0 principal instrumento para a delesa dos direitos de liber- dade. Hoje apenas os Estados nascidos das revolugdes liberais sio democ jews ¢ apenas os Vstados democri- ticos protegem os dirciles ds unica: todas os Estados utoritarios dl nud saw aor msi tempo antiliberais| eantidemoeritiens 9. Individualismo e organicismo- Esse nexo reeiproco entre liberalismo e democracia, & possivel porque ambos tm um ponto de partida co- ‘mum: o individuo. Ambos repousam sobre uma concep: eto individualista da sociedade. Toda a historia do pen- samento politico esté dominada por uma grande dicoto- mia; organicismo (holismo) e individualismo (ato mismo). Mesmo que 0 movimento nio seia pode-se dizer com uma certa aproximagao que o organi cismo ¢ antigo, ¢ 0 individualismo modern (ou pelo me- nos dele se pode fazer comecar a teoria do Estado mo~ dderno): uma contraposigao historicamente mais correta {quea proposta por Constant entre democracia (antiga) & liberalismo (moderno). Enquanto 0 organicismo consi dera o Fstado como um grande corpo composto de partes {que concorrem — cada uma segundo sua propria desti- hago e em relagio de interdependéncia com todas as demais — para a vida do todo, ¢ portanto no atribui enhuma autonomia aos individuos uti singuli, 0 indi dualismo considera o Estado como um conjunto de indi- viduos e como o resultado da atividade deles e das rela- * NORBERTO BowBIO «es por eles estabelecidas entre si, O prineipio constitu: {ivo do organicismo foi formulado de uma vez para sem- pre por Aristoteles, nas primeiras paginas da Politica “O todo precede necessariamente & parte, com 0 que, quebrado o todo, nao haver’ mais nem pés nem mos”, com a conseaiiéncia de que “a cidade € por natureza (atente-se: “por natureza”) anterior ao individuo"* Para se encontrar uma completa e perfeitamente consciente tcoria individualista preciso chegar a Hobbes, que par- te da hipétese de um estado de natureza em que existem apenas individuos separados uns dos outros por suas paixdes e por seus interesses contrapostos, individuos forcados a se unir de comum acordo numa sociedade po: litica para fugir da destruigdo reciproca. Essa reviravolta no ponto de partida tem conseqiiéneias deci nascimento do pensamento liberal ¢ democriti no, No que diz respeite ao liberalismo, uma coerente concepeao organics, que considera o Estado como uma totalidade anterior e superior as suas partes, nao pode conceder nenhum espaco a esferas de agZo independen: tes do todo, nio pode reconhecer uma distingao entre esfera privada e esfera piiblica, nem justificar a subtra- ‘eho dos interesses individuais, satisfeitos nas relagdes com outros individuos (o mercado), ao interesse piblico. No que dizrespeito a democracia, que se funda sobre wma cconcepeio ascendente do poder, o organicismo, fundan- do-se ao contririo sobre uma concepeao descendente, se inspira em modelos autocriticos de governo: dificil ima- ginar um organismo em que sejam os membros @ co- ‘mandarendoacabeca. Resta dizer que, embara sendo o liberalismo € a de- mocracia concepeies infividualisias, 0 individuo do pris 20 Aste Hata tea EA, Mla one Tai, LIBERSLISMO H DEMOCRACTA ‘ meiro no é 6 mesmo individuo da segunda, ou para di zer melhor, 0 interesse individual que 0 primeiro se pro- pode a proteger nao € © protegido pela segunda. O que pode servir para explicar, ainda uma vez, porque é que @ ‘combinagao entre liberalismo e democracia nao apenas & possivel, como também necessaria, Nenhuma concepgao individualista da sociedade prescinde do fato de que o homem & um ser social, nem considers o individuo isolado. O individualismo nao deve set confundido com 0 anarquismo filoséfico a Stirner (41806-1856). Mas as relagies do individuo com a socie~ dade sio vistas pelo liberalismo e pela democracia de ‘modo diversos: o primeiro extrai o singular do corpo ot sinico da sociedade e o faz.viver, ao menos por uma lar- ‘ga parte da sua vida, fora do ventre materno, pondo-0 no mundo desconhecido e pleno de perigos da Iuta pela so: brevivéncia; a segunda o reine aos outros homens, a ele semelhantes, para que da unio deles a sociedade seja recomposta ni mais como um todo organice, mas como uuma associagao de individuos livres. O primeiro reivin ica a liberdade individual tanto na esfera espiritu: quanto na econémica contra o Estado; a outra reconcitia 0 individuo com a sociedade fazendo desta produto de uum acorde dos individuos entre si. O primeiro faz do singular 0 protagonista de toda atividade que se desenro- la fora do Estado; a segunda o faz protagonista de uma forma diversa de Estado, na qual as decisdes coletivas. sho tomadas diretamente pelos singulares ou por seus delegados ou representantes. Do individuo 0 primeiro poe em evidéncia a capacidade de se autoformar, de de- senvolver as préprias faculdades, de progredir intelectual © moralmente em condigies de maxima liberdade em relago a vinculos externos impostos coercitivamente; a segunda exalta, sobretudo, a capacidade de superar isolamento através de varios expedientes capazes de per- * NORBERTO HowDIO de um poder comum nae tirdinico. Das dduas faces do individuo o primeiro observa a que esté voltada para o interior; a segunda, a voltada para o exte- Flor. Trata-se de dois individuos potencialmente diver- 50s: 0 individuo como mierocosmo ou totalidade em si ‘mesma completa, ou como particula indivisivel (étomo), mas diversamente componivel ¢ recomponivel com ou- {ras particulas semelhantes numa unidade artificial (e, portanto, sempre decomponivel). Tanto 0 individualismo liberal quanto 0 individua- lismo democratico nascem, como se disse, em contraste com as virias formas de organicismo, mas através de dois processos diversos: 0 primcitu por gradual corrosio da totalitade, através da qua os individuos, como filhos tornads maiores dle idade, destacam-se do grupo primi: tivo onipotente ¢ oni resernte€ eonuuistam espagos sem- pre mais amplos de aio pessoal; « sexando por dissohi- co interna da compacta unidade global, donde se for- mam pariey independentes unas das outras e todas jun- tas do inteiro, ¢ comegam a ter vida propria, O primeira Drocesso tem por efcito a reduc aos minimos termos do poder piblico, o sexundo 0 reconstitui, mas como soma, de poderes particulares, o que & evidente no contratua- lismo que funda o Estado sobre um instituto juridico, ‘como 0 contrato, proprio da esfera do direito privado, ‘onde se encontram vontades particulares para a forma- ‘do de uma vontade comum, 10. Liberais e democratas no século XIX No continente europeu, a historia do Estado liberal eda sua continuago no Estado democritico pode ter seu inicio fixado justamente na idade da restauragto que, ‘com uma certa énfase ret6rica — no desprezivel no ano do décimo aniversdrio do regime fascista, quando aque- las paginas foram publicadas (1932) —, Benedetto Croce (1866-1952) chamou de idade da “religito da liberdade”, ‘na qual acreditava ver o “periodo germinal” de uma nova civilizacao.” Em sew conceito de liberdade, Croce incluia sem maiores distingdes tanto a liberdade liberal, por exemplo na passagem em que fala de “substituigzo do absolutismo de governo pelo constitucionalismo", quanto a liberdade democritica, ao falar das “reformas noeleitorado e da ampliag3o da capacidade politica”, is quais acrescenta a “libertagao do dominio estrangeiro”” (ou liberdade como independéneia nacional). Mas quan- (00) Benet Cre, Stra d Faro nl Seal Decimeonon, Bat Lees 1982 p21 0 [NORBERTO BOBBIO to.ao “periodo germinal", embora nao desejando chegar as “florestas germanicas” em que teria nascido a liber- dade dos modernos, segundo Montesquieu retomado por Hegel, a teoria e a praxis moderna do Estado liberal ti- ham na verdade comecado na Inglaterra do século XVII, que permaneceu por séculos 0 modelo ideal para a Europsre os Estados Unidos da América. Naquele cadi- tho de idéias, naquele pulular de seitas religiosas e de ‘movimentos politicos que foi a revolugdo puritana, abri- ram caminho todas as idéias de liberdade pessoal, de re- ligido, de opiniao e de imprensa destinadas a se tornarem 9 patriménio duradouro do pensamento liberal. Em seu Gxito sangrento se havia alirmado a superioridade do parlamento sobre o rei, que, embora gradualmente e de ‘maneira alternada, terminaria por impor o Estado repre- sentativo como forma ideal de constituigao, euja efiedcia ainda subsiste (inclusive porque nao foi substituida por nada methor); a doutrina da separacio dos poderes ins- pirou Montesquieu e através dele o constitucionalismo americano © europeu. Se por democracia se entende, como fazemos aqui, a extensio dos direitos politicos a todos 0s cidadaos maiores, entio o ideal democritico teve a sua primeira afirmagdo forte nos anos da great rebellion: foram de fatos os Niveladores que, no Pacto do Livre Povo Inglés (1649), afirmaram pela primeira vez, contra 0 principio dominante (e por dois séculos ‘mantido intangivel) da limitagao dos direitos politicos apenas aos proprietirios, o principio democrético segun- doo qual 4 suprema autoridade da Inglaterra e dos territérios a.cla incorporadas sera residira de agoraem diante ‘numa representagie de pove composta por quatro- conta press, ne) mais, ma eleigio das quais — justa a wer todos os homens maiores de vinte © um anos ... {erRo direito de voto e serdo elegiveis para aquele cargo supremo.” Além do mais, apenas na Inglaterra, a partir da se- sgunda revolugo (1688), a passagem da monarquia cons- titucional & monarquia parlamentar, da monarquia lini tada a democracia alargada, ocorre por evolugdo inter- 1a, sem tremores violentos ou retrocessos, através de um proceso gradual e pacifico. Na Franga, que sob tantos aspectos foi um guia para a Europa continental, o processo de democratizacao fot ‘bem mais acidentado: a tentativa de impé-lo pela forga na revolucao de 1848, rapidamente debelada, levou & instauragdo de um novo regime cesarista (0 segundo im- pério de Napoledo III). Enquanto o titimo regime cesa- rista inglés, a ditadura de Cromwell, estava ja distante, na Franga a répida passagem da repiibliea jacobina ao império napolednico suscitou nos escritores fortes senti- rmentos liberais antidemocraticos, que no morrerio to ‘edo. deixario profundas marcas no debate sobre a pos- sivel e auspiciosa continuidade entre Estado liberal e Es- tado democratico, Junto aos escritores conservadores tornou-se quase um lugar-comum, nao sem reminiseén- cias clissicas e em particular platGnicas, a tese segundo a qual demoeracia e tirania sto as duas faces de uma mes- ‘ma moede ¢ o cesarismo nada mais tinha sido do que a natural e terrivel conseqiiéncia da desordem provocada pelo advento da repiiblica e dos demagogos. Nas dltimas paginas da Democracia na América, Tocqueville (1805- 1859) formulara sua eélebre profecia: Imaginemos sob quais novos aspectos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multi (0) Ver in V. Gabi, Ptnesio « Libert, Twn, ina 1950, p. 15:56. 2 [NORBERTO BOBBIO lo inumerével de homens semethantes © iguai que nada mais fazem que girar sobre si mesmos, ‘em busca de pequenos e vulgares prazeres com que saciar a alma... Acima deles ergue-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de Thes sgarantir a satisfagdo dos bens e de velar por sua sor- te, E absoluto, minucioso, sistematico, previdente e brando.” A passagem ainda mais rapida da efémera repiblica (1848) ao Segundo Império pareceu dar razio ao perspi- az descobridor da demoeracia americana, Por todo o século os processos de liberalizagio © de democratizago continuaram a se desenvolver, ora con: juntamente, ora separadamente, conforme o alargamen- to do sufrigio fosse considerado como uma necesséria integraglo do Estado liberal ou como um obsticulo a0 seu desenvolvimento, um acréscimo ou uma diminuigio de liberdade. A base desse diverso modo de viver a rela- ef entre Estado liberal e democracia, prolongou-se no amplo alinhamento liberal a contraposigao entze um li- beralismo radical, ao mesmo tempo liberal e democrat ‘um Tiberalismo conservador, liberal mas no demo- ico, que jamais renunciou a batalha contra qualquer proposta de alargamento do direito de voto, considerado como uma ameaga a liberdade. Do mesmo modo, no Ambito do amplo alinhamento democratico, passaram a existir democratas liberais e demoeratas ndo-liber cesses segundos interessados mais na distribuigdo do po- der que em sua limitagaio, nas inslitwigses do autogover- no mais que na divisao do goveruo central, mais na sepa- (32) Abi teste a Paaticen Amerign (S-140) (ira. fect Ase Hg ou Poa, Mad Cong), Tesi, Lk ear SMO 1 DEMOERACIA s ago horizontal que na vertical dos poderes, mais na conquista da esfera publica que na cuidadosa defesa da esfera privada. Enguanto liberais democratas © demo- ‘eratas liberais terminardo por confluir uns nos outros na promogio gradual das vérias etapas, mais ou menos nu- _merosas, do alargamento dos direitos politicos até o su- {fragio universal, os democratas puros ficario vizinhos ‘408 primeiros movimentos socialistas, embora numa re- lagao freqientemente de concorréncia, como acontece na Itélia com o partido mazziniano. Entre os democratas puros ¢ 06 liberais conservadores a distancia é tamanha ‘que faz com que sejam reciprocamente incompativeis. Esquematicamente, a relacdo entre liberalismo ¢ democracia pode ser representada segundo estas trés| combinagdes: a) liberalismo ¢ demoeracia so compatt- veis e, portanto, componiveis, no sentido de que pode cexistir um Estado liberal e democratico sem, porém, que se possa excluir um Estado liberal ndo-democratico € um Estado democritico nio-liberal (0 primeito é o dos libe- rais conservadores, o segundo 0 dos democratas radi- cis); b) liberalismo ¢ democracia sao antitéticos, no sen- tido de que a democracia levada as suas extremas conse- «iéncias termina por destruir 0 Estado liberal (como sustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar plenamente apenas num Estado social que tenha aban- donado o ideal do Estado minimo (como stistentam os demoeratas radicais); c) liberalismo e democracia estdo, ligados necessariamente um a outra, no sentido de que pens a democracia esta em condigdes de realizar ple- rnamente os ideais lierais e apenas © Estado liberal pode ser a condiglo de realizagao da democracia. Usando as categorias da moralidade, quanto aa, a relagto é de pos- sibilidade (liberalism vef democracia); quanto a b, a re: lagio € de impessibilidade (liberalismo aur democra- cia); quanto av, & de necessidade (liberalismo © de- s [NORBERTO BoBBIO mocracia). No momento mesmo em que a democracia, como forma de governo, se conjuga tanto com o libera- lismo quanto com o socialismo, também a relagio entre democracia e socialismo pode ser representada de igual ‘modo como relagao de possibilidade ou de possivel coe- xisténcia, de impossibilidade (por parte dos democratas liberais ou, no extremo oposto, dos defensores da ditadw- ra do proletariado), ou de necessidade, como nas doutri- ‘nas © nos movimentos social-democratas, segundo os uais apenas através da democracia se realiza o socials. ‘mo € apenas no socialismo 0 processo de realizagio da ‘democracia chega ao seu pleno cumprimento. 11. A tirania da maioria As duas alas do liberalismo europeu, a mais conser: vadora e a mais radical, sio bem representadas, respect vamente, pelos dois maiores escritores liberais do século passado, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill (1807- 1873). Contemporneos (0 primeiro nascido em 1805 ¢ 0 segundo em 1807), chegaram a se conhecer e se estima- ram. Mill escreveu na London Review, érgio dos radicais ingleses, uma longa resenha do primeiro volume da De- ‘mocracia na América.” Na obra sobre a democracia re- resentativa, publicada quando 0 amigo jé estava morto (1861), recorda aos seus leitores aquela great work." Da sua parte, Tocqueville, ao receber jé moribundo 0 censaio sobre a liberdade, escreve ao autor: “Nao duvido ue voe8 sinta a todo instante que neste terreno da liber: (29) J. S. Min, *Tsueie om Demracy in Ameria in London ‘Review, jane, INS 18, pp. AS 139 (rad er, Cotansnco on ‘Nipts, Guia 1971p 103). (8) 1.8. Mil. Cini om Reprientaive Governent in Cob tated Papers of Joker Mul Landes, Unverty 8 Torta Pree Routledge an Kepan Plott ITY, vl 9p a8, % NORBERTO BORBIO {dade nao possamos caminhar sem nos darmos mo".* Mesmo considerando a diferenga de tradigbes, de cultura de temperamenio, a obra dos dois grandes escritores representa bem o que de comum havia nas duas maiores tradiges do pensamento liberal europeu, a inglesa e a francesa. Tocqueville havia dedicado anos de estudo e de reflexfo a democracia de uma sociedade nova e projeta- da para o futuro, como a americana; Mill, de outra par- te, menos insular do que muitos de seus compatriotas, conhecia 0 pensamento francés, a comegar de Comte (1798-11 Tocqueville foi antes liberal que democrata. Estava firmemente convencido de que a liberdade, principal- ‘mente a liberdade religiosa e moral (mais que a econ6mi- ca), era o fundamento ¢ o fermento de todo poder civil. Mas havia compreendido que o século nascido da revolu- slo caminhava impetuosa c inexoravelmente em diregio A democracia. Era um processo incontrolivel. Na intro- ug & primeira parte (Livro 1) da sua obra (1835) per- guntou-se Por acaso existe alguém capaz de pensar que a de- mocracia, depois de ter destruido 0 feudalismo e veneido os reis, retrocederd diante dos burgueses e dos ricos? Seré possivel que interrompa sua marcha justamente agora que se tornou tio forte e seus ad- versdrios tio fracos?™ ‘Tocqueville explicava que o seu livro havia sido es- crito sob a impressio de uma espécie de terror religioso perante a “revolugae irnsistivel” que, sobrepujando LIBERALISMO & DEMOCRACIA s todo obsticulo, continuava a avangar em meio as ruinas por ela mesma produzidas. Por toda a vida, apés a via- gem aos Estados Unidos em que procurara compreender as condigdes de uma sociedade democrétiea num mundo to diverso do europeu ena qual pudera aprender ‘a imagem da propria democracia”, foi assediado pela per- gunta: "Poderé a liberdade sobreviver, e como, na socie- dade democritiea?” Na linguagem de Tocqueville “democracia” signifi- ca, por um lado, como forma de governo em que todos participam da coisa pablica, o contrario de aristocracia; por outro lado, significa a sociedade que se inspira no ideal da igualdade e que, ao se estender, acabard por submergir as sociedades tradicionais fundadas sobre uma ordem hierarquiea imutivel. A ameaga que deriva dda democracia como forma de governo é para ele, como de resto para o amigo John Stuart Mill, @ tirania da ‘maioria: 0 perigo que a democracia corre como progres- siva realizacao do ideal igualitario é o nivelamento, cujo efeito final € 0 despotismo. Sao duas formas diversas de tirania, e, portanto, ambas embora de maneira diversa, slo a negagio da liberdade. O fato de que na obra de Tocqueville esses dois significados de democracia jamais tenham sido muito bem distinguidos pode induzir o lei- {or ajuizos diversos, se ndo opostos, a respeito da postu- ra tocquevilliana diante da democracia. Considerada a democracia no como conjunto de instituigdes das quais ‘a mais caractetistica é a participagao do povo no poder politico, mas como sistema que exaita o valor da igualda- de no s6 politica como social (igualdade das condighes em prejuizo da liberdade), Tocqueville se revela sempre ‘um eseritor liberal e nio-democritico. Jamais demonstra ‘a menor hesitagtio em antepor a liberdade do individuo & igualdade social, wa medida em que est convencido de que 0s povos democriicos, apesar de terem uma inclina- ss NORBERTO BOBBIO ‘cio natural para a liberdade, tém “uma paixto ardoro- el" pela igualdade e em- bora ‘“desejem a igualdade na liberdade” sto também ‘capazes, se no podem obté-la, de "“desejarem a igual- dade na escravidio”."" Estto dispostos a suportar a po- breza, ndo a aristocracia. A tirania da maioria Tocqueville dedica 0 capitulo sétimo da segunda parte do Livro I de A Democracia na América. O principio de maioria é um principio iguali- trio na medida em que pretende fazer com que prevale- ‘¢a.a forga do miimero sobre a forca da individualidade singular; repousa sobre o argumento de que “existem ‘mais cultura e mais sabedoria em muitos homens reuni- dos do que num s6, no nmero mais do que na qualidade dos legisladores. E a teoria da igualdade aplicada a inte- ligéncia”. Entre 0s efeitos deletérias da onipoténcia da maio- ria, estio a instabilidade do Legislative, a conduta fre- giientemente arbitréria dos funcionarios, o conformismo das opinides, a redugdo do némero de homens ilustres na ‘cena politica. Para um liberal como Tocqueville, 0 poder € sempre nefasto, nao importa se régio ow popular. O problema politico por exceléncia é o relativo no tanto @ quem detém © poder quanto ap modo de controlé-lo & limité-lo, O bom governo nao se julga pelo nimero gran- de ou pequeno dos que o possuem, mas pelo mimero ‘arande ov pequeno das coisas que Ihe €licito fazer. A onipoténcia é em si coisa mi e perigosa... Nao hit sobre a terra autoridade tao respeitavel em si mes- ‘ma, ou revestida de um dlireito tao sagrado, que eu deixaria agir sem controle e dominar sem obsticu- LIBERALISM F HE MICRACIN * los, Quando vejo concedidos 0 direito e a faculdade de tudo fazer a uma poténeia qualquer, seja cla povo ou rei, democracia ou aristocracia, exercida ‘numa monarquia ou numa repiblica, afirmo: esti ali o germe da tirania.” ‘Tocqueville eve aguda compreensio da inconciliabi lidade em siltima instdneia do ideal liberal — para o qual fo que conta é a independéncia da pessoa na sua esfera ‘moral e sentimental — com o ideal igualitario, que dese ja uma sociedade composta tanto quanto possivel por individuos semethantes nas aspiragBes, nos gostos, nas necessidades e nas condiges. Jamais teve muitas ilusdes 1 respeito da sobrevivéncia da liberdade na sociedade democritica, embora nunca se tenha resignado a aceitar para os seus contemporiineos e para as geragoes futuras ‘6 destino dos servos satisfeitos. Sio memordveis as iti ‘mas paginas do segundo livro da sua “grande obra” (pu- blicado em 1840), nas quais sente que se aproxima 0 ‘momento em que a democracia iré se traduzir em seu ccontrario, por portar em si os germes do novo despotis ‘mo, sob a forma de um governo centralizado e onipresen- te. A sugestiio da democracia dos antigos desaprovada por Constant, e, portanto, da onipotente vontade geral de Rousseau, faz com que ele afirme: [Nossos contempordneos imaginam um poder tinico, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadios; com binam centralizagao ¢ soberania popular. Isso thes da um pouco de alivio, Consolam-se do fato de es- tarem sob tutela pensando que eles mesmos escothe> ‘ram os tutores... Num sistema desse género, 0s ci- (09 Tea. tp 28 « [NORBERTO BoBBIO dadios saem por um momento da dependéncia, para designar 0 seu patrao, ¢ depois nela reingres- sam. Nio, a democracia, entendida como participagao direta ou indireta de todos no poder politico, nao é por si ‘6 remédio suficiente contra a tendéncia a se constitut- rem sociedades cada vez menos livres: “Ninguém jamais far acreditar — exclama no final — que um governo liberal enérgico e sibio possa sair dos suérdgios de um ovo de servos". Os remédios, que Tocqueville acredita existirem e nio se cansard de propor, s8o 0s classicos romédios da tradigdo liberal, acima de tudo a defese de algumas liberdades individuais, como a liberdade de imprensa, aliberdade de associagdo, ¢ em geral a defesa dos direitos do individuo que os Estados democraticos tendem a desconsiderar em nome do interesse coletivo, e, ortanto, o respeito as formas que garantam ao menos a igualdade perante o direito e, por fim, a descentral zaglo. Pela mesma razdo porque foi antes liberal que de- ‘mocrata, Tocqueville jamais chegou a ser tentado pelo socialismo, pelo qual manifestou em varias ocasives a mais profunda aversdo. Pode-se ser democrata e liberal, democrata e socialista, mas 6 muito dificil ser ao mesmo ‘tempo liberal e socialista. Radicalmente nio-democriti- co quando deve confrontar a democracia com o sublime ‘deal da liberdade, Tocqueville torna-se um defensor da democracia quando o adversario a ser refutado & o socia- lismo, no qual vé a confirmacaio do Estado coletivista que daria vida a uma sociedade de castores e no de homens livres. Num discurso sobre » direito ao trabalho proferi- (40) Trai thy wt (41) Tra ipa LIBERALISMO K: EMOCRACIA, o do na Assembigia Constituinte, em 12 de setembro de 1848, evoca e exalta a democracia americana, observan- do, entre outras coisas, ser ela completamente imune 20 perigo socialista e afirmando que democracia e socialis: ‘mo nao sio de fato solidérios: “Sao coisas no apenas diferentes mas contririas”. Tém em comum uma tinica alavra, a igualdade, “Mas estejam atentos & diferenca, conclui: a democracia deseja a igualdade na liberdade & © socialismo deseja 2 igualdade na moléstia e na servi dio."* (42) Alesis de Thequvile, Diconrs urbe Réolton Sci (1848) (al. 3, 1p. 28, 12. Liberalismo e utilitarismo ‘Ao contrario de Tocqueville, Mill foi liberal ¢ demo: crata: considerou a democracia, e em particular 0 gover- no representative (que ele também chamava de “governo popular”), como o desenvolvimento natural ¢conseqien- {e dos prineipios liberais. Nao que ele ndo percebesse os males de que sofria 0 governo democratico. Mas bus- cou-thes os remédios com maior confianga num futuro de pprogresso gradual ¢ necessério. Em seus gitimos escritos considera até mesmo como mio incompativeis o libera- lismo e o socialismo. Suas duas principais obras de teor politico (ele foi, sobretudo; um filésofo e um economista) So intituladas, respectivamente, Sobre a Liberdade (1859) e Consideragées sobre 0 Governo Representative (1863), Tocqueville foi um historiador e um eseritor pol tico; Mill foi também um tediri da politica e, bem mais do que seu admirado amis franets, teve a voracdo e 0 talento do reformacor Como teérico, rometende se a filosofia utilitarista de seu mestre nae, levemy Rentham (1748-1832), pOs a outrina feral wobte an fndamento diverso do dos es- LIBERALISMO 1 DEMOCRACIA o critores precedentes, danclo vida (ou, para dizer melhor, uma notdvel sustentagio) & corrente do liberalismo que ser depois largamente prevalecente. A doutrina prece- dente havia fundado o dever dos governantes de restrin- Bir 0 exercicio do poder piiblico sobre a existéncia de di- reitos naturais, por isso invioliveis, dos individuos. Num escrito de 1795, Anarchical Fallacies, Bentham havia desfechado um violento ataque contra as Declaragoes dos direitos franceses, pondo em relevo com corrosiva ironia, sua debilidade filosofica, sua inconsisténcia logica seus equivocos verbais, além de sua total ineficdeia pric tica. A propésito da declaragio de que todos os homens nnascem livres, exclama: “Absurda © miserével boba- em!” E explica: “Nao existe nada de semethante a di- reitos naturais, nada de semelhante a direitos anteriores as instituigdes de governo, nada de semelhante a direitos naturais opostos ou em contradi SEm contraposicdo a secular tradigio do jusnaturalismo, Ben- tham formula 0 “principio de utifidade”, segundo o qual 0 tinico critério que deve inspirar © bom legislador é 0 de emanar leis que tenham por efeito a maior felicidade do maior némero. O que quer dizer que, se devem existir limites ao poder dos governantes, eles ino derivam da pressuposigdo extravagante de inexistentes e de modo al- gum demonstraveis direitos naturais do homem, mas da consideracio objetiva de que os homens desejam 0 prazer cerejeiiam a dor, e em conseqincia a melhor sociedade é a que consegue obter o maximo de felicidade para 0 ‘maior ntimero de seus componentes. Na tradigio do pen- samento anglo-saxilo, que certamente 6 a que fornecca mais duradoura e coerente contribuigio ao deser,volv mento do liberalismo, a partir de Bentham ulilitaris: (49) Jere Bentham, Anarhia Palais, Phe Works, 3 Bowing o NORBERTO BoRBIO ‘mo e liberalismo passam a caminhar no mesmo pas: 80, €filosofia utilitarista torna-se a maior aliada teérica do Estado liberal. A passagem do jusnaturalismo ao ut litarismo assinala para o pensamento liberal uma verda- adeira crise dos fundamentos, que aleangaré o renova do debate a respeito dos direitos do homem desses silt ‘mos anos, Mill éum utilitarista declarado.e convieto: A doutrina que admite como fundamento da mora- lidade a utilidade ou o principio da maxima felic dade sustenta que as ages humanas slo justas na ‘medida em que tendem a promover a felicidade, injustas na medida em que tendem a promover o contririo da felicidade.* E entende a felicidade benthamianamente, como 0 razer ou a auséncia da dor, a infelicidade como dor ou a Privagio do prazer. Por outro lado, enquanto doutrina moral que critica e refuta toda outra forma de funda- mento da obrigacio moral que niio seja a que faz refe- réncia a0 prazer e & dor, o utilitarismo se preocupa no com a utilidade do individuo isolado com respeito a dos ‘outros individuos, mas com a utilidade social, niio com “a felicidade singular de quem age, mas com a felicidade de todos os interessados”, tal como pode ser avaliada por tum “espectador benévolo ¢ desinteressado”.* Conse- gientemente, © em coeréncia com a critica benthamiana dds direitos naturais, Mill rejita a tentagdo de recorrer & doutrina jusnaturalista para fundar e justficar a limita: ‘920 do poder do Estado, Afirma expressamente na intro- 43,8, Mi, tra INI Grad. B. Masai fore) Boon, Capel 9 (4S) Tea ity ot LIBERALISM 11H MUCRACIA 6 dugdo a Sobre a Liberdudle, onde apresenta e propae os Principios inspiradores da sua doutrina: “E oportuno declarar que renuncio a qualquer vantagem que para ‘minha argumentagao poderia derivar da coneepsa0 do direito abstrato como independente da utilidade”, pois “considero a utilidade como o critério tiltimo em todas as iuestdes éticas”, desde que se trate “da utilidade em seu sentido mais amplo, fundado sobre os interesses perma- nentes do homem enquanto progressivo”.* Seguindo a trilha da tradieao do pensamento libe- ral, a liberdade pela qual se interessa Mill é a liberdade negativa, ou seja, a liberdade entendida como situagio nna qual se encontra um sujeito (que tanto pode ser um individuo quanto um grupo que age como um todo tini- 0) que nao esta impedido por qualquer forga externa de fazer aquilo que deseja e no esta constrangido a fazer aquilo que nao deseja. Trata-se para Mill, entdo, de formular um principio & base do qual sejam estabeleci- dos, por um lado, 0s limites nos quais é licito ao poder priiblico restringir a liberdade dos individuos; por outro lado, e correspondentemente, o ambito no qual os indi Viduos ou 0s grupos possam agir sem encontrar obs ticulos no pe fer do Estado; trata-se, entlo, em oulras alavras, de delimitar a esfera privada com respeito & Pablica de mode que o individuo possa gozar de uma liberdade protegida contra a invasao por parte do poder do Estado, liberdade essa que devera set a mais ampla ossivel no necessario ajustamento do interesse indi {dual ao interesse coletivo. O principio proposto por Mill 60 seguinte: “A humanidade esta justficada, individual ou coletivamente, a interferir sobre a liberdade de ago (46) 1.5, Mil, Om Liberty (1856, n Caled Papers of abn Stunt Mit. yl 18, p.224Crad iG. Gholi M. Monaco (orgs) Mise NSsgpinoe 1941p 39, 6 NORBERTO BOBBIO dde quem quer que seja apenas com o objetivo de se pro- teger”, razio pela qual ‘‘o tinico objetivo pelo qual se ode exercer legitimamente um poder sobre qualquer ‘membro de uma comunidade civil, contra a sua vontade, € 0 de evitar danos aos outros”.*” Segue-se dai que “se alguém comete um ato que prejudica outros, tem-se en ‘#0 um motivo evidente para puni-lo com sangdes legais ‘ou, no caso em que seja de incerta aplicagio, com a de- saprovagao geral © objetivo a que se prope Mill ao enunciar esse Principio é 0 de limitar 0 direito do Estado de restringir a esfera da liberdade individual — na qual o individuo ode escother entre virias alternativas, e de induzir os idadios a fazer ou nao fazer algo contra a vontade deles — apenas a esfera das acdes externas (no sentido kan- tiano da palavra), isto é, &s ages com as quais um indivi duo, para satisfazer um interesse proprio, pode interferir no interesse de um outro; e, correspondentemente, de salvaguardar o singular da ingeréncia do poder piblico em todas as agives que dizem respeito apenas a ele, como a esfera da consciéncia interior e da liberdade de pensa- ‘mento e de opiniao, da liberdade de agir segundo os pré. prios gostos © os proprios projetos, da liberdade de se associar com outros individuos. No caso de se ter conven cionado chamar de paternalismo toda doutrina politica ue atribui ao Estado o direito de interferit na esfera in- terior do individuo com base na consideragio de que todo individuo, inclusive o adulto, precisa ser protegido {das proprias inclinagdes e dos préprios impulsos, entio o liberalismo se revela ainda uma ver em Mill, como em Locke © em Kant, a doutrina antipaternalista por exee. Jencia, na medida em «que parte do pressuposto ético se- LIBERALISMO E DEMOCRACIA o gundo o qual, para lembrar uma forte expresso milli nna, “cada um é 0 dinico guardiao auténtico da prépria satide, tanto fisica quanto mental ¢ espiritual”. Nao es- tou afirmando que nao existam elementos paternalistas também em Mill (como de resto em Locke e em Kant). Tenha-se em mente o fato de que, na definigio acima re- ferida, Mill limita o proprio assunto aos membros “de uma comunidade civil”, civilizada: o prinefpio da liber- dade vale, portanto, apenas para individuos na pleni- tude de suas faculdades. Nao vale para os menores de ‘dade, ainda sujeitos & protecio paterna, e no vale para as sociedades atrasadas, que podem ser em. bloco consi- deradas como formadas por menores de idade, Sobre esse Gltimo ponto a opiniso de Mill é muito clara: “O despotismo é uma forma legitima de governo quando se esta na presenga de barbaros, desde que o fim seia 0 pro- aresso deles © os meios sejam adequados para sua efetiva obtengdo".° A parte a subordinada concessiva (mas {quem julga o fim e quem julga a adequagio dos meios 20 fim?), tal opiniao de Mill em nada difere da tradicional Justificagao dos regimes despoticos, que j4 conforme Aristoteles eram vistos como adequados aos povos natu- ralmente servos. (69) Trad. tp ($0) Tra. op 13. A democracia representativa Tanto quanto Tocqueville, Mill também teme a ti- tania da maioria e a considera wm dos males dos quais @ sociedade deve se proteger. Isso, pordm, 180 0 leva a re- rnunciae ae governo democritica. No livro sobre a demo- cracia representaliva, publicado poucos anos ap6s 0 en- saio sobre a liberdade, pde-se 0 clissico problema da me- Ihor forma de governo e responde que ela &, precisa- mente, a democracia representativa, que constit menos nos paises com um certo grau de civilizagio, 0 prosseguimento natural de um Estado desejoso de asse- ‘gurar aos seus cidados o maximo de liberdade: “A par- ticipagao de todos nos beneficios da liberdade € o con- ccito idealmente perfeito do governo livre”. Tal maxima € confortada pelo seguinte comentiri: Na medida em que alyuws, ni importa quem, sio cexclufdos desses heneficins, seus interesses sto dei- xados sem as ystramliay concedidas aos demais, fi- ‘cand thes diasinial as possibilidades ¢ os estima: los 4 {etiam para a aplicagao das energias em prol do proprio bem e do bem da comunidade.* Trata-se de um comentdrio que mostra com grande clareza 0 nexo entre liberalismo e democracia ou, mais precisamente, entre uma determinada concepgao de Es- tado e os modos ¢ as formas de exercicio do poder capa- 22s de melhor assegurar a sua atuagao, ‘afirmagio segundo a qual o perfeito governo livre € aquele em que todos participam dos beneficios da li- berdade leva Mill a se fazer promotor da extenstio do sufrégio, sobre a trilha do radicalismo de origem ben- thamiana de que nascera a reforma inglesa eleitoral de 1832. Um dos remédios contra a tirania da maioria est exatamente no fato de que, para a formagao da maiori participem das eleigées tanto as classes abastadas (que sempre constituem uma minoria da populace que tende naturalmente a prover aos prprios interesses exclusivos) {quanto as classes populares, desde que paguem um im- posto por menor que seja. A participagao no voto tem lum grande valor educativo: é através da discussio poli- tica que 0 operdrio (the manual labourer), cujo trabalho € repetitivo e cujo ambiente de fabrica 6 angustiante, consegue compreender a relago entre eventos distantes € © seus interesse pessoal ¢ estabelecer relagdes com cida- aos diversas das suas cotidianas relagdes de trabalho, tornando-se, assim, membro consciente de uma grande comunidade: "Numa nagio civilizada ¢ adulta nto deve- riam existir nem périas nem homens ineapacitados, ex ceto por culpa propria”. 0 sufrigio universal, po |, &um ideal limite, do GD Opvirsy tat 1 Representative Goverment it Ca » NORBERTO BOBBIO ual as propostas millianas ainda esto muito distantes: além dos falidos e dos devedores fraudulentos, Mill ex- lui do direito de voto os analfabetos (pregando o ensino estendido a todos: ““o ensino universal deve preceder 0 ‘sufrgio universal”) e os que vivem de esmolas das pard- ‘auias, com base na consideracto de que quem nao paga ‘um pequeno imposto nao tem o direito de decidir © modo pelo qual cada um deve contribuir para as despesas pi- blicas. Por outro lado, Mill é favoravel a0 voto feminino (contrariamente a tendéncia prevalecente nos Estados europeus, que em geral chegaram a extensio do voto aos analfabetos antes que as mulheres), com base no argu- ‘mento de que todos os seres humanos tém interesse em ser bem governados e, portanto, todos tm igual necessi dade de voto para assegurar a parte dos beneficios que cabe a cada membro da comunidade. Invertendo o ar- gumento habitual dos antifeministas, Mill sustenta que “se houver alguma diferenea, as mulheres tém m ide do voto do que os homens, ja que, sendo fi ‘camente mais frégeis, dependem para sua protegio mui: tomais da sociedade e das leis, ‘O segundo remédio contra a tirania da maioria con- siste, para Mill, numa mudanga do sistema eleitoral, isto , na passagem do sistema majoritério — pelo qual todo colégio tem 0 dircito de conduzir apenas um eandidato e dos candidatos em disputa aquele que recebe a maioria os votos (niio importa se em um ou dois turnos) vence © os demais perdem — para o sistema proporcional (que Mill acothe seguindo a formulagio de Thomas Hare, 1806-1891), que assegura uma adequada representagao também is minorias, em proporvio aos votes recebidos ou num Gnico coléyio nacional ou num colégio amplo 0 suficiente para permitir 4 vleigio de varios representan- tes, Ao aresentar as vantages as qualidades poses elmer nmr anne nit contrriana pesenga de uma minora aguerrda capa de impedir a matora de abusar do proprio poder e, por tant, democracia de degenerar. Mil enconta, asim, casio para fever un dos assis elgio a antago. timo que o pensumento liberal amas registoo, sma passage ent que se Pode condensar a escla da Gea bea Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir semllo aquelas em que se desenvolveu um contflito entre o poder mais forte e alguns poderes rivas; en tre as autoridades espirituais e as temporais; entre as classes militares ou territoriais ¢ as trabalhado- as; entre rei e © povo; entre os ortodoxos e 0s re- formadores religiosos."* Nao obstante a plena aceitagio do principio demo- critica e 0 elogio da democracia representativa como a ‘melhor forma de governo, o ideal da democracia perfeit esta ainda bem longe de ser aleangado. Quase para ate nuar 0 efeito inovador do sufrigio ampliado, Mill propde © instituto — que acabou por nio ter sucesso — do voto plural, segundo o qual, se é justo que todos votem, no esté affrmado que todos devam ter direito a um ‘nico voto: segundo Mill, 0 voto plural caberia no aos mais ricos, mas aos mais intruidos, com a reserva de poder ser atribuide aos que o solicitem e passem por um exame, Nao por acaso nas constituigBes modernas se afirma que © direito de voto deve ser “igual” (como no artigo 48 da cconstituigao italiana vigente) G0 Op. cy tH 14. Liberalismo e ____democracia na Italia Com todos os tmitesinerentes a wm teratsmo ainda frtemente impregnad de patra fe ane democraciaincompita en gulls, toes se he repesion um fecundoenontro ene penance hy Bera epensantentodemeritce Nigobstanc en Mae, ta dents ontimaram, eam det ca Aa ae hoje, ada vida «movimento eaahon volts difrenciads, conraosto conform ay Drincial sea a erescenteimasto do Eade, nero ta pls iiterais ~ nto sem rar aincin do proceso de democratzagos ow ererseee Gia de gargs plticase de forts desigualdete saves, interpetadas pele democrats ate Sn rexio ~ como uma coneaiéia da lntdlo oon an fauele proceso de demcatvaio ocrene dor ebeae cals quel foram espns pis Bet eon Nese fentd,acontapaitn cnee ial craia amb pe smorada de oe tretamente ttn tes cemimice do aan como uma eonse- LIBERALISMO I: DEMOCRACTA a autocriticas; 0 desenvolvimento da doutrina democriti cca esté mais estreitamente ligado a uma eritica de cariiter politico ou institucional. O certo & que por todo o século passado liberalismo e democracia designam doutrinas ‘movimentos antagénicos entre si: os liberais, que defen- ‘dem a conquista ou a exigéncia dos direitos de liberdade, dde que € portadora a idade da restauragdo, desconfiam das nostalgias revolucionérias dos democratas; os de- ‘mocratas, que entendem nao ter se completado 0 proces- so de emancipacio popular iniciado com a Revolug8o Francesa e interrompido com a restauragio, rejeitam os liberais como o partido dos moderados. Antes da forma- 40 dos partidos socialistas, os parlamentares se divi diam em dois alinhamentos contrapostos, 0 partido da conservacio ¢ 0 partido do progresso, correspondentes, rosso modo, a contraposigio entre liberais e democra- tas, sendo considerada como a dialétiea politica mais correla aquela que se desenrola alternadamente entre es- ses dois alinhamentos, embora na pitria do parlamentoe do bipartidarismo, a Inglaterra, os dois partidos contra- postos fossem chamados respectivamente de conservador € liberal (mas 0 conteiido dos programas dos partidos ‘muda com o passar do tempo, mesmo que nio mude 0 nome deles). Para uma gradual convergéncia entre a tra- digdo liberal e a democritiea contribuem precisamente, primeiro, a formagio dos partidos socialistas e, ainda ‘mais, 0 aparecimento, no séeulo seguinte, de regimes nem liberais nem democraticos, como os regimes fascis- tas, e do regime instaurado pela revolugao de outubro na Riissia: diante ca novidade representada pelos Estados totalitirios do seule vinte, as diferongas originérias entre liberalismo © democracia tornar-se-8o historiea politicamente irrelevantes culo politico italiano da segunda metade ‘que dle resto reflete as linhas gerais do ™ NORBERTO oRRIO Pensamento politico europeu, especialmente o francés, a contraposigao entre escola liberal ¢ escola democritica & bastante clara, especialmente em decorréneia da presen $8 ativa de um escritor e agitador politico como Mazzini (1805-1872); sempre incluido, mesmo fora de nosso pat entre 0s expoentes mais representativos das correntes Semocriticas que agitam as nagdes européias em luta contra as velhas autocracias. Expondo sua interpretagio da obra literdria de Mazzini, Francesco De Sanetis (1817-1883) tragou as nnhas mestras da distingdo entre a escola liberal e a escola democritica, consideradas como as duas correntes vivas do espitito publica italiano no século XIX. Embora pon, ddo.em destaque sobretudo o aspecto literdrio, De Sanctis observou que a semelhana entre ambas estava tio fato dle que nelas se tinham misturado fins politicos, morais, ‘eligiosos, donde, ao eontrario das escolas meramente fi. \eririas, elas terem agido sobre toda a sociedade itatiana € nio s6 sobre 0 restrito cireulo dos literatos. De resto, 0 proprio De Sanetis, dedicando uma parte de seu curso a Mazzini, julgava estar fazendo obra itil ao dever de edu. cago nacional, na qual inciuia a formacio de uma jo. vem esquerda capaz de assegurar uma nova diregao 20 pais, “uma nova postura diante das classes populares, ues novo conceito do que & nacional, diverso do da dircita historica, mais amplo, menos exclusivista, menos poli. ialesco".* Interpretava a escola liberal como aquela Que havia rejeitado a liberdade como fim ditimo, da qual se tinham feito divulgadores os flésofos do século XVIII, zmestres da revolugdo, e se contentara com a liberdade com meio ou como método ou “procedimento”, com a 'berdade apenas formal, a qual eada um podiaservir-se ara os préprios fins aa, 850 97 LIBERALISMO H DEMOCRAGTA 8 Nesta escola liberal —- comentava — entram ho- men com fins os mais vernon, somo se esteem, sobre terreno comum: os elereais que querem livre a Igreja, os conservadores que desejam a liberdade das classes superiores, os democratas que querem a lberdade das classes inferores, os progressstas que bbuseam seguir em frente sem forgar a natureza. contr, etna a xl denen como sie umn a una no Sate tov qual nos pases mai arangados, abe ia Sead a's por qua lerade no gr pens prone ou mods nas “oa Ec Onde existe desigualdade, a liberdade pode estar es ctita nas les, no estatuto, mas nao é coisa real: nio livre o camponés que depende do proprietario, nao 6 livre o empregado que permanece submetide a0 Atrio, nfo € livre o homem da gleba sujeito ao tra- batho incessante dos campos." fi is conduzem & Conclufa afirmando que essas idéia m a res publica, que “no &0 governo deste ov daquele, nao é ‘0 poder arbitrério au dominio de classes: 6 0 governo de todos”. Um Estado que considera a liberdade como meio pode ser neutro, indiferente ou ateu. Nao pode ser assim o Estado de todos, ares publica precisamente, que ($6) Franco De Santi, Masi fa Sela Domocraric, Tori GD Onviner. (58) Op ancy Ht (58) Op cinspy 10H % NORBERTO BoBBIO deve se propor o objetivo da educagdo nacional, e isso especialmente apés uma unificagdo rapida e foreada- Para permanecer na Italia, esse persistente contras- te pode ser eficazmente representado pela contraposicay ‘entre os dois maiores protagonistas do nosso risorgi- ‘mento*, Cavour (1810-1868) © Mazzini. Um dos pri- ‘meiros autores de que 0 jovem Cavour absorve certos rinefpios desde entao jamais abandonados foi além de Constant, Bentham. Dele Cavour extraiu a idéia da in. sustentabilidade das teorias jusnaturalistas ¢ uma forte convieeio a respeito da bondade do utilitarismo, 20 pon. to mesmo de se considerar com visivel prazer um “ben. thamiano endurei"*.** Num de seus escritos doutrind. ios mais completos, Os Sistemas e a Democracia. Pen. ‘samentos (1850), Mazzini faz de Bentham, com sua dou. {rina utilitarista, o maior responsével pelo materialismo imperante nas doutrinas democriticas e socialistas, de Saint-Simon (1760-1825) aos comunistas, mas nio ita expressamente nem Marx (1818-1883) nem Engels (1820-1895); além do mais, chama Bentham de “chefe ¢ legislador da escola” que compreende todos os “adora. ores do itil". A doutrina do Gtil Mazrini contrapoe a idéia do dever e do sacrificio pela santa causa da huma. nidade: Nio— exclama —, o interesse e o prazer nto so os meios com que a democracia poder transformar 0 (9) Risoreiment: pect isticico eomprendido, grosio modo, entre fia do séaloXVIIF© 180, no gua mpeg 9 pes oe basen, So Estado ular italiano OT) (G0) Extra cap 1840, Bari, Latere, 180. (*) Endure any seamen. (NT) {60 G. Mavi 1 Sasa te Demoereia, Pern Mera, Galasso), Boks, hun, Pat re Toros eR. Ronen, Cour eine Temp 1810. wins — endueid,empederi, i LIBERALISMO E DEMOCRACIA 7 elemento social; uma te6rica do atil nao faré com que 0s confortos da riqueza sintam os sofrimentos das classes pobres e a urgente necessidade de um remédio.” Cavour & um admirador de Tocqueville, com quem divide a apreensio pela marcha inexoravel da humani- dade para a democracia. Tocqueville, ministro do Exte- rior da repiiblica francesa de junho de 1849, dé a palavra

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