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Relacionando os conceitos de texto e textua- lidade, poder-se-ia dizer, em principio, que a uni- dade textual se constréi, no aspecto sociocomu- vo, através dos fatores pragmaticos (inten- cionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, in- formatividade e intertextualidade); no aspecto se- mantico, através da coeréncia; e, no aspecto for- mal, através da coesao. leirg, parte no plano sociocomunicativo, parte no plario semantico-conceitual. Foi dessa maneira que os considerei neste trabalho. CAPITULO 2 (COMO AVALIAR A TEXTUALIDADE? 1. Questdes preliminares Um dos pontos-chave da lingiiistica textual €a discussao sobre o que faz de um texto um tex- to, isto é, em que consiste a esséncia de um tex- to, que propriedade distingue textos de nao- textos. A essa discussdo grande ntimero de estu- dos recentes responde apontando a coeréncia co- mo fator fundamental da textualidade e, em fun- Ao dessa resposta, tenta esclarecer o que é e de que é feita a coeréncia de um texto. A conceitua- Ao teérica, que busca estabelecer em que nivel se situa e com que elementos lida a coeréncia, se mostra, muitas vezes, fruto da andlise empirica, empenhada em descobrir que caracteristicas usualmente apresentam os textos coerentes. Es- 7 sas caracteristicas s4o chamadas por-alguns de condigées ou requisitos de coeréncia, porque, se um texto coerente tem qualidades especificas que © distinguem dos incoerentes, pode-se afirmar que, para ser coerente, um texto precisa apresen- tar tais qualidades. Assim, a observagdo empiri- ca possibilita a descrigdo, que, por sua vez, per- mite a formulacéo de critérios para a andlise textual. Neste trabalho, tomo como ponto de parti- daa descrigao fornecida por estudiosos da ques- tAo € utilizo como instrumento critérios de ava- liagdo que considerei adequados ao modelo ted- rico adotado. Para avaliar a coeréncia ea coeséo das redagoes do corpus, tomei como base as cha- madas “meta-regras” formuladas por Charolles (1978) ¢, para os demais fatores de textualidade, orienteime pelo que propoem Beaugrande e Dressler (1983). Antes de apresentar e discutir os critérios de avaliacdo adotados, é preciso deixar claros alguns pontos. Primeiro quero registrar que a intengdo aqui nao é; de maneira alguma, prescritiva, Nao se esta aqui fornecendo mais uma receita, ou uma nova ista de macetes, & qual as redagées escolares de- vam se conformar para obter boas notas ¢ se apro- ximar do modelo que garante aprova¢o no vesti- bular. 0 que se pretende é, a partir de um quadro de caracteristicas identificadas em textos que “fun- cionam’”, construir um quadro adequado para bali- zar a avaliacao do funcionamento de outros textos. Em segundo lugar, quero delimitar a aplica- bilidade dos critérios a serem adotados. Confor- 18 me acertadamente observa Widdowson (1981: 56), aaceitabilidade de um texto se prende a sua iden- tificago como “um emprego normal da lingua”. Ora, em situagdes diferentes, sio diferentes as ex- pectativas quanto ao que seja “normal” e aceité- vel. Assim, os critérios aplicaveis ao corpus des- ta pesquisa podem nAo ser adequados para o jul- gamento da textualidade de discursos de outro tipo e construidos com outros objetivos. Os tex- tos por mim analisados, por exigéncia da natu- reza e do programa do concurso vestibular, se re- vestem de peculiaridades que nao se podem dei- xar de levar em conta: so textos escritos, for- mais, de fungdo referencial dominante, compos- tos de introducao, desenvolvimento e conclusio, através dos quais os candidatos buscam demons- trar sua habilidade de expor idéias e argumen- tar em torno de determinado problema. Os requi- sitos a que esse tipo especifico de texto deve res- ponder para angariar aceitabilidade so certa- mente impraticaveis para uma conversa descon- traida, um poema ou um romance, por exemplo. Resta ainda uma observacao a fazer, quanto a organizacao dada ao grupo de fatores levados em conta no julgamento das redagées. Como to- das clas foram produzidas sob as mesmas condi- ées (0 vestibular) endo me era possivel ter acesso a cada produtor individualmente, examinei em bloco a interferéncia dos fatores pragmaticos em sua textualidade. Quero dizer: a intencionalida- de, a aceitabilidade e a situacionalidade nao fo- ram analisadas em cada redacao particular; foi feita uma andlise desses trés fatores para 0 con- junto das redag6es. Por outro lado, ampliei o con- 19 ceito de informatividade, de modo a incluir nele Assim, entendendo a informativi- dade, bem como a coeréncia e a coesio como fa- tores centrados no texto, concernentes a elemen- tos constitutivos do texto, avaliei a presenca e 0 funcionamento desses trés componentes da tex- tualidade em cada redagao do corpus. 2. Critérios para a anilise da coeréncia ¢ da coesio Entendida a coeréncia como a configuracao conceitual subjacente e responsdvel pelo sentido do texto, e a coesdo como sua expressdo no pla- no lingiiistico, € preciso esmiugar essas nocdes, para perceber de que sao feitos esses fatores ¢ icas reais tais como as re- dagées dos alunos na escola. E interessante a proposta do lingiiista fran: cés Gharol 8), porque parte exatamente da goes de estudantes da escola ele- rpretagao de textos, que constitui a competéncia textual presente em to- do falante, o autor se vale também das interven- ges feitas pelos professores, de modo a perce- ber o fenémeno em seus dois momentos funda- mentais — a producio e a recepgao. 20 Para Charolles (1978), um texto coerente e coeso satisfaz a quatro requisitos: a repeticao, a Progresso, a ndo-contradicdo e a relacao. Vou chamé-los, aqui, de continuidade, progressdo, ndo- contradigao e articulagdo. 2.1. A continuidade A continuidade diz respeito A necesséria re- tomada de elementos no decorrer do discurso. ‘Tem a ver com sua unidade, pois um dos fatores que fazem com que se perceba um texto como um todo tinico é a permanéncia, em seu desenvolvi- mento, de elementos constantes. Uma seqiiéncia que trate a cada passo de um assunto diferente certamente nado sera aceita como texto. Quanto a coeréncia, esse requisito se mani- festa pela retomada de conceitos, de idéias. Quan- to & coesdo, pelo emprego de recursos lingiiisti- cos especificos, tais como a repeticdo de palavras, 0.uso de artigos definidos ou pronomes demons- trativos para determinar entidades j4 menciona- das, 0 uso de pronomes anaféricos e de outros ter- mos vicdrios (como os pré-verbos sere fazer € os pré-advérbios Id, ali, entdo, etc.), a elipse de ter- mos facilmente recobrét tre outros me- canismos. O emprego desses mecanismos de coeséo obedece a regras especificas, como ja disse. Por exemplo, os pronomes anaféricos devem concor- dar em género e ntimero com o termo que subs- tituem. Assim, uma seqiiéncia como a que se se- gue conterd uma infracdo textual, se ocorrer em 24 discurso escrito formal, em cuja recepgdo'a ex- pectativa € de respeito ao dialeto padrao: (1) O menor abandonado preocupa a popula- cao das grandes cidades porque a margi nalidade acaba os levando ao crime. Outra exigéncia cabivel quanto a esse tipo de discurso é que s6 podem recobrar por pronome elementos expressos na superficie textual. O alu- no autor da frase abaixo infringiu essa exigéncia ao preferir a expressao “reagao humana” a “rea- gao do homem’’, porque sua opcao acabou dei- xando sem antecedente expresso 0 pronome que ven em seguida: (8) Pode-se definir conhecimento como a rea- sao humana ao meio que 0 cerca. Um caso muito freqiiente de “desvio de coe- sao", no dizer de Elias (1981: 59-60), é aquele em que o emprego do pronome anaférico cria ambi- gilidade, porque ha mais de um termo que pode Ihe servir de antecedente. A seqiiéncia abaixo exemplifica o problema: (9) Ana estava conversando com Teresa e Ro- | sa chegou. Ai ela contou que esté namo- ‘rando Joao. Assim, avaliar a continuidade de um texto é verificar, no plano conceitual, se ha elementos que percorrem todo o seu desenvolvimento, conferindo-lhe unidade; e, no plano lingiiistico, 22 se esses elementos so retomados conveniente- mente pelos recursos adequados. Nao cabe aqui fazer o levantamento e a descrigao de todas as regras que governam 0 emprego desses recursos, mas posso afirmar que elas fazem parte da gra- matica intuitiva de todo falante, que é capaz nao s6 de empregé-los naturalmente como de reconhe- cer as eventuais falhas no seu uso (tendo em vis- ta, é claro, as contingéncias pragmaticas da atua- Ao comunicativa). Na anilise das redacdes do corpus, conside- rei a continuidade requisito da coeréncia e obser- vei se os recursos lingilfsticos que servem a ex- presso desse requisito foram empregados de mo- do a favorecer a coesdo textual. 2.2. A progressio Para Charolles (1978), a progressao, contra- partida da repeticao ou continuidade, é a segun- da condigao de coeréncia e coesao. O texto deve retomar seus elementos conceituais e formais, mas n4o pode se limitar a essa repetigao. E pre- ciso que apresente novas informacées a propési- to dos elementos retomados. Sao esses acrésci mos semanticos que fazer o sentido do texto pro- gredir e que, afinal, o justificam. No plano da coeréncia, percebe-se a progres- 840 pela soma de idéias novas As que j4 vinham sendo tratadas. No plano da coesio, a lingua dis- pe de mecanismos especiais para manifestar as relagdes entre o dado e 0 novo’. Por exemplo, o dado, que costuma coincidir com o tépico, em 23 geral é retomado anaforicamente e aparece no ini- cio de frases ou mesmo pardgrafos ou seqiiéncias de frases. J4 a informagdo nova com freqiiéncia se expressa pelo comentdrio e figura no final das frases, A progressdo pode se fazer pelo acrésci- mo de novos comentérios a um mesmo tépico, ou pela transformacao dos comentarios em novos t6- icos. A mudanga de t6pico deve se apresentar {voca para o recebedor, sob pena de causar dificuldades de compreensao, visto que a tendén- cia mais comum é interpretar as andforas de uma passagem como referentes ao tépico dessa pas- sagem. O texto que nao deixa claro, a cada pas- so, de que esta tratando pode levar o recebedor a um processamento indevido que, na melhor das hipéteses, precisard ser refeito. Hé, no portugues, construgées, palavras e locugées que servem'pa- ra destacar de maneira especial o topico de uma passagem, colocando-o em posigao de foco: quan- toa, a respeito de, no que se refere a; ser Sn que X, é que, até, mesmo, o proprio, etc. A progressao foi considerada como condi- a0 de coeréncia na andlise das redagées. Para- lelamente, foi observado se essa condicao foi bem expressa, através dos recursos disponiveis no portugués, de maneira a dar ao texto mais coesao. 2.3. A ndo-contradicéo _ 0 terceiro requisito proposto por Charolles (1978) € 0 da ndo-contradigao, que deve ser observado tanto no 4mbito interno quanto no 24 Ambito das relacées do texto com o mundo a que se refere. Para ser internamente coerente, o texto pre- cisa, em primeiro lugar, respeitar princi gicos elementares. Nao pode, por exemplo, mar A eo contrério de A, Suas ocorréncias nao podem se contradizer, tm que ser compativeis entre si, nao sé no que trazem explicito como tam- bém no que delas se pode concluir por pressupo- sigdo ou inferéncia. Por outro lado, para ser coerente, o texto nao pode contradizer o mundo a que se refere. O mun- do textual tem que ser compativel com o mundo que 0 texto representa. Assim, um discurso refe- rente ao mundo real no pode deixar de conside- rar algumas pressuposicOes basicas que integram a maneira comum de pensar esse mundo ¢ que subjazem a comunicagdo textual: as causas tem efeitos; os objetos tém identidade, peso e massa; dois corpos nao podem ocupar, ao mesmo tem- Po, o mesmo lugar no espaco, etc. Acexigéncia de ndo-contradicao se aplica nao s6 ao plano conceitual (da coeréncia), mas tam- bém ao plano da expresso (da coesao). Por exem- plo, através do emprego dos tempos e aspectos verbais, o texto instaura um sistema préprio de situagdo dos fatos a que alude, tomando por re- feréncia o momento da comunicagao ou um mo- mento determinado pelo texto mesmo. A moda- lidade é outro elemento do sistema de funciot mento discursivo. Trata-se da atitude do prodi tor tanto em relacao ao contetido proposicion: e ao valor de verdade de seu enunciado quanto em relago ao proprio recebedor. Essa atitude se 25 manifesta lingitisticamente pelo emprego dos mo- dos verbais e de itens especificos, como os ver- bos modais, alguns advérbios (talvez, certamen- te) € os chamados verbos ilocutérios (achar, acei- tar, considerar, admitir, exigir, deplorar, declarar, negar, etc.). As contradicées relativas a esses dois elementos do que Charolles (1978: 23) chama “re- gime enunciativo”, a menos que intencionais ¢ vi- sando a efeitos estilisticos, podem causar emba- rago ou estranheza ao recebedor. ‘A configuragao do mundo textual pode se ex- pressar lingiisticamente através do emprego de verbos, express6es e construgées “criadores de mundo", no dizer de Charolles (1978: 28): sonhar, imaginar, pensar, acreditar, gostar (no condicio- nal, gostaria que); no caso de, na hipdtese de; se- ja..., faz de conta que, era uma vez, etc. Ando ser que objetivando efeitos intencionais especificos, © emprego contraditério desses recursos também pode acarretar disturbios a interpretacao do dis- curso, na medida em que contraria as expectati- vas do recebedor. Um problema concernente a exigéncia da néo-contradicao, ao qual Charolles (1978) nao faz referéncia, consiste no que eu chamei de constra- dicdo léxico-seméntica. Trata-se de inadequagaio muito freqiiente nas redagées escolares e que diz respeito ao uso do vocabulério: muitas vezes o sig- icante empregado no condiz com o significa- do pretendido ou cabivel no texto. Tal contradi- ¢o resulta do desconhecimento, por parte do usudrio, do vocébulo a que recorreu. Um exem- plo elucidativo é 0 de um vestibulando que recla- mava, em sua redaco, contra “o desvelo das auto- 26 ridades pelo menor abandonado”. Casos desse ti- po situam-se, a meu ver, na regido limitrofe en- tre a coesao € a coeréncia, porque, embora se ma- nifestem no nivel da expresso, concernem a vei- culagdo de conceitos ¢ tém implicagées sobre a estrutura logico-semantica do texto. Nas redagées do corpus, a nio-contradigéo in- terna e externa foi tomada como condigao de coe- réncia. Quanto a coesdo, foi verificado se os re- cursos lingiifsticos empregados serviram ao bom funcionamento discursivo, tornando o todo tex- tual livre de contradigao. 2.4. A articulagao O quarto e ultimo requisito de coeréncia pro- posto por Charolles (1978) é a relagao, que eu cha- mo aqui de articulagdo. O autor, considerando va- go 0 termo relacdo, procura delimité-lo, rebatizando-o de congruéncia e estabelecendo que dois fatos serao congruentes quando um for uma causa, condigdo ou conseqtiéncia pertinente do outro, ot Neste trabalho, o termo articulagao nao co- brira apenas essas trés relagdes. Com ele estarei me referindo A maneira como os fatos e concei- tos apresentados no texto se encadeiam, como se organizam, que papéis exercem uns com relagao aos outros, que valores assumem uns em relagao aos outros. Avaliar a articulacdio das idéias de um texto, para mim, significa verificar se clas tem a ver umas com as outras e que tipo especifico de relagio se estabelece entre elas (além das re- 27 lag6es de continuidade, progressdo e nao- contradicao, j4 cobertas pelas outras condicées de coeréncia). Sao dois aspectos a serem verifi- cados: a presenca ca pertinéncia das relacées en- tre os fatos conceitos apresentados. O texto po- de apresentar fatos e conceitos relacionaveis sem estabelecer ligagoes entre eles, ou pode estabe- lecer relacdes no pertinentes entre os fatos e conceitos que denota (porque nao sao relaciond- veis, ou porque se relacionam de outro modo). Essas relagées, como vimos, ndo precisam ser necessariamente explicitadas por mecanismos lingiifsticos formais. Podem perfeitamente se es- tabelecer apenas no plano légico-semantico- conceitual (0 da coeréncia). Entretanto, ha recur- sos especificos para sua expressao formal, no pla- no da coesao. Entre eles podem-se mencionar os mecanismos de jungdo (tradicionalmente chama- dos de conjungao), os articuladores légicos do dis- curso (expressées como por exemplo, dessa for- ma, por outro lado, etc.) € os recursos lingiiisti- os que permitem estabelecer relacées temporais entre os elementos do texto (a ordem linear de apresentacao desses elementos, as conjungées alguns advérbios e expressées de va- , Os numerais ordinais e alguns ad- jetivos, como anterior, posterior, subseqtiente). Na analise das redagdes foram avaliadas a presenga e a pertinéncia da articulagao como con- digo de coeréncia e foi observado se, quando ne- cessarios, os mecanismos lingiiisticos que expli- citam as relacées entre os elementos textuais es- tavam presentes ¢ foram adequadamente empre- gados, contribuindo para a coesdo do discurso. 28 onde [ i ; 2.8. Para encerrar crito © formal, sera verificar se, no plano Jégico-semAntico-cognitivo, ele tem continuidade progressio, nao se contradiz nem contradiz 0 mundo a que se refere e apresenta os fatos e con- ceitos a que alude relacionados de acordo com r4 verificar se os mecanismos lingiiisticos'utili- zados no texto servem A manifestacdo da conti- nuidade, da progressdo, da ndo-contradicao e da articulagao. Dado o grande mimero de marcadores li giiisticos de coesdo ¢ dada a tremenda compl dade que envolveria a tarefa de formular rest! ges pertinentes e exaustivas com relacao ao e1 prego de cada um, meu julgamento das redacées, sobretudo neste particular, vai se basear na in- tuicdo e no bom senso. Sera considerada infra- ¢o textual a ocorréncia que acarretar embara- gos a leitura, tendo em mente as expectativas re- sultantes do tipo de texto analisado. Asse propésito, é bom lembrar o papel de- terminante dos fatores pragmaticos na comuni cacao efetiva. O-contexto e a imagem do interlo- cutor podem autorizar lacunas na configuragao textual nao possiveis noutras circunstancias, E relevante o fato de o produtor contar com os co- nhecimentos prévios do recebedor e com sua ca- pacidade de pressuposigao e inferéncia. 29

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