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Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O Estado de bem-estar social no Século XXI / Mauricio Godi- nho Delgado, Lorena Vasconcelos Porto (organizadores). — Sao Paulo : LTr, 2007. Varios autores. Bibliografia. ISBN 987-85-361-0987-9 we 1 Bditestar sqcia] 2:Estada.do bem-estar 3. Século 211. Delgado, Mauricio Godinho-FIFP6iteatprena Vasconcelos 07-3165 = CDD-330.126 indice para catalogo sistematico: | 1. Estado do bem-estar social : Economia 330.126 Producto Grafica e Editoragao Eletrénica: LINOTEC Capa: ELIANA C. COSTA Impressio: HR GRAFICAEEDITORA ~~ Bibli OTe. ~~" 525412-07 (Céd. 3438.4) © Todos os direitos reservados LE R EDITORA LTDA. Rua Apa, 165 — CEP 01201-904 — Fone (11) 3826-2788 — Fax (11) 3826-9180 Sao Paulo, SP — Brasil — wwwiltr.com.br Junho, 2007 CAPITULO 1 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO CAPITALISMO CONTEMPORANEO. Mauricio Godinho Delgado” * Lorena Vasconcelos Porto“? 1. INTRODUCAO O Estado de Bem-Estar Social (EBES), tido como uma das mais complexas, abrangentes e bem-sucedidas construgées da civiliza- so ocidental, teve como berco, essencialmente, os paises Ifderes do capitalismo na Europa, além de importanté papel cumprido pelos EUA a partir da década de 1930. Embora 0 seu desenvolvimento tenha se dado, fundamen- talmente, no século*XX, suas bases foram assentadas na segunda metade do século XIX, com a emergéncia na arena politica e social das grandes massas de trabalhadores despossuidos de riqueza e poder naquelas sociedades. Os EBES traduziram formulas privilegiadas de afirmacao da liberdade, da democracia, do trabalho e do emprego, da justica so- cial e do bem-estar na desigual sociedade capitalista. (*) Professor da Faculdade de Direito da PUC-Minas (graduagao e pés-graduacao) Doutor em Filosofia do Direito (UFMG) e Mestre em Ciencia Politica (UFMG). E Juiz do Trabalho em Minas Gerais desde 1989. (**) Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da PUC-Minas, Es- pecialista e Doutoranda em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma II. Ba- charel em Direito pela UFMG, é bolsista da CAPES, 20 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI Nas ultimas décadas do século XX, os EBES passaram a sofrer incisiva critica 4 sua estruturac4o e funcionamento, acentuada pelo processo de construcao de uma nova hegemonia cultural no periodo, de matriz ultraliberalista. Nao obstante, passados cerca de trinta anos do inicio desse recente processo hegeménico, percebe-se que tais criticas nao foram capazes de desconstruir, nos principais paf- ses capitalistas, as bases e os principios de montagem e operacao do Estado de Bem-Estar Social. Na verdade, 0 relativo distanciamento que ja se pode ter hoje do periodo de combate mais grave ao EBES permite concluir nao somente pela necessidade de preservacao de suas conquistas civili- zat6rias, como até mesmo sua verdadeira funcionalidade para a melhor insercao dos respectivos paises e economias no capitalismo globalizado. 2. O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL (EBES): CONSTRUCAO E DESENVOLVIMENTO O Estado de Bem-Estar Social (EBES) traduz uma das mais importantes conquistas da civilizacao ocidental. Agregando ideais de liberdade, democracia, valorizagao da pessoa humana e do tra- balho, justiga social e bem-estar das populagées envolyidas, o EBES & certamente a mais completa, abrangente e profunda sintese dos grandes avancos experimentados pela histéria social, politica e eco- némica nos tiltimos trezentos anos. Sua histéria firma-se a partir de finais do século XIX, com a emergéncia das organizacées sindicais e politicas dos trabalhado- res no capitalismo ocidental, ao lado do comego das politicas so- ciais dos Estados (inicialmente previdencidrias e acidentarias do trabalho). Este marco situa-se, no plano politico-sindical, nos mo- vimentos trabalhistas e socialistas estruturados na Inglaterra, Franga e Alemanha, espraiando-se para outros paises capitalistas mesmo ainda na segunda metade do século XIX. No plano politico-institu- cional, situa-se na absor¢ao gradativa pelas ordens juridicas euro- péias de normas trabalhistas, conferindo cidadania social e politica aos trabalhadores, como individuos e como grupo social. Neste plano, a Conferéncia de Berlim, de 1890, envolvendo 14 Estados europeus, ao fixar uma série de normas trabalhistas a serem segui- O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI 21 das pelos respéctivos Estados convenentes, teve importante papel na construgao do EBES. Ainda no mesmo plano — embora, ironica- mente, sob matriz autoritaria — surge 0 Governo Bismarck na Alemanha, que da inicio a um programa ptiblico de previdéncia e assisténcia social.) Nao obstante seja comum firmar-se 0 inicio do EBES na gestao bismarckiana, parece relevante reconhecer-se que a organizacao do movimento sindical e o inicio da estruturagao do Direito do Traba- lho sao pontos cardeais neste processo de construcao. Afinal 0 EBES nao se resume apenas a uma politica puiblica (embora esta seja fun- damental e distintiva), traduzindo também uma maneira de orga- nizagao da sociedade civil, em que se da prevaléncia as idéias de liberdade, democracia, valorizagdo da pessoa humana e valoriza- cao do trabalho, especialmente do emprego. Sob o ponto de vista da liberdade, alias, o EBES 6 de certo modo caudatario das revolugées dos séculos XVII e XVIII, A medida que estas firmaram como relevante a nogao de liberdade na socie- dade politica. Mesmo sendo meramente liberais, individualistas e elitistas em sua matriz original, estas revolugées abriram caminho para a afirmagao da idéia da liberdade e, assim, sua posterior apro- priagao pelas grandes massas populacionais dos trabalhadores e pelos despossuidos de riqueza e poder na sociedade capitalista. Evidentemente que o fato de as bases do EBES estarem langa- das na segunda metade do século XIX — coincidindo, inclusive, com a formacao do Direito do Trabalho — nao implica desconhecer que efetivamente ele se estruturou, em sua maior complexidade, apenas na primeira metade do século XX, aprofundando-se e se ge- neralizando depois da Segunda Guerra Mundial. : (1) A doutrina costuma diferenciar dois modelos de Estado de Bem-Estar Social, a partir de suas caracteristicas peculiares: 0 modelo bismarckiano e 0 beveridgeano. O primeiro, originado das politicas sociais do chanceler alemao Bismarck, na segunda metade do século XIX, funda a protecao social no exercicio de uma atividade profis- sional, vinculando as prestagdes da Seguridade Social as contribuicdes efetuadas. O segundo modelo, por sua vez, baseia-se nas idéias do burocrata inglés William Beve- ridge, implementadas, sobretudo, na década de 1940. Ele desvincula os beneficios da Seguridade Social do exercicio profissional, baseando-a na cidadania e, assim, no universalismo, buscando assegurar a todos um minimo vital. Para um maior apro- fundamento acerca dessa distincdo, veja o artigo de Carlos Aurétio Pimenta de Faria presente nesta obra. 22 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XX1 Nas primeiras décadas do século XX, alguns fatores aceleraram a solidificagaéo do EBES, sendo dois os mais notéveis. De um lado, 0 fato politico da ameaga socialista, tornada bastante concreta com a Revolugao Russa de 1917 e também, de certo modo, com 0 avanco dos partidos de fundo popular na Europa ocidental, sejam comunistas, socialistas ou meramente trabalhistas. De outro lado, 0 colapso da ges- tao ultraliberalista do Estado, acentuada com a crise de 1929 e a reces- sao e desemprego profundos vivenciados nos paises ocidentais desen- volvidos (na Europa desde os anos 20 e nos EUA a partir de 1929). 3. DEMOCRACIA, TRABALHO E JUSTICA SOCIAL NO EBES O EBES sintetiza, em sua variada formula de gestao publica e social, a afirmacao de valores, principios e praticas hoje considera- das fundamentais: democracia, valorizagéo do trabalho e do em- prego, justica social e bem-estar. A idéia e pratica da democracia pressupdem, obviamente, a idéia e pratica da liberdade, estendendo esta a todos os segmentos sociais, ao invés de sua restrita abrangéncia as elites s6cio-econdmicas e politicas (como formulado no liberalismo originario). Nesta me- dida, nao se trata apenas da liberdade formal, mas da liberdade substancial, que supde a agregacao ¢ pratica da idéja de igualdade. Por esta razo, o advento da nogao de democracia, caracteristica da segunda metade do século XIX, coincide com a pratica da afirma- cao do trabalho e do emprego, por meio das organizacdes sindicais de trabalhadores e dos partidos de formacao popular. O primado do trabalho ¢ do emprego na sociedade capitalista co- meca a se estruturar nesta época, traduzindo a mais objetiva, direta e eficiente maneira de propiciar igualdade de oportunidades, de consecugao de renda, de alcance de afirmacao pessoal e de bem- estar para a grande maioria das populagées na sociedade capitalis- ta. Afirmar-se 0 trabalho e, particularmente, 0 emprego, significa garantir-se poder a quem originalmente é destituido de riqueza; desse modo, consiste em formula eficaz de distribuicao de renda e de poder na desigual sociedade capitalista.® (2) A importancia fundamental do trabalho e, sobretudo, do emprego, para o desen- volvimento econdmico e a maior igualdade e justica social pode ser demonstrada O EsTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI 23 A idéia e pratica de justia social constroem-se também neste contexto, aprofundando-se no século XX. O sistema capitalista, até entdo, havia sido capaz de produzir bens e riqueza como nunca na histéria humana, mas havia fracassado na estruturagdo de um sis- tema mais igualitario ¢ justo para todos. O individualismo prevale- cente no liberalismo originario vai sendo fustigado pelas idéias de intervengao da norma juridica nos contratos privados, especialmente no mais genérico e importante deles, o contrato de emprego. A jus- tica social vai permeando nao s6 a atuagao do Estado, através de polfticas ptiblicas claramente garantidoras e/ou redistributivistas (as politicas previdencidrias e assistenciais sio claro exemplo dis- 50), como também vai permeando as relacées sociais, por meio prin- cipalmente do Direito do Trabalho, com seu carater distributivo de renda e de poder. Neste quadro de construgao civilizatéria, a nogao de bem-estar dos individuos e da comunidade mais ampla passa a constituir re- levante direito individual e social, a ser garantido nao somente pelo Estado, como também pelo funcionamento das relagées sociais, em especial as de cunho trabalhista. O que 6 curioso no EBES, em suas diversas formulagdes con- cretas, 6 que ele se mostrou plenamente compativel com as necessi- dades estritamente econdmicas do sistema capitalista. Muito além disso, ele se mostrou funcional ao desenvolvimento econémico mais s6lido, duradouro e criativo desse sistema. Gerando um mercado interno forte para as respectivas economias (que se mostra também poderoso consumidor para o mercado mundial), valorizando a pes- soa fisica do trabalhador e seu emprego, e com isso dando melho- estatisticamente. Conforme nos revelam dados da Organizacao Internacional do Tra- balho (OTT), os paises mais desenvolvidos econdmica e socialmente do mundo —e que adotam o Estado de Bem-Estar Social — so aqueles que possuem o maior per- centual da populagao economicamente ativa (PEA) na condigao de “empregados” e menor percentual nas categorias “empregadores e trabalhadores auténomos” e “tra- balhadores familiares nao remunerados”. Basta confrontar, por exemplo, no que tan- ge ao percentual de empregados na composicao da PEA, os ntimeros da Noruega (92,5%), Suécia (90,4%), Dinamarca (91,2%), Alemanha (88,6%), Paises-Baixos (88,9%) e Reino Unido (87,2%), com aqueles presentes na Grécia (60,2%), Turquia (50,9%), Tailandia (40,5%), Bangladesh (12,6%) e Eti6pia (8,2%). In OIT. La relacién de trabajo —Conferencia Internacional del Trabajo. 95% Reuniao. Genebra: OTT, 2006, pp. 80-8. (3) Consultar a essa respeito a excelente obra de MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como instrumento de justica social. Sao Paulo: LTr, 2000. 24 O EsTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI. res condigdes para a criagdo e avanco tecnolégicos, assegurando maior coesdo e estabilidade sociais, o EBES torna os respectivos paises e economias melhor preparados para enfrentar o assédio das press6es internacionais e para conquistar os mercados mundiais. Com efeito, conforme demonstrado pelo autor noruegués Stein Kuhnle, em artigo presente nesta obra: “As amplas politicas sociais tém sido vistas como um modo de se proteger os mercados de trabalho internos e os cidadaos do risco da exposigao a uma economia internacional volétil. Essas politicas tém sido encaradas também como um meio de incrementar, o “capital humano” — fortalecendo, assim, as forcas produtivas — e de contri- buir para a estabilidade social e"econdmica, estimulando 0 investi- mento externo e o crescimento econémico. Isso 6 demonstrado pelo exemplo dos paises escandinavos”.“ 4, A CRITICA ULTRALIBERALISTA AO EBES A partir da crise econémica de 1973/74 (primeiro choque do petr6leo), aprofundada em 1978/79 (segundo choque do petréleo), ganhou forca no ocidente a matriz ultraliberalista de critica ao Es- tado de Bem-Estar Social. Considerada a crise fiscal do Estado da época (rhenor arreca- dacao em face da crise econémica, elevacéo da divida em face do aumento dos juros, pauta de gastos ptiblicos tida como excessiva), 0 recrudescimento do desemprego, a acentuagéo da concorréncia internacional, passou-se a sustentar a inviabilidade do EBES na nova fase vivenciada pelo capitalismo. A este quadro negativo, soma- vam-se outros fatores, aparentemente na mesma direcao: a terceira revolucdo tecnolégica, supostamente desagregadora e desvalori- zadora do emprego e do trabalho, e o surgimento de novas modali- dades de gestao empresarial.© (4) Confira 0 artigo “A globalizacdo e o desenvolvimento das politicas sociais”, pre- sente nesta obra (5) Para uma anélise critica dos argumentos comumente utilidados pelos ultralibe- ais e a demonstragao da atualidade e da importancia do traballio. e do emprego no capitalismo atual, remetemos a leitura da obra de Mauricio Godinho Delgado, “Capi- talismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruigio e os caminhos de reconstrugéo”. O EsTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI 25 Neste contexto, ganhou hegemonia a formula ultraliberalista de interpretacao da realidade do capitalismo desta época: em um qua- dro de acentuadas mudangas tecnoldgicas e de gestao de empresas, tendentes a eclipsar o emprego e mesmo o trabalho, e de agravamento da concorréncia internacional, teria se tornado irracional — porque inadequado — um tipo de estruturagéo do Estado e da sociedade baseado na valorizacao do trabalho e do emprego, na concessao de politicas sociais e assistenciais universais e generosas, na distribui- cao do poder e da riqueza através de politicas de intervengao estatal O Estado de Bem-Estar Social teria se tornado, em sintese, um paradigma obsoleto, datado, incapaz de enfrentar os desafios da nova economia capitalista globalizada. Na esteira da nova hegemonia ultraliberalista, distintas propos- tas de desestiuturacao do EBES foram apresentadas nas tltimas dé- cadas. Desde 0 idedrio bastante radical dos maiores lideres politicos desta corrente nos anos de 1980, Margareth Thatcher e Ronald Rea- gan, até as regressdes curiosamente assumidas por liderangas for- malmente social-democratas no plano europeu nos anos de 1970/80, principalmente (por exemplo, Felipe Gonzalez, na Espanha). Os estudos lancados no presente livro demonstram, entretan- to, que tais propostas mantiveram-se firmes, enfaticas e até agressi- vas, notadamente no plano discitrsivo e politico-institucional, mas nio alcangaram efeitos profundos no plano concreto dos principais paises europeus envolvidos. No contexto dos paises que melhor haviam es- truturadg Estados de Bem-Estar Social (por exemplo, todos os pai- ses nérdicos, a Alemanha, a Franca, os Paises-Baixos e mesmo a Inglaterra), as mudancas realizadas nao foram capazes de descons- truir o padrao civilizatério alcangado com o EBES; algumas ade- quacées topicas ocorreram, é claro, porém sem capacidade de mo- dificar as bases e os principios estruturais do Welfare State. No caso especifico dos paises escandinavos, Stein Kuhnle de- monstra que, nao obstante os desafios enfrentados nos ultimos anos, “as instituigdes e os programas dos Estados de Bem-Estar Social nérdicos tém permanecido quase intactos”. Nesse sentido, o autor destaca os amplos compromissos politicos firmados nesses paises ¢ 0 forte apoio do eleitorado. (6) Conferir capitulo 7 “O Estado de Bem-Estar Social nos paises nérdicos” The Saas ay 26 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI No mesmo sentido sao as conclus6es do autor francés Francois Xavier Merrien, que, apés cuidadosa andlise das reformas empreen- didas nos ultimos tempos pelos diversos Estados de Bem-Estar So- cial, conclui que “mesmo quando existem reotientacées, revisdes ou adaptacées dos sistemas de seguridade social, parece que — sal- vo no caso de alguns paises pouco numerosos, que optaram pela via neoliberal — a maioria dos governos se esforca para manter o coragao do seu Estado Social”. Importa observar que grande parte dos desafios enfrentados pelos Estados de Bem-Estar Social europeus é de ordem interna (por exemplo, as questdes demogréficas) nao estando, assim, telaciona- dos as pressdes externas. Ao analisar tais-desafios, o autor italiano Maurizio Ferrera prope o conceito de recalibragem do Estado de Bem-Estar Social, mantendo a “missao ideal e a estrutura geral desse patrimG6nio institucional”, mas com “revisdes e atualizacdes”, des- locando “os pesos — a atencao institucional, os recursos finan- ceiros, 0 acento ideal — de algumas funcées a outras, de algumas categorias a outras, de alguns valores a outros”. Dentre esses esforcos de adaptagao, destaca-se uma espécie de incorporacao recfproca de caracteristicas por parte dos modelos de Estado de Bem-Estar Social “bismarckiano” e “beverigdeano”, conforme revela Francois Xavier Merrien.® Com efeito, enquanto que os paises do primeiro modelo vém adotando medidas sociais de cardter universal, estendendo-as além do mundo do trabalho, o que € uma caracteristica tradicional dos EBES “beverigdeanos”, estes, por sua vez, vém acentuando a dimensao contributiva em seus sis- temas de Seguridade Social, o que historicamente é a marca regis- trada do modelo “bismarckiano”. 4 Outro esforco de adaptagao diz respeito as questdes demogra- ficas, algumas produto exatamente das préprias conquistas do EBES. Nesta linha, a maior longevidade das populagées tem levado as res- pectivas ordens juridicas a realizarem adequagées no sistema de (7) Conferir, nesta obra, capitulo 5 “O novo regime econdmico internacional e o futuro dos Estados de Bem-Estar Social”. (8) Conferir capitulo 4 “Recalibrar 0 modelo social europeu: acelerar as reformas, melhorar a coordenagéo”, que faz parte desta obra. (9) Conferir capitulo 4 “O novo regime econdmico internacional e o futuro dos Esta- dos de Bem-Estar Social”. O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI 27 Seguridade Sodial, de modo a compatibilizar os ganhos etérios al- cancados com os custos de preservagao do sistema em seu conjunto. Desse modo, a gradativa elevacdo da idade minima para aposenta- dorias nao traduz uma suposta vit6ria ultraliberalista sobre o Estado de Bem-Estar Social, mas uma recalibragem necessdria deste aos positivos efeitos de seu proprio sucesso. Nao obstante sua incapacidade de desconstruir os EBES mais bem estruturados, as propostas enfaticas e mais radicais ultraliberalistas tiveram grande influéncia, sim, nos organismos internacionais e mul- tilaterais de gestao do capitalismo (BIS, FMI, BID, Bird, GATT/OMC, etc.). Impactaram também fortemente os circulos universitérios e as burocracias estatais, especialmente nos paises periféricos ao capita- lismo central, em particular da América Latina." Neste contexto, curiosamenté, os paises que de modo mais ortodoxo se submeteram A critica e as propostas ultraliberalistas foram os que sequer haviam construido efetivos Estados de Bem-Estar Social — caso tipico dos latino-americanos Argentina, Brasil e México nos anos de 1980 e 90." 5. A ATUALIDADE DO EBES NO CAPITALISMO CONTEMPORANEO A despeito da critica e propostas ultraliberalistas e de seu pres- tigio na presente fase hegeménica, a histéria recente do capitalismo (10) Rico painel sobre a conquista hegeménica ultraliberal no seio do pensamento eco- némico brasileiro, quer no ambito das burocracias estatais, quer no Ambito das univer- sidades, encontra-se na obra de Maria Rita Loureiro, Os Economistas no Governo: gestiio econdmiica ¢ democracia, Rio de Janeiro: Fundagao Gettilio Vargas, 1997. A este respeito consultar também DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre 0 paradigma da destruicao e os caminhos de reconstrugio. S40 Paulo: LTr, 2006. ‘ (11) © fato de ter seguido ortodoxamente a cartilha ultraliberal conduziu a Argenti- na, como é notorio, A desastrosa crise econdmica, politica e social, que teve seu apo- geu em 2001. Os seguintes dados sao bastante ilustrativos: em marco de 1980, 5% da populacao argentina estava abaixo da linha de pobreza, de acordo com o Indice de Desenvolvimento Humano (IDH), da Organizacao das Nacdes Unidas (ONU), per- centual este que, em 2000, se elevou para mais de 50%; 0 desemprego em 2002 che- gou a 25% e a criminalidade aumentou 290% em 10 anos. Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho ¢ emprego: entre o paradigma da destruicao e os caminhos da reconstrugio, pp. 62-3. Depois do auge da crise, no final de 2001, a Argentina pas- sou a adotar politicas radicalmente diversas da ortodoxia ultraliberal, marcadas pelo intervencionismo estatal — como o controle do cambio, dos juros e do mercado fi- nanceiro — 0 que vem produzindo resultados muito positivos, com o crescimento econémico continuo daquele pais. 28 O EsTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI demonstra que o grau de sucesso de insergao das economias no mundo globalizado tende a ser diretamente proporcional a seu dis- tanciamento do ideério ultraliberal. Nesta linha, os paises que preservaram seus EBES na Europa ocidental tém se mostrado extremamente competitivos e dinami- cos no enfrentamento da economia globalizada. Trata-se de econo- mias razoavelmente abertas, com forte inserc4o internacional (altas taxas de importagao e de exportacao, alto grau de intercambio em- presarial externo e interno) e notdvel capacidade de desenvolvi- mento tecnolégico. Tudo isso alcancado com a reprodugio dos mais pujantes indicadores de bem-estar social." Nesse sentido, 0 autor alemao Philip Manow demonstra clara- mente em seu trabalho que os programas de bem-estar social gene- rosos podem aumentar — e nao diminuir — a competitividade internacional, constituindo, assim, uma “vantagem institucional comparativa” para a economia, e nao uma desvantagem em termos de custos. O autor destaca que 0 EBES desempenha um papel eco- némico fundamental, ao propiciar a cooperacao e a coordenagao de longo prazo entre os atores centrais da economia nacional. Por outro lado, paises e economias que nao tém traco relevan- te de estruturacdo de efetivo Estado de Bem-Estar Social, como os asidticos recém-egressos na economia mundializada (China, india e Coréia do Sul, por exemplo), tem tido em comum a caracterfstica de rejeitarem, firmemente, as propostas de estruturacao ultralibe- ralistas de suas economias e politicas ptiblicas. Iustrativamente, realizam explicitas intervengées estatais, quer no cambio, quer no incentivo a setores produtivos, quer na propagacao do crédito, quer no controle do mercado financeiro, inclusive das taxas de juros, quer na participacao do capital estrangeiro (especialmente o finan- (12) Registre-se que a politica monetéria ortodoxa seguida pelo antigo Banco Central da Alemanha e, hoje, pelo Banco Central Europeu tem limitado, sumamente, 0 po- tencial de crescimento das grandes economias da regiao e seu conseqiiente potencial de geracdo de empregos. Contudo, mesmo este traco importante da hegemonia ultra~ liberalista na regiao é incapaz de, no conjunto, fazer sossobrar os EBES ali instala- dos. A respeito, consultar DELGADO, Mauricio Godinho, Capitalismo, trabalho e em- prego: entre o paradigma da destruigio ¢ os caminhos da reconstrugid, e MODIGLIANI, Franco. Aventuras de um Economista. Sao Paulo: Fundamento, 2003. (13) Conferiz, nesta obra, capitulo 6 "As vantagens institucionais comparativas dos regimes de Estado de Bem-Estar Social e as novas coalizdes na sua reforma’. O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI 29 ceiro-especulativo) no ambito interno de suas economias. Eviden- temente que nao constituem Estados de Bem-Estar Social (embora adotando o forte intervencionismo estatal que caracteriza as politi- cas ptiblicas nos EBES); entretanto, estéo muito mais distantes ainda do idedrio ultraliberalista critico aos Welfare States. Em sociedades e economias relativamente desenvolvidas e di- versificadas como algumas latino-americanas (Argentina, Brasil e México, em especial), dotadas de grande territério e significativa populacao, com um processo de desenvolvimento ja relativamente integrado as caracteristicas capitalistas atuais, parece claro que 0 processo de desenvolvimento econ6mico-social deve se fazer com- binando os ganhos de escala propiciados pelo intervencionismo es- tatal tipico dos EBES. Somerite um Estado de Bem-Estar Social, adequado as peculia- ridades latino-americanas e brasileiras em particular, seré capaz de tomar as medidas eficazes assecuratérias de um significativo cres- cimento econdmico com a simultanea construgao de justiga social. O perfil intervencionista do EBES torna naturais politicas ptiblicas imprescindiveis ao crescimento econémico, como, a titulo ilustrativo, gestao racional do cambio, gestao racional do crédito e seus juros, politicas interventivas de estimulo a distintos segmentos empresa~ riais, incremento do investimento ptiblico e do privado na econo- mia, a par de outras medidas na mesma diregao. O mesmo perfil intervencionista torna naturais a adogdo simultanea de politicas sociais distributivas de riqueza e/ou renda, tais como elevacao do saldrio-minimo, medidas sociais de agregacao direta de renda, es- tratégias interventivas de ampliacao de oportunidades no sistema econémico, social e cultural, medidas eficazes de incremento do emprego na economia. f Estado bastante claras, portanto, as profundas atualidade e funcionalidade do Estado de Bem-Estar Social no capitalismo contemporaneo. _ 6. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: en- tre o paradigma da destruigao e os caminhos de reconstrugao. Sao Paulo: Ltr, 2006 30 O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO SECULO XXI FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. “Uma genealogia das teorias e tipologiais do Estado de Bem-Estar Social”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org.). O Estado de Bem-Estar Social no século XXI. Sao Paulo: LTr, 2007. FERRERA, Maurizio. “Recalibrar 0 modelo social europeu: acele- rar as reformas, melhorar a coordenacao”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org-). O Estado de Bem-Estar Social no século XXI. Sao Paulo: LT, 2007. KUHNLE, Stein. “A globalizacao e o desenvolvimento das politicas sociais”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org.). O Estado de Bem- Estar Social no século XXI. Sao Paulo: LTr, 2007. —_____ . “0 Estado de Bem-Estar Social nos paises nérdicos”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org.). O Estado de Bem-Estar Social no século XXI. S40 Paulo: LTr, 2007. LOUREIRO, Maria Rita. Os Economistas no Governo: gestio econdmi- ca e democracia. Rio de Janeiro: Fundagao Gettilio Vargas, 1997. MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como instrumento de justiga social. Sao Paulo: LTr, 2000. MANOW, Philip. “As vantagens institucionais comparativas dos regimes de Estado de Bem-Estar Social e as novas coalizdes na sua reforma”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org.).O Estado de Bem-Estar Social no século XXI. Sao Paulo: LTr, 2007. MERRIEN, Francois Xavier. “O novo regime econémico internacional € 0 futuro dos Estados de Bem-Estar Social”. In DELGADO, M. G., PORTO, L. V. (org,). O Estado de Bem-Estar Social no século XXI. S40 Paulo: LTr, 2007. : MODIGLIANI, Franco. Aventuras de um Economista. S40 Paulo: Fun- damento, 2003. OIT. La relacién de trabajo — Conferencia Internacional del Trabajo. 95° Reuniao. Genebra: OIT, 2006.

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