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O Tocador de Realejo

...sabe Mahli um dia lhe disse que a vida é maior para aqueles que a encontram em todo
lugar, hoje não sei se acredito mais... Estou cansado.

Nono andar, num quarto trancado à meia luz sorrateira de uma noite abafada e triste jaz
um corpo embrulhado em lençol lacrimado esperando as últimas horas. A música
amarga, a boca seca, os sonhos desgarrados e um hálito inflamado. E ninguém quer
saber!

Na rua, no chão, encosta numa mangueira o velho tocador de realejo. Sujo, faminto,
seco, asco... As primeiras moedas deslizam pela calçada imunda. A mão é rápida, ele
pega num relance e continua a tocar. O som é frágil, solitário, doente, todavia acalma, e
os mortos que passam sonham. Sim, sonham como os que amam e amam como os que
sofrem e sofrem como os que vivem...

Abre a janela enferrujada, está frio, é noite. O corpo pesa como um caminhão de
cocaína. Os olhos secam, a ferida abre, a perna adormece, ela sorri a um passo do
abismo.

Está quente, é dia. As notas fracas, quase raquíticas, sofridas alcançam a meia dúzia de
ouvintes. Uma melodia doce, tonal, fácil de recordar como as pinceladas de um Pollock
falso.

O telefone toca, é uma amiga que a conheceu há uma semana, ela é garçonete, emprego
novo...

As costas recostadas na árvore, folhas pálidas alimentam cupins, resta uma mulher. Ela
ainda o ouve...

Cabelos esvoaçados pelo vento, no parapeito ela ouve a música vindo de baixo, lá onde
é sempre dia. Acende o último cigarro. "Você iria escrever uma carta?" "Sim."

"Para quem?" "Não será pra você!"

Ela jamais contaria.


É o último compasso. Quando as notas se deitam sob a terra fria e o silêncio parece
dizer mais do que parece, ela se vira e vai. Trinta moedas e o velho guarda seu realejo,
junta os trapos e o dinheiro, sacode o chapéu e parte como partiu pela primeira vez...
Num acidente há algum tempo atrás.

Ela se joga.

Ele se perde.

Tudo está como antes, todos sozinhos numa hora cinza.

"O tempo é relativo, depende de um observador. O homem é infinito, venceu o tempo.


O passado se funde ao amanhã e agora o que podemos fazer?

O que você é? Onde você vai estar no fim do mundo?"

“... eu poderia passar a eternidade contigo em meus braços, com seus cabelos em meus
dedos, ouvindo o sussurrar de seus sonhos no cair de um crepúsculo qualquer...”

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