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O Homem de Barro

Quando criança, minha mãe me contava histórias até eu fechar os olhos,


fingindo dormir. Uma delas, a minha preferida, era sobre o homem de barro.

Seus olhos eram feitos de pedra polida e seu coração da mais dura argila. As
mãos ressecadas pelo sol e os pés desgastados, misturavam-se ao pó da terra. Uma
nuvem de poeira cobria-lhe os rastros, enquanto vagava pelo mundo a procura de seu
pai, um velho comerciante, que um dia, o encontrara abandonado, ainda criança à sua
porta, enrolada em trapos. Ele o acolheu como um filho, até que vieram os sábios e o
levaram antes mesmo que pudesse lhe dar um nome. O comerciante chorou por dias e
noites, pois vivera sua vida sempre sozinho. Ele não se importava com a aparência do
menino e o amou como se fosse seu pai. Prometera a sim mesmo que um dia iria
encontrá-lo e trazê-lo para casa, mas os sábios o levaram para muito longe,
trancafiando-o numa torre. Com seus martelos e foices e olhos curiosos, avançaram
contra a pequena massa granulosa arrancando-lhe as mãos e os pés. Não satisfeitos,
cortaram seu corpo em pedacinhos e jogaram fora seus olhos. Durante anos, o barro
disforme foi estudado pelos sábios. Dividindo-o em pequenas partes, observaram sua
composição, mas, nada puderam dizer sobre a origem de sua existência, assim,
juntaram seus membros e o deixaram à beira da estrada.

Veio então a chuva e amoleceu o barro. Pelo caminho, passava um artesão que
vendo a disforme massa esparramada, deu-lhe uma nova forma. Depois, vieram
algumas crianças saltitantes com doces nas mãos e no orifício de seus olhos puseram
duas balas de mel. Quando se foram o homem de barro seguiu seu caminho, pois não
podia morrer.

Ao chegar à entrada de uma vila, leu escrito no pórtico de uma grande


construção, O Templo. Ele aprendera a ler com seu pai e também a observar o céu. O
velho comerciante acreditava poder ler o futuro nas nuvens. A porta estava aberta. Ao
entrar no lugar sentiu pela primeira vez um estranho temor. Ali existiam outros como
ele. Homens e mulheres de barro, só que imóveis, presos a uma base de granito. Ao
chegar mais perto, reparou suas formas, tão simétricas e precisas, como se fossem
humanos, como a face de seu pai. Aos seres imóveis pôs-se a perguntar:

- Vocês são como eu, de argila e pó, contudo, não se parecem comigo. O que vocês
são?

Como resposta ouvia apenas o eco de sua voz.

- Vocês podem me ouvir? – Gritou.


E assim ficou por horas, sentado, confuso, tendo por companhia, velhas
estátuas mudas, até que as balas em seus olhos se umedeceram. Ao ouvir o lamento,
logo se aproximou um sacerdote que ao vê-lo pôs se a gritar:

- Ele está vivo! Está vivo!

As pessoas saíram de suas casas e correram ao templo para ver o que


acontecia. O sacerdote ajoelhado diante da disforme massa que falava. Logo, o lugar
se encheu. Milhares de pessoas vinham de todas as partes para contemplarem o ídolo
que se movia. O sacerdote viu nisso um bom negócio e uma bela lajota azulejada
comprou, elevando o homem de barro acima do altar. Camponeses traziam suas
oferendas, frutas, raízes e vinho. E também os ricos mercadores, ouro, incenso e mirra.
E passaram a adorá-lo. Foi então, que numa tarde nebulosa, houve um terremoto. As
colunas do templo caíram, soterrando assim, os adoradores. E em meio às pedras e
escombros, se levantou quase que despedaçado, o homem de barro. Cobrindo-se com
um manto, partiu de volta ao seu caminho.

Na manhã seguinte ao descer por uma planície, vê logo abaixo, um poço e


sentada à sua beirada uma linda jovem. Ele se achegou até ela, escondendo a face e
perguntou:

- Você saberia me dizer o caminho para casa?

A jovem continuou dando águas aos cavalos, fingindo não notar-lhe.

- Estou falando com você moça! - Ele a puxou pelo braço.

- Me solte seu monstro! Papai! - E correu gritando até sua tenda.

Ela era filha de um poderoso feiticeiro que apressadamente deixou sua tenda.
O homem de barro então, contou que precisava de sua ajuda, estava perdido e
procurava por seu pai. O feiticeiro, deslumbrando com a estranha criatura, prometeu-
lhe ajudar, em troca de um pequeno favor.

- Vejo que não é animal ou homem, todavia, sendo um mineral, fala e move como um
de nós. Quem lhe ensinou sobre o bem e o mal pode dar vida a outras formas? –
Perguntou o feiticeiro.

- Eu não sei.

- Eu lhe ajudo encontrar seu pai, mas antes, quero que volte comigo, desejo muito
conhecer a sua história.

O feiticeiro era o conselheiro de uma rainha muito má, e retornou ao castelo,


levando-o consigo. Ao cruzar pelos enormes portões que guardavam a cidade, o
homem de barro sentiu uma nova sensação. A mistura de mil sabores chegando às
suas narinas. Era o cheiro das tendas perfumadas, dos óleos aromáticos vendidos em
cântaros coloridos, do jardim de alfazema de frente a fonte, dos temperos e raízes
trazidos pelas carruagens de mercadores. Também viu as pessoas apressadas,
correndo de um lado para o outro, como se estivessem fugindo ou talvez, buscando
por algo.

- Porque todos correm desse jeito? – Perguntou ao feiticeiro.

- Eles estão indo comprar suas máscaras para o baile.

Haveria uma festa no palácio e a rainha mandara convidar os comerciantes mais ricos
e os nobres mais poderosos. Em seus aposentos o feiticeiro a aconselhou assim:

- Essa tarde em minha tenda, recebi uma visita majestade, uma dádiva dos céus que
vencerá todos os nossos inimigos. Uma criatura feita de barro, imortal, que carrega
dentro de si um poderoso feitiço, levando-o a se mover e a falar tal como um de nós.
Quando assim o fizer, desatar o fio que o prende àquele corpo, observar a sua
essência, então, poderemos construir milhares como ele. Um exército de soldados de
argila.

Para o tão esperado baile, o homem de barro fora vestido tal qual um nobre. Para
esconder o seu rosto, a jovem filha do feiticeiro lhe deu uma máscara curtida em
couro.

- Com que estou parecido? – Indagou à jovem.

- Um bufão! Um engraçado bufão de pedra. – E riram juntos pela primeira vez.

O homem de barro sentiu uma estranha alegria. Ali, naquele enorme salão de dança,
enquanto os pares se rodopiavam ao som de flautas e atabaques, pôde sentir como os
demais. Não existia a indiferença que sempre lhe perseguiu. E ao passear por um
corredor carpetado, de frente a uma grande moldura, parou.

- O que você está vendo? – Perguntou-lhe uma mulher que chegava sutilmente.

- Uma estátua semelhante a mim. – Respondeu, imóvel.

- Talvez, porque seja realmente você.

Ele nunca havia se visto num espelho e ao tirar sua máscara a rainha não estava mais
lá. De repente, a tristeza que ele conhecia muito bem voltara, só que agora misturada
a um descontentamento que nunca havia sentindo, era a desesperança tomando conta
de seu coração. Ele saiu correndo, deixando para trás sua máscara de bufão. Em seu
quarto, escondido de todos, pensou que jamais encontraria seu pai e mesmo que o
fizesse, ele talvez jamais pudesse lhe tirar essa dor que crescia em seu íntimo. Assim,
decidiu-se ir embora, longe daquele baile de máscaras.
Quando a jovem retornou ao seu quarto, viu as roupas espalhadas pelo chão e
antes que o medo da dúvida lhe assolasse, juntou suas coisas e partiu atrás do homem
de barro. O feiticeiro ao saber da fuga se enfureceu de tal modo, que ajuntara um
pequeno contingente de soldados à procura dos dois. Ele clamava aos seus deuses
para que tivessem misericórdia de sua filha, pois acreditava que o homem de barro lhe
pudesse fazer algum mal.

- Vou desfazê-lo em pedaços! Depois de descobrir sua essência, o colocarei dentro um


pote e misturando alguns elementos à sua substância, darei vida a qualquer coisa
inanimada. – Disse o feiticeiro à rainha antes de partir.

Sentado à beira da fonte, o homem de barro contemplava tristemente o reflexo


distorcido de seus olhos.

- Sabia que viria para cá. – A filha do feiticeiro se achegou calmamente.

- Eu não sei quem sou. – Ele disse, condoído.

- Nem todos sabem isso.

- E quem sabe afinal?!

- Eu não sei lhe dizer. Vim aqui para ter a chance de me desculpar com você.

- Como sabia que me encontraria aqui? Você me seguiu?

- Não. Onde mais estaria? Não sei lhe dizer sobre os planos de meu pai, mas
desconfiaria deles em seu lugar.

- Porque ele mentiria pra mim?

- Porque você é bom. Sua forma pode ser diferente, mas por dentro, tem um coração
como o meu.

Sentada ao seu lado a jovem estendeu a mão e lhe tocou o peito.

- Não disse, posso senti-lo dentro de você. Isso é o que o torna como eu.

A tristeza companheira dera lugar a um gostoso arrepio que lhe subia pelas costas,
trazendo à memória todas as coisas boas que vivera: a alegria dos garotos rabiscando
com giz de cera o contorno dos seus olhos, a suave mão do artesão delineando uma
nova forma a seu corpo, o sorriso dos pobres camponeses no mercado, as cores lívidas
dos trajes dos nobres, tudo isso emaranhado a um novo sentimento, o amor.
Ao segurar suas mãos, um temível grito evocou-lhe à razão.

- Não toque nela, seu monstro de pedra!


O feiticeiro chegara com seus cavaleiros e ordenando que o amarrassem, partiram de
volta ao castelo. Em seu calabouço, mergulhado em trevas, o homem de barro desistiu
de todos os seus sonhos. Seu pai, sua casa, suas dúvidas inquietantes, tudo fora
acorrentado àquelas inquebráveis correntes que prendiam seu corpo ao esquife de
chumbo fundido. No redemoinho de emoções, o semblante da bela jovem se
sobressaía às demais figuras. Ele só queria vê-la, sentir novamente suas mãos quentes
sobre seu peito, mas o feiticeiro chegou primeiro, e com ele a perversa rainha.
- Diga-me, como pretende extrair algo de bom dessa criatura desprezível? – Perguntou
a rainha ao feiticeiro.

- Não pretendo majestade, mas se me permite explicar.

Ele então lhe contou que ao conseguir a matéria-prima primordial e eliminar suas
impurezas, separando o mercúrio e o enxofre, depois os reunindo por intermédio do
sal e fixando os elementos voláteis, poderia libertar o espírito por meio da matéria e a
própria matéria por meio do espírito.

- Vossa majestade já viu uma estrela se formar dentro de um frasco de vidro?

Ele lhe ensinou como capturar um feixe de luz do sol, condensando e o alimentando
com fogo.

- A terra fica embaixo enquanto o espírito sobe.

O homem de barro fechou seus olhos de mel e pela primeira vez sonhou, enquanto o
fogo consumia seu corpo e inflamáveis solventes enegreciam seus membros.

- Primeiro é preciso purificar a matéria imunda, majestade.

O agente da dissolução, um líquido escaldante mistura-se ao mercúrio.

- Nessa etapa, adiciona-se mais ouro para tornar o agente transformador mais ativo.
Após três dias teremos a vida conservada nesse pote fechado.

E lhe mostrou o frasco que ao terceiro dia estava cheio com um fluido transparente
como o orvalho, leve como o ar, denso como nuvens, a dissolução do ser que não se
extingue, a substância do qual é feito todo o universo, o retalho do céu, um pedaço de
éter.

...

-Mas mamãe, como termina a história?


Diz a lenda que a bela jovem, numa noite, entrou no velho calabouço onde estava
guardado o pote contendo o homem de barro e o roubou antes que seu pai
construísse o exército de homens de barro. Ela então correu até o poço onde o
conhecera e abriu a tampa, lançando-o à água. Quem bebesse dessa água jamais
morreria.

- Amanhã quero ouvir mais mamãe, boa noite.

Boa noite Joshua.

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