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£ 1 PARTE A BOA VONTADE, a CAPITULO. I i A boa vontade em si mesma. ara se santificar, a alma sO tem neces- sidade de boa vontade, Guardé-la intacta desenvolvé-la sem cessar, fal deve ser o fim constante © unico de sua vida. “A boa von- ade, dizia santo Alberto Magno, suppre tudo, estd acima de tudo” (1). ‘A boa vontade entrega 0 homem inteiro a Deus, por um acio muito simples de amor; abandona o passado 4 sua misericordia; con- ‘ rug IMPRIMATUR. Por commisséo especial do 4 femme, a. bisgo de Nicthoroy. D, does Penny Alves, ‘Petropolis, 10 de." Deombrontg nae Fret Oswaldo Schlonger, 0. %. M, sio presente para santificd-lo. “_ A boa vontade é uma orientacao, em tudo, do homem para seu Deus, uma coorlenagio de todas suas faculdades para elle, uma res~ tauragio da harmonia entre a criatura e 0 70005 08 Dimmros insERvADoS 1) De adharendo Deo, eap. VT. fia o futuro & sua bondade; e s6 reserva para ‘ Pae celeste, qpella € uma resolugio goneros lugdo generosa da alma, ae proststerar 4 gloria do divino Mestre ¢ rocuirar 0 bem cio proximo na medida suas foreas, a ape ae Ella € uma renuneia com ma renuneia completa a tudo aquile 4o que esta em desaccordo com a ontent ai ving, um sactificio de todo o interesse pro. prio, um esquecimento inteiro e uma despres Sccupacdo constante de si mesmo, Essa boa vontade conserva. u se a_mesma tanto na aridez © penuria como na conselae ‘fo e abundancia, na tribulacto ¢ inquietas £20 como na paz'e tranquillidade, nos ein Baragos e miipiidade de oceupapoes cay na docura ¢ gozos da oracao. ‘Seu fecto ¢ um movimento simples do eo- fasto quie se entrega por completo, disposto © a tudo acceitar, a tudo soffrer, desde gue o dlivino beneptacito the seja manitestads, ‘A boa voniade permanece sincera, “nao obstante as fraquezas ¢ as inconstancias de ivamente nelle. A boa vontade néo depende 6 Stiador, uma volta amorosa do filho para seu ~ da vivacidade da imaginacdo, da penetra gio da intelligencia, das qualidades naturaes do corago, das vantagens da fortuna, da ‘uaedo ou do nascimento, Ella € um acto es- sencialmente espiritual da livre vontade, um movimento simples para Deus, um olhar amoroso para elle. Esti no poder de todo 0 homem que tem uma vontade livre ¢ que é ajudado pela graga, A santidade & accessivel a todas as almas. Para alcangé-la € sufficiente amar a Deus agir sempre por amor. Ora, quem nao pode amar? O amor & a respiragao da alma. Si ella 0 quer, cada um de sens movimento attrae a Deus ¢ submerge-a no proprio De “mais simples e mais ignorantes. Deus nao quereria que um coracdo sincero ndo pudes- se encontré-fo. Uma mysteriosa attraceao in~ clina-o para as almas rectas. Desde que descobre uma dessas almas, elle a reserva para sie faz della sua morada de predileccdo. Conta assim almas de escol em todas as cor dicdes, sobretudo na classe dos humildes e pequenos. Essas almas puras t8m sobre 0 Deus de infinita pureza_um poder irresistivel: ellas prendem e obtem assim tudo que desejam. Si, para thes agradar, o Senhor tem que fa~ zer milagres, elle os faz. Elle disse um dia & santa Teresa: "Si eu ndo tivesse instituido a 1 "A santidade esta ao aleance das almas ‘6 ao %, a eucharistia, eu @ instituiria hoje para ti”. Elle agiria do mesmo modo para cada alma pura. Deus néo quiz que 0 caminho que conduz 4 santidade fosse coberto de obstaculos ¢ erigado de difficuldades. Quanto mais uma coisa é necessaria 4 vida natural do homem, mais esta mesma coisa Ihe é dada em abun- dancia. O que é mais necessario do que 0 ar que respiramos ou a terra que nossos pés pisam, mas tambem o que de mais commum? © que ha mais indispensavel do que a res~ piragao, porém, o que ha de mais facil? A vida da alma é bem mais importante do que a do corpo. Razao pela qual Deus a tem prodigalizado. O ar que nossa alma respira € a graca que nunca é negada a quem, a pede; a terra que ella pisa é a divina von-_ fade que se ndo esconde nunca sob seus pas- sos} sua respiracao é o acto de amor que brota espontaneamente da boa vontade. Neste amor, Deus resumiu toda perfeigéo. “Toda nossa perfeigéo, diz santo Affonso, consiste no amor do nosso Deus infinitamen- te amavel (2)..E’ a caridade que une a alma 4 santissima Trindade, que orienta para ella todas as faculdades do homem, com todos os seus actos até o menor, até o ultimo, que communica a todas as acc6es sua grandeza, 2) Opusculo: Conformidade com a vontade ae Deus, 8 sua nobreza ¢ seu merito: Caritatem habete quod est vinculum perfectionis (Cl 3, 14). Somos almas de boa vontade? Quem nao quereria ser deste numero? Neste caso, pres- temos attengao 4 voz do Senhor, esquecamos nosso povo e a casa de nosso Pae (Ps 44, 11), quer dizer, desapeguemos nossos cora- ges das coisas da terra e sigamos a Jesus Christo. Perguntemos a elle humildemente: “Rabbi, ubi habitas?” (Jo 1, 38, 39). “Mestre, onde habitaes?” Elle nos responderd: Venite et vi- dete, “Vinde e véde”. Elle nos introduzira na sa propria habitacao, no santuario de seu amor; admittir-nos-4 no conhecimento de -seus ineffaveis segredos; ligar-nos-A por la- cos tio suaves e tao fortes que nos sera im- possivel quebra-los. CAPITULO II A boa vontade domina todas as erlaturas 0 entregar a Deus sua vontade, a alma comp sua parte no trabalho da santi- fieagdo. Do resto Jesus se encarrega. -O que nao tem direito de esperar aquelle que se consagrou a este Mestre tio bom? Quem se abandona a elle, delle recebe tudo 9 © que o céu e terra encerr: » céu | am de verdadeiros gozos. oe 3 Deus pie, em primeiro lugar, ao servigo la vontade, todas as criaturas ¢ todos os aconiecimentos. Desde © momento em que é alma se decidiu a amar a Deus, tudo ‘oncorre para seu bem: Diligentibus Deum ‘omnia cooperantur in bonum (Rim 8, 28). Pe méos de Deus, todas as criaturas sio ores Hiss activos. Todas foram feitas em mee das almas a santificar: “Tudo € vosso, izia o apostolo aos corinthios, mas vos mes. pee sois de Christo e Christo é de Deus” mnia vestra sunt; vos autem Christi, Chris. ts autem Dei (1 Cr3, 23). a a ‘ A accao de Deus penetra todos os acor ieinetios¢ los servir a seus adoraves ignios (1); opera e design pera em toda extensdo dos Desc a eternidade, Deus compraz-se em formar na sua intelligencia 0 exemplar se- gundo o qual a alma deve ser santificada, Elle edifica para sua glori Elle « gloria 0 templo da Jerusalém celeste, e cada eleito, com uma pe- va Preciosa, tem ahi o seu lugar marcado. eus s6 conhece esse lugar, €, por conse guinte, a forma especial, a belleza particular que deve revestir cada alma. 1) Sto. Affonso, conforms to Bye jAtfonso, conformidade com a vontade 10 ~ Elle se occupa sem cessar em orna-la, em- bellezd-la e retratar nella a imagem de seu Filho. Com que infinita sabedoria, elle orien- ta para este fim todos os acontecimentos, todas as inspiracdes, as alegrias, as tristezas, todos os pormenores emfim da existencia. Tudo isto foi previsto com uma precisdo infinita e preparado por nosso Pae celeste como meio de santificacao. Tudo isto encer- ra para nés a divina Vontade, isto ¢, como se exprime santo Affonso, Deus mesmo. Oh! quanta bondade nesta conducta di- yina! Deus, 0 Infinito, 0 Todo-poderoso, o Sér cternamente feliz e independente, occu- pa-se a cada momento, com uma delicadeza ita, de nossa. santidade e felicidade. “Some tena mae, esta Providencia apre~ ‘ta-nos um alimento divino que sua sabe- doria preparou para cada um de nos. Nao temos sendo que acceitar, com amoroso re- conhecimento, 0 dom de Deus e conformar- nos com elle, ‘Amemos, pois, nosso Deus, amemo-lo em todas as coisas, em todos os acontecimentos. Nés nao temos outras funcedes a exercer aqui na terra. ‘Oh! si as almas pudessem comprehender quanto o divino Mestre simplificou sua ta- refa! $6 amor elle pede. Por que complicar tanto a vida espiritual? Somos feitos para amar. Deixemos ao nosso u Pae do céu 0 cuidado de tudo prever ¢ de tudo dispor para nosso bem. A nés compete sOmente agradar a Deus pela simplicidade de nosso amor. Elle ndo quer de nés nem preoccupacio, nem inquietagao; elle € assaz sabio e bom Para nos fornecer tudo de que temos neces~ Sidade, Deus s6 tem sede de nosso coracio, Respondamos a cada nova prova de sua ternura paternal por um acto ardente de amor: € uma flecha abrasada que transpas- sara seu Corago. Amemos, amemos: 6 nos~ 80 doce destino tanto aqui na terra como no céu. Nada nos embarace, nos prenda, pre- occupe, nem soffrimentos, contrariedades, tentagdes, aridez, previsdes sombrias do fu. {uro, perplexidades no presente, nem quei- xas do passado. Em tudo isto podemos amar nosso Deus e, si nés 0 amamos, elle se encarrega de tudo, prove tudo. Quem dard ds almas esta simplicidade de pomba, este unico olhar que prende e forca Deus a inclinar-se para ellas? Por que quasi todas despendem suas for- gas a procurar a santidade onde ella nao existe e esquecem de descer a seu proprio coracdo, onde Deus habita? “Eu vos amei tarde, dizia santo Agostinho, belleza tao an- 2 am. wide tiga e to nova, eu vos amei tarde. Estaveis dentro e eu féra de mim mesmo; era fora que eu vos procurava e buscava no meu erro a belleza de vossas criaturas: “Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova! Sero te amavil et ecce intus eras et ego foris, et ibi te quaerebam; et in ista formosa quae fecisti, deformis irruebam’ (2). Meu Deus, n&o vos procurarei mais fora de mim. Cada criatura e cada acontecimen- to vos conduzem 4 minha alma. Eu me abys- marei em vés a cada instante por um olitar muito simples ¢ muito inflammado. Eu me nuttirei de v6s. Oh! que abundancia... Nao irei mais beber a santidade em fontes seccas, em cisternas vazias (Jr 2, 13). Vos me mer. gulhaes sem cessar no oceano de vossa di- vina vontade. Eu me saciarei nelle ¢ nunca mais terei sede. CAPITULO III A boa vontade possue todos os tesouros de Deus O coragao que quer amar a Deus & rico: todas as criaturas Ihe servem. Este, porém, € © menor dos dons de Deus. Elle mesmo Se quer pOr ao servico da alma e isto de uma maneira ineffavel. 2) Confissdes, X, 17. Para nutrir a boa vontade, Jesus Christo instituiu a santa Eucharistia. O que vem a ser este divino Sacramento? E’ o amor que se faz alimento, afim de poder penetrar no objecto mado. Esta maravilha deve admirar-nos? No, porque para Deus-Caridade ella é uma coisa naturalissima, Somos filhos de Deus: devemos ser sus- tentados por um alimento celeste, Nosso sér divino: elle néo se mantém singo por um alimento divino. Jesus & 0 chefe do corpo mystico de que somos os membros (Ef 1, 22-23). Estes. membros nao devem viver’da mesma substancia de que a cabeca? Somos os ramos da vinha (Jo 15, 5), elle € a cepa, Nao deve a seiva passar do tronco aos ra- ‘mos e communicar-lhes a vida e a fecun dade? Oh! ndo me admiro do dom da santa Eu- charistia: mutua inhaesio est affectus amo- ris, diz Sto. Thomaz (1). O amor procura “Penetrar seu objecto, estreité-lo, unir-se a elle: © quem ama mais temamente e mais Jortemente do que um Deus? O amor néo se contenta com um conhe- cimento superficial (2), elle quer penetrar até ao intimo do sér, quer identificar-se com elle, D Sto. Thomaz, 1, 2, @. 28, a, 2 2) Ibid. 4 O! Jesus, eis ahi por que vés vos fazei: nosso’ alimento. Quereis uma posse intima, reciproca, irrevogavel; quereis habitar intei- ramente em nosso sér e nos fazer viver igual- mente em vs. Vosso desejo mais profundo, mais insaciavel, é de vos tornardes uma mes~ ma coisa comnosco ou, antes, de nos trans~ formar, de nos consumir em v6s: Ex ambo- _bus fieri unum (3). Para realizar esta maravilha, no hd hu- milhaco em que nao consintaes. O amor vos faz sair de algum modo de vosso ser infi- nitamente grande, afim de encontrar nosso nada e de vos identificar commosco, porque o amor € extatico (4). : Oh! deixemos que Jesus nos encha e sacie sua séde de unio. Elle é 0 Mestre. Por nossa vez, porém, saiamos de nbs mes mos 4 fora de amor. Preparemo-nos. para ~ “ovceleste festim pelo amor. Que outra pre~ parac&o se pode fazer para receber 0 Amor- alimento sino desejar e amar? Facamos ar- dentes actos de amor, actos simples e sem affectacdo, porque & preciso ser t4o simples com Deus! Quando 0 tivermos recebido em nosso co= rago, como Magdalena em sua casa, sente~ 8) Ibid, a, 4, ad 2 4) Sto. Thomaz, 4, 2, 4. 28, a. & 15 nos a seus pés e fitemo-lo com amor. Este ico olhar encanta-o, As almas comprehendem muito pouco a maneira de receber Jesus. Ellas sao agitadas em demasia, imaginam Pe € necessario pre- parar ao Mestre um esplendido festim, com- posto de pensamentos sublimes e de bellos sentimentos, Jesus no faz caso de todos estes prepa- rativos. Uma so coisa agrada-Ihe, € 0 dom do coragao entregue a cada instante por um olhar de amor..Fagamos silencio em nossa alma. Compete ao Senhor dos céus falar e ands escutar com humilde e amorosa atten- Gao. As almas queixam-se frequentemente que esta unica entrevista diaria entre Jesus e ellas seja, da parte dellas, to fria, e soffrem desta indifferenca. Este soffrimento nado é a me- Ihor prova que a alma pertence por comple- to a elle? Soffrer de sua impotencia nao é sindo uma modalidade do amor. Os coragées indifferentes nao se queixam de nfo amar. Alids, si Jesus vem 4 alma, € para nutrir sua boa voritade e para isso a dogura da en- trevista no contribue. Si visita a alma, é ainda para gozar de seu acolhimento. Quan- do nos consola, nds gozamos delle; quan- do nos deixa sem consolo, elle proprio goza de nosso generoso amor. Ento nds Ihe da- 16 mos, e é melhor dar do que receber (At 20, 35), sobretudo quando Deus se torna nosso devedor. © mysterio da santa Eucharistia é um mysterio de fé:mysterium fidei; & 0 encontro de Deus e da alma, porém nas trevas; & face a face, mas nao ainda entre o brilho da glo- ria. A’ alma nutrida pelo Corpo e pelo San- gue do Homem-Deus, que pode faltar ain- da? Falta-Ihe um banho de salvacdo onde se possa purificar de suas manchas. Jesus para isto providenciou. No Sacramento da Pe- nitencia, elle nos lava de nossos peccados no seu proprio sangue (Ap 1, 5). Banho sa~ lutar, banho necessario, porque todos os ho- mens so peccadores e as almas boas tém tambem fraquezas a deplorar. Sem este divino sacramento, teriamos mui to a lastimar, porque uma alma de boa von- tade deve ter 0 coracdo téo puro! ‘ Entre ella e Deus, no pode haver outro intermediario sino 0 acto do divino amor. Nenhuma criatura pode collocar-se entre Je- sus e a alma, porque o Mestre € cioso da pu- reza daquella que elle quer toda para si, Elle elevou a alma 4 dignidade de rainha, associou-a 4 sua vida, a seus designios e sua obra, E’ preciso que ella pertenca sé a elle. Nosso coragio pertence a Deus; nao pode ser escravo de criatura alguma. E’ destinado a viver em sociedade com 0 Filho de Deus: A bos vontade— 2 17 —— * * a wa 5, Fidelis Deus per quem vocati estis in so- cietatem filii ejus Jesu Christi Domini nos- tri (1 Cr 1, 9). Deixemo-nos captivar por este grande Deus; deixemo-nos conduzir a elle, ao seu amor infinito. Oh! como é miseravel 0 cora~ go que esta preso, seja por um fio, a um objecto criado. Para esta alma nao pode ha~ ver paz nem felicidade, nem inclinagdo para o bem. Ella se arrasta em vez de voar. Nao se elevaré nunca para Deus, nao conhecerA nunca a doce intimidade reservada 4s almas puras. Por que certas almas chamadas, a0 amor nao comprehendem isto? Por que nao dizem adeus 4s afieices da terra, ellas que pode- riam ter o Rei por amigo? (Pv 22, 11). Nao sabem que todo d progresso na santidade fica parado desde que 0 coracdo ow 0 espi- tito deliberadamente se desviam para uma criatura qualquer ou se deixam cair para lhe agradar em culpaveis fraquezas, mesmo le— ves? Entretanto, que a alma assim arrastada nfo perca a confianca. Si se quer emendar e procurar a Deus, com coragao sincero, ella © achard, Purifique-se no sangue do Cordei- ro e ver-se-A de novo revestida de innocen- cia e belleza, Para sustentar nossa boa vontade e des- envolvé-la sem cessar, para reergué-la nas 18 gone “No vos inquieteis para vossa fraquezas e curé-la de suas miserias, Deus nos dew seu proprio filho, e com elle, diz Sao Paulo, como nao teria dado tudo?” Quo- modo non etiam cum illo omnia nobis dona- vit? (Rm 8, 32). Com effeito, em Jesus e por Jesus pode- mos obler todas as gracas actiaes de que necessitamos para fazer um acto de amor. Si alguém duvidar disto, leia esta pagina admiravel do Evangelho (Mt 16, 25-34); Jesus ahi condemma a inquietacao relativa aos tencia es aquillo que comers ow que bebe is, hem para vosso corpo com que o vestirels. ‘A vida nao vale mais do que a alimentacao © 0 corpo mais do que as roupas? Olhae as aves do céu: no semeiam nem colhem, nem ajuntam em celleiros; ¢ com- tudo vosso Pae celeste as alimenta, Nao va- leis muito mais que ellas? Qual de vos com todo o seu cuidado pode accrescentar um covado 4 sua estatura? Quanto 4 roupa, por que vos inquietaes? Considerae como crescem os lirios do cam- po; nao trabalham nem fiam, Entretanto eu vos digo que mesmo Salomdo em toda sua gloria nao foi vestido como um delles. Pois si Deus assim veste a herva do cam- po, que hoje existe e que amanha serd lan- ES 19 er ¢ada ao forno, tanto mais vos vestird, ho- mens de pouca fé. Nao vos inquieteis, pois, e nao digaes: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? Porque com tudo isto é que se preoccupam os pagdos. Vosso Pae celeste sabe que necessitaes destas coisas. Buscae primeiramente o reino de Deus e sua justiga e todas estas coisas vos serao dadas por accrescimo. Nao vos inquieteis, pois, com o dia de amanha, porque o dia de amanhd ter suas preoccupacoes. A cada dia basta sua pena”. Nao sabe tambem nosso Pae celeste que nossa boa vontade tem necessidade de inces- santes soccorros actuaes? Podemos fazer a injuria em crér que a sua bondade € menos generosa quando se trata de nossa vida sobrenatural? Deus seré menos pronto a ajudar seu fi- Iho, quando este he pede para poder amé- lo, do que quando the solicita um beneficio temporal? Qual & dentre v6s 0 pae, diz Nosso Se- nhor, que dara uma pedra a seu filho si elle Ihe pedir pao, ou, si elle pedir peixe, dara uum escorpiao? Si vés, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, com quanto mais forte razao 0 Pae celeste dara o Es- 2» Z * pirito Santo aquelles que Iho pedirem? (Le 1, 11-13). Deus nada pode recusar 4 alma que pede. Elle repetiu isto vinte vezes no seu Evan- gelho. Quem mais e melhor pede do que a alma de boa vontade? Todo seu sér est em movimento para rogar a Deus o seu auxili © que é uma alma de boa vontade? E” uma alma que s6 aspira a Deus, que soffre por n&o poder ama-lo bastante, que geme nesta impotencia, que enlanguece pelo de- sejo de possui-lo melhor, de estreita-lo mai fortemente. Ora, esta aspiracao, este gem do, este doloroso desejo, so uma prece de um poder irresistivel. A alma de boa vontade é um cora¢ao sim- ples, puro, recto, e nosso Deus, elle assim © quiz, no sabe resistir a0 appello, a0 me- nor signal de affliccao de semelhantes almas. Deus espreita a preparacao de seu coracao para poder attend@-la: praeparationem cor- dis eorum audivit auris tua (Ps 10, 17). Elle interroga com os olhos os filhos dos ho- mens: Palpebrae ejus interrogant filios ho- minum? (Ps 10 B, 5). ©? almas de boa vontade, sois infini- tamente ricas! Para vés todos os thesouros encerrados na alma de Christo. Entre o Mestre e vos nao ha distancia: 0 _amor supprimiu-a. O que elle possue é vosso. Vos usufruireis dahi quanto quizerdes. a Somos os filhos do Rei dos reis, estamos sentados 4 sua mesa, somos seus herdeiros. Vivamos de maneira a honré-lo. Jesus 6 nosso irméo (Hb 2, 11). Por elle esiamos na santissima Trindade e ahi esta~ mos em nosso lugar. Somos filhos queridos de nosso Pae celeste © da Immaculada Vii gem, nossa Mae amada. Que nos pode fal- tar? Passemos nosso tempo amando a Deus. De que nos podemos occupar no seio das tres pessoas, sindo de amor? Deus € Ca- ridade (1 Jo 4, 8). Sua essencia € 0 amor, sila occupacio eterna 0 amor; por que nao seré tambem a de seus filhos? Amemos a Deus, Nada pode impedir-nos de ama-lo sempre, em todas as occupacées, em todos os nossos fracassos. Amar & um acto de boa vontade, Este acto faz-se simplesmente e sem esforcos; reno- va-se quando a alma nelle pensa; nao exclue 0 sensivel, a docura, a consola¢o, porém nao tem necessidade das mesmas. Eleva-se di- rectamente para Deus, como um dardo in- flammado, Estabelece assim entre Deus e a alma uma unido ininterrupta. Jesus, para conservar toda pureza de nos- sa boa vontade e assegurar-Ihe toda energia, nao pOde, parece, muitiplicar mais precau- goes em torno della, 2 Depois de se ter dado elle proprio em al mento 4 nossa alma, depois de haver feito de seu Sangue um banho salutar onde ella pode retemperar suas forcas, depois de ter posto a sua disposicéo todos os thesouros do cé e todas as criaturas da terra, quiz condensar de algum modo todos os seus be- neficios em um sé: 0 dom de sua propria Mae. Encarregou-a de prover todas as nossas necessidades, de satisfazer nossos desejos, de prever e afastar os perigos, em resumo, de velar sobre nés com seu coracto de Mae. Confiouclhe 0 cuidado de se interpor entre elle € nossa alma no dia de nossas fraque- zas, de nos reanimar pela confianca depois de nossas faltas, e de estimular nossa cora- gem nas horas de desanimo. Oh! como esta Mae bemdita € boa para nds! Quantas vezes salvou do naufragio nos- sa vida espiritual! Sob sua proteccdo nada temos a temer. Ella ¢ a Immaculada, quer dizer, a inimi- ga pessoal de Satanas; esmagou a serpente infernal, em si propria, e esmaga-a sem ces- sar na Igreja ¢ esta encarregada por Deus de esmagé-la no coracdo de cada eleito. A luta contra a serpente nao termi prosegue até ao fim dos tempos. Cada victoria da Immaculada conseguida sobre Satands na alma de seus filhos é para 23 ou; ella uma victoria pessoal sobre 0 espirito immundo, Sejamos ciosos da honra de nossa Mae. Nao permittamos que o demonio, infligin- do-nos uma derrota, possa gloriar-se de ter triumphado de nossa augusta Rainha. Confiemos a esta Virgem immaculada a guarda de nossa boa voniade, ella nos ensi- nard a arte de santificar-nos pelo simples acto de amor, pela volta affectuosa e con- stante de nossa alma ao nosso divino Pae. e 1] PARTE A ALMA DE BOA VONTADE TENDENDO A’ PERFEICAO A santidade so exige da parte da alma uma condi¢&o: a boa vontade. Deus encar- rega-se do resto, A boa vontade & aquella que quer tender em tudo para Deus, seu verdadeiro objecto. Esta tendencia nao se faz sindo por um acto: © amor. Amar a Deus e fazer durar este amor toda vida é 0 resumo de toda perfei- Sao. Para realizar este ideal, a alma tem uma triplice obrigagdo a cumprir: Seu primeiro cuidado deve ser unir a Deus sua vontade por meio do amor, 0 acto pro- prio desta faculdade. Este incessante esfor- go da alma constitue essencialmente a ora~ “a0. ~ Unida ella propria a Deus pelo amor, a vontade orienta para elle todas as faculda- ‘des sobre as quaes exerce seu imperio, com 25 todos seus actos e movimentos. Este traba- Tho da alma chamia-se a acedo. O homem, porém, nao deve somente agi io trabalho da oracao e no da acco, a alma encontra difficuldades que Ihe podem tolher os ‘passos para a perfeicdo, isto 6, 0 soffri- mento. Longe de, por elle, parar_ na sua marcha, a alma que ama vence os obstaculos e atira-se com mais ardor 4 procura de sew Deus. ‘Amar contemplando, trabalhando, soffren- do, eis o segredo da alma de boa vontade. Cada voo eleva-a mais alto na sua ascensao para Deus, transporta-a para mais longe na sua immensidade, aproxima-a do foco da luz, Para explicar as almas de boa vontade a maneira de assim amar a Deus, em tudo ¢ sempre, na oracdo, na acco e no soffrimen- to, € que s4o consagradas as paginas se- guintes. CAPITULO I A perfeigio pela oragio Artigo I — A simples presenca de Deu que € a oragao? E’ o movimento de um coracao amante para seu Deus. Esta oragao pode revestir-se de uma forma geral e de uma forma mais precisa. A forma geral € 0 26 volver para Deus por um simples e amoroso - olhar. A alma de boa vontade esta apta para esta, oragao? Certamente que sim; mesmo porque» ella nao faz outra coisa sindo se unir desta _ mangira a Deus, durante todo decurso do dia © que é uma alma de boa vontade? E’ aquella que por amor se entrega a Deus cada vez que nelle pensa. E este pensamen- to apresenta-se frequentemente porque 0 co- ragdo amante inclina o espirito para o obje~ cto amado. © coracao recto que se deu por completo a Deus tende instinctivamente para seu cen tro, Elle ora quasi sem o notar, por um sim- ples movimento para seu amado Senhor. O filho que quer bem a seu pae e a sua mae gosta de morar com elles no seio da familia. Este filho une-se de coragao a seus paes, as- socia-se a suas alegrias e tristezas, volta-se sem cessar para elles, tanto nos trabalhos como nos soffrimentos. Como se faz, pois, esta orago da simples _ presenga de Deus? Por um othar amoroso para elle. Este olhar é um acto da intelligen- cia e da vontade. A accao reciproca destas " duas faculdades combina-se tao bem e une. se Go estreitamente, que se parece fundir "em uma s6. A intelligencia considera Deus ca f presente e a vontade dirige-se affectuosa- mente para elle. te olhar & muito simples. Exclue o ra~ “ciocinio, a reflexdo e o estudo, E’ muito e piritual. Os sentidos e a imaginagio nao tem nelle parte alguma. A dogura sensivel — pode acompanhi-lo, ella nao ajunta nem di- minue nada a sew valor. Este olhar affectuoso faz-se sem esforco de memoria, sem contencao. Deus nao quer © constrangimento da alma. Um simples mo- vimento para elle entrega 0 coragéo por completo. A alma pode assim commungar a Deus todo 0 dia. Ao despertar, seu primeiro acto € um olhar amoroso para Deus. Este acto, ella se esforgard, calmamente, para continué- lo, repetindo-o algumas vezes mais explici~ tamente. A refeicdo e 0 recreio no devem interromper 0 doce commercio da alma com Deus, Assim ella fica exposta aos olhares do Mestre durante todo dia. Recebe a cada mo- mento os raios bemfazejos deste Sol divino € accumula thesouros de amor. Sem duvida, as occupagies virdo distrahi- la de Deus: 0 trabalho & absorvente; porém a alma de boa vontade ndo desanima, Entrega-se a suas occupagdes com toda li berdade de espirito. Si, para cumprir bem © sen dever, deve perder Deus de vista, 0 28 impedida para se apossar della com m: Mestre compensd-la-a mais. tarde. Elle es- perara que ella esteja mais livre ¢ mais des. amor. * Viré um tempo em que o trabalho nao seré ‘mais impedimento 4 uniZo continua com Deus. Isto, porém, néo depende da alma e ella o sabe. Deus reserva para si operar nel- la esta grande mudanga no momento que elle fixou e ella espera com paciencia. As distracedes, a que a alma se vé sujeita, ndo a perturbam mais. Sao inherentes 4 na- tureza humana. A intelligencia nao esta sem- pre na dependencia da alma; a imaginacio, muito menos. Conseguintemente, ella tira “disto seu partido. Nao é preciso querer 0 impossivel. ~ Ao menos 0 corpo, com suas exigencias e enfermidades, podera impedir 0 anhelo da alma para Deus? Absolutamente nao. O cor- po pertence 4 terra: é de admirar que se in- Cline sem cessar para a terra? A alma o ro- deia de cuidados razoaveis. Assim, retira delle todos os servicos que tem direito de e: perar, Além disto, ella se estriba na vontade. A voniade nao pertence por completo ao ho- mem? Assim, nada é obstaculo 4 alma bem dis- posta. Em tudo encontra Deus, em tudo o abraca, Nao esta ligado por nenhuma forma especial 4 presenga de Deus. Ella o encontra * 29 ee na contemplagéo da natureza; sabe que sua immensidade enche o universo. Gosta de pe- netrar no seu proprio interior e viver ahi no seio das tres pessoasy divinas. Expande sua alma na de Jesus, seu prisioneiro de amor no santo Tabernaculo, e na de sua ‘Mae Maria, ao lado de quem passa horas de- liciosas. Por que procuraria ella seu veus? Ella se sente envolvida por seu paternal olhar. Este Deus a penetra, conduz e rodeia. Por que hesitar? Lancemo-nos neue, elle esté em toda parte, realmente, verdadeira~ mente como est no céu. Amemo-lo, abraci mo-lo pela nossa ardente atieicao, prenda mo-lo pela pureza de nosso olhar. Entregue | mo-nos a elle como nosso Pae; deixemo-nos ~ invadir pela sua divina caridade, mergulhe- mos nelle como num oceano de luz. Todas estas formas s4o boas, desde que nos abandonem irrevogavelmente nelle. Si faltar um elemento para nossa vida es- piritual, 0 Mestre tera cuidado de remediar a tempo. Elle sé pede de més boa vontade. Elle proprio nos conduz por seus attracti- vos, e estes elle adapta 4s nossas_nocessi- dades. A tal momento de nossa vida espi ritual, far-nos-4 encontrar alegrias na con- templacao da natureza; a tal outro, attrahir- nos-A vivamente para seu Tabernaculo. Ora elle se descobrira a nés em nosso propri 30 of interior, ora manifestar-se-A em suas obras. Hoje, a amavei pessoa de nosso Senhor Jesus Christo nos captivara, amanha seremos es- clarecidos, por uma viva luz, sobre a sant sima Trindade, Si Jesus fOr o objecto prin cipal de nossa piedade, sentir-nos-emos at- trahidos para elle, ora’no mysterio de sua Paixdo, de sua Eucharistia, ora na sua pro- pria pessoa, seu sagrado Coracao, seu ca- racter de chefe do Corpo Mystico, sua qua- lidade de esposo, de irm&o de nossa alma. Deixemos a Deus o cuidado de variar seus attractivos e acceitemos tudo de sua mao. Nao the prescrevemos nem forma nem me- thodo. Nao é elle nosso Pae muito amado? _ Nao sabe elle © que melhor convém a seus -filhos? _ As almas occupam-se em demasia com 0 exterior da piedade, com a apparencia da vida espiritual. Entretanto, o dever dellas “é sémente amar a Deus, voltar-se sincera e constantemente para elle e fazer sua divina voutade. “O que € a perfeieo, dizia santo Affonso, © antes delle, santa Teresa, sinZo a unio da nossa vontade com a vontade de Deus?” (1) Esta oracao da simples presenca de Deus “©, pois, muito facil, consiste na aspiracdo de 1) A eonformidade com a vontade de Deus. § 1. 34 tm coraeo amante por seu bom Mestre. Entrega a alma por completo; a cada instan te atinge 2 perfeigao. Este ofhar simples a Deus 6, : ssi para Deiis 6, pois, um acto perfetissimo de E’ tambem um acto de confianga heroica, pois que a alma se esquece de si propria cegamente se langa em Deus. E* um acto de f€ muito intenso, porque te suppde que a alma creia na infinita bon- dade, no ineffavel amor de um Deus por ella, E' um acto de total abnegacto, pois que a alma renuncia a toda idéa proptia, 4 prow cura de si mesma, a toda satisfacdo que Deas, Feprova, a toda inquietagao, mesmo fuel que diz respeito @ sua propria per- ~_E* um acto de abandono perfeit signios de Deus sobre ella, a todas as ope- rages que Ihe agradar fazer nella. “Este acto de abandono, diz Bossuet (1), entrega o homem por completo a Deus: sua alma, seu corpo, emgeral e em particular, todos seus pensamentos, sentimentos, dese, jos, todos seus membros, todos seus ‘nervos até is menores fibras, todos seus ossos até ao interior, até a medula, todas suas entra- 2) Sermo sobre o acto do abandono vina Providencia, er ai cy nhas, todo o interior e 0 exterior. Tudo vos esti entregue, 6 Senor, fazei 0 que quizer- des”, Quanta perfeigao realizada a cada instan- te pela fidelidade em andar na divina pre- senca! Como a santidade é coisa simples aos olhos de Deus, quando nao a complicamos pelas nossas idéas pessoaes! Basta voltar-se simplesmente para Deus como um filho se volta para seu pae, por um affectuoso olhar que entrega a alma sem reserva, que a faz ir-se em Deus, seu principio e seu Artigo II — A oracio ordinaria, ‘A alma no saberia contentar-se em cult var assim, durante todas as acgies do dia, esta simples presenga de Deus. Ella aspira, 4s vezes, a maior intimidade. Necessario Ihe 6 a certos momentos, mais solidéo e mais silencio, Alias, 0 proprio Mestre convida-a para vir de tempos a tempos repousar perto delle. Elle tambem tem necessidade de en- « freter-se mais intimamente com ella. Estes momentos so aquelles que toda al- ma de boa vontade deve consagrar 4 ora~ 40 propriamente dita. Que oragZo € esta? A oractio propria~ mente dita pode revestir-se de tres formas distinctas. A’ primeira dé-se o nome de ora- edo ordinaria, porque a alma pode fazé-la com o auxilio da graca commum. A ultima 33 A boa. vontade chama-se oraetio extraordinaria ou passiva, porque a alma nao pode praticd-la sinao ajudada por um soccorro especial de Deus, Ella no produz a suave unio com Deus, ella a recebe. Entre estas duas especies de oragSes, ha uma transiedo, durante a qual a alma esta ora na oracio ordinaria, ora na orago extraordinaria (1). Este eslado in- termediario € acompanhado geralmente de certas provagoes destinadas a purificar a alma de boa vontade. No presente capitulo trata-se da oracéo ordinaria, Esta é, essencialmente, uma unio. affe- eluosa da vontade com Deus. Nao differe, necessariamente, do simples exercicio da pre- senga de Deus. E’ este mesmo volver de um Coragao amante para seu Pae muito amado, effectuado de maneira mais elevada e mais intensa, E’ um entretenimento cordial da alma com 6 divino Mestre, acompanhado por uma vista pratica sobre a'accao a santificar. ‘ Quanto mais simples ¢ este colloquio, mais agrada a Deus; quanto mais este olhar € affectuoso e constante, mais a oracao é ver- dadeira e efficaz, Que a alma, pois, nao se 3) Sento Affonso, Homo apost, t. TH app. I, n. 8, So Jo&o da Cruz, Noite escura, tiv cap. XVIEXEX, Sublda do Carmelo, Ik i, ap, ‘XIV-Xv. : 34 preoceupe com quaesquer especies de metho- dos e praticas, a menos que tenia sido por si propria reconhecido disto a utilidade. O filho no seio da familia nado tem methodo para amar seu pae e sita mae; elle os ama, eis tudo; elle Ihes diz isto; faz o que elles The ordenam e ds vezes affectuosamente os abraca. Fazer oragdo outra coisa nao é sinaio amar, e nada mais facil para a alma bem di posta. Deus s6 pede de suas criaturas racio- naes um amor ardente, que envolva toda a sua existencia: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et in tota anima tua et in tota mente tua (Mt 22, 37): “Amards Senhor teu Deus de todo teu coracdo, de toda tua alma e de todo teu pensamento”. Ele devia tomar facil a execugdo deste gran de e universal mandamento. Todas as almas ‘aevem poder amar e amar sem esforco. O que € necessario fazer durante 0 tempo destinado 4 oragao? E” necessario, antes de tudo, por um acto muito simples, fixar 0 oihar amorosamente em Deus, manter-se em seguida nesta divina presenga, fazendo, de tempos a tempos, actos muito simples de amor de Deus. Estes actos podem tomar qualquer forma, segundo a inclinagao parti- cular de cada um. Ora serao explicitamente formulados, ora sero distillados pela fina expresso da von- s 35 fade, sem nenhuma mistura do sensivel, Seu objecto pode variar conforme a escolha de cada alma. Podem-se, assim, fazer actos de complacencia na belleza, amabilidade, bon. dade de Deus; actos de benevolencia, de confianca, de contricao, de odio 20 peccado, Tudo isto ¢ amor ou inspirado pelo amor, Uma ‘semelhante occupagio, seguida com alma, esta ao alean gala esta ce de todas as almas de Algumas, entretanto, t8m necessidade de ‘mergulhar primeiramente seus actos de amor na reflexdo; nas consideragdes prévias do espirito. Convém desvié-las disto? De ne. nhum modo. A senda da vida espiritual é bastante larga para dar passagem a todas as almas. Cada’uma segue sew attractivo, guia da por seu director de consciencia, Emquanto as consideragdes tém para uma alma attractivo e utilidade, esta pode pren- der-se a ellas. Uma unica’ coisa importa: a reflexdo no deve ser sindo um meio, O fim, a essencia, 0 unico indispensavel & sempre a unio affectuosa da vontade com Deus, Tal é em toda sua simplicidade, a ora- ¢40 ordinaria. As distracgdes nao sio um obstaculo, A vontade permanece sempre em Deus, a menos que a alma a afaste delle por uum acto positivo. Ora, & a vontade que ama © € 0 amor que une, 36 Que importam as divagacdes lo espirito, a impossibilidade em reunir as idéas, em re- frear a imaginagio? Uma s6 coisa é reque- rida para fazer oragao: langar seu coracao em Deus cada vez que nelle se pensa. Quan- do o pensamento de fazé-lo ndo se apresen- ta, a alma a isto nao estaria obrigada. Deus nao pede o impossivel. A boa vontade sup- pre tudo. Oh! como. semelhante oragio € fructuosa! A alma une-se a Deus para amé-lo e fazer passar este amor em todas as acces da vida. O fructo desta oracdo nunca € um prazer esteril. Nos temos a eternidade para gozar de Deus. Aqui na terra nbs nos esforcamos sempre para nos tornar melhores. Esta re~ solucdo néo pode ser explicitamente formu- lada, porém € verdadeira. ‘ a propria essencia de toda boa vontade E’ uma disposigo continua, um desejo ar dente de progredit sempre mais rapidamen- te na vida espiritual. A alma tem cuidado, em todas as suas ora- ges, de tornar esta resolucao fecunda por uma’ fiumilde prece. Ainda uma vez, nao é necessario para este fim, que multiplique seus actos de petigdo. Ella esti por essen cia num estado permanente de humilde e confiante supplica. Sua propria attitude é uma prece, Ella tem consciencia que, por si s6, nada pode, que Deus deve dar-Ihe tudo, 3 até sua boa vontade; sabe que Deus nada mais deseja do que lhe conhecer todas as gracas. Dahi se estabelece nella uma espera tranquilla, hhumildemente confiante do. soc- corro de Deus. E’ a mais efficaz oracdo. Unido affectuosa da vontade com a von- tade de Deus, animada de tempos a tempos, Si 0 attractivo a leva a isto, pela reflexdo, extensiva pela resolugio até 4 acco e fe. cundada pela humilde supplica, tal € a ora- io ordinaria de uma alma que comeca a ten- der para a perfei¢ao. Esta ahi o mecanismc. todo 0 segredo da oragao. E8te colloquio cordial com Deus pode fa- zer-se de muitas maneiras, 4 escolha todas da propria alma. Ella esté no seu domini Na oragao extraordinaria, Deus Ihe impor: sua maneira: aqui ella é'livre. Pode multi- Plicar seus actos de amor, varid-los a seu grado, exprimi-los sensivelmente e a meia voz, ou formulé-los simplesmente por suas faculdades espirituaes. Pode tambem fazer tregua a esta multiplicidade de actos expli- citos, simplificar sua acedo, concentrar toda Sua energia em um olhar de amor calma- mente sustentado e por vezes docemente rigido para Deus. Esta ultima maneira 6 a mais perfeita em si, porém nao convém igualmente a todas as maturezas. O espirito e 0 coragéo apre- sentam modalidades infinitas e Deus a elles 38 adapta sua graca e sett attractivo. Toda- via, si.a alma encontrasnisto facilidade, deve simplificar sua acco, fazer mais silencio, escutar 0 Mestre e unit-se a elle por um sim- ples movimento de sua vontade. Ella assim disporé melhor para receber de Jesus um convite para subir mais alto, ma para perto de seu coracdo. Queira este bom Mestre nao tardar a com- municar-lhe esta graga, si ella ainda ndo a recebeut! Artigo TI — A oracko intermediaria- A noite dos sentidos. ee contra uma alma bem Quando Jesus encontra a disposta, apega-se a ella com uma especie de predileccao, Esclarece-a gradualmente em todos os segredos de seu amor. Elle a faz subir até aos cimos da oragao. i fo faz ‘modo quasi Esta ascensao faz-se de um mo sempre insensivel, O| Mestre repelta nossa i Ima & orag0 in fureza, dispondo nossa alma 4 | fsa A teannigao da oragio activa para a oragao passiva é um dos mysterios da vida espiritual que desconcerta muitos directores e-desencaminhamuitas almas. A vontad recta e boa passaré, aqui como por toda par- te, conduizida pela mao de Devs: Tenis dexteram meam et in voluntate tua xisti me (Ps 72, 24). 39 — Que 6 pois, esta oracto intermediatia cha i 2, Por S. Joao-da Cruz, a noite dos sen- ae Que deve fazer a alma de boa von. le para corres, ic e oo ponder aos designios de Deus introduz a al E z a alma de boa vontade n oracdo extraordinaria, quando substitue ma ia iniciativa a da intelligencia e da vontade. rinesHo destas duas factldades mio & sup. Primida pela divina intervencdo, & tio sb. mente subordinada 4 de Deus. Na oracio ordinaria, a alma serve-se da graca de Deus ue fazer ella propria sua vida espiritual. A aso extraordinaria, Deus serve-se das acullades da alma para agir 4 sua vontade m vez de buscar suas impressdes em : 1 : presses em Pa, nos sentidos, a intelligencia e a von- lade deverdo, daquelle momento em diante, Tecebé-las do proprio Deus. A sua inclina. $40 para o sensivel, Deus a substituité. por uma disposicao toda espiritual, E’ para fazer penetrar | gradualmente na alma esta nova disposi¢ao que temde a ora. ao intermediaria de que falamos, Deus comeca fazendo bri i 6 rilhar na alma uma discreta tuz intusa sobre suas divinas per- feicées ou sobre : os mysterios da vi nosso Senhor. Z a Esta luz fraca faz surgi surgir e nutre na alma una lembranga de Deus confusa e geral. A alma que assim 6 favorecida diz-se perse- 40 guida, acompanhada pelo pensamento de Deus. Esta lembranga nao Ihe traz luz particular, porém accende no coracio um certo desejo vago, quasi imperceptivel de apegar-se s6- mente a Deus. Esta necessidade é persisten- te, dolorosa, porém pouco determinada. Ella se faz mais viva depois de qualquer falta ou depois de alguns dias passados na distraceao ou em alguma occupaco absorvente. A al- ‘ma nota que deveria estar mais unida a Deus e nGo tem forca, nao vé o meio para isto. Do mesmo modo que a luz infusa na in- telligencia provoca na vontade um desejo persistente, porém vago de pertencer por completo a Deus, assim, de seu lado, esta luz e este amor infusos comecam a desapegar a alma do sensivel. As criaturas apparecem como vazias e in~ capazes de satisfazer 0 coracdo. Attrahentes no passado, nao inspiram no presente mais que indifferenca e mesmo averséo. A alma ama_a soliddo sem muito comprehender a oragio; ahi se occupa de Deus sem notar; aspira ao céu e olha com compaixao para aquelles que se apegam ao seculo: Hew mihi? Qui: incolatus meus protongatus est (Ps 119, 5): Oh! diz ella, como meu exilio se prolonga! Quis mihi dabit pennas, sicut co- lumbae et volabo et requiescam? (Ps 54, 7). a “Quem me dard asas como a pomba? E ew voarei e repousarei”. ~ © desapego do sensivel produz, por sua vez, um outro phenomeno. A alma ndo sabe ‘mais meditar; suas oragdes tornam-se aridas e distrahidas. Até aqui suas faculdades es- pirituaes puderam ser ajudadas pelos sen- tidos; a intelligencia havia-lhes emprestado seu objecto e a vontade havia, com seu con- facto, activado sua chamma de amor. Agora 08 sentidos no sao mais consultados. Disto resulta uma suppressdo total e subita de um elemento muito apreciado até entdo: a con- solagdo ¢ o apoio sensiveis. A alma tomaria sett partido, si um attractivo espiritual ti- vesse vindo occupar o lugar do primeiro, po- rém assim: no é A acgio divina, com- mummente doce € stiave quando é pronuncia~ da, é ainda muito fraca, para favorecer a alma de um apoio. Esta nao encontra, pois, auxilio algum. Dahi resulta um estado de aridez e de tristeza perpetua. Na oragao, a alma encontra-se numa especie de torpor, de molleza involuntaria e impotencia. Esta somnolencia espiritual Ihe € um gran- de soffrimento; ella se accusa de descuido; compara seu estado presente com o fervor passado ¢ persuade-se que recua em vez de avangar e, sem a palavra animadora de seu director, estaria arriscada a tudo abandonar. 42 Ahi no termina ainda a serie de suas m serias. Tornada mais sensivel pelo proprio soffrimento, dolorida, de algum modo, pela pena que a’acabrunha, a alma torna-se mais impressionavel. O que outrora a acharia in- differente, présentemente a atormenta. Va~ rias destas almas sao assim trabalhadas por duvidas penosas, tentacdes violentas, contra riadas por difficuldades exteriores, experi- mentadas por doengas e reveses de fortuna, Deus, elle proprio, aproveita as vezes este tempo de purificagao para ajuntar sua cruz a todas aS provagies que ja affligem esta alma. Que deve fazer a alma que se reconhece neste retrato? Si ella o quer realmente, sua conducta é muito simples, Seu papel reduz-se aqui, como em toda outra parte, em guardar intacta sua boa vontade. Deve, pois, seguir seu Deus resolutamente por um acto de amor, consen- tir em sua acedo sobre ella e penetrar com elle nesta via obscura que a conduzira 4 ple- na luz. Ninguem pode perturbar sua liberdade, e, gracas a esta, a alma pode amar. Ella se contentara da vista geral e confusa que tem de Deus e far-lhe-4, na medida de suas for- as, seu acto de amoroso abandono. Nao bus- Card nenhum apoio no sensivel e deixard as reflexdes pelas quaes ndo experimenta sino 43 a a i desgosto, no deplorara sua antiga maneira de unir-se a Deus, agradecer-Ihe-4, a0 con- trario, esta séde de tnio com a qual elle tanto quer gratificd-ta. © ponto importante, porém, 6: a alma deve supportar com paciencia os longos me~ 268 €, Ag vezes, os longos annos de tristezas que este estado traz comsigo, deixar Deus agir nella, abster-se de perscrutar seus im- penetraveis designios e entregar-se a elle em toda occasio, por um simples acto de amor. Toda outra conducta nao faria sind pro- longar o tempo de sua prova, Amar a Deus por um simples movimen- to para elle, cada vez que sua lembranca se apresenta a seu pensamento, tal é 0 dever da alma, tal € toda sua occupagio. Quer o Mestre experimente-a por sua ausencia pro- longada, quer elle a faca enlanguecer de des gosto, quer elle a lance em um labyrintho de difficuldades exteriores. inextricaveis, a al- ma pode dizer-Ihe sempre: Benedicam Domi- num in omni tempore; semper laus ejus in ore meo (Ps 33, 2): “Bemdirei o Senhor em todo tempo, sempre minha bocca cele- brara seus louvores”. Sempre a alma pode arremessar-se para elle, no levada pelo sen- tido, porém pela vontade, nao levada pelo attractivo, porém sustentada pela forca di- vina, Deus nao envia nunca esta provacao sem dar abundantemente seus soccorros, Sua 4 intervengfio paternal escapa 4 alma, porém nao deixa por isto de ser menos real. ‘Oh! bemaventurada a alma que sabe con- tentar-se em amar sem gozar! O céu, a ter- ra eo inferno ligar-se-iam contra ella, e ella ficaria inabalavel. Com S. Paulo ella pode dizer: “Tenho a persuasio que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principa- dos, nem coisas presentes, nem futuras, nem poder, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura podera separar-nos da caridade de Deus que esti no Christo Jesus Nosso Senhor (Rm 8, 38-39). Amar e soffrer, soffrer amando, tal 6 a sorte invejavel destas almas. Si ellas o pi dessem comprehender e atirar longe toda in- quietagao, toda preoccupacao voluntaria! 0" bom Mestre! Si vos deixassem agir, vos permittissem de formar nos coracées vos- sa imagem adoravel, si se limitassem a man- ter intacta a boa vontade e a amar-vos por um olhar muito simples, quantas maravilhas vés operarieis nas almas! Depois de té-las purificado, vés as tomarieis para mais perto de v6s, v6s as estreitarieis sobre vosso divino Coracto, para fazé-las provar as delicias neffaveis de vosso amor. Boa vontade, acto de amor por toda parte e sempre, nada fora disto, eis ahi o meu pro- gramma de hoje em diante. Pertence a Jesus ter cuidado do mais. Amar a Deus, ama-lo 45 aiieaasi com todas as minhas forcas, ama-lo sem go- zar, am-lo no desgosto, ‘na seccura, na obscuridade, nas duvidas, nos escrupulos, nas tentagdes, nas sombrias visdes do futu- 10, tal seré 0 meu quinhao, emquanto o qui- zer meu Senhor, Sei que elle € bom, sei que me ama, creio em seu amor. Amar-vos assim, meu querido Mestre, en- canta-me. Para gozar de vds tenho uma eternidade, para vos fazer gozar de meu amor pelo soffrimento e immolagao, ndo te- nho sindo uma curta existencia. Tirae de minha substancia tudo que ella pode conter de gloria para vosso nome, consumi-a para que, morrendo, eu me torne toda amor. ee A ccvsla meomn, A alma que passa pela provacdo da noite dos sentidos, imagina que tudo esta perdido, que nao recuperara nunca mais a doce pre- senca de Deus. Demora, entretanto, a este Deus de bondade, de se entregar sem reser va a ella, Dentre em pouco a prova passara © 0 Mestre apresentar-se-a e chamé-la-A Magister adest et vocat te (Jo 11, 28). Este appello é a oragdo infusa, A medida que avangamos, 0 caminho tor na-se mais obscuro aos olhos da razio e mesmo da simples {€. 0 coracao recto, po- rém, nada tem a temer. O proprio Mestre il- lumina-o e nfo o deixa desviar-se. A boa 6 vontade possue a chave da sciencia e a chave do abysmo. Todas as portas Ihe sao abertas, ella penetra até ao seio da Santissima Trin dade. O que é a oracdo passiva? E’ 0 conheci- ‘mento ¢ um amor directamente communica dos 4 alma por Deus mesmo. Deus derrama na intelligencia uma viva luz e accende no coragao um ardente amor. A alma sente muito bem que ella nao pode- ria produzir, por suas proprias forcas, nem mesmo ajudada s6mente pela graca ordina~ ria, esta luz subita e estes doces transportes. Muitas vezes, aliés, Deus favorece-a no mo- mento em que ella néo espera, em que nao est4 absolutamente preparada. Esta. visita amorosa de Deus faz-se frequentemente de improviso e cessa da mesma maneira, To- dos os esforcos da alma sao impotentes para prolongar a acco de Deus, mesmo por um instante, © conhecimento infuso néo se obtém pelo raciocinio, porém por impressao. A alma sen- te Deus, foca-o, estreita-o, vé-se tomada por elle, sente perder-se suavemente nelle. Este conhecimento nao tem a claridade da luz da gloria, permanece obscuro, pois que nds vi- vemos ainda sobre a terra, porém infunde na alma uma Seguranca absoluta. Do mesmo modo, 0 amor infuso ndo é um goz0 beatifico, porém uma preparacio a esta 4a felicidade ineffavel. Muitas vezes € um ante- gozo das alegrias do céu, mas as vezes lane ga a alma em extranhas torturas. amor infuso na oragao passiva pode, com effeito, ser acompanhado seja por do- Guras © consolagdes inexprimiveis, seja por grandes provas interiores. Deus, que sant fica as almas como quer, gratifica-as muitas vezes successivamente com umas e outras, Ambas, entretanto, nascem do vehemente amor que a alma consagra a Deus. Nenhu ma lingua exprimiré jamais o que podem experimentar de alegria intima, de profunda felicidade, estas almas favorecidas. Ora, o amor é para ellas um doce repouso, uma tranquilla © suave possessio de Deus, ou melhor um gozo ineffavel derivando da vontade ‘em tolls as faculdades e até na Parte sensivel e corporal do homem. Esta alegria € tio deliciosa, tfo profunda, tio plena e superabundante, que 0 coracao, nZo podendo conté-la, cae em uma especie de embriaguez espiritual, Ora, 0 amor € um fogo devorador, um desejo vehemente, uma aspiragio ardente Para o Mestre, quesella quereria estetar, com quem quereria ser identificada na uni. dade do amor. A’s vezes 0 amor toma a forma de um abandono filial, de uma con- fianga illimitada, deliciosa, em Deus. A alma tem consciencia de que é filha de Deus e da 48 santissima Virgem, vé-se no seio da Sagra~ ia Familia e isenta de toda solicitude. Be vezes ainda, o amor 6 uma forca. A alma sente-se dotada de tal energia que nao teme os homens mem os demonios, que se ‘eré capaz de derrubar todas as barreiras que the fecham o caminho para seu Deus. ‘AN’ alegria, porém, succede 4s vezes a tris teza: a consolacao da lugar 4 desolagio, 4 descontianga e mesmo ao desespero appa- rente, : © Deus, pelo qual a alma suspirava com tanta suavidade, subtrae-se de repente ao sett alcance, ou, ent3o, mostra-se como um Deus justo, um Deus’ ofiendido, um Deus vingador do peccado. 0 amor ha pouco to save e tao doce, transforma-se bruscamen- te em movimento de temor, de desespero, de colera, de tristeza acabrunhante ¢ aversao a Deus. A alma cré peccar por todos seus actos ¢ € isto que leva a0 auge sua pena Estes mysteriosos soffrimentos cons! eae ie "Sio Joao da Cruz chama a noite do espirito. Elles sio a ultima purificagio, 9 ago indissohwvel pelo qual Deus defini se apega As almas. “atiges sto, nag, suas linhas essenciaes, 2 natureza e 0s effeitos ordinarios desta ora~ cao. Percorrendo estas paginas, certas almas perguntaréo a si mesmas com medo, qual A boa vontade — 4 a deve’ ser sua conducta, si, um dia, Deus as fizer penetrar na oracdo infusa, Que ellas ndo temam! Aqui, mais do que em qualquer outra parte, a boa vontade sup. pre tudo, Esta oragao no € chamada pas- siva? * A unica obrigagio da alma é receber 0 dom de Deus, sob qualquer forma que se apresente, amar a Deus*por meio do amor que elle mesmo infunde no coragao, acceitar alegremente os espinhos como as flores ¢ Prestar-se tanto ds dolorosas exigencias de Deus como 4s suas mais deliciosas caricias, Assim, nao ter mais movimento sind para Deus. Que ella evite, pois, durante as doguras da oragao infusa, de apegar-se a outra coisa que nao seja ao amor, de examinar curiosa~ mente a acedo de Deus, a maneira pela qual elle se quer unir a ella, ‘a frequencia de suas visitas. Tudo isto constitue a parte de Deus; elle nao deseja da alma, sua esposa, sino amor, a simples adhesao a todas as suas von iades. Que a alma nao procure com ansiedade a que grau de oracao chegou. Os graus da oracdo nao se medem sino sobre 0 amor. Quanto mais intenso é este, mais a alma sobe para seu Deus, porém’ sé Deus pode fixar seus graus. 0 Cada alma de boa vontade é um campo onde Deus cultiva virtudes, faz desabrochar flores e amadurecer fructos de santidade. Elle proprio é 0 jardineiro. Compete 4s plan- tas, somente, crescer ¢ produzir uma bella e rica colheita. Si as almas quizessem ser do- ceis 4 accdo de Deus, chegariam todas a uma grande santidade. Ha almas preoccupadas com certos phe- nomenos extraordinarios da contemplacao: visdes, revelagdes, extases e outras coisas do mesmo genero. Estes phenomenos nao sao effeitos proprios da oragao infusa; ndo sao absolutamente requeridos para a mais eleva- da contemplagio; nao constituem graus ne- cessarios dla oragzo nem da mais consumada santidade, Sao manifestacdes _miraculosas que Deus concede raramente. Seria temera- rio deseja-las, porque néo sao 0 amor. Emfim, que faré a alma de oracdo lan- gada por Deus no crisol da provacdo? Pode Contentar-se ainda, durante as torturas inte- riores, em amar a Deus ou mesmo consegue ainda’ ama-to? Si ha um momento em que a alma deve fazer consistir toda sua aceao gem o simples movimento da boa vontade para Deus, & por certo aquelle da purificacao passiva, da noite do espirito. Smente as almas que estiveram envoltas nestas horriveis trevas podem fazer disso uma idéa. Deus gosta de envolver-se ° Bt = nessa obscuridade impenetravel para fazer na alma a mysteriosa e ultima transforma g40. Elle retém a alma por suas fibras mais intimas, extrae tudo que ella contém ainda de natural, de humano, de egoista. A alma tentaria em vao debater-se sob esse omni Potente laco, oppér-se 4 penetrante e purifi cante accao de se Deus: ella nao faria si no prolongar seu tormento. Que aalma, assim aniquilada, esmagada sob a mao de Deus que a ama, se deixe pu- Tificar por elle, que responda’a cada novo soffrimento por um amoroso fiat. Que se apegue 4 obediencia a sew director, que siga cegamente seus consethos e, no resto, que se deixe guiar por Deus. Nenhum livro, nenhum director, instruirio, jimais a fundo, uma alma, neste genero de Soffrimentos. Antes de soffré-los, nao se sa- beria comprehende-los, e, quando elles so- brevém, os livros, os conselhos nao dizem is nada 4 alma. Deus reserva este domi nio para si: aqui, elle pode obter da alma um abandono completo, um acto de perfeita boa vontade. Os movimentos de aversio a Deus, de desespero, de colera, de odio, néo poderiam ipedir o soberano Mestre de fazer sua obra. stes movimentos 6 siio taes, em apparen- cia; em realidade, elles séo actos de um ve- hementissimo e purissimo amor de Deu: 52 & alma persuade-se do contrario e geme, la~ menta-se e & torturada: mas que importa? E’ s6 por uns momentos e por elles ella se purifica, transforma, ama. ‘O' meu Deus! Quero deixar-vos trabalhar minha alma até ao extremo, até ao Calva- rio. A resurreicao vird um 3 Pobre pequena lagarta, quero rastejar a terra, tanto tempo quanto vés julgardes bom, quero por vés ser encerrada em uma obscura prisdo e ficar ahi morta e sepultada, conten-_ tando-me em amar-vos até ao dia’ em que quizerdes quebrar as paredes da minha es- treita cellula e dar-me asas para voar até vos. Entio, agil como a borboleta, minha alma transportar-se-A 4 vossa divina Cari- dade ¢ um mesmo fogo abrasara para sem- pre o Criador e sua desprezivel criatura. ‘Oh! como nosso destino é bello! Amar a Deus para sempre, amé-lo no céu, amé-lo na terra, améd-lo na alegria e tristeza, na luz e nas trevas, améd-lo tanto no Calvario como no Thabor. Boa vontade, é teu acto, tua prerogativa. CAPITULO II A perfeicaio pela ofacio Artigo T— © momento presente, Santificar-se, € amar a Deus, é impregnar deste amor toda sua vida, é fazer passar a 53 todas as minimas accdes de uma existencia este sopro sobrenatural, esta intengao recta, este desejo de pertencer a Deus. E isto possivel? Oh! certo, isto € reali- zayel ¢ muitas almas simples alcancam cada dia este sublime ideal. Que nos € necessario fazer para sermos do numero destas almas felizes? A\ alma de boa vontade deve comecar sim- Plificando sua tarefa Nunea seria demais repetir: quasi todas complicam por gosto o trabalho da pertéi. 40; a0 emprehender a viagem para a san- tidade: sobrecarregam-se de um fardo. in- util; perdem suas forgas em occupacdes sem importancia ou de utilidace contestavel. E* necessario, pois, reduzir todo 0 tra- balho da perfeig@o a’um unico ponto bem preciso, isto é a0 momento presente; 6 ne- cessario limitar a vida, a actividade, a0 de- ver presente, procurar bem, para isto, em- Pregar todo 0 cuidado, toda vigilancia pos- sivel Nao é de admirar que 0 desanimo invada as almas quando ellas se virem em face de uma vida inteira a santificar, quando, por um relance, considerarem esta infinidade de acgdes e de pequenos soffrimentos escalados no decorrer de sua existencia, quando abra- garem com um sé olhar este ‘campo immen- so, coberto de espinheiros de vicios a ex- tirpar. Ahi, porém, nao esta a santidade. A per- feigdio ndo & Teita de sonhos e abstraccdes. E’ uma realidade bem concreta, que se nos offerece a todo instante. Uma vida a santi- ficar € 0 momento presente que se dé a Deus. Nossa vida nao é sinaéo uma successao de momentos. Nella, nada de real, sindo este curto instante presente que se passa sem cessar. Nao vivemos sinéo do presente. San- tificd-lo & 0 nosso unico dever: nao pode- mos nada fazer de melhor para nossa san- tificaco e para gloria de Deus. Oh! si comprehendessemos esta verdade a0 mesmo tempo t&o simples e t4o consol dora. Entre Deus e alma de boa vontade s6 ha um acto: 0 acto de amor. Gracas a elle, a alma une-se a Deus a cada instante. Cada parcella de tempo & como uma especie sa~ cramental que leva Deus 4 alma; & uma com- munhao sem cessar renovada. Por ella a al- ma entrega-se sem reserva alguma e Deus se di do mesmo modo. “E’ um fluxo e re- fluxo, diz Ruysbroek (1), que faz transbor- dar a fonte de amor”, 1)_O ornamento das nupcias espirituaes, cap, LIV: Dit vioyen en dit wedervioyen doet ‘over vioyen die fontein der minnen, 3B Por que preoccuparmo-nos com 0 passa do? Elle j4 no existe, escapou-nos para sempre. Por que perdermos nosso tempo em queixas estereis, em imaginacdes vas? Lan- cemos o passado com nossas infidelidades no oceano da misericordia divina, Deus queceu tudo, apagou tudo: Quantum distat ortus ab occidente, longe fecit a nobis ini- quitates nostras... Quoniam ipse cognovit figmentum nostrum (Ps 102, 12-14). Res- gatemos 0 tempo perdido, pela fidelidade presente, Por que tambem tanta solicitude pelo fu- turo? Elle ainda nao existe. Deus no-lo dar4, no-lo distillara de algum modo gota a gota. Entéo nds o santificaremos. Agora, outros deveres solicitam nossa attencdo e boa vontade. Deus é um bom Pae, No momento oppor tuno, elle nos dara o que for necessario para nossa perfeig&o. Nossa santidade & antes de tudo sua obra. Foi elle quem tragou 0 plano @ quem 0 executa em todos seus pormeno- res. A cada momento, elle nos apresenta um dever a cumprir. Do conjunto de todos os instantes bem empregados surgira 0 magni- fico edificio de nossa perfeico, No vemos desta grande obra sindo nossa pequenina ‘occupagao presente e desolamo-nos, O Mes- 36 ~ tre, porém, ve 0 conjunto e, antecipadamen- te, goza da belleza de sua obra. “Nossa santidade faz-se pouco mais ou menos, diz 0 padre de Caussade (2), como as soberbas tapecarias que sao feitas ponto por ponto e pelo avesso. O operario que nis- to se emprega nao vé sind 0 seu ponto sua agulha, € todos seus pontos feitos suc- cessivamente formam figuras magnificas que nao apparecem sindo quando, todas as par- tes estando feitas, se expde 4 vista seu bel- lo lado; mas, durante o tempo do trabalho, toda esta belleza e este encanto ficam na obscuridade”. é « O momento presente contém para cada um de nds a santidade. Deus depositou nel- Je um thesouro inestimavel. Sia alma o deixa escapar, elle esta perdido para sempre. Esta obrigacdo presente, Deus a varia para cada alma em particular. O momento presente de tal alma nao é aquelle de tal ou- tra. Nosso Pae celeste occupa-se em parti- cular de cada um de seus filhos. Entra em todas as minucias da vida de cada um. A perfeigao consiste, pois, em dar a Deus nos- 30 momento presente. Oh! o grande segredo da vida intetior, aquelle de se occupar de si mesmo e nao 2) Abandono 4 divina Providencia, livro I, cap. IV, $3. * dos outros, de prestar toda attengao ao pro- prio dever e nao ao de outrem! Que nos adianta conhecer as obrigagdes do proximo ¢ verificar-suas faltas? “Viva- Mos sobre a terra como si ndo houvesse si- no Deus e nds”, tal 6 a grande maxima dos santos. Nao nos occupemos do proxi- mo a nao ser que 0 nosso dever o exija. A uma infinidade de almas boas é fechado todo 0 accesso a santidade, porque ellas se occupam nao de si mesmas, porém das ou- enti. ~ "Si nosso dever presente deve santificar- Ros, nao vamos procurar além a santidade; Deus, s6, conhece o genero e grau de nossa Periei¢do. Nao vamos de porta em porta mendigar o alimento de nossa santidade. Somos os filhos do Rei dos reis. Elle infinitamente bom generoso, Elle nos da em abundancia os meios de santidade. Cada momento presente no-los transmitte. Vivamos dia.a dia no seio de Deus, sem- Pre attentos em obedecer-Ihe no momento Presente. Sufficit diei matitia sua: “A cada dia basta seu mal” (Mt 6, 34). Nosso Pae celeste sabe do que teremos necessidade “amanha. Contentemo-nos em pedir-le nos- so pio de hoje. Simplificar o trabalho da perfeigao, redu- zir a vida 20 momento presente, tal & a pric meira tarefa da alma. 58 Si a isto ella se conforma, Deus conduzi la-d pela mao através de todas as suas oc~ cupacées. Tenuisti manum dexteram meam et in voluntate tua deduxisti me (Ps 72, 24). Apoiada nelle, desobrigar-se-& com to- da tranquillidade de sua’ obrigagao presen te, acolhendo cada novo momento com reco- nhecimento, pois que elle the entregara seu Deus, nao lastimando nenhuma occupacdo passada, nao desejando nenhum attractivo futuro, sino aquelle que seu divino Pae Ihe prepara. Que vida doce ¢ calma! Tanto que ella 0 pode, e que Deus the dé-a graca, a alma nao desvia 0 olhar do bont Mestre, sempre disposta a executar suas ordens, porém nunca apressada. Sua vida jé se assemelha com a de Deus que ella possue em si mesma. Semper agens diz santo Agostinho (3), semper quietus. .. Amas nee aestuas, zelas et securus es... Trasceris et tranguillus es: Senhor, vos estaes sempre em acco, sempre em repouso. Vosso amor € sem paixdo, vosso zelo sem inquietacdo... Vossa colera sem perturba- Glas Artigo 1 — 0 corpo da accio. O momento presente encerra um dever a cumprir. Ante este sombrio, o sol divino esconde sua liz, po- rém a alma ndo se inquieta, cré no amor & na fidelidade de seu Deus, satya um ar- dor, demasiado prolongado, e otaria suas forgas antes do tempo ou a impediriam. applicar-se a seus deveres quotidianos. hi Estes intervallos, porém, nao ae ‘Ss grandes provas, as longas ausencias de Deus Passaram, Avaima esta estabelecida em set Deus. Cada respiracdo, cada bo to aproxima-a do termo. Ellaycanta: Laetatus sum in his quae dicta sui mihi in cori Domini ibimus (Ps 121, 1): “Eu me alegro das coisas que me foram ditas: nds iremos 4 casa do Senhor”. : 0’ bom Mestre! possa este momento ie estar longe, posoa realizar-se cedo para nos, © voto que fizestes antes de morrer: “ , elles sejam consummados na unidade” (J 17, 23), na unidade do amor! Amen. 9 . 4 capi i US penfoete ven ace iY ‘TI PARTE I PARTE * i ‘A boa vontade 3. < Capitulo I: A boa vontade em si mesma. Capitulo I: A boa vontade domi as erfaturas . “Capitulo TI: A boa ontade po ‘thesoures de Deus o,* Mm PARTE | A int a bol Sita tendenap s Tce ! Pesuno 1: A petfeigao pela oracao: ie s 0 II: A oracio ordinaria, {A oracao intermedian “A oragio infusa,. I: O momento presente... “Artigo TI: © corpo da accio../. ‘Artigo TIT: A alma da accio. Artigo IV: O tempo..... BA cetenl = AES pitulo T: Sua vida aos olhos dos homens... Capitulo Ti: 120

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