Você está na página 1de 30
CDU 641.59 (816.5) A ALIMENTAGAO DO GAUCHO BRASILEIRO Dante de Leytano Folclorista e Escritor da Academie de Lotras do RS 0 CONTEXTO HISTORICO DA ORIGEM DA COMIDA DO R10-GRANDENSE-00-SUL "A culingria portuguese, tanto quanto 0 hagialégio, recorda-nos velhos nomes de quitutes € gulodices, nas formas e ornamentos meio félicos de bolos ¢ doces, na condimentacdo picante, como que afrodisiaca, dos guisados, cozidos e molhos, a vibracdo erdtica, a tenséo procrisdora que Portugal precisou de manter na sua época intensa de imperialismo colonizador. Na culinéria colonial br ra surpreendem-se iguais estimulos ao amor e 3 fecundidade. Mesmo nos nomes de doces e bolos de convento, fabricados por méos seréficas, de freiras, sente-se as vezes, a intengio afrodis(aca, 0 toque fescenino @ confundir-se com o mistico: suspiros-de+reiras, toucinho-do-céu, barriga-dereira, manjar-do-céu, papos-de- anjo. Eram os bolos ¢ doces por que suspiravam os freiréticos & portaria dos con- ventos"”, Isto depois de recordar os nomes, alguns bem fesceninos, da guloseima luso-bra beijinhos, desfiamados, levanta-velho , Ifnguas-de-moga, casadi- nhos, mimos-de-amor (. . “0 portugués no Brasil teve que mudar quase radicalmente o seu sistema de alimentacdo, cuje base se deslocou, com sensivel deficit, do trigo para a man- CI. & TrOp., Recife 8(2): 131-159, jul/dex., 1980 i i 132 A alimentecio do gaiicho brasileiro dioca; e 0 seu sistema de lavoura, que as condigées fisicas e quimicas de solo, tanto quanto as meteorolégicas néo permitiram fosse 0 mesmo doce trabalho das terras portuguesas” (. ..) “"De modo geral, em toda a parte onde vingou a agriculture, dominou no Brasil escravocrate o latifindio, sistema que viria privar a populaco colonial do suprimento equilibrado e constante da alimentaggo sadia @ fresca. Muito da in- ferioridade fisica do brasileiro, em geral atribuida toda a raga, ou vaga e mugul- manamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento de nossos recursos natu- rais de nutricdo, os quais, sem serem dos mais ricos, teriam dade para um regime alimentar mais variado e sadio que o seguido pelos primeiros colonos e por seus descendentes, dentro da organizacao latifundidria e escravocrata. VOCABULARIO DA ALIMENTAGAO DO GAUCHO BRASILEIRO. “InGtil pensar que o alimento contenha apenas os elementos indispensd- veis A nutrigdo. Contém substancias imponderdveis e decisivas para o espitito, alegria, disposicgo criadora, bom humor’* “. Ha uma campanha discreta e continua contra a culindria desde que ‘a considerem acima-da nutrigo organica, além dos limites do plano fisiolégico. Os fatores puramente materiais da alimentacéo so os Unicos que interessem 3 propaganda e ao debate especulative. A absorcdo do alimento equipare-se 20 abrir de uma toreira de dleo para a maquina ou alguma pazada de carvao na for- nalha da locomotiva, O essencial para manter 0 movimento. A méquina no esco- Ihe seu combustivel pelo sabor, mas pelo indice subseqiente da pressfo. O que regula ndo € 0 palader, mas o mandmetro. As tentativas econdmicas e técnicas do prato Unico nos refeitérios industriais séo pegas deste xadrez. O desprezo instin- tivo do paladar e a distincia desdenhosa pela serena alegria digestiva so “virtu- des” dessa guerra desesperada ao alimento como prazer gustativo, trazendo as compensagies do bemeestar (.. .)"". “. ., A exigéncia cientifica esté na exata relagso da ignorancia dos bons pratos. Excetuo, naturalmente, 0s nutricionistas que sebem comer com rendi- mento e gosto. Estou mais de acordo com os dois brasileiros: Silva Melo, que prestigia © que comemos; Josué de Castro, deguzindo que devemos comer mais (...1". ? 1 CASCUDO, Luis da Camara. HistOria da alimentacéo no Brasil. S80 Paulo, Ed. Nacional, 1968. (Braziliana, 323, v. 2 Ci. & Trop,, Recife 8(2): 131-159, jul./aer., 1980 Dante de Laytano 133 E iluso supor-se a sociedade colonial, na sua maioria, uma sociedade de gente bem alimentada, Quanto a quantidade eram-no, em geral, os extremos: 0 brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Os grandes proprietérios de terrae @ 08 pretos seus escravos. Estes porque precisavam de comida que desse para os fazer suportar 0 duro trabalho da bagaceira (. . .) “'Végétation luxuriante, troupeaux innombrales, eaux. prissonneuses placent Je Brésil sous le signe de I’abondance’. Sur cet immense territoire, les aysages, on le sait, sont d'une grande varieté. .. . la flore at la faune font de ce Pays un jardin d'une foisonnante richesse, of ‘on peut trouver tous les végétaux, tous les fruits tropicaux et de nombreux produits de nos Jardins d'Europe. “L'élevage, sourtout dans le Sud, est de une de principales richesses du pays. Le cheptel, estimé 4 prés de 50 millions des tétes, détermine “importance de l'industrie laitiére. Porcs, moutons, cheves et volailles dotent Ia cuisine brésilienne de tous les éléments qui rendeent possibles une grande diversité et un raffinement indiscuté. “Le poisson, qu’il soit du Littoral atlantique, des fleuves ou des riviéres, se présente sous toutes espéces connues en Europe et sous bien d'autres encore, ‘non moins fines et savoureuses, “Pour accompagner viandes et poisons, le Brésilien employe de nom- breaux iégumes, en particulier de riz, le mais, le manioc, le noix de coco, l’aman- de de caju. t prodigue de tou- “En général, la cuisine brésiliene est fortement épicée ‘tes sortes de condiments, “Les importantes plantations de canne fournissent le sucre utilisé en grandes quantités dans les desserts. Les fuits sont délicieux et d'une varieté inouie. “'Les cuisine portugaise a laissé une empreinte trés forte dans las gastro- nomie brésilienne, . .” 2 2 FREYRE, Gilberto. Case-grande & senzale: tormagdo da familia brasileira sob © regime de economia patriarcal, 5. ed. rev. pelo autor e acrescida de numerosas notas. Rio do Janeiro, J. Olympic. 1946, 2 v. (B46 p.} Apsrece a partir deste edigio, subordi- nade 20 titulo geral de Introdugdo & histéria de sociedade pateiatcal no Bras J "LE MONDE A TABLE", Doré Ogrizek. “Od6. Le Monde en Couleurs”. Artigo - Brésil de Agostino das Neves, Paris, 1952. Ci. & Trep., Recite 8(2): 131-159, jul./éer., 1980 134 A alimentorio do gaticha brasileiro © gaucho brasileiro tem sua formacéo étnica no préprio nascimento do Rio Grande do Sul, primeiro como uma civilizagao tipicemente de pecudria. Uma cultura baseada no ciclo do gado. Os tropeiros que atravessavam 2 Cepitania na preia do gado, antecipados que tinham sido pelos “‘bandeirantes'’. Mas a presenca do tropeiro representa o instanta inicial das origens do Rio Grande do Sul. Vi- nham de Sorocaba ou Guaratingueté, Itapetininga, mas sempre de Sé0 Paulo. © perfodo seguinte contou com Paranagu. E logo com Laguna. Descia do Pla- nalto paulista, ou dos Campos Gerais e do litoral paranaense, para que depois, se fixando em Laguna, fizessem de Santa Catarina 0 corretlor de acesso a0 Rio Grande. Uma civilizag3o némade. Verificando-se 0 emagrecimento da mercadoria do centro abastecedor para 0 consumidor em Minas Gerais, ne regio da minera¢éo principalmente no Século XVIII, passou-se, pois, para uma nova etapa, O tropeira decidiu parar, temporariamente, nos campos do Rio Grande. Epoca dos invernadores. Uma civilizagdo seminémade. Mas de uma grande importéncia na vida gaucha. Uma terceira etapa e @ Ultima, entdo, foi a da fixagdo 4 terra. O fazendeiro de gado recebendo a sesmaria que a Lei |he conferia precisava, por forca do substitutivo jur(dico, permanecer na terra que ganhava, Comegou desta maneira o grande ciclo histérico da economia do gado, e a civilizagao pastoril do Rio Grande revelava-se importante, de estrutura rica, ‘ete, Os proprios agorianos que vieram aos “casais” para povoar o Rio Grande, fundando cidades, recebiam uma date de terra com a condicéo de transtormé-la em centro granjeiro partindo em dirego de uma agricuttura intensiva. Ore, 0 agoriano recebia de graga do governo um quarto de Iégua em quadro para ser agricultor. © fazendeiro ganhava trés léguas de fundo cor uma de frente de uma sesmaria para criar gado. O agoriano abandonou a agriculture em seguida. Trans- Yformou-se também em criador de gado. A Civilizagdo Pastoril passou-se, mais tarde, uma vez que os agorianos negaram-se 4’ prética da agricultura, a no ser uma pequena maioria. E época houve em que a metade do Rio Grande do Sul tinha uma populacdo de origem agoriana. A culindria gaticha, como néo podia deixar de ser, esté com todas as vin- culacées possiveis e impossiveis com a culindria do Brasil, vindo esta de variadas influéncias nas quais o predominio do portugués, neg:o e éndio ¢ bem acentua- do. Baba-de-moca, “uma qualidade de doces feito de ovos, a que também chamam ovos moles”, figura como expresso geuchesca, detinicéo de docaria Cl. & TrOp., Recife B12): 131-159, jul./der., 1980 Dante de Laytano 135 gauicha no vocabulério de Luiz Carlos de Moraes e, naturalmente, “‘ovos moles”” & um doce nitidamente europeu de Portugal, sem que deva ser confundido com ‘baba de moca”, por terem a mesma matéria-prima, Mas as vezes os termos to- mam os mais inesperados sentidos. Neste caso esté a palavra baca/hau, que néo se atém ao peixe. Desde enchimento de emergéncia que se faz no pneu do auto- mével para preservar a cémara-de-ar quando 0 préprio pneu esté rasgado ou fura- do. Também acoite, relho, chicote ou tira de couro cru torcido para servir de corda. Ainda coisa seca, homem bastante magro. “Bacalhau de porta de venda"’, pessoa esmirrada. O vocébulo bangiié — conjunto pare o engenho de acucar, — surgiu an- tes do aparecimento das usinas de industrializacéo. Mas € um termo de origem africana em uso no Brasil. Padiola, antigamente, para carregar negro escravo e dO até para denominer certo tipo de liteira de outrora. Os vocabuldrios gauchescos dizem que banglié é carro funebre que conduz cadaveres de indigen- tes ou carro de hospital ou santa casa de misericérdia. Também meio de trans- porte canstitu(do de uma vara comprida, cujas extremidades so apoiedas nos ‘ombros de dois homens, @ carga, amarrada no meio da vara etc Boju, espécie de bolo de massa de mandioca cozida no tacho sem acuicar. Palavra recolhida por L. C. Moraes como um gauchismo no seu “Vocabulério Rio-grandense”, titulo de livro de costumes do Rio Grande, etc. Aurélio Buarque de Holanda grafa beiju como brasileirismo em numerosas acepcSes: beijumoque- ca, beijuagu, etc. Registra a mesma etimologia indigena de Moraes; um diz que 6 tupi e outro que € guarani: mbeju. Bibi, Darcy Azambuja a define como pequena planta de flores roxas ¢ tubércules muito saborosos. Os escritores e dicionaristas gatichos acolhem, in- variavelmente, a palavra bibi: erva cuja raiz é comestivel, apresenta um bulbo No subsolo muito adocicado e de excelente paladar, principalmente quando co- mido com leite, ete. Esté em Calage, Simées Lopes Neto, etc, Aurétio regista co- mo vocdbulo de possivel procedéncia indigena: Erva comestivel, princesa ou grande senhore mugulmana no Oriente, Uma das definigdes desse dicionarista — brasileirismo, usado como sinénimo de automével, carro. Buchade, conjunto constituido de visceras — estmago, intestine etc. da rés apos ser esquartejada, Bucho € 0 estémago. Aurélio também o acolhe. Moraes nao 0 registra como alimento. Entretanto o primeiro dé como panelada, no Nor- te @ Nordeste, ou de carneiro ou de bode cuidadosamente preparada, No Rio Grande uma buchada é um prato apreciado, tanto de rés como de cameiro. Exce- do 20 bode, que ndc € bem aceito. Os estrangeiros do Rio Grande, porém, fa- zem buchada de cabrito, principalmente os italianos. Cl. & TrOp., Recife 8(21: 131-159, jul./éez., 1980 136 A alimentagéo do gaicho brasileiro Gutifare, carne cortada em tiras compridas e cozidas em 4gua como se fosse “fervida’’, apos cortada em pedacos para a venda em certas ocasides (carrei- ras, festas, etc.), conforme L. C, Moraes. Moraes ~ ou Luiz Carlos de Moraes — autor do timo vacabulério yauchesco aparecido no Rio Grande do Sul (1935). Caki, em Moraes: uma fruta de origem japonesa. No Rio Grande do Sul a palavra é paroxitona, contrariamente do que se nota em outros Estados onde & oxitona, Fruta comum do Brasil, mas os regionalistas ddo-lhe assim tratamento fonético especial. Aurélio registre como variante prosédica no Rio Grande do Sul. A mesma pronéincia de cdqui no sentido de brim, fazenda. Camargo, café camargo. Assim chamam no limite com Santa Catarina a0 café preparado com leite cru, quente da vaca, conforme Moraes. Aurélio 0 re- gistra como brasileirismo de Santa Catarina, mas figura no “Vocabulario Rio- grandense"* como gauchismo em Niusaes. Camoatim, espécie de abelhas que fabricam um mel muito apreciado, “Tirar camoatim sem ponche’’, passar trabalho, no vocabulério gaucho de Mo- raes, Esté em Aurélio como palavra de provérbio gaticho citado por Moraes. Ou em Aurétio, camoati, do tupi, brasileirismo: “enxu-da-beirade-tethado”, tam- bém, Mas no fala em abelha. 8 ainda camoati. Cana, cachaga. Cand, também cachaca. Cana das rédeas: uma das rédeas do freio. As trés maneiras acolhidas em Moraes, Cana em Aurélio tem vérias acepgées, mas na giria brasileira é cachaca. Cenjica, em Morees: milho pilado e aferventado que se come com ou sem agiscar, adicionada ou no ao leite. & usado também cozide com charqu “Estar com as canjicas de fora”, estar rindo. Canjica ainda hoje significa grande prato da cempanha, mas como alimento tradicional. Aurélio acothe o provérbio como exclusivo da érea rio-grandense, mas traz diversos significados de canji pelavra africana do quibundo. Carreteiro Comer um carreteiro quer dizer um arroz de carreteiro, um arroz com charque. Muito apreciado ne Rio Grande como prato popular, mas ‘que nas estncias tem lugar de destaque muitas vezes e, nas cidades em residén- cias ou em restaurantes & servido como iguaria original e tipica. = Cavacas, pequenos pedagos de charque, resultantes de sobras de carne charqueada. Significe também, contrariedades, acanhamento, aborrecimento, etc, Ex.: Fulano deu ¢ cavalo, iste é, ficou aborrecido, decepcionado. Dai o Ci.& Trop., Recife B12): 131-159, jul./dee., 1980 Donte de Laytano 137 verbo cavaquear, dar 0 cavaco. Conforme esté em Moraes. Cavaquear, conversar, bate-papo. Aurélio registra com varios sentidos, desde pedago de madeira, etc. Ceva, comida que, 2 guisa de engodo, se deposita em lugar certo, a fim de nele se acostumarem os animais — aves ¢ peixes —, para a caca ou pesca. Estd em Moraes assim. Comida, ento. Aurélio também registra este sentido e outros Regionalismo acolhido no Vocabulério Sul-rio-grandense” Cevador, cevador de mate: é 2 pessoa que prepare, enche 2 cuia e distribui o “mate’” entre os que numa reuniac tomam aquela bebida. Prepara o mate ou chi marrdo. Gauchismo. “Cevadura de erva” é a quantidade de erva-mate em pé su- ficiente para se preparar certo numero de “cuias de mate’. “Cevar, “‘cevar 0 mate” — encher e distribuir as “‘cuias de mate” entre as pessoas que as bebe. Gauchismo. Cevar mate, fazer o mate chimarréo (Darcy Azembuja). Aurélio da fumerosos sentidos mais, entretanto, acolhe o modo rio-grandense. Ché-de-casca-de-vaca, ampliacde do conceito da bebide, do ché, para ou- tro como — surra-de-relho. No Rio Grande, no Ceard e noutros lugares. Chancho, porco, su(no. Conforme Moraes. “Chanchada’, em Aurélio, porearia, etc, Chanchulim, conduto da secreco do leite de vaca, chamada também tripa leiteira, muito apreciade quando assada nas brasas. O chanchulim € pre- parado em forma de tranga e assim vai ao espeto para ser assado. E também chamado chinchulim. € de etimologia quichua, chanchulli, segundo Moraes. Charque, “‘charque de vento”, é 0 que se prepara nas estancias para o consumo e consta de pedacos delgados, com pouco sal e secados a sombra © 4 ago dos ventos. O “’charque salgado" ou carne seca (Norte) é 0 nico exporta- do. Carne salgada seca ao sol ou 20 vento na sombra, etc. A industria do charque constituiu uma das grandes fontes de riqueza do Rio Grande. Cherque, um dos alimentos mais tipicos do gaiicho. A palavra é um americanismo quichua. Exis tem vérias etimologias. Aurélio da “charque-de-vento” como gauchismo. Chicosuelo, a rétula ou osso mével da articulagéo do joelho quando acompanhada de carne gorda. Rétula da rés é muito apreciada como comesti: vel. Esté em Moraes. Cita o General Jodo de Deus Martins, em obra gauchesca ede muito apreco: “Lim ossito, de ordingrio revestido de gordura, que demora articulado & extremidade superior da tibia e & inferior do fémur da rés. Dai? A rs quando vai repousar dobra as patas dianteiras e deita-se, isto é, se 2 chica nel Ci. & Tedp., Recite 812): 131-159, jul.Mder., 1980 138 4 olimentacio do gaiiche brasileiro suelo’: Moraes explica que cumpre ndtar que fémur e titvia pertencem aos mem- bros pasteriores. Em castethano “choguezuela" ¢ rétula. Chimarrav, mate sem agtcar tomado em cuia, mate amargo. A mais tipi ca das bebidas do gaticho, Diz-se também do gado, gado-chimarrdo que 6 0 que foge para os mates @ netes vive fora de toda a sujeiggo, gado xucro, gado bravio, ete. Chimarréo, mate-chimarrdo, mate-amargo, verde, ete. Geuchisma em Aurélio também Chipa, bolo que se prepara com 4 massa de miilho fervido, socado e pas: sado pela peneira, misturado com leite e assado com borralho, Assim era antigi mente feito pelos indios. Hoje “‘chipa”” é uma espécie de rosquinha feita de pol- vilho € queijo ralado posta ao forno. A prontincia guarani é chipé. Registro de Moraes. Aurélio acolhe 0 gauchismo. Churrasco, o mais famoso e tipico dos alimentos do Rio Grande. A eti- mologia é geralmente como sendo palavra da América Espanhola, entretanto ela esté em uso como termo corrente na Africa, também, coma carne para ser comi da. Moraes: “Daé-se este nome (churiasco) ao assado feito sobre brasas, isto 6, jogando-se 0 pedago de carne fresca de toredo, de modo a apresentd-la aberta na frente das patas do animal, seguiido Romaguera Correa. Assim, uma colher de gaucho ‘também pode evoluir pard dar outros aspectos da linguagem tipica. Palavra deri- vada do castetheno. | Cuia, cabaga. Poro'go onde se prepara o mate para ser tomado com a bomba. Hé autores ciue dizem ser este vocdbulo de origem tupi, conforme Mo- aes. Brasileirismo do Rio Grande do Sul, gauchismo em Aurélio que também registra outras acepcdes del: mais curiosas. Cuscuz, bolin 10s confeccionados com farinha de mandioca. Esse vocé- ‘bulo & de origem neiro-élabe, segundo Jacques Raymundo. Em L. C. Mora Para Aurélio é brasilsirisr.o: também iguaria feita de farinha de mitho ou de farinha de arroz, ete. Ou kolo de farinha de tapioca (mandioca), coco ralstio ¢ I CL, & Trop., Recife 8(21: 131-69, jul/der., 1980 t i 142 ‘A alimentos fo do gadcho brasileiro aglicar embebidos em leite e que ndo cozido ou assado. Palavre de origem éra- be. No Dicionério Aurélio, doce de boca nada tem a ver corr a alimentao. Ape- nas reporta-se a ela. Segundo Moraes, doce de boca é 0 aliimal sensivel & aofo do freio, mas nlio desbocado. Como a culinéria pade se ampliar com o andamen- to de palavras. Encher berriga de corva, expresso popular do Rio ‘Srande empregada em sentido figurado: morrer o animal. “Mas nunca falta um es:orvo. J& encheu barri- ga de corvo” (in Tropitha crioula, Vargas Neto), em Moraes. Engorde, eis outro vocdbulo gaiicho na drea da ulirdria, mas que tem ‘outro sentido ou sentido em ciclo da pecuéria: diz-se do animal de cria que estd invernado; animais de “engorde” que esto sendo tratadus pera o “corte”, con- forme Roque Calage no seu “Vocabulério Gaucho”. Aurélio » dé como brasilel- rismo. Erva, significa especialmente erva-mate (Ilex pariguavensis). Quando se diz erva somente, est se referindo, para 0 gaticho, a erva mato. Pois hé uma infi- nidade de ervas de propriedades medicinais, etc. A aceprdo ce erva elasteceuse em vérios sentidos. Até no de maconha, viciado, etc. C gauchismo 6 sinénimo de erva-mate, O proprio General Osorio escolheu seu titulo ie Marqués do Her- val por causa da erva, erva-mete que ele a encontrou em crancie quantidade selva- gem na fronteira de So Borja, quando em inspecéo militar. | Espinhaco, “Estar com a barriga no espi dizer que est6 delgado ou com fome, conforme M grande prato gaucho. Come-se com piréo. 1ago"", pruvérbio gaucho para . Espinhago-de-ovelha, Farinha de cachorro, farinha que se obtém socindo o amendoim em mis- tura com farinha de mandioce e acticar. Pacoca. Também se faz da pipoca que fio esta bem socada e pie-se acticar, segundo Moraes. Feijo, hé as variedades conhecidas no Rio Grande do Sul: feijéo-mitdo, feijo-de-praia e feijéo-de-porco, segundo Moraes. Fervido, sinénimo de “puchero”, cozide (nom? de um prato), etc. Fiambre, carne fria assada ou cozida na panula que o gaucho leva para comer em viagem, em Calage. Esta palavra portuguesa é enpregada no Rio Gran- de do Sul significando proviséo de alimento para viag2m, conforme Moraes, Cla- ro que existe seu emprego comum. Fiambre como salames, etc. o verbste é para © gauchismo, CI. & TrOp., Reci's 81:2): 131-159, jul.fdor., 1980 Dante de Layteno 143 Figuerritha, pequena batatinha do campo que dé a flor da terrae coma qual, cortada e mofda, se perfuma 0 fumo crioulo, de acordo com Roque Calaye. Planta rasteira, de raiz tuberosa, que depois de seca, mistura-se em pequenos p1 dagos de fumo, produzindo fumaca de aroma agradével. Sua classificagdo boténi- ca € “Dorsthenia montevidensis” e pertence & familia das urticdceas, segundo Moraes, Brasilsirismo no Rio Grande do Sul, em Aurélio, que consagra o gauchis- mo de nossos autores de vocabulérios regionals. ~ : Fogéo, lugar nos galpdes das estancias onde se faz 0 fogo para o churras- 0 @ para o chimarriio; ponto de reunido dos tropeiros e pedes. E termo emprega- do também no sentido de pego, queréncia. Figurado: “Venho do “fogio" do gaticho com a bandeira da Liberdade na méo" (Silveira Martins, Discursos, como anota Roque Calage em seu Vocabulério Gaticho. Dogeria, © gaiicho aprecia muito o doce de frutas, principalmente as compotes, aliés todas feitas na prépria esténcia e guardadas em vidros, frascos, botijdes de um ano pare outro ou usadas no apenas no didrio da mesa do fazen- deiro, mas sempre se remetendo pata a peonadia e a familia do capataz. Compo- ‘tas de péssego, figo, larania, ou de frutas silvestres, como pitanga, amoras. A cidade de Pelotes &, ainda hoje, celebrada pela sua dogaria. A confeita- ria Nogueira dedica-se ao tuxo da venda para outras cidades brasileiras. Os doces muito bem acondicionados em caixas de quilo e meio quilo ou maiores se for © ‘caso da encomenda, Existem livros e um até com prefécio ¢ estudo introdutério de Athos Damasceno Ferreira sobre a docaria, As passas de péssego continuam ‘atravessando sua fama até no estrangeiro. Porque na verdade sfo de um patadar notdvel. Passas de péssego de Pelotas, A casa Otto, etc. . Rio Pardo, com a Alice, as Sperb @ Biagio Tarantino, criou uma fama de dosaria, como quindins ou erroz-doce ¢ arroz-de-leite, ambos iguais, mas que po- dem adquirir variedades. A canela cobrindo o arroz-doce. E o grande doce local que deu fama cidade historica e que 6, hoje, um centro arrozsiro de grande importancia econémica ao lado do gado, trigo, soja e cal, etc. Séo os saborosos “sonhos-de-rio-pardo”. Nos velhos tempos da estagio da estrada-de-ferro, que o trem parava em Rio Pardo para as refeigdes, os “sonhos-de-rio-pardo”” no eram sé disputados, mas levados para se comer no resto da viagem e mesmo levar para casa. Os doces caseiros de abébora, batata-doce ou as tachadas de goiaba ou marmelada. A fronteira com seu arroz de péssego. E 0 nordeste, Torres, Osério e Santo Anténio com as rapaduras, melados ou caldo de cana. importante drea Ch, & Trop, Recife 8(2): 131-188, Jul./dez., 1980 144 A alimentacdo de gaticho brasileiro agucareira e 0 ciclo da cana-de-agiicar desempenhou € desempenha importante papel, As rapaduras de coco ou amendoim, as cocadas em varios tipas e dese- nhos. Puxe-puxa em formatos diversos, coloridos e embebidos, as vezes, em ca- chaga. Mas a cachaga de Torres, Osdrio e Santo Anténio da Patrulha 6 festejada pelo agrado de seu sabor realmente agradavel. Os alambiques sfo, também, cen- tros de interesse e visitagSes com festanca e cantorias. Ainda néo se levantou no Rio Grande uma andlise do ciclo da cachaca. Em Porto Alegre, toda @ dogaria de prine{pio do século foi praticamente alemé, ¢ uma das confeitarias mais freqientadas pela propria sociedade local, a Schramann, transformou-se em lugar de namoro e ponto de encontro, inclusive de comilées de doces, principaimente da rapaziada que comia uns seis e pagava dois doces, sob 0s olhares complacentes do proprietério que, na maioria das vezes, fingia no ver. Para depois, & claro, cabrar na volta ou néio cobrava nunca mais. Doces de massas, doces de frutas e doces europeus com muito chocolate, principalmente, ou creme, morangos, etc. A Confeitaria Rocco veio competit com doces mais italianos, como fios- de-ovos, recheados de varias qualidades, otc. As confeitarias portuguesas como Esteves e 3 Estrelas partiam para os doves grandes ou feitos na champagne ou vinho ou cachaca mesmo, Os biscoitos da Peres Cardoso, entdo, estiveram em voga pela grande va- riedade de tipos e gostos. A maioria destas conteitarias, padarias e biscoitarias no existe mais. En- tretanto algumas destas velhas casas vieram até nossos dias, mas modificadas. Nao havia no interior esta possibilidade de requinte de suprimento em confeita- rias, A esténcia era tudo, inclusive confeitaria. Ainda existem em plena funcionamento, em Porto Alegre, as Confeita- tias Bavéria, Hamburguesa, Max, Wolkmann ou as padaries que também séo con- feitarias: Weidmann, Edwiges, etc. Enumeram-e: Mateus, Thomson, Cestari, Severino, Santiago, etc. ¢ as de padaria ou conteitaria de nomes das respectivas rn como confeiteria ou padaria Sertério, D. Pedro 11, Bonfim ou dos bairros, assim: Gléria, Ipiranga, Partenon além daquelas que ostentam nomes diversos — Padaria e Confeitaria Popular, Santa Helena, Caigara, Santa Cruz, Pio do Sut, ‘Sao Jorge, Mimosa, S80 Pedro, Minuano, Imperial, Santa Isabel, Mundial, Haiti, Rosério, Vere Cruz, etc. A dogaria, 0 panificio e @ biscoitaria cresceram em Porto Alegre nas mos mesmo de portugueses, alemées ¢ italianos. O fenémeno foi idéntico em todo 0 Rio Grande do Sul de hoje. 1, & Trép., Recite 8(2): 131-189, jul./dex., 1980 Dante de Leyteno 145 ‘Mas o gaticho brasileiro aperece na cultura do pals como 0 adepto inse- parével do churrasco, E o é, Mais 9 chimarréo que os estudantes gadchos em Oxford ou em Paris tomam todos os dias, gragas a remessas continuas via aérea Por passageiros convidados para este gesto de boavontade. Gatichos fronteit 908, gente do Quaraf ao lado do Uruguai, ou de Uruguaiana, detronte da Argenti- 1a, Pois foi para onde se recolheu a tradigfo gauchesca, Embora o uso do chimar- ro seja sbundante entre os alemies, italianos ou poloneses. O gaticho brasileiro realmente possui toda sua cozinha baseada. apenas 1na carne, girando, portanto, em torno de um hébito alimenter nitidamente de- pendente do uso e abuso da carne de vaca @ de ovelha, Nao admitindo em ter- mos tradicionais nem sequer o emprego ou a companhia de uma satada. Um professor da Faculdade de Veterinéria, com t/tulo na Universidade de La Plata, na Argentina, e lecionando em Porto Alegre, brasileiro de quatro costados, ele mesmo fazendeiro, descendendo de uma familia proprietéria de estdincia des- de a origem histrica dos tempos das sesmarias, negava-se a comer mesmo salada de alface com medo de mudar de voz. Tabu alimentar ultrapassado. Ndo muito. Porque ainda na década de cingienta, os fazendeiros tinham preconceitos ali- mentares com tudo que no viesse de um prato de carne. Acompanhar a carne 20 maximo, ento, no caso de bife, seria, e 0 6, orroz @ os ovos. Uma conces- so benevolente dos gatichos. € nada mais, Entretento, na atualidade 5 coisas esto mudadas. A carne é muito cara, rara nas mesas pobres até na classe mé> dia, muitas vezes. Acrescente-se que a presenca de alemdes e italianos transfor- mou 0s costumes locais. Chegaram os poloneses ¢ © quadro se complicou mais. . Cutras etnias esta investindo violentamente sobre os hébitos antigos, eléssicos @ campesinos. Chegaram a0 Rio Grande pelo menos trinta e tantas et- rigs diferentes. Em grande ou em pequeno ndmero. Mas que esto atuando deci- sivamente na paisegem sociolégica do Rio Grande do Sul de uma maneira impres- sionante ‘A Campanha esté por sua vez, cada vez mais se aproximando da cidade, de modo que o conflito entre a fazenda de criagdo de gado @ a cultura urbana & um fato de fécil comprovago. O préprio estancieiro tem sua fazenda a beira de estradas asfaitadas, modernas e trilhadas, O que determina a contaminago generalizada de novos hdbitos transplantados de todas as maneiras. A luta entre ‘0 campo e a cidade é um histérico que se desenrola através dos ciclos da cultura ‘econdmica. No Rio Grande do Sul este fendmeno altera-se apenas quando se caracteriza a mudanca do espago verde, a ocupacdo fisica e a transferéncia da propriedade pastoril para regi6es mais distantes. Ocorre que os campos de pasto natural ou artificial ainda se colocam nas regides mais t(picas das dreas de fron- teira, Ou ne fronteira com a Argentina ou na fronteira com o Uruguai. A carne assim configura-se como prato Unico. Feitos de mil maneiras. Também as partes i. & TrOp., Recife 8(2}: 131-189, jul./dez., 1980 146 A elimentepso do gedcho brasileiro do gado apreciadas de maneira diversa, etc,-O churrasco centraliza a linha deter minante do alimento gaucho, Mas acontece que existem diversos outros Ri Grandes. E aqui entéo, tentar-se4 compor uma geografia alimentar do gaticho e tendo-se 0 mapa do Rio Grande como diversificador das origens de sua respec- tiva populacéo. O Ponto-de Caldas, em Porto Alegre, revela a presenga de um status nas doceiras de sociedade que abrem casa de comércio e 0 doce passa a ser uma de- monstragdo de alto nivel na compra, © doce nas fazendas do Rio Grande também foi da maior importéncia, justamente porque a dogaria era da educago da dona da fazenda com as quitu- teiras. A sociedade sempre deu muito destaque as senhoras doceiras. Mesmo nos ‘tempos atu: Frango, espiga de milho quando seca. Vocébulo que somente circula com este sentido em Cima da Serra, no Rio Grande do Sul. Espiga de milno essada, ligdo de Romaguere Correa no seu “'Vocabulério Gauchesco". Aurélio também acolhe frango como gauchismo nesta acepefo. Gajeta, uma espécie de bolacha ou de bisooito. E termo castelhano, se- gundo Moraes. Aurélio 0 dd como termo do Rio Grande do Sul. Grenito, gordura existente na ponta do esterno da rés. Em pequenos pedacos & agradével ao paladar, embora crua, conforme Moraes, Brasile mo do Rio Grande do Sul, em Aurélio. Graxa, carne gorda. Muita graxa, muita gordura. Apreciada pelos comi- 'es, com muita farinha que absorve parte da gordura ou da graxa. Graxear tam bém 6, no Rio Grande, namorar para gente do campo. “Respeitavam-se as mulhe- res; ‘graxee delicadamente com as mocas bonitas da redondeza’’ (Alcides Maya- Alma Barbara”), colhido por Teschauer. Gordura e formosur: wm dotes de homens e mulheres do Rio Grande do passado. A evolugdo da palavra & das teressantes, Guabiju, fruta silvestre semelhante a jabuticaba, porém menor que néo cresce presa ao tronco como aquela. € comest(vel, registra Moraes. Brasileirismo tupi para Aurélio, . Guabiroba, fruta silvestre de cor emarela, comest(vel, cuja casca muito céustica quando ainda bem madura, segundo Moraes, Brasileirismo tupi para Aurélio. Guaporiti, Ci, & Trdp., Racite (2): 131-159, jul dex., 1980 Dante de Layteno 147 Guaporiti, trato do guaporitizeiro. “Arvore, creio da familia das, mirt& ceas, que produz um pequeno fruto comestivel. Vegeta, no geral, a beira dos rigs", segundo Moraes, Guarsipo, uma espécie de abelha que produz mel. Em sentido figurado ‘pessoa ladina, dissimulada, Existe no Alto Uruguai, conforme Moraes. Guarapa, caldo de cana, Registrada por Moraes. Vocdbulo quichua. Guisedo, 0 gaicho prefere dizer mesmo quisado ou guisadinho, em vez de picadinho como brasileirismo. Picadinha de carne fresca ou de charque.”"Quem 4 lardo néo come guisado”, dito gauchesco que significa que quem é mole ndo ‘$@ arranja; quem & vagaroso nunca chega a tempo de aproveitar algo bom, chega sempre tarde, segundo Moraes. Eis as palavras da culinéria em condig&es de mon- tagem de uma filosofia do povo, como provérbios gauchescos, etc. Jramirim, espécie de abelhes menores que o “iraucu” € que vivem em bu- Fecos, no cho, fornecendo mel de boa qualidade. $6 é conhecida nas MissSes (Cima da Serra), segundo Romaguera Correa. Jrapud, espécie de abelhes que preparam um mel vermetho e desagradé- vel. Iratim, espécie de abelhas que fornecem grande quantidade de cera e um mel doce no vero e amargo no inverno. S6 existe em Cima da Serra, conforme Romaguera Correa, Jacubs, pirdo feito com farinha, égua e acécar. Bebida tomada como re- fresco. Também se prepara com cachaga em vez de dgua. Ainda com leite. E con- siderado remédio contra a dierréia. Bebide gaticha, existente em outres partes do Brasi Jinjibirra, jinjibirra é 0 nome de ums bebida refrigerante, outrora muito usada em Porto Alegre, principalmente durante os festejos de Natal. € uma espé- cie de cervoja de gengibre ou “gingerale” dos ingleses. Bebe-se gelada ou fresca. Conforme Moraes. Brasileirismo em Aurélio. Mas 0 vocabulério de Moraes 0 con sagra como gauchismo também. Lechiguana, espécie de abelhas ou marimbondo, que preparam um exce- lente mel. “Tirar lechiguana”, significa passar uma noite com frio e quase sempre ‘com pouca coberta, com que se procura envolver todo 0 corpo, como se fosse tirar 0 mel da “lechiguana’’, que é uma abelha mui bravia, pelo que se toma a C1. & Trép., Recife 8(2): 131-189, jul./dez., 1980 148 A alimentagio do gaicho brasileiro preocupagio de resguardar 0 corpo de suas ferroadas: “Com um frio destes, te- mos que tirar ‘lechiguana’ esta noite”, conforme ests em Romaguera Correa. Lechiguana & vocébulo quichua. Sdo gauchismos em Aurélio, tanto a palavra quanto o dito. Lombinho, assado ou pega de carne que se tira da regio lomber da rés (R. Correa), assado de carne muito macio, extraido da regio lombar da rés (Calage), “Lombo": tombo de sem-vergonha, lombo de coxilha, lombo duro (cavalo), estar de lombo duro, em sentido figurado, para pessoa dif cil de ceder, ete, Maméo; Terneiro-maméo, terneiro que ainda mama ou “cara de terneiro- maméo”, cara de bobo, etc. Terneiro-mamo, prato muito estimado. Manapanca, espécie de biju espesso de farinha de mandioca, temperado com agiicar @ erva-doce, Brasileirismo. Mandaguari, uma das abelhas silvestres do Rio Grande do Sul, segundo Moraes. Mandassaia, espécie de abelha que dé excelente mel. Manta, posta de carne, no geral de carne seca; manta de charque (Calage) ‘ou porgio de carne de rés, quer da regido das costelas, quer da do peito, donde “manta do costilhar e manta do peito”, segundo Moraes. Marinhelro, gro de arroz com casca que se encontra no arroz jé descasca- do; joio, segundo Moraes. Martel, copo de um quarto de garrafa para bebida usado nos boliches de ‘campanha (Calage), Aurélio 0 acolhe como gauchismo. Matambre, carne para churrasco, da parte inferior das costelas (Darcy Azambuja). Mate-bicho, cachaca servida em copo; trago, cana, caninha. Quando o campeiro pede um “mata-bicho” jé se sabe 0 que é: um célice de aguardente (Calage). Mate, bebida resultante da intuséo das folhas da “Ilex paraguayensis”, nossa conhecida erva-mate devidemente preparada, que se toma em cula com o auxilio de uma bomba ou em taca. Palavra oriunda do Peru. O mate pode ser tomado com agticar (mate doce), usado pelas mulheres ou mais comumente sem Ci. & TrOp., Recife 8(2): 131-189, jul.fder., 1980 Dante de Laytano 149 agiear (mate amargo ou chimerréo). No existe hora para tomé-lo. Dia ou & noi- te, em jejum, ao levantar e antes da primeira refeicéo. Desenvolve 0 senso da sociabilidade. A erva tem as virtudes estomacais e antinervosas, etc. Inesgotével assunto do gatcho é 0 mate, Melado, nfo & 0 mel aqui, Que também se usa, claro. Mas no sentido figu- rado. O que tem o péio @ couro todo branco. Diz-se do cavalo, Nota-se que todos (05 cavalos de pélo e couro branco tém olhos ramelosos e pequenas sarnas 80 dor deles; também se chama “melado sapiroca”’ para o diferenciar do “‘melado couros-negros”, que tem 0 couro preto € pélo branco @ nfo tem o mesmo incd- modo nos olhos. (Coruja no primeiro vocabuldrio gaticho que se escreveu), Melador, pessoa que se encarrega do servigo de extracao de mel silvestre, como acothe Moraes em seu vocabulério. Mexido, denominagéo que se dé a0 feijo ou a carne picada que se pre- para em panela, mexendo-se com farinha de mandioca. Essa denominagdo esten- de-se, alids, 4 natureza de vérios géneros preparados de modo idéntico ao acime citado, segundo Moraes, Esté como gauchismo em Aurélio que amplia a palavra para Santa Catarina e acolhe o mexido mineiro: espécie de farofa feita com ar- 02, feijao, torresmo e verdura. E so ao todo sete acep¢es que Aurélio recolhe da palavra mexido. Mio-mio, erva toxics que dé nos campos. Nao é alimento, mas aparece ‘como destinada a tratamento na pecuéria, cuidando-se das ovas dos cavalos. Soca-se 8 erva de mistura com um pouco de sebo dos rins e coloca-se esta mistura nas partes afetadas, Ingerindo esta planta, o cavalo eo boi morrem. Entretanto eles a reconhecem e & evitam. Existe uma érea geogréfica para ela no Rio Grande. Sua importéncia como erva vem justamente de ser veneno e remédio. Dificilmen- te os animais comem mio-mio, pois fogem dele. Mirirguagu, espécie de abelha, cujo mel é medicinal e existe somente na regio da Serra. Middos, no singular, miGdo — significa, no Rio Grande do Sul, como em Portugal, criangas. Entretanto no plural — mitdos —, designa as visceras das reses, aves e outros animais. No singular, Aurélio registra como gauchismo que j& 0 tinha feito Moraes. ‘Mocotd, pata de vaca ou de boi ainda crua, depois de guisada (Rohan) e, com gordura, 6leo ou unto que se aplica a0 calgado (Teschauer}, Estas so as duas acepgdes gauchas do termo. Conhecido mais como alimento apreciado. Ci, & Trbp,, Recife 8(21: 131-189, ul fée2., 1980 150 A alimentagéo do gadcho brasitelro Mocoté também se aplica ao tratamento do cabelo de homens e mulheres, Brasileirismo, como alimento (Aurélio). Mondongo, alimento spreciado. Brasileirismo, Em definicéo do gaucho esté no dito popular: "Ser mondongo meio duro de pelar” ou em Moraes: mondongudo, diz-se do cavalo ruim para carreira, quando se quer deprecié-lo ou ridicularizé-lo. Aurélio acolne mudongo em vez de mondongo pera intestinos de certos animais. Varios significados, Alimento que também se come com fa- rinha. Mogango, espécie de abébora, mas néo confundir com abébora moganga. Gauchisma recolhido por Moraes. Come-se mogango depois de cozido em gua ou ao forno, quer com leite, quer com carne ou outros pratos. Seu paladar é apreciado. Esté no “Antonio Chimango”’: “eu até jd me esquecia como quem come mogango”. Saborear é to tentador que a pessoa vai sempre sem o sentir comendo bastante mogango. Aurélio o dé como brasileirismo de origem africa- na. Mutita, uma variedade de tatu de pequeno porte que vive nos campos. Cacar mulita é um passatempo de gaticho. Sua carne é apreciada (Moraes). Gauchismo, Mumbuca, espécie de abelha que fornece mel e cera. E conhecida em Ci- ma da Serra (Romaguera Correa). Mutreita, gordura excessiva do “anima vacum’: aquela vaca de to gorda esté de “mutreita”, Os assados que tiramos esto de “‘mutreita”, Este termo & usado no norte do Estado, mas na Campanha nfo o é (Romaguera Correa). Néo ser trigo limpo, expresséo ligada a assuntos alimentares. Aqui o trigo. Nao ser boa pessoa, néo ser de brincadeira, ser valente (Aurélio). Somente no vocabulo gauchesco. ‘io valer um sabugo, néo ter nenhum valor (néo dicionarizado), em Aurélio, Ambas as expresses nao estéo no Dicionério. Mas sabugo ou trigo pertencem ao ciclo da alimentag#o. Aurélin recolhe estas expresses e as dé no Glossério que fez para a de Simdes Lopes Neto — Gontos Gauchescos e Lends do Sul da Editora Globo, 1949, Nonato, néo nascide. Aplica-se 0 termo com referéncia ao terneiro tira- do do ventre da vaca quando esta é carneada. Aurélio acolhe como gauchismo: esta mesma definico de Calage. Ci, & Trép., Recife 8(2!: 131-159, jul. /der., 1980 Dante de Laytano 151 Noque, tambérn lugar abrigado em estabelecimento onde se prepara a erva-mate, onde ela & recolhida até ser exportada. Pertence assim, esta palavra, ag ciclo da erva-mate. Ainda designa aparelho para o fabrico doméstico de sabio. Prepara-se a decoada para sabio. Cesto para o mesmo fim. Esté em Moraes. Pala- vra que é brasileirismo. Lugar inda onde se curte o couro {Aurélio). Onde canta o galo, lacusio do gaticho, Muito de cima, bem no alto, “E bem montado, vinha, num bagual lobuno, rabicano. . . de cola atada, em trés trangas bem alta onde o galo canta, . .” (in: O negro Bonifécio). O gabcho costuma por baz6fia ou pacholice, atar a caude do cavalo de monteria muito no alta, com um nd gracioso, deixando pendente uma ponta de cada lado. A isto chama-se atar @ cola ou quebrar 0 cacho, canta-galo, ou como estd em Simdes Lopes Neto: onde canta 0 galo. Ou, “quebrar o cacho @ cantagalo”, vé-se.em Vargas Neto: “‘quebro 0 cacho, Ié em cima, a cantagelo”; “e vou as pulperias no domingo”; onde as chinas cobigam meu cavalo’ (in Tropitha Criouia). 0 galo en- to como designativo inesperado e nada culingria, mas galo velho é prato festeja- do. Origone, passa de péssego, feita em fatias, que é comida ao natural ou cozida. Queljo de origones. Em portugués dé-se 0 nome de orijone ao doce de péssego seco (Moraes). Gauchismo auténtico e prato que ainda se pode comer de sobremesa em algumas estancias e cidades como as da fronteira ou em Pelotas Rio Pardo. As vezes encomendanda, agora. Oropa, deturpaco de Europa, indicando a abelha que no Rio Grande do Sul é explorada industrialmente, como conta em Moraes. Pacoca, comida feita de carne destiada, misturada com farinha de man- dioea, Gauchismo em Calage. Brasileirismo no qual Aurétio anota seis acepedes. Mas no sentido de seu uso no Rio Grande do Sul, ela, 2 paroca, tomou caracte- risticas proprias, como ensina Moraes: uma comida que se prepara com charque, aferventado e socado no pi com a farinha de mandioca. A carne assim prepa- rada dura em bom estado muitos dias, sendo um bom recurso para quem tem de por lugares baldos de meios de subsisténcia. O termo estd generalizado ¢ se aplica 8 toda comida seca, mexida com farinha, Dé-se ainda este nome ao amendoim torrado e pilado com acticar e um pouco de farinha de mandioca. palavra tupi. Paleta & 0 omoplata ou espddua com demais ossos da méo ou sé aquele osso. Vocdbulo castelhana, Variados sentides como intruso, Ou dito como “ter marca na paleta’’; ou paletada — “em pouces paletadas’’; paleteador ¢ quem paleteia o animal ou quem atrapatha negécio de outrem (Moraes). Como malhar 6 gauchismo acolhido em Aurélio que traz seis acepcdes de paleta, Cl, & Trbp., Recite 82): 131-159, jul /det., 1980 152 A elimentapio do gauctra brasileiro Panela, no a dando como termo de apetrechos de cozinha, mas indo pare a seméntica, Buraco em rios @ arroios fundos e com redemoinhos que so lugares perigosos. Ou entéo, nome que déo a cada um dos compartimentos subterraneos de que se compde um formigueiro de sativa, e onde se acham as larvas. Ainda, panela de dinheiro, panela de ouro e prata, slusio aos “tesouros” dos jesultas nas Misses do século XVII que enterravam as riquezas para que os bandeirantes no as levassem. Entretanto, a Unica riqueza dos padres era a alma que eles bem tratavam dos indios. Os paulistas levaram, sim, 0s {ndios e suas al- mas também. Um diciondrio de cozinha pode-se dar, creio, ao comentério que panela no & apenas para se colocar no fogo ou fogéo. Assim se tem um ponto de partida para ver a circulacdo das palavras, primeiramente, ligadas @ cozinha e depois mudam de sentido. Parva, 10 vocabuldrio do gatcho é, para Moraes, por exemplo, meda de forragem, de triga, de erroz. Aurélio acolhe 0 gauchismo parva como procedente do espanhol via Rio da Prata. Piava, Moraes a inclui no seu vocabulério de gauchismo. Peixe de dgua do- ‘ce muito apreciado pelo seu sabor e @ a pesca de piava um esporte que tem mui- tos adeptos. Brasileirismo em Aurélio, peixe comum em alguns rios brasileiros. Pindocar, ago de descascar 0s gros de mitho e depois serem mofdos para beiju: esta é uma farinha de milho grossa que se come com Ieite e mesmo ‘com feijdo (Teschaver). Em Aurélio, esté como brasileirismo o mesmo sentido de descascar milho, gros de milho e, em Santa Catering, pdr o milho seco de motho para tirar-Ihe a pelicula. Pirué, gro de milho que ao se preparar a pipoca, ndo estaia, néo rebenta. Palavra de origem guarani. E termo usado na regiéo serrana, segundo Moraes. Aurélio diz que € tupi e 0 dé como brasileirismo. Entretanto seu registro em voeabulério gauchesco permite considerar-se um regionalismo do Rio Grande. Pitanga, saboroso fruto encarnado. A érvore € geralmente encontrada nas encostas dos rios. Ir colher pitangas liga-se 20s romances de namorados. “Chorar pitangas”: pedir com insisténcia algo que se nega. Brasileirismo do tupi. Os regio- nalistas do muita importéncia as pitengusiras como paisagem ecolégica. Puxué, fumo forte de mé qualidade {Moraes}. Aurélio acolhe como gau: chismo. Noutras regides ¢ erva. Porongo, cabeca de porongo. Fruto de uma planta que depois de seco e tiradas as sementes se presta para depésito de gua, farinha e outros misteres Cl, & Tr6p., Recife 8(2): 131-189, jul./dez., 1980 Dante de Layteno 153 domésticos. No norte do Brasil chame-se cabaca. Do poronge de cabeca se fazern as melhores cuias e vasilhas para depésito de dgva. A cula de cabeca de porongo 4 a mais estimada, ndo s6 porque tem as paredes mais grossas, como porque no se racha com facilidade, e também se reveste de forma mais interessante e passa, segundo erences arraigedas, por proporcionar melhor sabor ao mate. A cuia fei: ta de poronguinho é mais utilizada para o mate doce tomado pelas mutheres @ criancas. Beaureapaire Rohan ache que é vocdbulo quichua. Gauchismo. Auré ainda registra — cavalo porongudo: que tem nos membros uma grande exosto- se, que lembra uma cuia ou porongo. Proto, pao de milho e centeio. E de origem alema: “Brodt”’, com gratia € pronincia adulterades (Moraes). E a presenca dos alemdes na colonizacdo do Rio Grande, mas a lingua portuguesa modificou a palavra. Aurélio o dicionarize como termo do RS. Puchero, © prato conhecide por “‘fervido’ e que se prepara com came, verdura ¢ batatas, etc. Os indios dos pampas preparavam-no em um couro sus: enso em quatro estacas sobre 0 fogo, formande uma concavidade, onde deita- vam pedacos de carne e égua sem mais condimentos. Palavra castelhana (Moraes). Gauchismo do Rio Grande. Pulperia, venda, pequena casa de negécio, taverna ou armazém de ma classe no campo. Bodega. Palavra espanhola do Rio da Prata. Pulpero ou pul: Peiro, dono ou proprietério de pulperia. Quibebe, pitdo de abdbora (Moraes). Prato gaucho muito gostoso. Quibombs, @ mesmo que quiabo. Africanismo em circulagéo no Rio Grande do Sui. A palavra é um afro-brasileirismo. Autores de vocabulério gauicho a recolhem como termo regionalista. Quirera, milho quebrado para os pintos, Farelo de milho ou de qualquer ‘outro gro (Calage). O autor que recolheu a palavra em seu vocabulério gaucho 8 ouviu noutros Estados. Aurélio registra no seu dicionério o termo quirera co- ‘mo brasileirismo do RS e SC. Rabada, regio superior da cauda do animal, de cuja carne faz-se um prato especial. Diz-se “carne de rabada’’, “osso de rabada’’ (Moraes). Rafael, Moraes no seu prestimoso "Vocabulério Rio-grandense” registra © gauchismo rafael como sindnimo de fore, apetite. “Parece que sempre andava 4s voltas c’o ‘Rafael’ (in “‘Antanio Chimango”), citado por Moraes. Ci, & Trop., Recite 8(2): 131-159, jut fder., 1980 184 A olimentacéo do geticho brasileiro Roupe-velha, charque desfiado ou socado no pilo e mexido com farinha de mandioca. E um prato muito bom (Moraes). Seladeiro, estabelecimento onde se prepara a carne seca e demais produ- tos da ras, por métodos mais adiantados do que os praticados nas simples char- queadas (Moraes). Saladeril, o que é relativo a0 saladeiro. Saladeirista: 0 proprie- tério de um saladeiro. Saleira: gado saleiro, diz-se do gado acostumado comer sal; também, lugar onde se dé racdo de sal a0 gado. Ou Campo Saleiro, nome que 1a regido missioneira dio nos campos em cujo solo hé abundancia de principios salinos, Saipicéio, espécie de paio feito com pequenos pedacos de carne de gado (Moraes). Gauchismo nesta acepcio. Samora, mel de abelha, ainda em formagéo, de gosto muito desagradével. Socar canjica, da mesma forma que expresses de culindria so emprega- das em sentido diferente, socar canjica é, para 0 gaticho, ander mal 2 cavalo, © que se nota pelo mode como o cavaleiro reage 20s movimentos do animal (Calage). Tai, uma espécie de inhame a que no Rio de Janeiro chamam card (Mo- aes). Tambo, gauchismo recolhido em Aurélio. Estébulo onde hé vacas teitei- ‘8 que so ordenhadas para 2 venda de leite tirado na acasigo (Calage). Tatu, pequeno mamifero. Havendo diversas espécies peculiares a0 Rio Grande. A caga do tatu é um acontecimento campeiro. Prato gostoso. E xistem © tatu-do-mato, tatumulita, tatu-peludo, tatu-de-rabo-mole, etc. Tem-se verifi- cado que as crias de cada parto so regularmente de um $6 sexo ~ ou todos ma- chos ou todos fémeas. Tatu é ainda a parte do barbaqud onde € depositada a erva-mate para a secagem. € ainda a carne do misculo da perna do boi. Prato de carne muito fino. Tatu pode ser chicote: rabo-de-tatu, Tatu 6 ainda uma danga popular no Rio Grande como variedade de um fandango. Tatu é danga gaticha das mais populares. Paixo Cortes e Barbosa Les- $a, no magn{fico Manual de Dangas Gadichas que escreveram, fazem um estudo belfssimo da danca do tatu, fandango, canto, sapateado e longo e belo baile. Assim tatu de animal da fauna regional e que tem carne apreciada polos degusta- dores pode ser danca, relho, parte da carne de gado, deposito de erva-mate, Ci, & Trbp., Recife 8(2): 131-159, jul/dez., 1980 Dante de Laytano 155 Terneira-Vitela, a cria da vaca até dois anos e tanto. Palavra castelhar Terneirs ou vitela. Prato muito elogiado. Terneirada, um grande numero de ter- neiros. Terneiragem, uma poredo de terneiros; terneiro, o filho da vaca até um. ano ¢ meio de idade; o mesmo que bezerro. Chama-se também terneiro, a cria extraida de ventre da vaca quando esta € morta; é 0 mesmo que nonato. Dizia- se antigamente a palavra terneiro como em Portugal: terneiro. Terneirona, ter- neira gorda e talufa, Terneirote, terneiro muito novo. Tiquera, local onde foi roga, transtormado em capoeria. E termo muito usado no Alto Uruguai, possivelmente importado de Sao Paulo (Moraes). Tiorga, embriaguez, carraspana, bebedeira. “‘Estar na tiorga” significa estar bébado (Calage). Traira, peixe de aqua doce. Vaqueira, 0 mesmo que matambre Vora, espécie de abelha mui comum em Cima da Serra; fornece um mel Acide e muita cera. A dicionariza¢o do vocabulério gauchesco de culinéria foi mais para ressaltar ndo sé 0 aspecto propriamente dito da mesa rio-grandense 4 base de carne, evidentemente, mas para demonstrar a semantica do vocabulério rio-gran- dense que recebe alguns termos da lingua portuguesa com uma acepgio, as vezes, quase diferente. Usando-se os textos dos autores de vocabulérios regionais, pode- se dar a inclusdo destas palavras na relagSo dos termos rio-grandenses e o dicioné- rio de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira confere o registro do termo brasi: leiro em circulagdo no Rio Grande do Sul ou se considere que Aurélio é autor da Unica edigao critica dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul de Simoes Lopes Neto, autoridade em dialetologia assim com participagao ativa nos estudos dos vocabulérios do Rio Grande do Sul. A culindria do gaucho sempre em torno da carne. Ciclo da estancia. Cis « clo da carne, E quando se trata da carne propriamente dita. Ne estancia, em par- ticular. A esténcia marcou os rumos da cultura rio-grandense até a mecanizagao das lavouras ou da contribuigéo eletranica para o desenvolvimento das noticias pelo radio e televiséo. Mais a rapidez das comunicagdes rodovidrias com as gran- des estradas-tronco, que aproximaram a esténcia das cidades. A cidade foi uma dependéncia da estancia. A economia agro-pastoril dominava a balanca comer- cial. Mas as cidades cresceram e se aproximaram demais das esténcias e vice-versa, Ci. & TrOp., Recife 8(2): 131-159, jul./der., 1980 156 A alimentecéo do gatcho brasileiro A estancia decidia todo um inteiro contexto até mesmo culinério, mas a civilizago do gaticho é toda uma decorréncia da vida da esténcia. 0 proprio folclore do gaticho se abebera no ciclo da vida da esténcie e no comportamento saciolégico do estancieiro, capataz e pedo que a0 lado das mu- Iheres sempre escondidas © mais possivel, ficando apenas no aparecimento em Piblico as de condigées mais modestas, sfo fabricantes de folctore. E foiclore do Rio Grande do Sul é, camo se disse, um legado de nitida procedéncia luso- agoriana-brasileira com Indio e negro. O Rio Grande jé estava formado quando chegau 0 aleméo e depois o italiano € logo 0 polonés. Sé0 contribuigées dignas, sem divida. Os alemées implantaram uma nova cultura, mais outra religido, outra lingua, habitos e costumes diversos. Mas tiveram que aceitar 0 que emanava da terra gaiicha, na sua forga primitiva, mas dominadora. Além do mais, estavam eles longe desta filosofia guerreira, musical ou poética da Alemanha. A dialetolo- gia pode revelar a capacidade aculturativa que 0 povo brasileiro impés ao imi- grante como condigo de sobrevivéncia, O alemdo chegou antes e alguns até com religiGo diferente e dificuldades imensas no falar, com um idioma ainda de regides que usavam, no bom estilo europeu, uma fala dialetal propria, como ‘os imigrantes de Hamburgo, Bavat Munchen, Hildesheim, Prussia, Hanover, Holstein, Mecklemburgo, Saxbnia, Wurttemberg, Braunschweig, Schwrzembura, Bremem, Brunswick, Silésia, Baden, Libeck, etc. Assim os italianos da Alta Italia que imigraram do Véneto, Lombardia, Alto-Adige e Trento fundaram vinte e cinco cidades italianas no Rio Grande do. ‘Sul enquanto os italianos do sul ficaram nas cidades gatichas tanto da fronteira como da Serra, Depresséo Central e Litoral, capital, etc. Presenca brilhante do italiano, mas 0 Rio Grande j4 estava consolidado com a Revoluggo Farroupilha, ‘a Guerra de Rosas, do Paraguei ¢ numerosas outras formagSes militares de deli- neamento de fronteira e administra¢do @ governo e a largada dos trilhos das es- tradas de ferro. E preciso que se note este fenameno. A participagao dos alemses 6 notével na vida do Rio Grande. E também 0 foi dos italianos. Como depois os poloneses, E mais tarde russos, ucranianos, letonianos, espanhdis, su(gos, holan- deses, japoneses, sfrios, drabes e libaneses, etc. Mesmo que os sitios, érabes ¢ libaneses — fossem numerosos como o séo € deram muito de sua cultura 20 Rio Grande como os judeus, ¢ de considerar-se que no se estava descobrindo 0 Rio Grande. O Rio Grande jé estava descoberto ¢ civilizado. O esforgo notével des- tes imigrantes formidéveis trouxe um alento novo, alterou o horizonte da econo- mia e significou um estdgio diversificador do espirito criative do galicho. A pre- senga do castelhano vizinho é de influéncia controlével apenas na fronteira. E a dos luso-brasileiros, do outro lado hispano-americano. © legado luso-agoriano-brasileiro jd dominara o Rio Grande do Sul. & a ligdo principal que vern dos restos do folclore antigo, sua sobrevivéncia até hoje Ci, & Trp, Recite 812): 131-159, jul.fdex,, 1980 Dante de Leytano 157 € a lembranga perene que dete nos chega. € papel principal do folciore, explicar as raizes de uma cultura.” E a cultura do gaticho é justamente esta: portuguese € brasileira mais 0 rastro magnifico do agoriano e a soma de populacdes indigenas 0 grande papel africano. 0 Rio Grande do Sul é assim uma digna porcdo geo- grética da América, desta América Portuguesa chamada Brasil. A forga de nossa fronteira em absolute pode admitir que sejamos uma rea platina. O que é enga- no no $6 politico, mas de estrutura, Justamente 0 contrério, o Brasil é gue ter- mina no Prata, aliés descoberto em 1514 por Joo Lisboa, que fora piloto de Vasco da Gama, e o descobridor do Rio Grande do Sul, e a presenca da frota de Martim Afonso de Sousa, em Punta del Este; Martim Afonso, personagem de Camées é ele mesmo, Martim Afonso, que viria dar 0 nome de Sdo Pedro a0 Rio Grande do Sul, Capitania de Séo Pedro e Provincia de Sao Pedro do Rio Grande do Sul, A histéria constitui-se num respaldo importantissimo do folelore. Tanto a historia & luso-brasileira-agoriana como o fotclore do Rio Grande do Sul. Nin- guém esta negando a grande validade, a forca viva, a capacidade do contributo ne ou polonés au sitio, libanés e Srabe ou judeu e espanhol ¢ -platense-castelhano e assim por diante, O que se quer dizer é que o Rio Gran- de do Sul ¢ uma auténtica civitizagdo brasileira. Claro que no se pode ignorar ‘a presenca espanhola e castethana em nossa fronteira com penetrages varias. ‘Mas e n6s ingressamos também na acupacéo de sua geografia ou néo mantemos uma influéncis econdmica ou espiritual respeitéveis? E a tese que se defende a influéncia brasileira no Prata. Ou se insinua, Ou entéo se diz mesmo que somos um contexto nitidamente portugués com as implicagSes americanas de indios fe negros na formagdo de uma cultura tropical de maior sentido sociolégico. Recebem as influéncias nao portuguesas com o mundo que elas nos trazem. So culturas de uma forga secular de importancia e influéncias. Mas ao serem recebi- dos, estes milhares de imigrantes que formaram a parte ndo portuguesa do Rio Grande, eles se tornaram luso-brasileiros. Aculturaram-se e sofreram a irradiaggo talirica e 0 sortilégio do mistério da unidade geogréfica do Brasil como pats imenso. Somos 0 sexto pais do mundo em tamanho e também o sexto idioma falado no mundo. © que néo s#o dados que merecem desprezo. E a 10a. econo- mia mundial. A forca moral e 2 emanagio espiritual da civilizacdo dos portugueses deu ao Brasi! um poderio com o qual se ergue brilhantemente. Estas ra(zes ‘t6das podem ser vistas nas mais modernas camadas da formagio do Rio Grande do Sul como provas de uma verdade histérica. O folclore, a tradigg0 do povo, 6 que demonstram a expresso vivificadora deste mundo que o portugués criou e de que o Rio Grande do Sul 6 uma parte. Estd af a li¢do do folclore. Na simpl cidade do povo, sua natural desenvoltura, todo 0 conceito de uma estrutura. O folclore como trago explicativo do legade portugués. Assim, a tecitura maior do folclore, A de resistir a0 tempo e as influéncias mantendo-se fie! ou aceitando o Ci.& Trbp., Recife 812): 131-159, ju!./der., 1980 158 A alimentepio de getcho brastioiro estranho sem desfigurar-se. O folclore pode néo ser, entdo, uma tomada de consciéncia filosdtica para dizer-se @ se 0 diz, que o Rio Grande revela, através de seu folctore, sua legitima heranga portuguese. Porque somos uma cultura des- ta maneira formada e que os poucos séculos que @ temos néo a modificou. Ao contrério, em cada instante do simples, do trivial, do comum, do povo, dos cam- POnios e de todas as camadas modestas, mas que fabricam folctore porque ainda so puros, longe e distanciados das contaminagdes eruditas ou civilizadoras no conceito de progresso material, elas se movem num ambiente isolado das. tenta- ‘ges da riqueza e continua na pobreza, mas respeitadoras do pouco que Ihes res- tou. Que & muito, porque é 2 base de uma vida espiritual. O subjetivo talvez in- consciente ou no, mas que perdura na tradi¢go percorrendo as geragSes que atravessaram © tempo trazendo © folclore sté nossos dias. Este mesmo folclore que a demonstracio da exatidéo da equacdo na qual se demonstra a continuida- de perene do “folk”, que “folk” povo é, mas que sobressaia na defini¢éo do Rio Grande do Sul, no seu engajamento tao claro as raizes portuguesas que foram se constituindo do transplante europeu e suas transformacdes periédicas no préprio Brasil pelo contégio. Contégio enriquecedor das populagdes amer indias que se aberram num panteismo impressionante de servidio as forcas da natureza de ‘onde aflui todo seu caudal enorme do folclore. Como o negro que se aferrou na reacdo a tristeza imensa do martirio da escravidio, optando pela exteriorizacdo de uma formulacgo de seu folclore de culto aos seus deuses que Ihe permitiam uma vida feliz na obediéncia dos ritos ¢ 0 folclore afro-brasileiro ¢ uma extenso nitidamente religiosa. Pois, a cozinha africana 6 também folciérica em vista dela depender de cada alimento dos deuses. Os deuses africanos recebem o tributo dos alimentos, Mas eles no comem, comem os figis. A cozinha africane é assim uma dependéncia espiritual do status sacerdotal da propria cozinheira. O que é€ um folclore fabuloso ainda acoplado 4 danga, ao canto e as devocdes que eles cultivam com uma percepeo de fundo mistico e déo-Ihe a importéncia devida @ um folclore abundante que vem das proprias casas de maes e pais-de-santos, com filhos de santas e filhas de santas nas ceriménias de religiSo. O que nos empres- tam um folclore afro-brasileiro de cunho serissimo. Juntem-se a estes trés fatores mais 0 que ficou do luso-acariano e do luso-brasileiro que no Rio Grande tiveram uma implicagéo sugestiva, constante e imponente, temos as marcas do folclore gaticho. repita-se, e com insisténcia, € um legado luso- acoriano-brasileiro retocado pela beleza das tradicdes oriundas da mae natureza que 0 Indio cultivou. © negro com sua amargura escreva combatida pela luta de uma extroverséo ruidose levando a mistica de suas divindades adoradas para as ruas em canto, desfile, dangas e festas como desafio de sua sobrevivéncia ameaga- da. C1. & TrOp., Rocite 812): 131-159, jul,/dez., 1980 Dante de Leyzeno 159 © Rio Grande do Sul é, portanto, uma civilizagdo portuguesa de conted- do brasileiro, com as impticagdes necessérias que a elucidam vista de seu folclore, folclore da culindria a demonstrar, como demonstra, a histéria de suas procedén- cias étnicas, Ci. & Trop, Recife 812): 131-160, jul.fder., 1980

Você também pode gostar