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ATERRA SEM MAL DOS GUARANI* Economia ¢ profecia Bartolomeu Melia, SJ. ‘A busca da terra sem mal é — pelo menos no estado em que esto nossos conhecimentos — 0 motivo fundamental ¢ a razdo suficiente da migracéo ‘guarani, E nesta se insere a especificidade da economia das tribos. A terra sem mal é, certamente, um elemento essencial na construgdo do modo de ser guarani, A expressio yy marane’ J, registrada por Montoya desde 1639 e todavia esculada entre os Ava-katti — Chipiré — do Paraguai, assim como entre os Ava Chiriguano da Cordilheira, na Bolivia — yvy imarda —, por sua riqueza semantica resulta, sem embargo, tio reveladora como enigmética. O que buscava ‘ou oque busca, na verdade, um Guarani quando diz que busca a terra sem mal? ‘A resposta nio € umfvoca ¢ provavelmente inclui vérios niveis de compreensio, assim como supde varios momentos his\6ricos. AS EVIDENCIAS ARQUEOLOGICAS As evidencias arqueolégicas mosiram que 0s Guarani chegaram a ocupar as melhores terras da bacia dos rios Paraguai, Parana ¢ Uruguai, ¢ do sapé da Cordilheira. Séo terras especialmente aptas para o cultivo do milho, da mandioca, (7) —Tiadugho de Roberto E. Zwetsoh. Revista de Antropologia, (33), 1990, ‘de varios tipos de feljio, abéboras, balata ¢ amendoim. Séo (erras nas quais a ‘t6caica agricola de rogado permite uma produgio altamente satisfat6ria. A arqueologia né-los mostra como aldcdes horticultores, ¢ as grandes panelas nas quais era preparada a chicha — kagwi— fazem pensar cm grandes festivas © convites recfprocos. A mesma vontade ¢ beleza com que sho feitas ¢ adomadas tais panelas ¢ outros tipos de cerdmica manifestam gozo ¢ alegria de viver. © mupa cultural guarani se sobrepSe a um mapa ecol6gico, que se nfo ¢ de todo homogéneo, tampouco quebra certas constantes ambientais, “Pode-se dizer que 0 habitat preferencial dos Tupi-guarani, em contraste ‘com og ambientes distintos que eles ocuparam perifericamente, apresentava os seguintes pardmetros: 2) Clima: (Képpen) Chuvoso todo 0 ano, sem estacio seca (77%). Cfa: imido mesotérmico subtropical com verdes calorosos (72.7%); (Gaussen) ‘Axérico, sem nenhum dia biologicamente seco, indice xerotérmico = O (88,7%), 7a: eumesaxérico, subtropical moderado caloroso (65%). Pluviosidade média centre 1200-2020 mm. Temperatura média entre 18-22° C, média do més mais frio do ano entre 10-21° C, amplitude térmica entre 11-13°. Freqitacia média de _geadas até 5 dias por ano. b) Topografia: Até 300m das margens dos grandes ries, lagos ou oceano, Altitude abaixo dos 400m sobre o nivel do mar. ©) Vegetacio: Formagées florestais (97,3%), timidas (95,6%), estacionais. subcaducifélias (81%), do interior (66,5%) ou da costa (12,2%)" (Brochado 1982:137). Hé, pois, um "borizonte” de terra guarani, especifico ¢ constante, fora do qual seré dificil que se achcm os Guarani. B se hd safda deste horizonte seré devido a uma crise de uma ou outra ordem. As evidéncias arqueolégicas, corrotoradas pelas noticias hist6ricas mais, antigas, mostram a ocupagéo de delerminadas terras como um clemento constitutive do modo de ser guarani. Em outros termos, a vida guarani nunca se liberta, nem se abstrai da questo da terra. A terra, por sua parte, tampouco ¢ um dado fix ¢ imutével. Nada mais inestdvel que a terra guarani que nasce, vive ¢ morre, por assim dizer, com os proprios Guarani, que nela entram, trabalham-na e dela Se desprendem em ciclos que nio sio simplesmente econdmicos, senéo s6cio-politions ¢ religiosos. Esta ‘erra ocupada pelo Guarani é um lugar sempre ameacado pelo desequilfbrio, entre a abundincia ¢ a caréncia. ‘Como anotaré também o Dr. José P. Brochado (1982:122), 0 Guarani mantém dois tipos de relagio com a terra, A tera os adapta, impéc-lhes ‘condigbes ¢ determina variagies cm seu modo concreto de viver: hé variagdes os padrdes de povoamento, na dimensio de suas aldeias ¢ na densidade de sua demografia. A cerfimica ¢ um dos produtos que registra logo as condighes ‘ecol6gicas: s¢ hé predominio de milho ou se se depende mais da mandioca; s¢ 0s cultivos permitem grandes excedentes para a festa, ou se limitam a quantidades mais reduzidas de alcance pouco mais que familiar. Ao mesmo tempo, 08 Guarani nfo se deixam deteminar inteiramente pelo ambiente; eles buscam sua {erza, da qual tém conbecimentos expriementais consideraveis: elegem ambientes aptos, escolhem determinadas paisagens, preferem determinadas formagbes ‘vegetais onde podem assentar-se ¢ cultivar. ADIVINA ABUNDANCIA s primeiros contatos dos europeus com os Guarani confirmam ¢ reforgam 08 dados que hoje tiramos da arqueologia. Para a mentalidade parasita do explorador ¢ do conquistador espanhol que entrava pelo Rio da Prata ¢ seguia Paraguai acima ¢ penetrava pela bacia do Paran4 ¢ do Uruguai, era sempre uma agradivel surpresa encontrar-se com aquela portentosa abundAncia de produtos agricolas nas terras do Guarani. “'Se enconira tanta abund&incia de mantimentos, que nfo 36 hé pam a gente que ali reside mas para mais de outros 3 mil homens em cima’, manifesta o govemador Martinez de Irala, em 1541 (DHG Il: 299). Os cléssicos relatos de Ulrico Schmidl ¢ de Alvar Nuiiez Cabeca de vaca falam com entusiasmo da *aivina abundancia” que encontravam entre 0s Guarani. Os recursos alimenticios asseguravam uma trangiila fartura ¢ uma hospitalidade sem rescrvas (cf. Melit 1986:20). Esia "abundincia da idade da pedra" contrasta com as repetidas queixas que, & medida que passam os anos, levantam os colonos europeus sobre as carestias que padecem e a "pobreza da terra" que, colonialmente, se vai mostrando incapaz de sustentar com desafogo a seus novos povoadores.. E certo que antes da chegada dos conquistadores néo devem ter faltado épocas de pentiria e de escassez, como 0 nota o Pe. Roque Gonzfilez de Santa Cruz ao entrar no Tape. A intensidade da exploragéo agricola ¢ talvez corta fraqueza das (erras tcriam levado a um desequilfbrio ccolégice que por sua voz influcncia c chega a modificar a formagéo social dos grupos guarani. Esta é, pelo menos, a andlise estrutural, se se nos permite 0 anacronismo, que faz 0 Pe. Roque (Cf. Melia 1986: 55). ‘A ocupagéo ¢ 0 usuftuto da terra eram objeto por perte do Guarani de um ‘ratamento te6rico-prético que fica evidenciado ao nivel da lingua ¢ co nivel das técnicas agricolas usadas. © Guarani conhece sua terra, A riqueza da lingua guarani para designar 0s diversos tipos de terra e solos, de mata, de espécies Vegetais ¢ as caracteristicas ecolégicas de um lugar € um bom indice de seus ‘conhecimentos concretos e priticos. Existiu desde os tempos mais antigos uma agricultura — até poderiamos dizer uma agronomia — que 0 colono europeu acaba por ter de pedir emprestada do Guarani, como a mais adequada e a mais propria para essa terra. A agricultura de caréter guarani foi a mais praticada pelos colonos dessas regibes com bons resultados, ainda quando a distorséo do sistema econdmico introduzido tende a desequilibrar as cortelagdes ecoldgicas que o Guarani soube geralmente manter ‘com a criatividade ¢ dinamismo, emigrando inclusive, se fosse necessério. O Guarani no deixa desertos atrés de si. RANDE REKOHA Porém, para o Guarani, ¢ nisto coincidem tanto # arqueologia ¢ a histéria ‘como observacio etnogrifica contemporinea, a terra nic € nunca um simples meio de produgio econdmico. Como uma expressto que vem testemunhada desde anligamente ¢ € usual catre 0§ Guarani afuais, sua terra se identifica com 0 tekota. Entretanio, a semantica do tekoha corre menos pelo lado da produgio econtmica que pelo lado do modo de producio de cultura, Teko é, segundo 0 significado que lhc dé ‘Montoya em seu Tesoro de la lengua guarani (1639: f. 363 s), "modo de ser, ‘modo de esiar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, hébito, condicéo, costume..." Pois bem, 0 tekoha é 0 lugar onde se dio as condicdes de possibilidade do modo de ser guarani. A terra, concebida como tekoha é, antes de tudo, um espaco sécio-politice. "0 tekoha significa e produz 20 mesmo tempo relag6es econdmicas, relagées sociais e organizacio politico-religiosa essenciais, para a vida guarani... Ainda que parega um paralogismo, cmos que admitir, Juntumente com os proprios dirigentes guarani, que sem rekoha nfo hd teko" (Melia 1986: 105). E °0 tugar onde vivemos segundo nossos costumes” (Ibid: 104), © tekoha, com toda sua objetividade trrenal, é uma inter-relagéo de cespacos fisien-sociais. "B gente lavradora, sempre semeiam em montes ¢ cada trés anos pelo menos mudam de chécara... Habitam casas bem feitas..; algumas tém oito e dez esteios, ¢ outras mais ou menos, conforme 0 cacique tom os vassalos, porque todos costumam viver em uma casa... Suas povoaghes so pequenas, porque como sempre semeiam em montes, querem estar poucos, porque nfo se Ibes acabem, ¢ também para ter seus lugares de pesca e de caca acomodados” (MCA 1:166-67). Neste "Informe de um jesufta andnimo", de 1620, se nos dé de um modo implfcito acstrutura fundamental do sekoha guarani ¢ 0 jogo de seus "espacos”. Soja o monte preservado ¢ apenas recorrido como Lugar de pescae de caga, seja 0 monte cultivado e seja a casa, muito bem definida como espaco sociale politico. Séo estes trés espacos, simultancamente, os que definirio a bondade da terra guarani. Os termos positivos que designam a terra boa ¢ 0 monte aparecem consignados j4 no dicionfrio de Montoya ¢ esto na boca dos Guarani de hoje. A lerma boa vem classificada por categorias de vérias ordens: —variedades de solo — tipos de vegetagéo —acidentes geogrificos (cf. Montoya 1639, verbetes ibi, caa, fiz; Melit-Grinberg 1976: 203-4; ‘Susnik 1982:25). As qualidades de terra, com suas diferentes conformacées, se projetam sobre as possibilidades econdmicas de caca ¢ recoleta, em parte, porém € sobretudo, de agricultura. © Guarani vé a terra como horticultor, ¢ nao é de estranhar que prefira as terras que mais facilitam o trabalho agricola e as que possam dar maior rendimentoconforme os diversos cultigenos que nelasc hiiode plantar. A terceira dimensio da terra é a de ser um espaco habitével. O Guarani é um aldedo. HA um povoado e uma casa nos quais se concentra sua vida social e politica. A terra se converte em plenamente humana quando hé uma casae um patio. Os proprio conquistadores da primeira hora reconheceram 0 fundamental dessa espacialidade para o Guarani: ninguém pode estorvar-Ihes nem em suas ‘erras, campos, pastos, cacas, pescarias, assentamentos de povoacdes ¢ termos que cles tém ¢ tiveram por uso ¢ costume..." (Ordenanzas de Izala, 1586, n. 7, citado por Susnik 1979:80:112). AFUNDAGAO DA TERRA Todos estes aspectos da terra, nos quais economia ¢ sociedade se mostram indissoluveimentc relacionadas so, por sua vez, objeto de s{mbolos religicsos, reflexo de experiencia religiosa. A terra para o Guarani néo ¢ um deus, porém ‘estd impregnada toda ela de experiencia religiosa. Hé uma terra ideal ¢ um ideal de lerra que € assim porque foi feita pelo Primeiro Pai ¢ posta 20 cuidado, eventualmente, de outros seres divinos, que a protegem e defendem. O "genesis" dos Mbyé-Guarani, na expresso de um de seus dirigentes ‘xamdnicos, é de uma extraordindria poesia. "O verdadeiro Pai Namandi, 0 primeiro, havendo conhecido em si mesmo o que hi de ser 0 leito de sua prépria terra, da sabedoria contida em seu proprio ser celeste, ‘em virtude de sua sabedoria que sc abre em flor, fez que na base de seu bastéo (ritual), fosse engendrando-se a terra. Fez com que ela se desdobrasse, no ceatro da terra que havia de ser, uma palmeira verde-azul, outra na morada de Kara € outra na morada de TupS, € outta na origem dos ventos bons, nas origens do tempo-espaco primeiro, fez que se abrisse como flor a palmeira verde-azul” (Cadogan 1959: 28). Para o Guarani o mundo nfo é s6 um formoso paraiso natural, senfo um lugar de homens que viverdo bem nesta morada terenal, na medida em que participam da "boa citncia" — a neblina vivificante — da "inspiragio* — as chamas sagradas — ¢ da "moderagio" —o frescor da brisa. "Unicamente assim, os muitos que esto de pé nesta morada terrenal, ainda que sejam tentados a desviar-se do verdadciro amor mituo, viverdo em hharmonia” (Cadogan 1959:32). Os Pai-Tavyteré, ainda que separados culturalmente dos Mbyé por um processo secular, conceifuam ¢ cantam o genesis ¢ 0 sentido da terra em termos muito andlogos (cf. Melit-Griinberg 1976: 280-81), ‘A Teara sem mal dos Guarani a: igioso e mitico gurani nfo se refere somenie & "fundagio" da terra — jé que de fundacio e assentamento se trata mais que de criago —, sendo a seu desdobrar-se e a seu extehder-se continuado, o que supée caminhar por ela, forgar novos horizontes ¢ tomar possessdes dela, humana © plenamente. A expresso religiosa em suas diferentes formas © categorias — mitos, hinos, comentirios "tcol6gicos", ritos c outras linguagens — se refere & terra ‘humanizada, 2 terra econOmica, da qual se tira 0 sustento € da qual se vive. AS ‘normas para uma boa agricultura estéo todas elas impregnadas com categorias religiosas (Cadogan 1959: 131). Dos trés espagos pelos quais se movimentam e nos quais habita 0 Guarani, talvez seja o “espaco cerimonial" a centralidade mesma da vida guarani, onde o ‘tande reko se estrutura em seus aspectos econOmicos, sociais e politicos. MAL NATERRA Contudo, se hé uma concepgio de terra perfeita, hd também uma consciéncia aguda da instabilidade desta terra. A terra esta sustentada sobre um ponto de apoio que a qualquer momento pode cambalear-se e cair. Fragilidade e inestabilidade ameagam continuamente 0 universo guarani. A destruigio ests sempre no horizonte. Haveria uma explicagio “natural” desta ameaca c6smica; sfo simplesmente ‘0s fendmenos cataclismicos de toda orem: inundacOes, secas, venios muilo fortes... AS grandes aguas do diltivio ¢ a grande queimacao so temas obsessivos da mitologia guarani. A prética ritual costuma impor-se 0 dever, mediante 0 iembo'e — oragéo cantada ¢ dangada —, de assegurar firmemente o sustentéculo do mundo, O desequilfbrio vem também do desgaste ecoldgico que traz consigo 0 mesmo tipo de agricultura praticada pelos Guarani: 0 rogado, que obriga a deixar as tefras cansadas € cansat outras novas. A rotacéo de cultivos em Areas sucessivas se faz necesséria. Em termos econdmicos, esta pode ter sido uma das razbes principais para os deslocamentos e migracées, ainda que estas estejam longe de encontrar neste fator sua jinica causa. Pode dar-se rotagio de cultives por muitas décadas e inclusive séculos em freas suficientemente amplas, porém no necessariamente longinquas. Isto quer dizer que a migracio, quando ocorre,

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