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PIERRE BOURDIEU LICOES DA AULA Temas Te gal ton Dcvesimos poder minisar ua a reported io ‘a Ja, mesmo inaugural, sem nos pergun- he i oa tarmos com que direito: ai esta a insti- eect tuigZo para afastar essa interrogacio, as- sim como a angtistia ligada ao arbitrario que se faz lembrar em todo comeso. Ri- to de incorporacio ¢ de investidura, a au- Pans cater la inaugural, znceptio, realiza simbolica- mente 0 ato de delegacao ao fim do qual ISBN 85 08. 09075 4 i (© novo mestte esta autorizado a falar com autoridade, instituindo sua fala como dis- curso legitimo, proferido por quem de oo dircito. A eficicia verdadeiramente mé- Tasacetimenarpntsi tee gica do ritual repousa sobre a troca silen- ‘Sora CGI iosa € invisivel entte 0 novo membro, secon suse 27 que oferece publicamente sua fala, ¢ os ‘oat ecioweatcecoms! ‘etuditos reunidos, que atestam por sua 4 presenga em care € osso que essa fala, porsser assim recebida pelos mais eminen- tes mesttes, torna-se universalmente acei- tavel, ou seja, no mais pleno sentido, ma- gistral. Mas é melhor evitar levar muito Tonge o jogo da aula inaugural sobre a aula inaugural: a sociologia, ciéncia da instituicao ¢ da telacao, feliz ou infeliz, com a instituiggo, supde € produz uma distancia insuperdvel, e As vezes insupor- tavel, € ndo apenas para a instituigao; ela suprime o estado de inocéncia que per- mite realizar com felicidade as expecta- tivas da instivuigao. Parabola ou paradigma, a aula sobre a aula, discurso que reflete a si mesmo fo ato de discurso, teria 20 menos, co- mo virtude, 0 fato de lembrar uma das propriedades mais fundamentais da so- Giologia, tal como a concebo: todas as roposicées que essa ciéncia enuncia po- dem ¢ devem aplicar-se a0 sujeito que faz aciéncia. F na medida em que nao sabe introduzir essa distancia objetivante, por 5 tanto critica, que 0 socidlogo da razio Aqueles que 0 véem como uma espécie de inquisidor terrorista disponivel para toda ¢ qualquer acio de policiamento simbélico. Nao se entra na sociologia sem romper com as aderéncias ¢ adesbes atra- vés das quais pertencemos a grupos, sem abjurar as crencas constitutivas dessa per- tenga e renegar todo e qualquer lago de afiliaco ou de filiagio. Assim, o soci6- logo oriundo do que chamamos de po- vo, ¢ algado ao que chamamos de elite, s6 pode atingir a lucidez especial que esta associada a todo tipo de despaisamento social sob a condicao de denunciar a re- resentacao populista do povo, que s6 engana a seus autores, assim como a re- presentacao elitista das elites, feita exa- tamente para enganar tanto os que zem quanto os que nao fazem parte dela Tomar a inser¢io social do pesqui- sador como um obstaculo insuperavel pa- ra.a construgio de uma sociologia cien- tifica € esquecer que o socidlogo encon- 6 tra armas contra as determinagbes sociais nna propria ciéncia que as lumina, e por- tanto em sua consciéncia. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, con- tra a ciéncia que se faz, as nquisigbes da ciéncia ja feita, € um instrument indis- pensivel do método sociol6gico: fazemos ciéncia — e sobretudo sociologia — tanto em funcio de nossa propria formacio quanto contra cla. E s6 a Historia pode nos desvencilhar da Historia, E assim que a histéria social da ciéncia social, a me- fnos que seja concebida como uma cién- cia do inconsciente, na grande tradiga0 de epistemologia hist6rica ilustrada por Georges Canguilhem e Michel Foucault € um dos mais poderosos meios para suprimir-se a Historia, ou seja, a influén- cia de um passado incorporado que so- brevive ao presente, ou um presente que, como as modas intelectuais, ja passou n0 momento de sua propria apatigio. Se a sociologia do sistema de ensino ¢ do mundo intelectual me parece primordial, 7 € porque contribui também para 0 co- nhecimento do sujeito do conhecimen- to, introduzindo, mais diretamente que qualquer andlise reflexiva, as categorias de pensamento impensadas, que delimi- tam 0 pensavel predeterminam o pen- sado: basta evocar 0 universo de pressu- postos, de censuras ¢ de lacunas que t0- da educacio bem-sucedida leva a aceitar € ignorar, tracando 0 citculo magico da presuncio infundada, em que as escolas de elite encerram seus eleitos. A critica epistemolégica no se dé sem uma critica social, E para avaliar a discincia que nos separa da sociologia classica, basta observar que o autor das Formas primitivas de classificagao jamais concebeu a histria social do sistema de ensino, que nos propunha em Evo/ugao pedagigica na Franga como a sociologia genética das categorias do entendimen- to professoral, para a qual fornecia, no entanto, todos os instrumentos. Talvez porque o proprio Durkheim, que reco- 8 mendaya que a gestio da coisa piblica fosse confiada aos sibios, tivesse dificul- dade em tomar, em relacio a sua posi- io social de pensador do social, 2 dis- tincia necessaria para pensi-la como tal. Além do mais, sem dvida, s6 uma his- ‘t6ria social do movimento operirio e de suas telag6es com seus te6ricos da inte- riotidade e da extetioridade poderia per~ mitir compreender por que aqueles que fazem profissdo de marxismo jamais as- sumiram verdadeiramente o pensamen- to de Marx, ¢ principalmente os usos so: ciais que dele se fizeram, para pér prova a sociologia do conhecimento, de que Marx foi o iniciador. Entretanto, sem es- perar que a ctitica histotica ¢ sociolégica possa algum dia desencorajar completa- mente a utilizacio teol6gica ou tertoris- ta dos esctitos candnicos, podetiamos 20 menos esperar que leve os mais Iticidos ‘© 05 mais resolutos a despertarem do so- ‘no dogmitico para pér em funcionamen- to, ou seja, para por a prova, teorias ¢ 9 conceitos aos quais a magia da exegese sempre retomada assegura a falsa eterni- dade dos mausoléus. Ainda que evidentemente deva al- ‘guma coisa as transformagoes da institui- Gio escolar que autorizava a certitudo sui magistral do passado, essa interrogacio critica nfo deve ser compreendida como uma concessio ao humor antiinstitu- ional que faz parte da atmosfera da épo- ca, Ela se impoe de fato como a tinica maneira de escapar a esse principio sis- tematico de erro que € a tentagio da vi- so soberana. A partir do momento em que se arroga o direito, que as vezes lhe € reconhecido, de dizer quais si0 os li- mites entre as classes, as regides, as na- goes, de decidir, com a autoridade da ciéncia, se existem ou nio classes sociais, € quantas, se essa ou aquela classe social — prolerariado, campesinato ou peque- na burguesia —, essa ou aquela unida- de geogrifica — Bretanha, Cérsega ou Occitdnia — é uma realidade ow uma fic 0 Go, o sociélogo assume ou usurpa as fun- ses do rex atcaico, investido, segundo Benveniste, do poder de regere fines © de regere sacra, de dizer quais sio as fron- tciras ¢ 0s limites, ou seja, de dizer 0 sa- grado. O latim, que invoco também co- mo homenagem a Pierre Coutcelle, tem ‘uma outta palavra, menos prestigiosa € ‘mais préxima da realidade de hoje, a pa- lavra censor, para designar 0 decentor es- tatutirio desse poder de comstituicao que pertence ao dizer autorizado, capaz de fazer existir nas consciéncias ¢ nas coisas as divises do mundo social. © censor, responsivvel pela operagio técnica — cen sus, recenseamento —, tendo como fangio classificar os cidados segundo sua fortuna, € o sujeitv de um arbicrio que ‘esti’ mais proximo daquele do juiz que do sibio, ¢ que na verdade consiste — cito Georges Dumézil — em “situar (um homem, um ato, uma opinio ete.) em seu devido lugar hierarquico, com todas as conseqiiéncias praticas dessa situagio, € isso através de uma justa avaliagZo piiblica”” Para romper com a ambigao, que € prépria das mitologias, de fundar na ra- zio as divisdes arbitrérias da ordem so- cial, em primeiro lugar a divisto do tra- balho, dando assim uma solucao logica ‘ou cosmolégica para o problema da clas- sificagdo dos homens, a sociologia deve tomar como objeto, a0 invés de deixar- se tomar por ela, a luta pelo monopélio da tepresentacio legitima do mundo so- cial, essa luta pelas classificagdes que uma dimensio de qualquer tipo de hata de classes: classes etitias, classes sexuais ‘ou classes sociais. A classificacio antro- pologica distingue-se das taxionomias zoologicas ou botanicas pelo fato de os objetos que ela poe — ou repde — em seus lugares serem sujeitos clasificantes. Basta pensar no que acontecetia se, co- ‘mo nas fabulas, os cachorros, as raposas € 05 lobos tivessem voz no capitulo rela- tivo & classificagao dos caninos € aos li- 12 mites aceitiveis de variagio entre os membros reconhecidos da espécie; ou se a hierarquia das caracteristicas levadas em conta para determinar os diferentes pos- 105 dos géneros e das espécies comandasse as chances de acesso & raga difria ou aos prémios de beleza. Em resumo, para grande desespero do fil6sofo-rei, que, a0 Ihes atribuir uma esséncia, pretende obrigi-los a sere a fazer o que Ihes cabe por definicio, os classificados e os des- classificados podem recusar 0 principio de classificaco que lhes reserva o piot lu gar. Na verdade, a Histria 0 mostra, € quase sempre sob a condugio de preten- dentes 20 monopélio do poder de julgar ede classificar, freqtientemente eles prs- rios desclassificados, a0 menos sob cer- tos aspectos, no que diz respeito a clas- sificagio dominante, que os dominados podem subtrair-se a classificacao legiti- ma ¢ transformar sua visio de mundo, ultrapassando esses limites incorporados 13 que sao as categorias sociais de percep- 20 do mundo social Assim, €a mesma coisa descobrit-se inevitavelmente engajado na luta pela construcao ¢ imposicio da taxionomia le- gitima ¢ dar-se por objeto, passando ago- ra para o segundo grau, a ciéncia dessa ura, ou seja, 0 conhecimento do funcio- namento € das funcdes das instituicbes envolvidas — como o sistema escolar ou os grandes organismos oficiais de recen- seamento € de estatistica social. Pensar nesses termos 0 espaco da luta das classi- ficagGes — e a posicio do socidlogo nes- se ou em relacdo a esse espaco — de for- ma alguma leva a anular a ciéncia no re- lativismo. Sem diivida, 0 socidlogo nao € mais o atbitto imparcial ou o especta- dor divino, 0 Gnico a dizer onde esti a verdade — ou, para falar nos termos do senso comum, que tem razio —, € isso leva a identificar a objetividade a uma distribuicdo ostensivamente eqilitativa dos ertos ¢ das razdes. Mas 0 socidlogo € aqucle que se esforga por dizer a ver dade das lutas que tém como objeto — fentte outras coisas — a verdade. Por ‘exemplo: em lugar de estabelecer uma divisio entre aqueles que afirmam e aqueles que negam a existéncia de uma classe, de uma regio ou de uma nacio, ttabalha no sentido de estabelecer a 16 gica especifica dessa luta, e de determi: nar, através de uma anilise do estado da relacio de forcas ¢ dos mecanismos de sua transformacao, as chances dos diferentes campos. Cabe-the construir um modelo verdadeiro das lutas pela imposicao da representacio verdadeira da realidade, ‘que contribuem para fazer a realidade tal como se apresenta ao registro. E assim que procede Georges Duby, quando, em vez de aceité-lo como um instrumento indiscutivel do trabalho do historiador, toma como objeto da anilise histérica 0 esquema das ttés ordens, ou seja, 0 sis- tema de classificacao através do qual a ciencia historica costuma pensar a socie- 16 dade feudal; c isso para descobrir que esse principio de divisio, 20 mesmo tempo © objeto € 0 produto das lutas entre os grupos que pretendem 0 monopélio do poder de constituicao — bispos e cava- leiros —, contribuiu para produzir a propria realidade que ele permite pen- sar. Da mesma forma, quando da verifi- cago que o socidlogo realiza num deter- minado momento do tempo sobre as propriedades ou as opinides das diferen- tes classes sociais, os proptios critérios de lassificaczo com que cle deve operar sio também o produto de toda a hist6ria das lutas simbélicas, que, tendo como obje- to a existéncia ¢ a definicéo das classes, contribuiram muito concretamente pa: 1a fazer as classes: o estado presente des- sas lutas passadas depende, em dose na- do negligenciavel, do efeito de teoria cexerc ‘do pelas sociologias do passado, no- tadamente por aquelas que contribuiram para fazer a classe operaria e, a0 mesmo tempo, as outras classes, contribuindo pa- ta fazer-se acreditar —e a ela propria — 16 que ela existia enquanto proletariado re- voluciondtio. A medida que a ciéncia so- cial progride, ¢ progride sua divulgacao, 95 socidlogos devem esperar encontrar cada vez mais freqiientemente, reali- zada em seu objeto, a ciéncia social do passado, Mas basta pensar no papel que as lu- tas politicas fazem a previsio desempe- nar, ou ainda na mera verificaglo, pa- ta compreender que o socislogo mais ri- gorosamente dedicado a descrever sera sempre suspeito de prescrever ou de pros- crevet. Na existéncia ordinatia, pratica- mente 56 s¢ fala daquilo que €, para di- zer, por actéscimo, que € conforme ou contritio 4 natureza das coisas, normal ou anormal, admitido ou exeluido, ben- dito ou maldito. Os substantivos sio combinados a adjetivos tacitos, os verbos, 4 advérbios silenciosos, que tendem a consagrar ou a condenar, a instituir co- ino de existéncia ¢ de perseverar no ser, ou, a0 contratio, a destituir, a de- v7 radar, a desacreditar, Da mesma forma, nao € facil separat 0 discurso da ciéncia da légica do processo no qual se quer fazé-lo funcionar, quando nada para dar- sea liberdade de condené-lo. Assim, a descricao cientifica da relaco que os mais carentes culturalmente mantém com a cultura erudita tem toda a oportunida- de de ser compreendida, seja como uma maneita dissimulada de condenar o po- vo a ignorancia, seja, pelo contrario, co- ‘mo uma maneira dissimulada de reabi- litar ou de celebrar a incultura, e de de- molit os valores da cultura. E 0 que di- zer dos casos em que o esforco para res- tabelecer a raz2o, em que sempre con- siste o trabalho da ciéncia, corre o risco de aparecer como uma forma de justifi- car, ou mesmo de desculpar? Diante da servidao do trabalho ou da miséria das favelas, sem falar da tortura ou da vio- léncia dos campos de concentragao, 0 assim’, que, segundo Hegel podemos pronunciar diante das montanhas, reveste-se do valor de uma cumplicida- de ctiminosa. Na medida em que nada € mais neutto, quando se trata do mun- do social, do que enunciar 0 ser com au totidade, ou seja, com o poder de fazer ver e de fazer crer que a capacidade re- conhecida de prever confete, 2s verifica- es da ciéncia exercem inevitavelmente uma eficacia politica, que pode nao ser aquela que o pesquisador queria exercer. Entretanto, aqueles que deploram o pessimismo desencantado ou os efeitos desmobilizadores da anilise sociol6gica quando ela formula, por exemplo, as leis da reproducio social, esto mais ou me- nos tio bem fundados quanto 0s que re- provaram a Galileu ter desencorajado 0 sonho de voar 20 elaborar a lei da queda dos corpos. Enunciar uma lei social co- mo aquela que estabelece que 0 capital cultural vai para o capital cultural € of- recer a possibilidade de introduzir entre as circunstincias que contribuem pata 0 efcito que ela prevé — nesse caso parti 19 cular, a eliminagio escolar das criangas mais carentes de capital cultural — os “elementos modificadores’*, como dizia Auguste Comte, que, por mais frigeis que sejam em si mesmos, podem ser su- ficientes para transformar, na direcao de nossas esperangas, o resultado dos meca- nismos. Uma vez que 0 conhecimento dos mecanismos permite, nesse como em ‘outros casos, determinar as condigoes ¢ ‘os meios de uma acio destinada a do- a recusa do sociologismo que trata o provavel como um destino se jus- tifiea em qualquer caso; € os movimen- tos de emancipacio estao ai para provar que uma certa dose de utopia — essa ne- gagdo magica do real que em outro con- texto dirfamos neurdtica — pode mes- mo contribuir para criar as condigdes po- liticas de uma negagio pratica da verifi- cacao tealista. Mas, sobretudo, oconhe- ‘cimento exerce, por si mesmo, um efei- to — que me parece libertador—, to- das as vezes em que os mecanismos de 20 que ele estabelece as leis de funciona- mento devem uma parte de sua eficacia ao desconhecimento, ou seja, todas as ve- zes em que ele toca nos fundamentos da violencia simb6tica. Essa forma particu- lar de violencia s6 pode de fato exercer- se sobte sujeitos de conhecimento, mas ‘cujos atos de conhecimento, uma vez que ‘So parciais ¢ mistificados, encerram 0 re- conhecimento tacito da dominacao im- plicada no desconhecimento dos funda- mentos verdadeiros da dominacao. Com- preende-se que a sociologia veja contes- tar-se sem cessar seu estatuto de ciéncia, e antes de tudo, evidentemente, por to- dos aqueles que tém necessidade das tre- vas do desconhecimento para exercer seu comércio simbélico ‘A necessidade de repudiar a tenea- fo regalista s6 se impde tao absolut: mente quando se trata de pensar cien ficamente 0 proprio mundo cientifico, ou, mais abrangentemente, 0 mundo in- telectual. Se foi preciso repensar de ca- 2 bo a rabo a sociologia dos intelectuais, foi porque, em funcao da importincia dos interesses em jogo € dos bloqueios consencidos, é supremamente dificil, pa- ra.um intelectual, escapar a l6gica da luta ‘na qual cada um se faz de bom grado 0 sociélogo — no sentido mais brutalmente sociologista — de seus adversarios, a0 mesmo tempo que seu pr6prio ideslo go, segundo a lei da cegueira e da luc der cruzadas que regula todas as lutas 30- ciais pela verdade. Contudo, € sob a con- dicao de apreender o jogo enquanto tal, com os objetos, as regras ou as regulari- dades que lhe sto proprias, os bloqueios especificos que nele se engendram ¢ os interesses que com ele se satisfazem, que © intelectual pode ao mesmo tempo desembaracar-se através da distancia constitutiva da representacao te6tica © descobrir-se engajado, num ponto deter- minado, com os objetos e bloqueios de terminados ¢ determinantes. Quaisquet que sejam suas pretensdes cientificas, a 22 “objetivacio est fadada a petmanecer par cial, e por conseguinte falsa, enquanto ignorar ou recusar ver ponto de vista a partir do qual € enunciada — 0 jogo em seu conjunto, portanto. Construit 0 jogo como tal, ou seja, como um espaco de posigses objetivas, que esti no prin- cipio, entre outras coisas, da visto que os ocupantes de cada posico podem ter das outras posigdes ¢ de seus ocupantes, € dar-se 0 meio de objetivar cientifica- mente 0 conjunto das objetivacdes mais ‘ou menos brutalmente redutoras as quais, se entregam os agentes engajados na lu- ta, e de percebé-las tais como sio: estra- «égias simbélicas que visam impor a ver- dade parcial de um grupo como a ver dade das relagbes objetivas entre os gru- pos. E descobrir, além do mais, que, dei- xando ignorado 0 préprio jogo que os constitui como concortentes, os adversi- rios cGmplices entram em acordo para manter mascarado 0 essencial, isto €, os interesses ligados ao fato de participar- 23 se do jogo € 0 conluio objetivo dat re- sultante. E bastante evidente que nfo se deve esperar, do pensamento sobre os limites, que dé acesso ao pensamento sem limi- tes — 0 que redundaria em ressuscicar uma outra forma de ilusio, formulada por Mannheim como a “‘intelligentzia sem vinculos nem raizes”, espécie de so- rho de véo social que € 0 substituto his- t6rico da ambigao do saber absoluto. Dis- so resulta que cada nova aquisicao da so- ciologia da ciéncia tende a reforcar a cién: cia sociologica, aumentando 0 conheci mento dos determinantes sociais do pen- samento sociolégico, €, portanto, a efi- cacia da critica que cada um pode opor 0s efeitos desses determinantes sobre sua propria pratica e sobre a de seus concor- tentes. A ciéncia € reforcada toda vez que se reforca a ctitica cientifica, ou seja, nao ha como separar a qualidade cientifica das armas disponiveis e a necessidade, pa- 1a triunfar cientificamente, de utilizar as 24 armas da ciéncia, ¢ apenas elas. O cam- po cientifico é, de fato, um campo de lu- tas como outro qualquer, mas onde as Adisposicdes ctiticas suscitadas pela concor- réncia nao tém nenhuma chance de se- tem satisfeitas, a no ser que possam mo- bilizat os recursos cientificos acumulados; quanto mais avangada estiver uma cién- cia, dotada portanto de uma aquisicao coletiva importante, mais a participacéo na luta cientifica supde a posse de um capital cientifico importante. Segue-se centdo que as revolugdes cientificas nao so negécio para os mais carentes, mas para fos mais ricos cientificamente. Essas leis simples permitem compreender que pro- tos sociais trans-hist6ricos, ou seja, re- lativamente independentes de suas con- dig6es sociais de producio, tais como as verdades cientificas, possam surgir da his- toticidade de uma configuragio social sin- gular, ov seja, de um campo social tal como 0 da fisica ou da biologia de hoje. Em outras palavras, a ciéncia social po- 26 de dar conta racionalmente do progres: so paradoxal de uma razao inteiramente historica © entretanto irredutivel & His- toria. Se ha uma verdade, € que a ver- dade € um resultado de hutas; mas essa luta $6 pode conduzir a verdade quando obedece a uma l6gica tal que nao se po- de triunfar sobte os adversiirios sem em- pregar contra eles as armas da ciéncia, contribuindo assim para o progresso da vetdade cientifica Essa logica vale também para a so- iologia: bastaria que se pudesse exigit nna pritica, de todos os participantes de todos os pretendentes, o dominio das conquistas — ja imensas — da discipli- nna, pata que desaparecessem do univer- so certas praticas que desqualificam a pro- fissio. Mas quem, no mundo social, tem interesse pela existéncia de uma ciéneia auténoma do mundo social? De qual- quer forma, no € 0 caso dos carentes cientificamente: estruturalmente inclina- dos a buscar na alianca com os poderes 26 externos, quaisquer que sejam, um re- forco ou uma vinganca contra as restti- {ges € controles nascidos na concorrén- cia interna, podem sempre encontrar na deniincia politica um substituto facil da critica cientifica, Tampouco sio 0s deten- totes de um poder temporal ou espiritual aqueles que s6 podem ver numa ciencia social realmente auténoma apenas a mais duvidosa das concorréncias. F, talvez, so- bretudo quando, renunciando a ambi- io de legislar, de onde advém a hetero romia, a ciéncia social reivindica uma au- toridade negativa, critica, ou se cade si mesma e, por implicacio, de to- dos 0s abusos cientificos € de todos os abusos de poder cometidos em nome da Compreende-se que a existéncia da sociologia como d ameacada sem cessar. A vulnerabilidade estructural que resulta da possibilidade de ‘ttapaccar com os imperativos cientificos através do jogo da politizacto faz com 27 que a sociologia tenha quase tanto a te- mer dos poderes que dela esperam de- mais, quanto daqueles que querem sua desaparicdo. As demandas sociais esto sempre acompanhadas de pressdes, de in- jungoes ou de sedugdes, € 0 maior servi- ‘G0 que se pode prestar 4 sociologia é, tal- vez, ode ni Ihe pedir nada. Paul Vey- ne observa que “se reconhecem de lon- ge os grandes estudiosos de histéria an- tiga por certas paginas que no escre- vem". Que dizer dos socidlogos que sao incessantemente convidados a ultrapas- sat 0s limites de sua ciéncia? Nao € as- sim tao facil renunciar as gratificagdes imediatas do profetismo cotidiano — ainda mais porque o siléncio, por defi- nigio fadado a passar desapercebido, dei- xa o campo livre para a inanidade sono- ra da falsa ciéncia, E assim que alguns, por nao repudiarem as ambigoes da filo- sofia social € as seduces do ensaismo, ‘que, presente em toda parte, tem respos- ta para tudo, podem passar toda uma vi- 28 da situados em terrenos em que, em seu estado atual, a ciéncia esta vencida ja de inicio. Enquanto outros, 20 conttario, en- contram nesse excesso uma desculpa pa- 1a justificar a demissio que as prudén- cias inatacaveis da minticia idiografica implicam. A ciéncia social s6 pode constituir- se recusando a demanda social por ins- trumentos de legitimacao ou de mani- pulacio, O socidlogo — pode acontecer- Ihe deplorar esse fato — no tem man- dato, nJo tem missio, exceto os que 2s sume em vittude da l6gica de sua pes quisa. Aqueles que, por uma usurpagao essencial, se dao 0 direito ou se sentem no dever de falar pelo povo, ou seja, em seu favor, mas também em seu lugar, ainda que para denunciar o racismo, 0 miserabilismo ou 0 populismo dos que falam do povo, como me aconteceu fa- zet, mesmo esses falam para si mesmos; ‘0u 40 menos falam de si mesmos, na me- dida em que, no melhor dos casos — 29 penso por exemplo em Michelet —, tra- tam assim de amortecer o softimento li- gado a ruptura social fazendo-se povo em imaginagio. Mas devo abrir um parén- tese: a partir do momento em que, co- mo acabo de fazer, o sociélogo ensina a relacionar os atos ou os discursos mais “*puros’” — os do erudito, do artista ou do militante — as condigoes sociais de sua producio e aos interesses especificos de seus produtores, longe de encorajar © parti pris de reducio ¢ de demolicao com que o azedume e a amarguta se en: cantam, pretende apenas encontrar 0 meio de separar 0 rigorismo, ou seja, 0 tecrorismo do tessentimento, de sua im- pecabilidade objetiva e subjetiva, a co- ‘mecar por aquele que nasce da transmu- tagio de um desejo de vinganca social em reivindicacio de um igualitarismo com- pensatério, Através do socidlogo, agente hist6- rico historicamente situado, sujeito social socialmente determinado, a Hist6ria, ou 30 seja, a sociedade na qual sobrevive, vol ta um momento sobre si mesma, reflete asi mesma; ¢, através dele, todos os agentes sociais podem saber um pouco melhor 0 que sio, o que fazem., Mas es- sa tarefa é precisamente a Gitima que de- sejariam confiar a0 socidlogo todos aqui les que tém algo a ver com 0 desconhe- cimento, a denegacio ¢ a recusa do sa- ber, e que esto prontos para reconhe- cer como cientificas, na maior boa-fé, to- das as formas de discurso que nao falam do mundo social ou que falam de uma maneira que nao é a deles. Essa deman- da negativa nao tem necessidade, salvo alguma excecio, de declarar-se em cen- suras exptessas: na verdade, pelo fato de a ciéncia rigorosa supor rupturas decis6- rias em relacio as evidencias, basta dar continuidade 4 rotina do senso comum ‘ow As inclinacoes do bom-senso burgués, para obter as consideracdes nao-falseaveis do enstismo planetétio ou as-meias- verdades da ciéncia oficial. Uma boa par- 31 te do que o sociélogo trabalha para des- cobrir nao esta escondido, no mesmo sen- tido em que esta o que as ciéncias da Na- tureza pretendem trazer 4 luz do dia. Muitas das realidades ou relagSes que ele poe a descoberto nao sao invisiveis, ou ‘so apenas no sentido de que elas "ee- ‘gam os olhos”, segundo o paradigma da carta roubada caro a Lacan: penso por cexemplo na relacao estatistica que une as priticas ou as preferéncias culturais a edu- cagio recebida, O trabalho necessatio pa- ra produzir 3 luz do dia a verdade, ¢ pa ta fazet com que, uma vez produzida, seja reconhecida, esbarra nos mecanismos coletivos de defesa, que tendem a asse- gurar uma verdadeira denegacio, no sen- tido de Freud.A recusa em reconhecer uma realidade traumatizante sendo pro- porcional aos interesses defendidos, compreende-se a violéncia extrema das reagoes de resisténcia que suscitam, en tre 05 detentores de capital cultural, as anélises que trazem 3 luz do dia as con- 32 digdes de producio ¢ de reproducao de- negadas da cultura: aqueles devotados a pensarem-se sob as espécies do tinico ¢ do inato, essas anilises revelam apenas ‘0 que é comum eo que é adquirido, Nes- se sentido, o conhecimento de si é mes- mo, como queria Kant, “uma di aos infernos’’. Como as almas qu gundo 0 mito de Er, devem beber a égua do tio Ameles, portadoras do esqueci mento, antes de voltar a Terra para vic veras vidas que elas proprias eseolheram os homens de cultuia devens suss sais puras fruigdes culturais 4 amnésia da gé- rnese que thes permite viver sua cultura como um dom da Natureza, Nessa logi- ca, que a psicanalise conhece bem, eles nao recuarao diante da contradicio para defender o erro vital que é sua razao de ser, salvando assim a integridade de uma identidade fundada sobre a conciliagio dos contririos: recorrendo a uma forma do paralogisme du chaudron™, tal como Freud o desereve, poderio reprovar a ob- jetivacio cientifica tanto 0 seu absurdo quanto a sua evidéneia, € portanto sua banalidade, sua vulgaridade. Os adversirios da sociologia tém o di- reito de perguntar-se se uma atividade que supse € produz a negacao de uma denegacio coletiva deve existir; mas na- da os autoriza a contestar-Ihe 0 carder cientifico. E certo que nao existe, propria- mente falando, demanda social por um saber total sobre © mundo social. E55 a auconomia relaciva do campo de produ- Gio cientifica € os interesses especificos que com ela se engendram podem auto- rizat e favorecer a aparigao de uma ofer- ta de produtos cientificos, ou seja, 0 mais freqiientemente, criticos, que estao além de toda forma de demanda. Fm favor do partido da cigacia, mais que nunca do da Aufldirung, da desmistificacio, po- detiamos nos contentar com invocar um texto de Descartes que Martial Guéroult 34 gostava de citar: “De modo algum apro- vo que alguém cuide de enganar-se re- pisando falsas imaginagdes. F esse 0 mo- tivo pelo qual, vendo que constitui per- feicio maior conhecer a verdade, ainda que para nossa desvantagem, do que ig- nord-la, confesso que vale mais ser me- nos alegre ¢ ter mais conhecimento"”. A sociologia desvela a self-deception, a mentira para si mesmo coletivamente cempreendida e encorajada e que, em to- da sociedade, est no fundamento dos ‘mais sagrados valores €, portanto, de to- da a existéncia social, Ela ensina, com Marcel Mauss, que ‘‘a sociedade sempre se paga com a falsa moeda de seu so- rnho"”, Isso equivale a dizer que essa ciér cia iconoclasta das sociedades que enve- Ihecem pode contribuir ao menos pata nos tornar, por pouco que seja, senho- res e possuidores da natureza social, fa zendo progredir 0 conhecimento © a consciéncia dos mecanismos que esto n0 principio de todas as formas de fetichis- 35 mo: evidentemente, penso no que Ray- mond Aron, que tanto ilustrou esse en- sino, chama de “‘religiao secular’, esse calto de Estado que € um culto do Esea- do, com suas festas civis, suas ceriménias civicas € seus mitos nacionais ou nacio- nalistas, sempre predispostos a suscitar ou a justificar o desprezo ou a violencia ra- cista, e que nao € feito exclusivo dos Bs- tados totalitatios; mas penso também no culto da arte € da ciéncia, que, como ido- los de substituigo, podem concorrer & egitimagao de uma ordem social parcial- mente fundada na distribuigao desigual do capital cultural. Em todo caso, pode- ‘mos ao menos esperar, da ciéncia social, que faca recuar a rentacao da magia, es- sa bybris da ignorineia ignorante de si mesma € que, cacada na relacio com 0 mundo natural, sobrevive na relagio com ‘0 mundo social. A vinganca do real é im- piedosa com a boa vontade mal- esclarecida ou com 0 voluntarismo uto- pista; ¢ o destino trigico dos empreen- 36 dimentos politicos que se pretenderam ‘uma ciéncia social presungosa est ai pa- ra lembrar que a ambi¢io magica de transformar 0 mundo social sem conhe- cer os mecanismos que 0 movem corre © risco de substituir por uma outta violén- cia, as vezes mais desumana, a ‘‘violér cia inerte’’ dos mecanismos que a igno- rincia pretensiosa destruiu A sociologia € uma ciéncia que tem como particularidade a particular dificul- dade de tornar-se uma ciéncia como as coutras, Isso porque, longe de oporem:se a recusa de saber € a ilusio do saber in- fuso coexistem perfeitamente, tanto en- tre 0s pesquisadores quanto entre os ho- mens praticos. E s6 uma disposicao rigo- rosamente critica pode dissolver as cer- tezas praticas que se insinuam no discurso cientifico através dos pressupostos inscri- tos na linguagem ou das pré-construcies inerentes a rotina do discurso cotidiano sobre os problemas sociais; em resumo, através da névoa de palavras que se ir 37 terpoem sem cessar entre © pesquisador ¢ 0 mundo social. De maneita geral, a linguagem exprime mais facilmente as coisas que as relagbes, mais os estados que 95 processos. Dizer, a propésito de al guém, que tem poder, por exemplo, ou petguntat-se quem, hoje em dia, detém realmente o poder, é pensar o poder co: mo uma substancia, uma coisa que al- guns detém, conservam, transmitem; € pedir a ciéneia pata determinar “quem governa’” (segundo o titulo de um clis- sico da ciéncia politica) ou quem deci- de; € admitindo-se que 0 poder, en- quanto substincia, esteja situado em al gum lugar, perguntar-se se vem do alto, como quer 0 senso comum, ou, numa paradoxal inversio que preserva a déxa por inteiro, de baixo, dos dominados. Longe de opor-se, a ilusio coisificance € a ilusio personalizante caminham la- doa lado. E nunca terminasiamos de re censear os falsos problemas que se en- gendram na oposicao entre o individuo- 38 pessoa — interioridade, singularidade — a sociedade-coisa, exterioridade: os de- bates ético-politicos entre os que atti- buem um valor absoluto 20 individuo, 20 individual, a0 individualismo, ¢ os que conferem o primado 2 sociedade, ao social, a0 socialismo, sto 0 pano de fun- do do debate tesrico, eternamente rero- mado, entre um nominalismo que reduz as realidades sociais, grupos ou institui ges, a artefatos tedricos sem realidade objetiva, ¢ um realismo substancialista que reifiea as abstragdes. $6 a pregnancia das oposicdes co pensamento ordinario, fortalecidas com a forca das oposigoes ente grupos que ne- lc se exptimem, pode explicar nio s6 a dificuldade extraordinaria do trabalho necessatio para ultrapassar-se essas alter- nnativas cientificamente mortais, mas tam- bem que esse trabalho seja retomado sem cesar, contra as regressdes coletivas em direcao aos modos de pensamento mais, comuns, por serem socialmente funda- 39 dos ¢ encorajados. £ mais facil tratar os Fatos sociais como coisas ou como pessoas do que como relagdes. Assim, essas duas rupturas decisivas com a filosofia espon- nea da Hist6ria e com a visio comum do mundo social — que tanto a analise feita por Fernand Braudel dos fendme- nos hist6ricos de “‘longa dura¢io”’, quan- to a aplicacao empreendida por Claude Lévi-Strauss do modo de pensamento es- trutural a objetos tio rebeldes quanto os sistemas de parentesco ou os sistemas simbélicos representaram — desemboca ram em discussbes escolsticas relativas as relagdes entre os individuos e a estrutu- ra. Eacima de tudo, a predomindncia das velhas altemativas conduziu a rejeicio do que hé de factual no contingente. Em re- sumo, levou a excluit-se dos dominios da ciéncia tudo aquilo de que tratava a His- t6ria anteriormente, em vez de incitar a que se ultrapassasse a antitese entre a His- (ria infra-estrutural e a Historia factual, entre a macrossociologia e a microssocio- 40 logia. Sob pena de relegar a eventuali- dade ou ao mistério todo o universo real das praticas, € na verdade preciso procu- rar numa Hlist6tia estrutural os espacos sociais onde se engendram ¢ se efetivam as disposigdes que fazem ‘‘os grandes ho- mens”” — campo do poder, campo ar- tistico, campo intelectual ou campo cien- tifico — o meio de vencer o abismo exis tente entre os fentos movimentos insen sivels da infra-estrutura econémica ou de- mogtifica e a agitacao de superficie que as cxbnicas do dia-a-dia da historia pol tica, literdria ou artistica registram, O prinefpio da acao hist6rica — ado artista, do erudito ou do governante, as- sim como a do operirio ou do pequeno fancionatio — nao é um objero que se confrontaria com a sociedade como um objeto constituido pela exterioridade. Ele no reside nem na consciéncia, nem nas coisas, mas na relacio entre dois estados do social, ou seja, entre a Histéria obje- tivada nas coisas, na forma de institui- Ges, ¢ a Historia encarnada nos corpos, sob a forma desses sistemas de disposi- gies duraveis que chamo de habitus. O corpo esta dentro do mundo social, mas © mundo social esta dentro do corpo. E a incorporagio do social que a aprendi zagem tealiza 6 0 fandamento da presen 2 no mundo social que a acio socialmen te bem-sucedida e a experiencia ordi tia desse mundo supdem necessirias. S6 uma verdadeira anilise de caso, que entrecanto demandaria uma exposigio muito longa, poderia mostrar a raprara decisiva com a visio ordinaria do mundo social determinada pelo fato de telacio ingénua entre o individuo ¢ a sociedade ser substituicla pela relagao construida en- te esses dois modos de existéncia do so- cial, o habitus e 0 campo, a Historia Feit: corpo ¢ a Historia feita coisa. Para con- vencer completamente constituir em erd- nica logica a cronologia das relacoes entre Monet, Degas ¢ Pissarro, ou entre Lenin ‘Trotski, Stalin e Bukarin, ow ainda en- 42 te Sartre, Merleau-Ponty © Camus, s¢- ria necessirio, na verdade, ter-se um co- nhecimento suficiente dessas duas séries causais parcialmente independentes, que so, de um lado, as condigées sociais de producio dos protagonistas, ou, mais precisamente, de suas disposicoes dura veis, ¢, de outro lado, a kigica especifica de cada um dos campos de concorréncia aos quais vinculam suas disposicoes — 0 campo artistico, © politico ou o intelec- tual, sem esquecer, evidentemente, as resttigdes conjunturais ou estrucurais que pesam sobre esses espagos relativamente auténomos Pensar eada um desses universos pat- ticulares enquanto campo é encontrar 0 meio de entrar no que ha de mais sin- gular em sua singularidade, como fa- zem os historiadores mais minuciosos, construindo-os de maneita a percebé como um "caso particular do possi para usar as palavras de Bachelard, ou, mais simplesmente, uma contiguracio 43. entre outras de uma estratura de relagies. Isso pressupSe, mais uma vez, que se preste atengio as relagSes pertinences, com freqiiéncia invisiveis ou impercep- tiveis 3 primeira vista, entre as realida- des diretamente visiveis, como as pessoas individuais, designadas por nomes pri- prios, ou as pessoas coletivas, simuleanea- mente nomeadas e produzidas pelo sig- no ou pela sigla que os constitui enquan- to personalidades juridicas. E assim que poderemos pensar tal polémica situada datada entre um critico de vanguarda © um professor reconhecido de literat 4 como uma forma particular de uma te- lacdo, cuja oposigao medieval entre o auc Jor © 0 lector, ou 0 antagonismo entre profeta e padre so mais outras manifes- tages, Na medida em que esteja orien- tada por um principio de pertinéncia que petmia construir 0 dado para a compa- racio ea generalizacio, a propria leitura dos dados cotidianos pode tornar-se um ato cientifico. Poincaré definia a mate- 44 mitica como “‘a arte de dar o mesmo n0- me a coisas diferentes””; da mesma for- ‘ma, a sociologia — os mateméticos que me perdoem essa assimilagao — é a arte de pensar coisas fenomenicamente dife- fentes como semelhantes em sua estru- tua ¢ seu funcionamento, de transfe- tito que foi estabelecido a propésico de um objeto construido, por exemplo 0 campo religioso, a toda uma série de no- vos objetos, o campo artistico, o campo politico, ¢ assim em diante. Essa espécie de inducdo teérica, que torna possivel a generalizacio com base na hipotese da invaridncia formal na variagao material, nao tem nada a ver com a indugio ou a intuicdo de base empitica com a qual as vezes se quer identifies-Ia; gracas a0 uso justificado do método comparativo, 20 qual confere plena eficacia, a sociologia, assim como as outras ciéncias, que, no dizer de Leibniz “se concentram & me- dida que se expandem’’, pode apreen- der um ntimero cada vez mais vasto de 48 objetos com um niimero cada vez mais reduzido de conceitos ¢ hipdteses te6- ticas O pensamento em termos de cam: po demanda uma conversio de toda a vi- sto ordinaria do mundo social, que se ‘ocupa exclusivamente das coisas visiveis do individuo, ens realissimume, 20 qual ‘0s liga uma espécie de interesse ideo- lbgico primordial; do grupo, que s6 apa- rentemente € definido exclusivamente pelas relagdes, temporarias ou duradou- 13s, informais ou institucionais, entre seus membros; enfim, das relagdes entendi- das como interagoes, ou seja, como rela- Ges intersubjetivas realmente efetuadas. De fato, assim como a teoria newtonia- fa da gravitaglo 56 péde construir-se rompendo com o realismo eastesiano que no queria reconhecer nenhum outro modo de acao fisica que nao fosse 0 cho- que, 0 contato diteto, da mesma forma @ nogio de campo supde uma ruptura com a reptesentagio realista que tende 48 a reduzir o efeito do meio ao feito da acdo direta que se efetua numa intcra- cho. £ a estrucura das relacdes constitu- tivas do espaco do campo que comanda a forma que as telagées visiveis de inte- aco podem revestir € 0 proprio contet: do da experiencia que os agentes podem A atencio a0 espaco de relagoes 10 qual se movimentam os agentes implica uma rupcura radical com a filosofia da Historia que esta inscrita seja no uso oF dinario ou semi-refletido da linguagem ordinétia, seja nos habitos de pensamen- to associados as polémicas da politica, on- de é preciso encontrar responsiveis, tan- to para o melhor como pata 0 pior, & qualquer prego. Nao terminariamos de recensear os erros, as mistifieacoes ou as entidades misticas, originadas do fato de as palavras que designam insticuigdes ou grupos — Estado, Burguesia, Patronato, Igreja. Familia, Escola — poderem ser constituidos em sujeitos de proposicoes 47 la forma “‘o Estado decide’’ ou “‘a Es cola elimina’’ e, portanto, em sujeitos hist6ricos capazes de formular ¢ realizar seus prOprios fins. Processos cujo senti- do € cujo fim nao sio verdadeiramente falando nem pensados nem formulados por ninguém, sem no entanto serem ce- {208 ou aleatorios, encontram-se assim or- denados por referéncia a uma intencio ‘que no € mais a de um criador coneebi- lo como pessoa, mas a de um grupo ou de uma instituiczo funcionando como causa final capaz de tudo justificar, ¢ a um custo minimo, sem nada explicar. Ora, podemos mostrar, apoiando-nos na célebre analise de Norbert Elias, que es sa visio teol6gico-politica nao se justi a, sequet no caso aparentemente mais adequado para confirma-lo, o de um Es- tado monrquico que apresenta no mais alto grat, para o proprio monarca— “O Estado sou eu" —, as aparéncias do “Aparelho"': A sociedade cortesi funcio- ‘na como um campo de gravitagio no qual 48 © proprio detentor do poder absoluto est reso, mesmo que sua posicao privilegia- da lhe petmita reservar para si a maior parte da energia engendrada pelo equi- Iibtio de forcas. O principio do movi mento perpétuo que agita o campo nao reside em algum primeito motor imével — aqui, 0 Rei Sol — mas nas tensbes que, produzidas pela estrutura constitu- tiva do campo (as diferencas de condi- sao entre principes, duques, marqueses etc.), tendem a reproduzir essa estrutu- ra, Estd nas agbes ¢ reagées dos agentes que, a menos que se exeluam do jogo, nao tém outra escolha se nfo lutar para ‘manter ou melhorat sua posi¢a0 no cam: po, conttibuindo assim para fazer pesar sobre todos os outros as limitacoes, fre- qitentemente vividas como insuportaveis, ‘que nascem da coexisténcia antagonista. Em funcao da posi¢ao que ocupa no campo de gravitacio em que € 0 sol, 0 rei nao tem necessidade de querer nem mesmo pensar o sistema enquanto tal pa- 49 ra beneficiar-se dos lucros de um univer- so estruturado de forma que tudo rever- taem seu proveito. De maneia geral, ou seja, tanto no campo intelectual quanto tno campo religioso ou no campo do po- der, os dominantes so, muito mais fre qiientemente do que a ilusio teol6gica do primeiro motor permite ver, aqueles que exprimem as forgas imanentes do campo — 0 que no é pouco —, muito me- hnos os que as produzem ou dirigem. Eu poderia ter tomado, também, 0 exemplo do circo-hipédromo de Cons tancinopla, na andlise ja classica de Gil- bert Dagron, Sem davida nao € por aca- so que essa realizacio paradigmatica do campo politico se apresenta sob a forma de um espago de jogo socialmente insti- tufdo que transforma periodieamente 0 povo reunido em assembléia popular, in- vestida do poder de contestar ou consa- ‘rar virtualmente a legitimidade imperial ‘O espaco institucional, em que todos os agentes sociais — 0 imperador, posto em 0 posigio de arbitro, os senadores, os altos funcionatios, mas também o povo, em suas diferentes facgoes — cém seu lugar designado, produz, de certa forma, as proptiedades daqueles que o ocupam e as relagbes de concorréncia ¢ de conflito que os opdem: nesse campo fechado, os dois campos, os Verdes © os Azuis, aftontam-se ritualmente segundo uma logica que se aptoxima simultaneamen- te da l6gica da competicao esportiva e da uta politica; ea autonomia dessa forma social, espécie de saxis instituida e, por tanto, cranscendente a esse ou aquele campo — tagma —, que essa logica nao de engendrar, afirma-se no fato de que “'se presta a expresso de conflitos de qualquer natureza’’, desencorajando os esforcos para enconttar para esses an- tagonismos uma base social ow politica precisa © constance. Como bem 0 mostra o caso desse jo- go social perfeitamente exemplar, a so- ciologia nao é um capitulo da mecanica, 51 0s campos sociais sfo campos de for- cas, mas também campos de luta pata transformar ou conservar esses campos de forcas. Ea relacio, pratica ou pensada, que os agentes mantém com 0 jogo faz parte do jogo e pode estar no principio de sua transformacio. Os campos sociais mais diferentes — a sociedade cortesi, ‘© campo dos partidos politicos, 0 campo das empresas ou 0 campo universitario ~ sé podem funcionar na medida em que haja agentes que invistam neles, nos mais diferentes sentidos do termo inves- timento, ¢ que Ihes destinem seus recur- sos € persigam seus objetivos, contribuin- do, assim, por seu prdprio antagonismo, para conservar-lhes as estruturas, ou, sob certas condigées, para transformé-los, Na medida em que estamos sempre ‘mais ou menos presos 2 um dos jogos so- ciais oferecidos pelos diferentes campos, ‘no nos ocorre perguntar por que, em vez de nada, ha neles ago — 0 que, a me- ‘nos que Suponhamos uma propensio na- | 62 tural para a aco ou pata o trabalho, de forma alguma se apresenta como decor- rencia necessaria. Todo mundo sabe, por experiéncia propria, que aquilo que faz cotter 0 alto funcionario pode deixar 0 pesquisador indiferente, ¢ que os inves- timentos do artista permanecem ininte- ligiveis para o banqueito. Isso quer di- zer que um campo s6 pode funcionar se encontra individuos socialmente predis. ostos a se comportatem como agentes Fesponsaveis, a arriscarem seu dinheiro, seu tempo, as vezes sua honra ou sua vi- da, para perseguir os objetivos e obter os proveitos decorrentes, que, vistos de um ‘outzo ponto de vista, podem parecer ilu- sorios, o que afinal sempre so, na me- dida cm que repousam sobre aquela re. lacao de cumplicidade ontol6gica entte © habito € 0 campo que esta no princi- pio da entrada no jogo, da adesio ao jo- 0, da sllusio. E na telacdo entre o jogo € 0 sentido do jogo que se engendram os objetivos ‘ese constituem valores que, mesmo que nio existam fora dessa relacio, impdcm- se, no interior da mesma, com uma ne- cessidade ¢ uma evidéncia absolutas. Essa forma origioal de fetichismo esti no pri cipio de toda agio. © motor — que as vezes se chama de motivacio — nao es td nem no fim material ou simbélico da gio, como pretende o finalismo ingé- uo, nem nas limitagdes do campo, co- mo quer a visto mecanicista. Esti n lagio entre 0 habito € 0 campo, que faz com que o habito concribua para deter: minat aquilo que o determina, S6 ha sa- grado para o sentido do sagrado, que 0 entanto reencontra 0 sagrado como ple- nna transparéncia. O mesmo € verdadei- ro para toda experiencia de valor. A i Jusio, no sentido de investimento 10 jo~ g0, 38 se torna ilusto, no sentido origi- nario de agio de enganar-se asi mesmo, de divertimento — no sentido de Pascal — ou de ma-fé — no sentido de Sartre — na medida em que apreende de fora 84 © jogo, do ponto de vista do espectador imparcial, que nio investe nada no jogo nem nos objetivos. Esse ponto de vista de estrangeito que se ignora leva a igno- rt que os investimentos sio ilusdes bem- fundadas. De fato, através dos jogos so- ciais que propoe, o mundo social procu- fa nos agentes bem mais, ¢ na verdade outta coisa, que os objetivos aparentes, ‘0s fins manifestos da aco: a cacada con- ta tanto quanto a presa, se nao mais, € ha um proveito da agéo que excede 0s proycitos explicitamente perseguidos — salario, preco, recompensa, troféu, tieu- lo, fungio — € que consiste no fato de sait-se do anonimato, e de afirmar-se co- mo agente, envolvido no jogo, ocupado, hhabicante do mundo habitado pelo mun= do, orientado para cettos fins ¢ dotado objetivamente, € portanto subjetivamen- te, de uma missao social As fungdes sociais so ficedes sociais E 0s ritos de instituicao fazem aqueles que instituem como rei, cavaleito, padre 65 ‘ou professor, forjando sua imagem social, confeccionando a representagao que ele pode ¢ deve fazer-se enquanto pessoa ‘moral, ou seja, enquanto plenipotencia- rio, mandatario ou porta-voz de um gru- po. Mas também o fazem num outro sen- tido, Impondo-lhe um nome, um ticu- lo, que o define, o institui, 0 constitui, © intima a tomnar-se 0 que & ou seja, que ele tem de set, obrigam-no a cum- rir sua fancio, a entrar no jogo, na fic- ‘fo. Confiicio apenas enunciava a verda- de de todos os ritos de instituicao, quan- do invocava o principio da ‘‘justificagio dos nomes’’, pedindo a cada um que se conformasse com sua funcio na socieda- de, que vivesse conforme sua na- tureza social: “Que o soberano aja co- mo soberano, 0 sujeito como sujeito, © pai como pai, o filho como filho’ Entregando-se de corpo ¢ alma a sua fun- cio e, através dela, a corporacao que a cle confiou-a — universitas, collegium, societas, consortium, como diziam os ca- 56 nonistas — o herdeito legitimo, o fun- ciondtio, o dignatario, contribui para as- segurar a eternidade da fungio que pree- xiste ¢ sobreviverd a ele — Dignitas non moritur — ¢ do corpo mistico que en- ‘carna, ¢ do qual participa, participando a0 mesmo tempo de sua eternidade Mesmo que, para constituir-se, de- vva recusar todas as formas do biologismo que tende sempre a naturalizar as dife- rencas sociais, teduzindo-as a invarian- tes antropol6gicas, a sociologia s6 pode ‘compreender 0 jogo social no que ele tem de mais essencial, na condigo de levar ‘em conta caracterfsticas universais da exis- téncia corporal, como 0 fato de existir no estado de individuo biolégico separado, ou de ser segregado a um determinado tempo ¢ lugar, ou ainda o fato de ser ¢ saber-se destinado 4 morte, propriedades essas_que, embora mais que atestadas cientificamente, nun mitica da antropologia positivista. Vo- tado A morte, esse fim que no pode ser encarado como fim, o homem € um ser sem razao de ser. Fa sociedade, © ape- nas cla, que dispensa, em diferentes graus, as justificagdes € as razdes de exis que, produzindo os negécios ou posigées que se dizem “importantes”, ptoduz os atos © os agentes que se jul gam “‘importantes'”, para si mesmos ¢¢ para os outros, personagens objetiva € subjetivamente assegurados de seu valor, assim subcraidos & indi significincia. Existe, apesar do que diz, Marx, uma filosofia da miséria que ¢s- tu mais proxima da desolacdo dos velhos marginalizados e derrisérios de Beckett do que do otimismo voluntarista tra dicionalmente associado ao pensamen- to progressista. Miséria do homem sem Deus, dizia Pascal. Miséria do homem sem missio nem consagtacao social, De fato, scm chegar a dizer, como Dutk- heim, que ‘a sociedade € Deus", eu di- ria: Deus no é nada mais que a socie- dade. O que se espera de Deus nunca se 58 obtém se nfo na sociedade, que tem o monépolio do poder de consagrar, de subtrair @ fatuidade, & contingéncia, a0 absurdo; mas — ¢ af esta, sem dtivida, a antinomia fundamental — apenas de maneita diferencial, distintiva: todo sa- grado tem seu profano complementar, toda distincao produz sua vulgaridade ¢ concorréncia pela existéncia social co- nhecida e reconhecida, que subtrai & significancia, € uma luta de morte pela vida e pela monte simbélicas. "Citar, di- zem os Kabylas, € ressuscitar.’” O julga mento dos outros € 0 julgamento derra- deito; ¢ a exclusto social, a forma con- creta do inferno ¢ da danagao. £ porque ‘© homem é um Deus para o homem que © homem & também um lobo par o homem. Sobretudo quando adeptos de uma filosofia escatoldgica da Historia, 0s s0- cidlogos se sentem com mandato soc: para atribuir sentido, racionalizar, ou ‘mesmo p6r ordem e assinalae fins. Tam- 59 bem nifo sto os mais bem colocados pa- ra compreendet a miséria dos homens sem qualidades sociais, seja a resignagao ttigica dos velhos abandonados a morte social dos hospitais ¢ hospicios, seja asub- missZo silenciosa dos desempregados ou avioléncia desesperada desses adolescen- tes que procuram na aco reduzida a in- fragio um meio de aceder a uma forma reconhecida de existéncia social. E sem divida porque necessitam muito profun- damente, como todo mundo, da ilusto da missao social pata confessar-se o que €o seu principio, tém muita dificulda- de em descobrir 0 verdadeiro fundamen to do poder exorbitante que todas as san des sociais importantes exercem, todas as bugigangas simbolicas, condecoragdes, ctuzes, medalhas, palmas ou galées, mas também todos 05 suportes sociais da #/- Jusio vital: misses, fungdes € vocagées, mandatos, ministétios © magistérios. A visto Icida da verdade de todas as miss0es € de todas as consagracdes no 60 condena nem a demissio nem a deser- go. Sempre se pode entrar no jogo sem ilusdes, por uma resolucio conscicate € deliberada. Na verdade, as instieuigbes ordinérias ndo pedem tanto. Penscmos no que Merleau-Ponty dizia a respeito de Socrates: “Ele fornece razées para obe- decer-se Is leis, mas ji & demais haves ra- 20es para obedecer (...). O que espera- mos dele € justamente 0 que no pode nos dar; 0 assentimento & propria coisa € sem maiotes consideracdes’’, Se os que tém algo a ver com a ordem estabeleci- da, seja lf 0 que for, no goscam nem uum pouco da sociologia, € porque cla in- troduz uma liberdade em relagio a ade- sao primaria que faz com que a propria conformidade assuma um ar de heresia ou de ironia, Essa setia, sem diivida, a ligio de uma aula inaugural de sociologia consa- gtada a sociologia da aula inaugural. Um discurso que toma a si mesmo como ob- jeto chama menos a atenc4o sobre 0 re- 6 ferente — que poderia ser substituido, por qualquer outro ato — do que sobre fa operagio que consiste em referir-se Aquilo que estamos prestes a realizar, € sobre o que distinguiria essa operacio do faco de simplesmente fazer-se 0 que se faz, de ser, como se diz, apenas 0 que se faz. Esse retomno reflexivo, na medida em que se efetiva, como aqui, na pr6- pria situacio, tem qualquer coisa de in- sélito, ow de insolente, Quebra 0 char- me, desencanta. Ditige 0 olhar sobre 0 fato de que o fazer puro ¢ simples tra- balha no sentido de esquecer ¢ de fazer ‘esquecer. Mobiliza efeitos oratérios ou te- 6ricos que, como 0 faco de ler num tom impregnado de improvisagio um texto escrito com antecedéncia, visa provar ¢ comprovar que o orador esti inteira- mente presente no que faz, que actedi- ta no que diz e que assume plenamente a missio de que esta investido, Inttoduz assim uma distancia que ameaca anular, tanto no orador quanto em seu pablico, 2 a crenga que € a condigio ordiniria do funcionamento feliz da instituigao. Mas essa liberdade em relacio a ins- situigio € sem davida a dinica homena- gem digna de uma instituicio de liber- dade como esta, desde sempre compto- metida em defender a liberdade em re- lagio 4 instituigdo, que €a condigio de toda ciéncia, antes de mais nada de uma ciéncia das instituigoes. E também, essa liberdade, 0 Gnico testemunho de reco- sshecimento digno daqueles que assumi- ram acolher aqui uma ciéncia mal-amada «sem garantias, entre os quais devo des- tacar Andeé Miquel. O empreendimen- to paradoxal que consiste em usar de uma pposicdo de autoridade pata dizer com au- toridade o que é dizer com autoridade, para dar uma aula, mas uma aula de li- berdade a respeito de todas as aulas, se fia simplesmente inconseqiiente, ou mes- mo autodestrutivo, se a propria ambicio de fazer uma ciéneia da crenca no su- pusesse a erenca na ciéncia. De qualquer 63 forma, nada é menos cinico, menos ma- quiavélico, do que esses enunciados pa- radoxais que enunciam ou denunciam 0 proprio principio do poder que exercem, Nao haveria socidlogo que assumisse 0 risco de destruir o discreto véu de £€ ou de ma-fé que faz 0 charme de todas as, devoodes institucionais, sem que 20 mes- mo tempo acreditasse na possibilidade e necessidade de universalizar a liberdade em rela¢io & instituigao que a sociologia procura; sem que acreditasse nas vireu- des libertadoras daquilo que é.sem da- vida o menos ilegitimo dos poderes sim- bolicos, o da ciéncia, especialmente no momento em que toma a forma de uma ciéncia dos poderes simbélicos capaz de restitur aos sujeitos sociais © dominio das falsas transcendéncias que o desconheci- mento no para de criar € recriar.

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