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Questées ligadas ao ensino da gramatica’ O ensino da gramética no ensino fundamental e médio: a abordagem gramatical mais adequada para se enfrentarem as questées decorrentes do fato de que ha uma interface texto-gramatica 'A questo do ensino da gramética — como ovorre em qualquer tipo de ago pedagdigica - tem de passar por uma primeira pergunta bisica: que & gue se pretende com esse ensino? Ou ainda: que é que se deve pretender com esse ensino? Dentro de objetivos gerais do ensino de portugués no ensino fandamental e médio, que, necessariamente, tem de ineluir melhor desem- pemho lingiistico do aluno ~ tanto ativo quanto passivo, tanto oral quanto escrito — que papel pode ter a gramética’ A boa constituic8o dos textos passa pela gramatica, endo apenas porque as frases que compéem o texto tém uma estrutura gramaticul: na produgao lingitistica, com certeza, desemboca todo “Geo eto una adap de cots sobre enino de zara publcads na rein Linh dae [ver Raves, 19960). 25 Moria Helena de Moure Neves © dominio que 0 felante tenha dos provessos de mapeamento conceptual e de amarramento textual, altamente dependentes de uma “graméti nizat6ria. A partir dai, j@ se entende que produgio de texto ¢ gramética ni so atividades que se estranham: pelo conirdrio, as pecas que se acomodam dentro «de um texto cumprem fungSes —como referenciagao e conjungiio — que esto na natureza bisica de cada uma, portanto nz sua "gramdtica”. Daf « necessi- dade de, no nfvel fundamental ¢ médio, ndo se restringir o estudo sobre 0 funcionamento dos diversos itens 20 seu funcionamento no nivel oracional ‘Seum “sujeito” é “expresso” e outro é “oculto” ese 0 sujeito que esta expres- so, em um caso, repreventado por nome e, em outro, par pronome pessoal, isso necessariamente nio diz respeito apenas & oragdo em questdo: a elipse do sujeito ngo se faz indiscriminadamente, como nao é indiferente colocar- se um menino, 0 menino. ou ele como sujeito de uma oragio, em um deter- minado ponto do texto. A “gramitica” de um item como ele e a “\gramética de um item como menino, ou como 0, estdo na base das diferentes escolhas, € nenhum falante opera, no uso de um pronome pessoal, ou de um sintagma nominal composto de nome precedido de artigo definido, como se estivesse simplesmente diante de um teste de miltipla escola. Hé unia determinaggo sustentada no offcio de tever o texto, ¢ que provém das propriedades funcio- nais de cada item, ou de cada classe, Ora, em tal panto de vista, tem significado, especialmente para esse nfvel de ensino, o wratamento funcional da gramitica, que trata a Hngua na situa- ‘cho de produc, no contexto comunicativo, Basta lembrar que saber expres- ssar-se numa lingua nao é simplesmente dominar o modo de estruturagiio de suas frases, mas é saber combinar essas unidades sintéticas em pegas comuni- cativas eficientes, o que envolve a capacidade de adequar os enunciados as situagbes, aos objetivos da comunicagio e as condigGes de interlocuedo. E tudo isso se integra na gramitica. orga A perspectiva do fato gramatical no ensino da gramética: gramdtica do portugués falado ou gramitica do portugués escrito Em princfpio, poderia dizer-se que 0 fato gramatical se apresenta da. perspectiva da lingua, simplesmente: hé uma competéncia lingifstica que 226 Questées ligadas 00 ensine de gremétice regula a formagdo de frases. Mas 0 que tem de estar sob mira é mais que isso, € a competéncia que envolve 0 uso real dos enunciadas nas diversas, situagées. Eaf, sim, se pode falar em diferencas. A questi, porém, vem sendo ridicalizada, Em geral, toma-se, como orientagZo, a lingua escrita pela sua modalidade mais tensa, ca lingua falada pela sua modalidade mais frouxa, ¢ traga-se um quadro de incompatibilidade total, estabclecendo-se uma pola- rizagio irmemedidvel. Entretanto, s6 se pode falarem “registro oral” ¢ “registro escrito” se se tiver em mente que esse eixo de estabelecimento de regisiros intersecciona com outros cixos que a sociolingiifstica bem nos ensina a consi- drat. Desse modo, todas as caracteristicus em oposigilo que se possam invo~ car, em dependéncia de modalidade escrita ou fulada da Lingua (diferengas quanto ao planejamento, a0 processo de produgdo, & qualidade do texto, as necessidades comunicativas), tém de set relativizadas ante os outros eixos que regulam a produgao. Se se pensar que um texto falado "bem comportado” pode estar mais préximo de um texto escrito cologuial do que de um texto falado composto em situagdes em que © contesto supre « maior parte das signiticugdes (0 contexto de uma brincadeira de criangas, por exemplo), que- bra.se a previstio de que os produtos falados se opéem em bloco ao produto escrito, Isso relativiza a questo de se procurar uma “gramitica” da escritae uma “gramtica” da fala, Por exemplo: & dbvio que, om certos tipos de inte- ragio, oragSes completas slo dificilmente encontraveis, ¢ € 6bvio que certos lextos escritos seriam praticamente ininteligiveis se veiculados oralmente. Poderiamos multiplicat ao infinito esses tipos de situa que mostram pélos ‘opostos pingados numa e noutra modalidade. Mas é claro, também, que, den tro do que caracieriza uma produgao falada (copresenga dos interlocutores, simulraneidade - ou quase-simultaneidade — entre planejamento e verbali- zaciio, maior dificuldade de recuperaco de porgdes do texto jd enunciadas cic.) hd um espago muito grande no interior do qual o texto tem de encontrar sua udequaedo, com zonas que podem, em muitos casés, ser recobertas por coutras zonas do espago proprio da escrita. A compreensio de que a relagio entre fala e escrita nfo se resolve sim- plesmente por oposigdes pode auxiliar a adequacio dos textos de uma ¢ de ‘outra modalidade. Na questao da referéncia textual, por exemplo, hii uma ‘grande difereaca entre a capacidade de recuperagdo que os itens lricos tém no texto falado (que se perde no tempo) e no texto escrito (que se imobiliza ‘Mario Helene de Moura Neves ‘no espago), mas hd um mesmo mecanismo gramatical que sustenta 0 proceso que garante ouso. Nido é por oposigdes, mas, sim, por propriedades comuns iferentemente aproveitudas que se resolve 0 uso dos diversos elementos que organizam 05 enunciados, A importncia da vertente tradicional dos estudos gramaticais e a contribuicio das teorias mais recentes Duas atitudes principais — uma positiva ¢ uma negativa — so facilmen- teenconiriveis na apreciagdo do que tenham significado os estudos tradicio- nais na histéria dos estudos gramaticais, Na primeira delas, que nada mais tem feito, em geral, do que condes- cender, considera-se, reticentemente, que os aatigos tiveram “boas intuig6es": nna segunda — a mais adotada —, o tratamento tradicional da gramética é dado como responsavel por todos os males que, na linha do tempo, vém assolando ‘oensino da gramética, o ensino dus linguas, 0 ensino em geral. Dessa tkima atitude so bons exemplos teses académicas — que comegam muito freqiien- ‘temente apontando as “Talhas" do tratamento tradicional e assentam sua vali- dade na “superagio” dessas falhas — bem como trabalhos destinados a orien- ‘tar o ensino da Kinga, materna ou estrangeira, nas escolas. A primeira atitude adotam ndo apenas estudiosos que tém um bom conhecimento do que se fez na gramética ineipiente, mas ainda aqueles que simplesmente ja perceberam que pichar a gramética tradicional € um lugar-comum, e que esse esparte jé no € tio bem-visto. Que a gramitica tradicional nao quis nascer como ciéneia jé 0 disseram. seus prepanidores inauguruis, que compuscram declaradamente, uma “arte da gramitica” (Téchne gramattiké € 0 titulo do manual atsibuido a Dionisio © Tracio). Que a finalidade da composigao dessas ligdes era normativa se recupera facilmente, com a simples avaliacto do contexto histérico-cultural em que 0s estudos surgiram. Que os fandamentos das conceituagées e da or- ganizagio alcancada tinham base l6gica diz a propria historia das idéias que sustentam a sistematizagao oferecida. Talvez 0 que menos se tenha percebido na base da organizagio da gramitica no Ocidente ¢ a motivagao retérica, que deve seralargada para fora dos simples dominios de uma estiistica. Voltando 8 Grécia, temos de reconhecer uma vocagao histérica para 0 “bem falar”, 228 ‘Quesides ligades a0 ensine da gromdtica registrada desde os hendis bem-falantes de Homero, levada a extremos na atividade sofistica, sistematizada a servigo da logica em Aristoteles, e, afinal, oferecida em ligées na gramética alexandrina. A gramitica alexandrina exa- minava textos escritos, porque jé entdo —na época alexandrina —nfio mais se falavaa Lingua que estava sob exame. As reflexteslingllsticas em Aristéreles também ndo contemplavam a lingua em uso, nao simplesmente pela época ‘em que se faziam, mas porque naturalmente subordinavam o estudo da lingua e de seu uso 2 investigagdo do pensamento ligico, apenas “vestido” pelos cenunciados lingtifsticos. Mais na raiz, porém, estava a atividade dos retores, ‘cuidado com a fala eficiente e 0 desempenho lingbistico adequado. A consi- deragdo dessa diresiio se perdeu na interpretagao que se fez do edificio construfdo e posto & disposigao da posteridade, e se perdeu exatamente nas adaptagdes que se foram fazendo nos estudos subseqtientes, latinos, portugue- ses € brasileiros. Houve 0 momento histérico em que os estudos lingiisticos passaram a reclamar foro de ciéneia, Descrigao, de um lado, c explicagao, de outro, passa- rama ser as atividades legitimas, Diacronia eregulamentagdo de uso passaram 4 ser heresias. Depois, no movimento pendular que caracteriza o evolver dos conhecimentos, chegou momento em que a prépria “ciéncia lingtiistica” fixou outros objetos, como “comperéncia comunicativa” e admitiu elucidar relagdes com os demais sistemas cognitivos. O nocional agora se legitima, ¢ volta & discussio, sem culpas e sem desculpas, com discusstio de temas como iconicidade ¢ representagdo metafrica, A eficiéncia comunicativa assume ugar de honra dentro da teoria. E, afinal, a diacronia se casa até com gerati- vvismo, e u “gramaticalizagio” é uma vedete atraente, ‘Normatividade ninguém ainda ousa defender, Mas deve lembrar-se que, se gramética no tem que ver com norma, por outro lado o desempenho efi- ciente, em cortos registros, depende da conformago do texto a determinados padres vigentes ¢ aceitos na sociedade. Sera essa a prOxima nica? As relagées entre pesquisa académica e ensino fundamental e médio Essa é uma questi crucial que nao tem encontrado boa solugio nem de tum lado nem de outro. ‘Maria Helena de Moura Neves Falemos. primeiramente, do lado da academia. A pesquisa académica tem sido dividida em pura e aplicada. Uma e outra tém-se sustentado, em geral, independentemente de uma interacdo efetiva como ensino fundamental emédio. Se hd uma grande preocupacdio com o “diagndstico” do que ocorre, nao tem o mesmo volume a preocupaco com uma intervengio efetivac siste- ‘maitica na situagdo encontrada e diagnosticada. Nao culpo os pesquisadores, ‘mas Verifico que o caréter em geral episédico das avaliacbes faz que oesforgo ado se organize em parcelas que possam somar-se, criando um vorpo signifi cativo de contribuicéo, Falemos. agora, do outro lado, do ensino fundamental e médio, Pensemos bem no que significa para os professores desses niveis as pesquisas que a universidade fur, Em primeiro lugar, elas sto fonte de intimidagio: imagi- ‘e-se um professor universitério expondo a professores de ensino fundamen- tal e médio suas pesquisas sobre “ruptura de adjacéncia” (gerativismo), ou sobre “iconicidade” (funcionalismo), Esses professores-alunos tém de voltar, apés algumas horas ou dias, & sua sala de aula, e li decidir como agir com riangas que ndo organizam idgias para compor textos e ndo dominam estra- turas para compor frases. Trardo eles de seu contato com os professores uni- versitirios elgum aporte que compense o nus opressivo daguela diminuicao { que ora submetidos no embate desigual em que entraram? Que fazemos nds, os professores universitérios, em geral, para que nossos contatos com. 0s professores de ensino fundamental e médio nao sejam mais que uma opor- tunidade de aplicagdo de nossas pesquisas? Essa mesma questo pode ser focalizada do fingulo da “opressio” sobre © professor universitirio, Ainda nio se resolveu muito bem no Brasil o que significa essa “dedicacao exclusiva” ou “integral” & pesquisa e A docénciae nem se resolveu bem o trinmio “pesquisa”, “docéncia” e “prestagio de set= vigos & comunidade” em que se movem — ou se atolam? ~0s professores nas ‘aiversidades. Atuar junto ao ensino fundamental e médio ¢ prestar servigos A comunidade? Entao— pensam eles — vamos fazer as duas coisas: uma certa quantidade de pesquisa (e insistir neta porque é ela que & cobrada em todas 4s instancias, tanto pela universidade como pela agéncias de forenta) ¢ um Pouco de atuacdo no ensino biisico, isso se der tempo, ¢ sem maiores compro- ‘issos. Essa falta de compromisso implica, inclusive — insisto-, levar para ‘8 professores de ensino fundamental e médio os Quesidas ligadas 0 ensino do gramética a dikima pesquisa que tivermos feito, pois, com certeza, se ela foi interes- sante para nds, hi de ser para eles. E.quanto mais hermética ela for, mais respeito teremos, e mais estaremos gratificados com o respeito que tivermos obtido, a0 final de nossa interagdo. Pensando bem, o que nao ter havido—e nfo esti havendo, no geral ~é didlogo! A questao do registro a ser trabalhado na escola: a defesa da norma culta padrao eo respeito ao registro (popular) do aluno ‘Nao existe, simplesmente, uma escolha entre norma culta padrao e regis- tro (popular) do aluno. De um lado, nfo hi dtivida de que & papel da escola prover para seus alunos a formagio necessiria para que eles sejam uswétios da lingua no pudrtio necessério & ocupacio de posigdes minimamente situadas na escala social, De outto, aio hi diivida de que uma enorme parte da clien- tela de ensino fundamental © médio entra na escola com uma apropriagfio ‘apenas de padtdes lingtifsticos extremamente distantes dos que a sociedade aceita e respeita, A erianga nti pode ser dito que aquile que ela usa nio é linguagem efieiente ou adequada, bem como & sociediade ndo pode ser dito que no deva haver padres para situagdes instituidas, Como pode ser exarado um despacho, como pode ser organizada uma pega de defesa criminal, como pode ser descrito um fenmeno fisico, como pode ser exposta uma desco- beria médica, num registro prdximo a0 que a maioria de nossas criangas traz escola? O minimo que se espera da escola € que ela se esforce para prover a crianga tod a apropriagio de vivencias e de conhecimentos que lhe asse- _gureum dominio lingifstico capaz de garantir a produgtio de textos adequados as situagdes, de modo que ela possa ocupar posigGes na sociedade. Por outro Jado, também se espera da escola que ela ndo crie um cotejo entre registros ‘que constitua estigmatizagdo e banimento para o lado do aluno, Esse 6 um onto em que jd se obtiveram grandes avangos. Tanto teorias como priticas atuais tém comprovado e tém mostrado que neahum registro linglistico & melhor ou pior do que outro, embora haja registros pouco prestigiados,e que 86 so adequados e eficientes em tipos reduzidos de situagées. Para que 2 ccriunga cada vez mais “saiba” a sua lingua, a escola tem de expé-la a dife- Moria Helene de Moure Neves rentes registros, levando-aa compreender as funedes que a prépria eaisténcia de subcédigos tem na sociedade. Afinal, j4 em 1935 Firth desmanchava 0 mito da existéncia de uma lingua monolitica ¢ homogénea. A questao da atualizacio do professor de ensino fundamental e médio Em primeiro Tugar, na siruago em que 0 ensino dsico se encontra, eu

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