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encima 35 Cove Ave Mclaren. CAPITULO 2 © ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUITETURA da arquitetura que possa ser considera iva da falta de habito da maior parte dos homens de entender 0 espago, e do insucesso dos historiadores e dos crit: Cos da arquitetura na aplicagao e difusdo de um método coerente Parao estudo espacial dos edificios. Todos aqueles qu jue fugazmente, refletiram sobre esse tema, sabem que o carter essencial da arquitetura—o que a distingue das outras atividades artisticas ~ estd no fato de agir com um vocabuldrio tridimensional que inclui o homem. A pin tura atua sobre duas a despeito de poder sugerir trés ou quatro delas. A escultura atua sobre trés dimensdes, mas 0 homem fica de fora, desligado, olhando do exterior as trés di mensées. Por sua vez, a arquitetura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha. Quando queremos construir uma casa, o arquiteto nos apre- Senta uma perspectiva de uma das suas vistas exteriores e possi- Velmente outra da sala de estar. Depois apresenta-nos plantas, fachadas ¢ segdes, isto é, representa o volume arquitetonico, decompondo-o nos planos que 0 encerram e o dividem: paredes exteriores e interiores, planos verticais ¢ horizontais, Do uso desse método representativo, utilizado nos livros téenicos de his- ‘6ria da arquitetura e ilustrado nos textos populares de historia da satisfat6ria der 18 SABER VER A ARQUTETURA da arte com fotografia, provém, em grande parte, 4 Noss de educacao espacial. a Na verdade, a planta de um edificio nada mais é do que uma projecdo abstrata no plano horizontal de todas as suas paredes, uma realidade que ninguém vé a nifo ser no papel, cuja unica jus- tificativa depende da necessidade de medir as distincias entre 05 vérios elementos da construgao, para os operarios que deve: xecutar matcrialmente o trabalho. As fachadas ¢ as segGes lon- sgitudinais, imeriores ¢ exteriores, servem para medir as alturas. Mas a arquitetura nao provém de um conjunto de larguras, com= primentos e alturas dos elementos construtivos que encerram 0 ‘espago, mas precisamente do vazio, do espago encerrado, do es- ‘paco interior em que os homens andam ¢ vive. Em outras pala- ‘vras, utilizamos como representagio da arquitetura a transferén- cia pratica que o arquiteto faz. das medidas que a definem para uso do construtor. Para o que diz. respeito ao objetivo de saber ver a arquitetura, isso equivale, mais ou menos, a um método que, para ilustrar uma pintura, desse as dimenses da moldura ou calculasse as distincias das diversas cores, reproduzindo-as separadamente. E 6bvio que uma poesia é algo mais do que um grupo de belos versos; quando a apreciamos, estudamos 0 seu contexto, 0 conjunto, ¢, ainda que depois se proceda & andlise dos versos iso- ladamente, essa andlise € feita em fung4o e em nome desse con- junto, Quem quer se iniciar no estudo da arquitetura deve, antes ‘de mais nada, compreender que uma planta pode ser abstrata- mente bela no papel; quatro fachadas podem parecer bem estu- dadas pelo equilibrio dos cheios e dos vazios, dos relevos e das reentrdncias; o volume total do conjunto pode mesmo ser pro porcionado, € no entanto 0 edificio pode resultar arquitetural- mente pobre. O espaco interior, o espaco que, como veremos no capjtulo seguinte, ndo pode ser representado perfeitamente em nenhuma forma, que nao pode ser conhecido e vivido a nio ser por experiéncia direta, € o protagonista do fato arquiteténico. ‘Tomarmo-nos senhores do espaco, saber “vé-lo”, constitui a ‘chave que nos dard a compreensio dos edificios. Enquanto nio tivermos aprendido nao s6 a compreende-lo teoricamente, mas © ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUTETURA 19 também a aplic4-lo como elemento substancial na critica arqui: tetOnica, uma hist6ria e, conseqtientemente, um prazer propor- cionado pela arquitetura apenas nos serio vagamente permiti- dos. Debater-nos-emos numa linguagem critica que se refere aos edificios com os termos prOprios da pintura c da escultura’, ¢, quando muito, clogiaremos o espago imaginado de forma abstra- ta endo sentido de forma concreta’. Os estudos e as investiga- es limitar-se-do as contribuigdes filolégicas os dados sociais, isto é, da fungi; os dados construtivas, isto é, da técnica; os dados volumétricos ¢ decorativos, isto 6, plisticos e pict6ricos decerto bastante titeis, mas ineficazes para fazer entender o valor da arquitetura, uma vez que se esqueca a sua esséncia, o substan- tivo que € 0 espago. Continuaremos a usar indistintamente pala- vras como “ritmo”, “escala”, “balance”, “massa”, até darmos a eles um ponto de aplicagao especifico na realidade em que se concretiza a arquitetura: 0 espaco. Uma parte enorme e seguramente desproporcionada das paginas sobre arquitetura que se encontram nas histérias da arte escolares € dedicada a historia da esculturae da pintura, 3 hist6- ria social ¢ talvez psicolégica (através do estudo da personalida- de dos autores) dos edificios, ndo a sua realidade arquiteténica, a sua esséncia espacial. Esse material ¢, indubitavelmente, pre- cioso: para quem nao conhece a lingua inglesa e pretende ler 0 Hanilet & de enorme utilidade aprender 0 significado de cada palavra, depois, através do estudo dos verbos, apreender o senti- do das frases, e enfim conhecer a hist6ria britanica do século XV1e as vicissitudes materiais e psicolgicas da vida de Sha- kespeare. Mas seria absurdo deixar de lado, durante esse labo- rioso preparo, 0 seu motivo original e 0 seu objetivo Ultimo, que Ereviver 0 poema trigico, Todo o trabalho arqueolégico-histé- rico € filolégico-critico é todavia til, na medida em que prepa~ ra ¢ enriquece a possibilidade sintética de uma hist6ria da arqi tetura’, O que € arquitetura? E, o que mais interessa agora, o que &a nio-arquitetura”” E correta a identificagdo entre arquitetura ¢ edi- ficagao artistica, ¢ entre nio-arquitetura ¢ edificagao feia? Em ou- tras palavras, a disting2o entre arquitetura e ndo-arquitetura baseia- 20 SABER VER A ARQUITETURA se numa spreciagio meramenteestética? E 0 que € esse espaco protagonista da arquitetura? Quanta so as suas dimensOes? Essas so as perguntas imediatas que se colocam 3 critica arquitet6nica, Tentemas responder comegando pela tltima, que é amais specifica. Jéidissemos que as quatro fachadas de uma casa, de uma igre- {ja ou de um palicio, por mais belas que sejam, constituem ape- nas a caixa dentro da qual est4 encerrada a joia arquitetOnica. A caixa pode ser artisticamente trabalhada, ousadamente esculpi da, decorada com gosto, pode constituir uma obra-prima, mas continua a ser um invélucro; nos Estados Unidos desenvolveu- se toda uma técnica e uma arte de fazer embrulhos, que € ensina- dda nas escolas industriais e de commercial design, mas ninguém jamais pensou em confundir 0 valor da caixa com o valor daqui- lo que ela contém, Em cada edificio, o continente & 0 invélucro contetido € 0 espaco interior. Na maioria das vezes, um na o outro (basta lembrar uma catedral gética francesa ua maior parte dos edificios autenticamente modemos), mas essa regra tem numerosas excegdes no que diz respeito wo passa 3s nos quais existe uma ‘entre continente e contetido, ¢ basta uma ripida andilise para observar que, com alguma freqiiéncia, na verdade com freqliéncia demasiada, o invélucro mural foi objeto de maiores preocupagOes e trabalho do que o espago arquitetonico’ Ora, quantas dimensdes tem o invélucro mural de um edificio? Podem clas identificar-se com as dimensdes do espago, isto é, da arquitetura? A descoberta da perspectiva, ou seja, da representagio gréfica das tres dimens6es — altura, profundidade e largura -, podia levar 0s artistas do século XV a acreditar que possuiam finalmente as dimensdes da arquitetura ¢ 0 método de representd-las. Os edifi- ios ilustrados nas pinturas pré-renascentistas so, de fato, acha- tados e tortos; Giotto perdia a paciéncia no momenio de colocar fundos arquiteténicos em seus afrescos, mas cle préprio devia compreender que tecnicamente 0 seu sucesso era bastante rela- tivo, ainda que aproveitasse, de uma maneira até certo ponto PCO, PROTAGONSTA DA ARQUTETURA 21 incapacidade, para sublinhar propésitos cro- miticos que ele sabia seriam alterados pelas representagées tri mensionais. Na época, a pintura ainda agia sobre duas dimen- 86es; a rigidez frontal bizantina ia-se arqueando nos rostos das figuras, uma maior capacidade nas passagens pictoricas da luz para as sombras transferia as experiéncias plasticas da escult Ta para 0 quadro cromitico; a arquitetura pisana rompia a pri- meira superficie das fachadas das catedrais e dava uma profundi- dade, além de uma vibratilidade cromatica, aos planos murais. No entanto, foi preciso esperar a descoberta da perspectiva para ‘obter uma representagio adequada dos ambicntes interiores das vistas exteriores da arquitetura, Uma vez elaborada a pers- pectiva, o problema parecia solucionado: a arquitetura — con- cluiu-se —tem trés dimensdes; 0 método € esse, qualquer pessoa pode desenhi-la. De Masaccio, Angelico e Benozzo Gozzoli a Bramante, aos sciscentistas, e continuando até o século XIX, um sem-niimero de pintores alinha-se aos desenhistas ¢ arquitetos na representagio em perspectiva da arquitetura. Quando, no tiltimo decénio do século passado, a reprodugaio de fotografias se torou comum, isso facilitou sua difusio em massa; os fot6grafos entéo tomam o lugar dos desenhistas e com um disparo de sua objetiva substituem as perspectivas que os apaixonados estudiosos da arquitetura vinham laboriosamente tragando desde o Renascimento, No entanto, quando tudo pare- ccia criticamente claro e tecnicamente aleangado, a mente huma- na descobriu que, além das trés dimensSes da perspectiva, exis- tia uma quarta. E foi a revolugo dimensional cubista do perfodo imediatamente anterior 3 guerra. Nio nos demoraremos a ilustrar a quarta dimensdo mais do que seja cstritamente necessério ao nosso assunto, O pintor pari- siense de 1912 fez 0 seguinte raciocinio: eu vejo € represento um objeto, por exemplo uma caixa ou uma mesa; vejo-o de um ponto de vista e faco 0 seu retrato nas suas trés dimensdes a par- tir desse ponto de vista. Mas se girar a caixa nas nis, ou cami- nhar ao redor da mesa, a cada passo mudo o meu ponto de vista, € para representar 0 objeto desse ponto devo fazer uma nova perspectiva, Conseqiientemente, a realidade do objeto ndo se ‘22 SA06h VERA ARQUTETURA asi spectiva; para possur-la int spots ot oo foe ummmero infnito de perspctivas Fanner ee soatos de vista, Existe, pois, outro elemento além os infintiog Rots edicionaig, o 6 preciramente o deslocamen- ddas tes dimensdes tradicionais, e é preci deslecamen- .Gvo dodngulo visual. Assim designou-se o tempo, “quar to slimensio”, De que maneira os pintores cubistas tentaram exprimiressarealidade da quarta dimensio sobrepondo as ima ns de um mesmo abjeto representado de diversos pontos de sata para projetar 20 mesmo tempo seu conjunto, nio nos di rev os cubistas alo peraram por aqui. Sun ansia de descobrir, ‘de compreender profundamente a realidade de um objeto, con- diziv-os ao seguinte pensamento: em cada fato corpéreo, além da forma externa existe 0 organismo intemo; além da pele, exis- tem os misculs ¢ 0 esqueleto, a consttuigio interna, Assim, em suas pinturas eles representam simultaneamente nao s6 os dife- rentes aspectos exteriores de um objeto, digamos uma caixa, mas acaixa aberta, acaixaem planta, acaixa rasgada. ‘Acconquista cubista da quarta dimensio & de grande alcance histérico, independentemente da avaliagio estética, positiva ou negativa, que se pode fazer das pinturas cubistas; pode-se prefe- rirum mosaico bizantino a um afresco de Mantegna sem por isso se desconhecer a importincia da perspectiva no desenvolvinento das pesquisas dimensionais; e assim € possivel ndo gostar dos quadros de Picasso, mesmo reconhecendo o valor da quart dimensZo, Esta teve uma relagio decisiva com a arquitetura, tanto pelastradugdes em termos de edificagio da linguagem pic- t6rica cubista, numa primeira fase do movimento moderno fran- és e alemao (influéncias melhor ilustradas na obra Moderna historia da arquitetura), mas porque propiciou uma sustentagio cientfica a exigéncia critica de distinguir entre arquitetura cons- trufda e arquitetura desenhada, entre arquitetura e cenografia, ve durante longo tempo permaneceu em estado confuso. A quarta dimensio pareceu responder de forma satisfat6ria & questo das dimensoes da arquitetura, Viramos uma estatueta em Rossas mios para observé-la de todos os lados, ou andamos em tomo de um grupo estatudrio para estuds-lo de um lado e de OESPACO. PROTAGONSTA DA ARQUTETURA 23. outro, de pertoe de longe. Em arquitetura—raciocinou-se—exis- te mesmo elemento “tempo”, ou melhor, esse elemento é indis- pensivel d atividade de construcio: da primeira cabana, da pri- meira caverna do homem primitivo & nossa casa, 4 igreja, a esco- Ia, a0 escrit6rio onde trabalhamos, todas as obras de arquitetura, para serem compreendidas ¢ vividas, requerem 0 tempo da nossa ‘caminhada, a quarta dimensio. O problema pareceu mais uma vez solucionado, Uma dimensio, porém, comum a todas as artes no pode, evi- dentemente, ser caracterfstica de nenhuma, e por isso 0 espaco arquiteténico nio se esgota nas quatro dimensdes, Esse novo fator “tempo” tem, assim, dois significados antitéticos em arqui- tetura ¢ em pintura. Nesta, a quarta dimensdo € uma qualidade Tepresentativa de um objeto, um elemento da realidade do objeto que um pintor pode preferir projetar no plano, e que nio requer nenhuma participacao fisica do observador. Na escultura, sucede a mesma coisa: “movimento” de uma figura de Boccioni é uma qualidade prOpria da estétua que contemplamos e que devemos reviver psicol6gica ¢ visualmente, Em arquitetura, no entanto, 0 fendmeno ¢ totalmente diferente e concreto: aqui é 0 homem que, movendo-se no edificio, estudando-o de pontos de vista sucessi- Vos, cria, por assim dizer, a quarta dimensio, dé ao espago a sua realidade integral”. Para sermos mais precisos — uma vez que se escreveram com- plicados volumes a respeito, quando ao contrario a unica dificul- dade é explicar de forma clara uma experiéncia que todos conhe- cem ~, a quarta dimensio ¢ suficiente para definir 0 volume arquitet6nico, isto €, o invélucro mural que encerra 0 espaco. Mas 0 espago em si ~ a esséncia da arquitetura—transcende os limites da quarta dimensio, Entdo, quantas dimensdes tem este “vazio” arquiteténico, 0 espago? Cinco, dez. Talvez infinitas. Mas, com relagio aos nos- 0s objetivos, basta estabelecer que espao arquitetdnico no pode ser definido nos termos das dimensdes da pintura e da escultura, E um fenémeno que se concretiza apenas em arquite- {ura e que desta constitui por isso a caracterfstica especifica. 24 SABER VER A ARQUTETURA tendo chegado a este ponto a per- Ss cu ura?” jéencontrou uma resposta. Dizer, a ee uulaarquitetara é a edificazio “bela” ¢ a ndo- on *feia" nio tem qualquer sentido esclare~ arquitetura a edificagao feia™ no tem q\ 3 aeecsicuen cedor, porque o belo eo feio sio relativos e poraue, de quslau chain, seria necessério dar antes uma definiglo analitica da tdificagio, recomecando de certo modo do principio. 'A definigao mais precisa que se pode dar atualmente da ar- quitetura é aque leva em conta 0 espago interior. A bela arquite- thra serd a arquitetura que tem um espago interior que nos atrai, fos eleva, nos subjuga espiritualmente; a arquitetura feia sera faguela que tem um espago interior que nos aborrece e nos repele. portante, porém, éestabelecer que tudo 0 que nao tem espa- interior nao é arquitetur. . ‘Se admitimos 0 que fica dito acima ~e admiti-lo parece ques- tio de bom senso, além de légica -, devemos reconhecer que os livros correntes de histéria da arquitetura estdo cheios de obser- ages que com a arquitetura, nesse sentido especifico, nada tém em comum, Dedica-se uma infinidade de péginas aos prospectos dos edificios, mas estes sio escultura, plastica em grande escala, «enio arquitetura no sentido espacial da palavra. Um obelisco, uma fonte, um monumento,ainda que de grandes proporgdes, um portal, um arco de triunfo, so todos feitos da arte que encontra- mos nas histérias da arquitetura, que podem ser obras-primas poéticas, mas nio sio arquitetura. A cenografia, a arquitetura pin- tada ou desenhada nio sio arquitetura, nem mais nem menos, ‘como um poema ainda ndo transposto em versos ¢ apenas narrado. em suas linhas gerais no 6 um poema ou sé o & no estado mera- mente intemacional; em outras palavras, a experiéncia espacial no 6dada enquanto a expressio mecdnica e factual nZo tiver rea- lizado a intuigdo lirica. Pois bem, se toméssemos uma hist6ria da arquitetura qualquer etirdssemos rigidamente todas as partes em que se nota uma hesitaglo na descrigio de fatos niio-arquitet6ni- os, poderfamos ter certeza de que, de cada cem paginas, pelo menos oitenta deveriam ser suprimidas. Por outro lado, podem surgir aqui dois graves equivocos que ‘io $6 anulariam 0 valor do raciocinio precedente, mas tora- leitor compreende qui (0 ESPAGO, PROTAGONSIA DA ARQUITETURA 25 riam mesmo ridicula a imterpretagao espacial da arquitetura. So eles 1) que a experiéncia espacial arquitetOnica s6 & possfvel no interior de um edificio, ou seja, que 0 espago urbanistico pratica- mente no existe ou nao tem valor; 2) que 0 expago nao somente € o protagonista da arquitetura, mas esgota a experiéncia arquitetdnica,e que, por conseguinte, interpretagdo espacial de um edificio € suficiente como instru- mento critico para julgar uma obra de arquitetura, Esses equivocos devem ser imediatamente dissipados. A experiéncia espacial propria da arquitetura prolonga-s cidade, nas ruas e pragas, nos becos e parques, nos estdios e dins, onde quer que a obra do homem haja limitado “vazios”, isto 6, tenha criado espacos fechados. Se no interior de um edifi- cio o espago é limitado por seis planos (por um soalho, um teto ¢ quatro paredes), isto nao significa que nao seja igualmente espa- 0 um vazio encerrado por cinco planos em vez de seis, como acontece num patio ou numa praca, Nao sei se a experiéncia espacial que se obtém percorrendo uma auto-estrada retilinea ¢ uniforme, por quilémetros de planicie desabitada, pode ser defi- nida como uma experiéncia arquitetOnica no sentido corrente da palavra, mas é certo que todo 0 espago urbanistico, tudo 0 que € visualmente limitado por cortinas, quer sejam muros, fileiras de Arvores ou cenérios, & caracterizado pelos mesmos elementos que distinguem o espago arquiteiGnico. Ora, visto que todos os Volumes arquiteténicos, todos os invélucros murais, constituem um limite, um corte na continuidade espacial, é ébvio que todos 8 edificios colaboram para a criagao de dois espacos: 0 interio- res, definidos perfeitamente pela obra arquitetGnica, ¢ os exterio- res ou urbanisticos, encerrados nessa obra e nas contiguas. Entao, € evidente que todos os temas que excluimos da arqu {ura auténtica—pontes, obeliscos, fontes, arcos de triunfo, gru- pos de drvores, etc. (v. Quadro 1) ~e particularmente as fachadas dos edificios, todos entram em jogo na formagio dos espagos urbanisticos. Mesmo aqui nao tem importancia o seu valor artis- tico particular, ou nao tem grande importincia; 0 que interessa & a sua fungio como determinantes de um espaco fechado. Que as > a 26 SABER VER A ARQUTETURA, \s sejam belas ou feias € até aqui (quer dizer, até termos eae segundo equivoco) secundério. Como quatro pare- des bem decoradas niio criam por si sés um ambiente bonito, um ‘grupo de magnificas casas pode limitar um péssimo espago urba- aistico,€ vice-versa. i 0 segundo equivoco leva o raciocinio aos seus limites extre- mos € a0 absurdo, com ilagdes totalmente estranhas as intengSes dos que defendem a interpretaco espacial da arquitetura. Dizer {que o espaco interior € a esséncia da arquitetura niio significa efetivamente afirmar que o valor de uma obra arquitetnica se esgota no valor espacial. Cada edificio caracteriza-se por uma pluralidade de valores: econdmicos, sociais, t€cnicos, funcio- nais, artisticos, espaciais e decorativos, ¢ cada um tem a liberda- de de escrever histérias ccondmicas da arquitetura, hist6rias sociais, téenicas e volumétricas, como é possfvel escrever uma istGria cosmoldgica, tomista ou politica da Divina Comédia. Mas a realidade do edificio & conseqiiéncia de todos esses fato- res, ¢ uma sua historia valida no pode esquecer nenbum deles. Mesmo prescindindo dos fatores econémicos, sociais ¢ técnicos, ¢ fixando a atencio nos fatores artisticos, ¢ claro que 0 espago ‘em si, apesar de ser o substantivo da arquitetura, nao € suficiente para defini-la, Se & certo que uma bela decoragao nunca criard ‘um espaco bonito, também é verdade que um espaco satisfat6rio, quando no complementado por um tratamento adequado das Paredes que o encerram, nio cria um ambiente artistico, pelo menos enquanto a decora¢ao nio for renovada. E comum ver- mos todos os dias uma sala bonita estragada por pinturas feias ou por méveis inadequados ou mesmo por mé iluminagio, Trata-se, sem sombra de diivida, de elementos relativamente pouco im- Portantes, pois podem ser mudados com facilidade, enquanto o ‘espago Id estd e se mantém, Mas uma apreciagio estética sobre tum edificio baseia-se nio s6 no seu valor arquitetOnico especifi- £0, Mas em todos os fatores acessérios, ora esculturais, eomo na decoragiio aplicada, ora pict6ricos, como nos mosaicos, nos frescos e nos quadros, ora de decoragio, como nos méveis. Ap6s um século de arquitetura predominantemente decorati va. escultural,a-espacial, o movimento modemo, em sua magni (0 ESPACO, PROTAGONISTA DA ARQUTETURA27 ca tentativa de levar a arquitetura para o campo que Ihe é pré- prio, baniu a decoragao dos edificios, insistindo na tese de que os Gnicos valores arquitetdnicos legitimos sio 0s volumétricos € espaciais. A arquitetura racionalista voltou-se para os valores yolumétricos, enquanto 0 movimento organico se fixou nos espa- ciais. E Gbvio, porém, que, se como arquitetos sublinhamos os substantivos ¢ nio os adjetivos da arquitetura, como criticos € historiadores nao podemos propor as nossas preferéncias no campo dos modos ou das expressdes figurativas como o Gnico padrdo apreciativo para a arquitetura de todos os tempos. Mesmo Porque, passados vinte anos de nudismo arquiteténico, de desin- fecedo decorativa, de fria ¢ glacial volumetria, de esterilizacao es listica contréria a demasiadas exigéncias psicolégicas e espi- rituais, a decoragdo (ainda que em forma nao de ornamentagao aplicada, mas de acoplamento de materias naturais diversos, de novo sentido da cor, etc.) estd entrando de novo na arquitetura, € justo que assim seja. A “falta de decoragdo” nio pode ser um Ponto programético de arquitetura alguma, a nio ser em base polemica e, portanto, efémera. O leitor leigo ficaré possivelmente confuso a esta altura. Se a decoragiio tem importincia, se a escultura e a pintura, excluidas inicialmente, voltam ao campo da arquitetura, para que serviu todo este discurso? Evidentemente nio foi para descobrir novas idéias ow inven- tar teorias esotéricas da arquitetura, mas apenas para ordenar orientar as idéias que existem e que todos pressentcm. E verdade que a decoraco, a escultura e a pintura se relacionam ao estudo dos edificios (niio menos do que os motivos econdmicos, valores sociais ou funcionais, e razdes técnicas); tudo diz respeito & arquitetura como, de resto, a todos os grandes fenémenos artisti- cos, de pensamento ou de experiéncia humana. Mas de que forma isso acontece? Nao indistintamente, como se poderia jul- gar, afirmando uma genérica ¢ vazia unidade das artes. Rela- ‘cionam-se na equagio arquitetOnica, nos seus lugares de substanti- ‘ose de adjetivos, de esséncia e de prolongamentos. A hist6ria da arquitetura €, antes de mais nada e essencial- mente, a hist6ria das concepgdes espaciais. O julgamento arg) _28 SABER VER A ARQUTETRA é fundamentalmente um julgamento sobre 0 espaco ee edificios. Se cle néio pode ser expresso pon falta de ¢spago interme como acontece com os vrios temas corstruivos _jimencionados, o edificio — quer seja o Arco de Tito, a Coluna de Trajano, ou uma Fonte de Bernini —excede os limites da hist6- ria da arquitetura e passa a integrar, como conjunto volumétrico, ‘historia do urbanismo, e, como valor artistico intrinseco, a his- {ria da escultura. Se o julgamento sobre o espago interior for negativo, 0 edificio faz parte da ndo-arquitetura ou da mi arqui- {etura, mesmo que, mais tarde, os seus elementos decorativ possam ser abrangidios pela histéria da arte escult6rica. Se 0 jul- ‘gamento sobre o espaco de um edificio for positivo, este entra na historia da arquitetura, mesmo que a decoracao seja inefica: quer dizer, mesmo que 0 edificio, considerado integralmente, ja totalmente satisfat6rio. Quando, por fim, o julgamento sobre a concepgao espacial de um edificio, sobre sua volumetria ‘e seus prolongamentos decorativos, for positive, encontramo- nos entido diante das grandes e integras obras, em cuja excelsa realidade colaboram os meios expressivos de todas as artes figu- rativas. Concluindo: se podemos encontrar na arquitetura as contri buigdes das outras artes, € 0 espaco interior, o espago que no: rodeia e nos inclui, que dé 0 £4 no julgamento sobre um edificio, {que constitui o “sim” ou o “nao” de todas as sentencas estéticas sobre a arquitetura. Todo o resto é importante, ou melhor, pode sé-lo, mas é fungiio da concepgiio espacial. Todas as vezes que, na hist6ria e na critica, se perde de vista essa hierarquia de valo- Tes, gera-se a confusdo e se acentua a atual desorientagdio em matéria de arquitetura, Se pensarmos um pouco a respeito, o fato de o espaco, 0 vazio, sero protagonista da arquitetura , no fundo, natural, por- ue a arquitetura nao é apenas arte nem s6 imagem de vida hist6- rica ou de vida vivida por nds e pelos outros; é também, e sobre- tudo, o ambiente, a cena onde vivemos a nossa vida. CAPITULO 3 A REPRESENTACGAO DO ESPACO Um dia, por volta de 1435, um certo Gutenberg, de Mainz, teve a idéia de gravar em pedacinhos de madeira as letras do alfabeto; em seguida, as justap6s para formar palavras, linhas, frases e pAginas. Inventou a imprensa, e, ao fazé-lo, abriu 0 mundo das obras poéticas e dos escritos literdrios, até entao pro- priedade e instrumento de uma restrita classe de intelectuais, as ‘massas populares. Em 1839, um tal Daguerre aplicou os seus conhecimentos fotoquimicos para reproduzir as imagens de um objeto. Inventou a fotografia ¢ marcou a passagem de todas as experiéncias visuais, humanas e artisticas, do plano aristocratico, do plano das poucas pessoas que podiam pagar a um pintor para que as retratasse ou podiam viajar para estudar as obras pict6ricas € ‘escult6ricas, a0 plano coletivo, Edison, em 1877, inventou um aparelho cilindrico e conse- ‘guiu, pela primeira vez, >-zistrar os sons numa lamina de esta- nho. Quarenta e trés anos mais tarde, em 1920, realizava-se a primeira transmissdo radiofbnica. A arte musical, até entio a dis- posigo exclusiva de limitados grupos de conhecedores, difun-

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