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oe Série Temas Volume 12 Estudos literdrios Responsabilidade editorial Fernando Paixao Assisténcia editorial Isa Mara Lando Preparacdo dos originais José Roberto Miney Producao grafica René Etiene Ardanuy Capa Isabel Carballo yector em 1946 — Acervo Iconographia \cdo de composi¢ao = (Papinagao em video), ete AX HSCS eth Hiromi Toyota ake Dirce Ribeiro de Araujo Adquiri _ - i 1GGO 02 hie ————— &C Q, o(8 t), 0% ee Registro Q-1SS- 399-5 a Regi or A056 BU /DPT 0.255.399 0 drama da wyuagem; uma leitura de Clarice Lispector contém textos — revistos pelo autor — inicialmente publicados na obra Leitura de Clarice Lispector (S40 Pau lo, Quiron, 1973). (N. da Ed.) ISBN 85 08 032730 1989 Todos os direitos reservados Editora Atica S.A. — Rua Bardo de Iguape, 110 — CEP 01507 Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8 656 End. Telegrafico “Bomlivro” — S40 Paulo no alcanza la lengua al coraz6n, ni se puede decir tanto como se siente, y aun esto que se puede no se dice todo, sino a partes. y la pasin con su fuerza y con increible presteza le atrebata la lengua y el corazén de un afecto en otto: y de aqui son sus razones cortadas y Ilenas de obscuridad (Fray Luis de Leon, “Cantar de los Cantares’’, Prélogo.) Sobre 0 autor Benedito Nunes nasceu em Belém do Para em 1929. Espe- cializou-se em filosofia na Sorbonne (com Paul Ricoeur) e no Collége de France (com Merleau-Ponty). E membro do Instituto Brasileiro de Filosofia. No periodo de 1968 a 1969 lecionou literatura brasileira na Universidade de Rennes, na Franca, ¢ durante os anos de 1969 ¢ 1970 pesquisou temas ligados literatura brasileira contemporanea, como bolsista da Fundacao Guggenheim Autor de numerosos artigos de teotia ¢ critica literaria, colabora desde 1955 em diversos suplementos literarios ¢ revistas especializa- das, brasileiras ¢ estrangeiras Atualmente leciona Filosofia na U curso que ele préprio fundou em 1961 iversidade Federal do Para. Edicdes das obras compulsadas para este trabalho ¢ respectivas siglas de citagao: PCS — Perto do coragao selvagem (tom.). 2. ed. Sao Paulo, Fran- cisco Alves, 1963. L —O /ustre (rom.). Rio de Janeiro, Agir, 1946. CS —A cidade sitiada (tom.). 2. ed. Rio de Janeito, José Alvaro Editor, 1964 LF — Lagos de familia (contos). Sao Paulo, Francisco Alves, 1960. (Colecio Alvorada.) ME — A maga no escuro (rom.). 3. ed. Rio de Janeiro, José Alvaro Editor, 1970. LE — A legiao estrangeira (contos ¢ crénicas). Rio de Janeiro, Edi- tora do Autor, 1964 PSGH — A paixdo segundo G.H. (rom.). Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964. LP — Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (tom.). Rio de Janeiro, Sabia, 1969. FC — Felicidade clandestina (contos). Rio de Janeiro, Sabia, 1971. i ak! Sumario INTRODUGAO. I. DO ROMANCE AO CONTO. 1. A narrativa monocéntrica 2. A cidade sitiada: uma alegoria 3. A maga no escuro ou o drama da linguagem 4. O itinerario mistico de G.H. 5. Do monélogo ao didlogo 6. A forma do conto DA CONCEPGAO DO MUNDO A ESCRITURA 1. Uma temitica da existéncia 2. A paixdo da existéncia ¢ da linguagem 3. O mundo da nausea e o fascinio da coisa 4. O descortinio silencioso 5. O estilo de humildade e a escritura 6. O movimento da escritura 7. O improviso ficcional 8. O jogo da identidade OBRAS CITADAS E CONSULTADAS. ‘OBRAS DO AUTOR. 19 INTRODUCAO Pp: do coragao selvagem (1944), que assinalou a estréia de Clarice Lispector, impés-se 4 atengao da critica pela novidade que a densidade psicolégica, a maneira des- continua de narrar ¢ a forca poética desse romance repre- sentaram no panorama da ficc4o brasileira, entao profun- damente marcado pelo documentarismo social da década de 30. Seria, como logo ressaltou Alvaro Lins, ‘‘o nosso primeiro romance dentro do espirito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf’ *. E para Antonio Candido, que con- fessou haver recebido verdadeiro choque ao lé-lo, Perto do coragao selvagem, apesar de sua realizacao defeituosa, des- culpavel na obra de uma estreante, abria novos caminhos a expressao verbal. Nisso aproximava-se a jovem estreante de uns poucos violadores da rotina literaria — de-um-Mé- tio de Andrade, com Macunaima, de um Oswald de An- drade, com Memérias sentimentais de Joao Miramar — que conseguiram estender ‘‘o dominio da palavra sobre regides mais complexas ¢ mais inexprimiveis, ou fazer da ficcao * Alvaro Lins, A experiéncia incompleta; Clarice Lispector, em Os mortos de sobreca- saca, p. 188. 12 uma forma de conhecimento do mundo e das idéias’’ * E talvez tenha sido antes de tudo esse aspecto do romance que o préprio Oswald de Andrade perceberia ao colocar, entre os continuadores das ‘‘altas cogitagGes estéticas da Semana de Arte Moderna de 22’’, Clarice Lispector ao la- do de Guimaraes Rosa * Perto do coragao selvagem é é, ainda na interpretagao de Antonio Candido, ‘‘uma tentativa impressionante pa- ra levar a nossa lingua canhestra a dominios pouco explo- tados, forcando-a a adaptar-se & um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficgdo nao € um exer- cicio ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espirito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais retorcidos da mente’ No entanto, esse romance de tao boa fortuna liter4- tia, que nos faz penetrar em tais labirintos, nado é mais um romance de anilise psicolégica. Muito embora seja a ex- periéncia interior o seu 4mbito, muito embora tenha no aprofundamento introspectivo o principio mesmo de seu dinamismo, Perto do coragao sae jase desliga da vi- sio objetivista dos estados d’alma‘Nele encontramos, sem diivida, aquela mintcia na descrigéo de miltiplas expe- riéncias psiquicas ou de uma s6 experiéncia interior muta- vel, que podemos compreender a luz de uma “‘enfocacao microsc6pica aplicada a vida psiquica’’ “, sem que isso sig- nifique contudo que a narrativa vise, como o realismo psi- colégico do século passado, a analise de caracteres e a fixa- ¢40 de tipos. Ja se desligam também desse realismo psico- légico, a despeito da relevancia que emprestam 4 ‘‘enfo- cagao microscépica’’, as novelas de James Joyce e Virginia Woolf, nas quais podemos ver os antecedentes de Perto do coragao selvagem. * Antonio Candido, No raiar de Clarice Lispector, em Varios escritos. Sao Paulo, Duas Gidades, 1970, p. 126 * Entrevista a Mario da Silva Brito, ““O poeta Oswald de Andrade perante meio século de literatura brasileira” (do arquivo de O Estado de S. Paulo, recorte sem indicacio de fonte ¢ sem data). * Cf. “*A enfocagdo microsc6pica"’ aplicada a vida psiquica de que fala Anatol Rosen- feld em Reflexdes sobre 0 romance moderno, Comentario, out./dez. 1961 13 Pela agudeza com que descreve, do pensamento cla- ro A cenéstesia, os meandros da experiéncia interna, o pri- meito livro de Clarice Lispector, cujo titulo é decalcado nu- ma passagem de Refrato do artista quando jovem”, tem marcantes afinidades com a perspectiva joyciana anterior a Uhisses. Participa, sem chegar ao desenvolvimento livre ad moné6logo interior, da orientacao geral do ‘‘realismo psicolégico chocante’’ ° de James Joyce. Sua afinidade é porém maior com a atmosfera e com a sondagem intros- pectiva do romance de Virginia Woolf. Percebe-se, na obra de estréia de Clarice Lispector, acima da leve trama que ainda acompanha uma agao romanesca ja francamente in- teriorizada, a rede dos ‘‘pequenos incidentes sepatados’’ ” que Virginia Woolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira de narrar uma convergéncia de momentos de vi- da varios e dispersos. Ora, o que liga o romance de Clarice Lispector a esses autores € menos uma técnica ou um pro- cedimento particular do que os processos comuns — 0 mo- nélogo interior, a digressao, a fragmentacdo dos episédios —, que sintonizam com 0 modo de apreensao artistica da realidade na ficg4o moderna, cujo centro mimético € a cons- ciéncia individual enquanto corrente de estados ou de vi- véncias. A cortelacio dos estados subjetivos substituindo a correlacdo dos estados de fato, a quebra da ordem causal exterior, as oscilagdes do tempo como durée, que caracte- rizam a ficgio moderna ®, e que se originam desse centro, integram-se a estrutura de Perto do coragao selvagem. Es- se livro abria de fato um novo caminho para a nossa * Perto do coragao selvagem tem, como epigrafe, o seguinte trecho, de Une retrato do «artista quando jovem: “Ele estava s6. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem co- ragao da vida"”.(""He was alone. He was unheeded, happy, and near to the wild heart of life."” James Joyce, A portrait of the artist as a young man; New York, The Modern Library, p. 198-9.) S. the striking psychological realism of the narrative” (Stuart Gilbert, James Joy ce's Ulysses, New York, Vintage Book, 1955) little separate incidents which one lived one by one..."” (Virginia Woolf, To the lighthouse, New York, Harcount, Broce 8. Co., p. 73). ® Vera respeito das caractetisticas da ficcio moderna: Erich Auerbach, Mimesis; la tea- lidad en la literatura, México, Fondo de Cultura, 1950, p. 514 14 literatura, na medida em que incorporou a mimese cen- trada na consciéncia individual como modo de apreenso artistica da realidade. Desse centro mimético, responsavel pela ficcdo introspectiva dos romances e contos de Clarice Lispector — desse centro gracas a0 qual a experiéncia in- terior alca-se ao primeiro plano da criacdo literaria —, parte 0 eixo preliminar e direcional do desenvolvimento da obra de Clarice Lispector. Nos romances posteriores de Clarice Lispector acentua-se, com a sondagem interior descéndo ‘‘ao nivel microsc6pico onde a causalidade € miniscula e minuciosa’’ °, um horizonte reflexivo e até especulativo de sondagem existencial. Toda uma tematica da existén- cia, a que nao sao estranhos os contos da autora publica- ‘dos entre 1952 € 1971, projeta-se através das situagdes das personagens. Mas de romance para romance, contrastan- do com a permanéncia dessa temAtica e com a énfase pa- tética da prosa, registram-se variagdes do ponto de vista do sujeito narrador e do préprio discurso narrativo. A cidade sitiada (1949) tem algo de caricatural e sati- rico que o aproxima da crénica de costumes. A maga no escuro (1961), posterior aos contos de Lagos de familia (1960), € uma espécie de narrativa mistico-alegérica. Mas em ambos os romances 0 sujeito natrador adota 0 ponto de vista da terceira pessoa. Ja em A paixdo segundo G.H. (1964), primeiro e até agora Gnico romance da autora na primeira pessoa do singular, e publicado no mesmo ano de A /egiao estrangeira — tepertétio de contos, crénicas e reflexdes —, desagrega-se a sondagem introspectiva que absorve nos romances anteriores o dinamismo da acao fo- manesca. Finalmente, em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) — que precede Felicidade clandestina (1971), altima coletanea de contos —, Clarice Lispector retorna, apds o deslocamento do centro mimético em que implicou aquela desagregacao, a narrativa em terceira pes- soa, mas ja procurando criar pela dialogacao, antes defici- ° Roberto Schwartz, Perto do coragio selyagem, em A sereia ¢ 0 desconfiado; ensaios criticos, Rio de Janeiro, Civilizacio Brasileira, 1965, p. 39. 15 taria, acidental ou esporadica, um elo intersubjetivo entre as personagens, que parecem entio sair, no auge de uma crise, do isolamento da consciéncia solitaria e perplexa. Essas sucessivas variagdes, que constituem, até a fase final do deslocamento a que nos referimos, desvios ao ei- xo preliminar e direcional do desenvolvimento da obra de Clarice Lispector, nao podem deixar de repercutir na con- cep¢ao do mundo telacionada com a tematica existencial que se projeta nos diversos escritos da autora. Além da es- tabilidade dessa tematica, que atravessa os romances, contos e crénicas de Clarice Lispector, é de se notar nuns e nou- tros a constancia dos mesmos tragos estilisticos. Postulada a hipétese de que tais escritos, com a unidade miltipla que os distingue, constituem as partes dispersas de um con- junto narrativo tnico, faremos aqui a tentativa, por certo precaria, de reuni-los, por uma leitura global da obra de Clarice Lispector. Na primeira seccdo deste ensaio — ‘‘Do romance ao conto’’— procuramos estabelecer, do ponto de vista da for- ma natrativa, a correspondéncia entre os escritos curtos — contos e/ou crénicas — e os romances. Na segunda — “Da concepcao do mundo 3 escritura’’ — especificamos, com base nos motivos constantes nuns € noutros, a con- cep¢do do mundo inerente a obra inteira e tentamos sur- preender, através do estilo que a caracteriza, o movimen- to proprio de sua escritura. *° Somente tomamos como objeto de andlise contos ¢ crénicas publicados nos livros Lagos de familia (1960), A legido estrangeira (1964) e Felicidade clandestina (1971), I DO ROMANCE AO CONTO 1 A NARRATIVA MONOCENTRICA I i so os aspectos fundamentais que se conju- gam em Perto do coragao selvagem: 0 aprofundamento in- trospectivo, a alternancia temporal dos epis6dtos e 0 cara- ter inacabado da narrativa. E na experiéncia interior da protagonista, Joana, que a acdo romanesca esta centrada. Os episédios da primeira parte de Perto do coragao selvagem, sem traco de intriga ou enredo, fundem lembrangas e percepcdes momentneas, idéias getais abstratas e imagens. Analisando sentimentos e intencdes, observando-se e observando os que a cetcam, Joana ‘‘continuava lentamente a viver o fio da infancia..."’ (PCS, 14) lentamente desenrolado: a orfandade, o pai vitivo absorvido em seu trabalho de escritor, a tia que lhe des- perta aversao, o mar diante do qual se extasia, o furto de um livto, o professor amado, a puberdade, a contempla- ¢4o do préprio corpo, a emogao de estranheza ao olhar-se num espelho. Abundantes e significativas, essas vivéncias absorvem os acontecimentos exteriores, escassos € insigni- 20 ¥ ficantes, ¢ exprimem o conflito dramatico que cinde a pér- sonagem, interiormente dividida e em oposicao aos outros. iéncia em-ctise;-a-introspeccao € o fadario de Joana. Por uma espécie de necessidade inelutavel, quanto mais-ela se observa, mais se distancia de seu proprio ser. A teflexao continua a que se entrega corta-lhe a espont: “Geldade dos sentimentos ¢-incompatib za-a com a frui- gao-pura‘e simples da vida. As palavras mesmas que ela se esforca por dominar * agravam esse distanciamento que a totna espectadora de si mesma e das coisas. Afastada do mundo, Joana esta em permanente opo- sig aos outtos. Vé no marido (Otavio) um estranho, que ela ama hostilizando, um inimigo potencial que ela odeia amando. A vida em comum, o.aconchego da paz domés- tica ndo podem conter_a inquietacéo que permeia a sua experiéncia i r. Mas essa inquietac4o, que imprime a narrativa Um tom passional envolvente, desloca 0 apro- fundamento introspectivo do plano da anilise psicolégi- ca, da microscopia da consciéncia a um plano ético, estéti- co e especulativo. \ Obscuro desejo ¢ forca instintiva-represada, sede de liberdade e dp expiesdo;a inqaietagia de que falamos do- mina a pefsonagem: €-a'sua Aybris, sua-vocacao pata 0 ex- cesso e a desmest -eapaz, “‘co- mo um animal solto’’, de transgredir todos.os-limites mo- is; mas tro, seus pendores anarquicos, que jamais $€ concretizam, refluem para a angiistia da liberdade, dian- te dos possiveis abertos 4 acdo. Impetuosa como um ins- tinto e aliciante como um apelo, tal inquietude, violenta + “Presa, presa. Onde esti a imaginacao? Ando sobre trilhos invisiveis. Prisio, liber- dade. Sao essas as palavras que me ocorrem. No entanto nao sao as verdadeiras, finicas ¢ insubstitufveis, sinto-o. Liberdade € pouco. O que desejo ainda nao tem nome" (PCS, * Hybris tem aqui o sentido de culpa tragica, resultante de um excesso, de uma desme- sura, Como possibilidade humana, que corresponde A infinitude do desejo, a Aybris difere do pecado no sentido cristao (falta contra a vontade de Deus). E um perigo de- ‘moniaco, explica Jaeger, que “se acha na insaciabilidade do apetite que sempre deseja duplicar 0 que tem, por muito que isto seja’’. (Werner Jaeger, Paidéia; los ideales de Ja cultura grega, v. 1; p: 272, México, Fondo de Cultura Econémica, 1946.) 21 mas impotente, leva Joana a um constante esforco de ex- pressdo artistica, a um afa de conhecimento e de criagao sempre renovavel ¢ deficitario, que mais exigente se torna quanto mais se exerce, e que mais se exerce quanto mais se frustra a expressdo em que a individualidade se realiza- ria: ‘‘Sinto a forma brilhante e Gmida debatendo-se den- tro de mim. Mas onde est4 o que quero dizer, onde esta o que devo dizer?’’ (PCS, 60). Presa de curiosidade intelectual e filos6fica, Joana ex- perimenta instantes de alegria contemplativa, abandonan- do-se a um jogo de sensagdes, de palavras e idéias: A liberdade que as vezes sentia. Nao vinha de reflexes nitidas, mas de um estado como feito de percepcoes por de- mais organicas para serem formuladas em pensamentos. As vezes, no fundo da sensa¢do tremulava uma idéia-que the dava leve consciéncia de sua espécie e de sua cor. O esta- do para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O préprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade Aprofundava-se magicamente e alargava-se sem propria- mente um contetido e uma forma, mas sem dimensdes tam- bém. A impressao de que se conseguisse manter-se na sen- sag&o por mais uns instantes teria uma revelagdo — facil- mente, como enxergar 0 resto do mundo apenas inclinando- se da terra para o espaco (PCS, 36) A beira de uma tevelacao, a um passo da acao decisi- va, a personagem € traida pela sua liberdade séfrega — essa estranha liberdade que foi a sua maldicéo, que nunca a ligara nem a si propria... (PCS, 174) ~ A ruptura com o meio doméstico, com a sua ambiéncia cotidiana, que se produz afinal, deixa a heroina desampa- rada € solitatia em face da existéncia e de Deus, mas pres- tes a iniciar, gracas a inquietacdo que ressurge, uma nova busca. A contingéncia da auto-anilise que a transforma numa espectadora de seus proprios atos — num ‘‘pequeno bloco fechado, assistindo, assistindo’’ (PCS, 155) —, in- veste a andlise psicolégica num movimento interior jamais completado, que tanto possui a aparéncia de evasio ou de 22 fuga, como de errancia espiritual nao cumulativa, ao lon- go da qual a individualidade perde 0 que vai ganhando. Diferente em cada um de seus momentos, Joana dispersa- se por muitas vidas. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de circulos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros (PCS, 89). Essa dispersdo.no tempo, através da experiéncia inte- rior, de uma vida que contém outras, como ‘‘circulos in- teiros, fechados,”’ € homéloga ao ritmo temporal entre- cortado da narrativa, que alterna ou no mesmo episédio ou em epis6dios distintos, como sucede na primeira parte do romance, o passado com 0 presente. A temporalidade de Perto do coragao selvagem, que acompanha, nessa par- te, a ordem associativa e evocativa das vivéncias, substitui a unidade biografica externa pela unidade miltipla da du- racdo que o dinamismo da consciéncia articula. Os esta- dos subjetivos, com suas qualidades préprias, distribuem- se em cadeias auténomas, que fixam instantaneos do pre- sente ou do passado e correspondem a episédios comple- tos. Assim, o capitulo inicial do romance, ‘‘O pai’’, cons- titui uma cadeia autonoma, dotada de unidade episédi- ca, que remete ao passado da personagem, fixando ins- tantaneos de sua infancia: A maquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O reld- gio acordou em tindlen sem poeira. 0 siléncio arrastou-se 222222. 0 guarda-roupa dizia 0 qué? roupa-roupa-roupa. Nao, néo. Entre o rel6gio, a maquina e o siléncio havia uma ore- lha & escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os trés sons esta- vam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da 4r- vore que se esfregavam umas nas outras radiantes (PCS, 9) O capitulo seguinte, ‘‘O dia de Joana’’, ja mudando de registro, pois que focaliza o livre curso das idéias da pro- tagonista a esmiucar os préprios sentimentos e lembran- gas, liga-se ao anterior por essa unidade de compenetra- ¢ao do hetetogéneo, que caracteriza a durée *: * A durée € a sucesso pela solidariedade de elementos heterogéneos: sucessio pura, qualitativa ou melédica — ‘une pénétration mutuelle, une solidarité, une organisa- tion intime d’éléments..."’. (Bergson, Le temps homogenes et la durée concréte, em Les données immédiates de la conscience, 80. ed., Paris, PUF, p. 75.) 23 A certeza de que dou para o mal, pensava Joana. O que seria ent&o aquela sensa¢do de forca contida, pronta para rebentar em violéncia, aquela sede de emprega-la de olhos fechados, inteira, com a seguranca irrefletida de uma fera? (PCS, 14) Observe-se que os dois episédios citados se enquadram no passado narrativo especifico (“‘A maquina do papai datia tac-tac...”’ ‘“A certeza de que dou para o mal, pensava Joa- na’’). Em outros momentos, porém, como na cena do ba- nho (‘‘O banho’’) de maior densidade, substitui-se 0 pas- sado pelo presente dramatico, como tempo verbal da marracao: A moga ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da agua. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da in- fancia. Estende uma perna, olha 0 pé de longe, move-o ter- na, lentamente como a uma asa fragil. Ergue os bragos aci ma da cabeca, para o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, sé movimento. O cor- po se alonga, se espreguica, refulge imido na meia escuri- d&o — é uma linha tensa e trémula. Quando abandona os bragos de novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move 0 longo pesco¢o de um a outro lado, inclina a cabeca para tr4s — a relva é sempre fresca, alguém vai beijé-la, coe- thos macios e pequenos se agasalham uns nos outros de olhos fechados. — Ri de novo, em leves murmurios como os da Agua. Alisa a cintura, os quadris, sua vida (PCS, 56) A temporalidade ondulante, que acompanha a erran- cia interior da personagem, passando de um a outro dos pequenos circulos de sua vida dispersa, ¢ sobrepujada, ja na segunda parte do romance, pela sucesso dos incidentes que formam o encadeamento de uma intriga de amor. Apa- rece nessé entrecho um ttiangulo amoroso conflitivo, sus- tentado pelo jogo de sentimentos ambiguos ¢ de posigdes equivocas — de Joana em rela¢ao-a Lidia, ex-noiva e amante do marido (Otavio), que a atrai como 0 seu Oposto, e em telacao a Otavio, complemento de sua feminilidade. Abandonada tanto pelo marido quanto por um aman- te ocasional, Joana vai, numa viagem sem destino e sem 24 esperanga;-ao-encontrto de sua infancia e de sua motte. Es- sas imagens da infancia e da morte se unem num de pro- fundis, grave monélogo do capitulo final, ‘‘A viagem’’, de cuja expressdo patética renasce, no curso de uma pere- grinacao iniciada quando o romance chega ao seu termo, a inquietacao da liberdade e a promessa de uma vida plena: Eum dia vir, sim, um dia viré em mim a capacidade tao vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer sera cegamente seguramente inconscientemente, pi- sando em mim, na minha verdade, téo integralmente lanca- da no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia viré em que todo meu movimento ser criagéo, nascimen- to, eu romperei todos os ndos que existem dentro de mim (PCS, 178) Continua, pois, nessa viagem, que deixa a narrativa suspensa a possibilidade de uma busca que recomega, a errancia da personagem. O inacabamento da narrativa re- duplica a existéncia inacabada da protagonista. (i; \ O /ustre comeca expondo o fato exterior determinan- te da vida de seus personagens. Virginia e seu irmao Da- niel, que se debrucam numa ponte pénsil, veem um afo- gado boiando no rio. A morte que lhes € entao revelada, ¢ acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos som- brios das duas criancas. Essa recordagao secreta sela a mtu- tua dependéncia afetiva, cimentada num liame de domi- nio e servidao, em que elas vivem. Virginia aceita o senhorio de Daniel, ‘‘... um meni- no estranho, sensivel ¢ orgulhoso, dificil de se amar...’” (L, 31). Em nome de uma Sociedade das Sombras por ele inventada, Daniel dita ordens 4 irma ¢ impée-lhe a exe- cugdo de seus caprichos. Estéo ambos voluntariamente se- gtegados dentro de Granja Quieta — mundo noturno e denso, que abriga a velha casa de familia, guardando ain- 25 da, dentre os restos de antiga abastanca, um /ustre que pende do teto da sala. Uma ignominia rompera 0 encanto magico do lugar. A mando de Daniel, Virginia delata ao pai os encontros furtivos da irma mais velha (Esmeralda) com um desco- nhecido, no jardim da casa. Ao prego dessa transgressao ética, a delatora se exclui da quietude e da ordem fami- liais para incluir-se no mundo anénimo da grande cidade, para onde parte na companhia de Daniel ¢ onde os dois, ja separados, nao criarao raizes. Os acontecimentos posteriores a essa ruptura serao uma decorréncia fatal da morte guardada em segredo e da infancia perdida. Daniel, que desempenha relativamente a Virginia 0 papel de um Deus ex machina, passa ao se- gundo plano do romance, s6 aparecendo incidentalmen- te, enquanto aquela, envolvida aos poucos pela grande ci- dade — ambiente fantastico, pétreo e metilico, de edifi- cios em construg4o —, vivera solitaria, ensimesmada e er- rante, sem fixar-se em lugar nenhum, como se apenas adias- se 0 seu retorno inevitavel 4 Granja Quieta. A vida coti- diana da personagem central, desagregada num desfile in- conseqiiente de gestos e atitudes grotescas, € uma comé- dia de funambulos a que ela assiste, fechada na sua cons- ciéncia de espectadora, e que lhe dé a perceber a outta fa- ce dos objetos e das pessoas. A sua volta, como no episé- dio de um jantar entre amigos *, por sinal uma das me- Ihores passagens de O /ustre, tudo se torna alucinatério, denso ¢ expressivo. Por oposigao aos objetos, que ganham uma presenga imponente, estavel e luminosa, as pessoas se reduzem, para Virginia, a um detalhe ou a uma parte do corpo, realga dos em isolamento grotesco: ‘‘... as orelhas carnudas ¢ avi- das, grosseiramente desabrochadas ao lado do rosto...”” (L, 117) de um diretor de jornal, ou a mao de ‘‘unhas claras’’ de Adriano, ‘‘... que cortava ligag6es invisiveis...’’ (L, 120). +L, 100-33 Mas essa comédia de funambulos, agravada pela for- ca do relacionamento ora agtessivo, ora equivoco, de Vir- ginia com os outros, é também uma comédia de erros. Re- pelindo e sendo repelida, atacando e se defendendo, hu- milhada ¢ forte em seu 6dio, 0 amor somente proporcio- na 4 moga solitaria uma variacao do antagonismo que co- nheceu, outrora, na companhia do irmao. Ela e o amante (Vicente) se revesam no papel de senhor e de escravo: Era uma luta despercebida que no entanto os ligava num mesmo meio de atragao, desentendimento, repulsa e cum- plicidade (L, 201). O pudor de entregar-se, de violar a alma, impede que cla se identifique com o homem, antagonista ¢ inimige de quem acabar4 fugindo para voltar, movida por um apelo mais profundo — o chamamento da morte ligado 4 in- fancia — a Granja Quieta. Quem saberia se a realidade ndo era a morte — como se toda a sua vida tivesse sido um pesadelo e ela acordasse enfim morta (L, 322) De retorno a grande cidade, Virginia perece, vitima- da por fatal acidente. A ac&o romanesca de O /ustre € difusa como a de Perto do coragao selvagem. Nao se desenvolve, porém, 4 seme- Thanca do que sucede na primeira parte do romance de estréia, pela j justaposicao de episédios auténomos, que al- ternam as vivéncias do passado com as do presente. Do- minada por uma unidade biogrfica externa, a natrativa avanca macicamente, sem divis6es capitulares. Uma ana- lise reflexiva meAndrica, que se espraia e se avoluma em varias diregdes — presente e passado aderidos no mesmo espaco vivencial —, conduz-nos do incidente que a perso- nagem presencia quando menina ao incidente de sua morte por atropelamento. Certas 5 _situagdes bem definidas, como a vida com as tias velhas °, a amizade frustrada de Virginia com 0 zela- SL, 149-56 27 dor do edificio °, a visita ao zoolégico ’, destacam-se do tumulto descritivo das vivéncias, assinalando, no labirin- to da auto-reflexdo, os passos de uma trajetéria. Em _O lustre desenha-se a fi figura nitida de uma erran- cia exterior, no espaco, paralela--errancia-interior no tem- po, que prepondera em Perto do coragéo selvagem. Abs- traida essa diferenca € a ja referida, quafitoaflexibilidade episédica, os dois romances se ligam entre si quer pela Be sigdo absorvente de suas respectivas protagonistas, quer pe/o ritmo de procura * do curso da acao, em ambos compon- do a forma de uma trajet6ria: a errancia das duas persona- gens centrais, que se perfaz como movimento de evasdo yu fuga. Joana (Perto do coracao selvagem) e Virginia (O /us- tre), buscam, em momentos de desamparo e de fracasso, o tempo perdido da infancia e deparam com a motte, a primeira descobrindo a sua condicao mortal, a segunda ful- minada pela fatalidade. Nessa trajet6ria que lhes € comum, cabem dois itinerarios simétricos: em Perto do coragao sel- vagem, o da viagem de Joana, sem rumo certo, quando 0 romance acaba e a narrativa fica em suspenso; em O /us- tre, o percurso de ida e volta, entre o campo e a cidade, onde:a viagem de Virginia acaba, fechando a narrativa. No primeiro romance, a infancia, apenas rememorada pela mulher adulta, integra-se no final 4 sua experiéncia da mor- te; no segundo, a infancia, integrada a um desenvolvimen- to biografico linear, que vai da meninice a idade adulta, liga-se, desde o comeco, a vivéncia da morte. Os dois romances ainda mais se aproximam pela iden- tidade do conflito e da inquietacg4o que as protagonistas conhecem. Desdobramento ou duplicac4o de Joana, Virgi- *L, 161- L, 199-200. ® Distinguindo o aprofundamento introspectivo em Perto do coragao seleagem da ani- lise das paixdes no “romance psicolégico”’, observa Antonio Candido: ‘*O seu ritmo € um ritmo de procura, de penetracio que permite uma tensio psicol6gica poucas ve- zes alcancada em nossa literatura contemporinea"’. (Antonio Candido, No taiar de Clarice Lispector, em Varios escritos. Sa0 Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 129.) 28 nia, também presa da Aydris, conhece a angistia da liber- dade, sente o desejo obscuro de exprimir-se ¢ de realizar- se. A posigéo absorvente dessas personagens centrais, que se refletira no carater da narrativa, aparece ainda mais cla- ramente quando consideramos o relacionamento confliti- vo que as op6e as outras figuras dos respectivos romances. Observe-se que os itinerarios tragados em Perto do co- ragao selvagem e O Justre vatiam dentro de uma situagio conflitual Gnica, que evolui pela rotacdo de conflitos in- tersubjetivos alternados, relativamente aos quais os outros personagens, como simples mediadores, constituem polos de atracdo e repulsdo da consciéncia em crise das protago- nistas. Assim, Joana repele o professor amado °, primeira instancia mediadora de sua inquietacao, substituido de- pois por Otavio, com quem se casa. Pata romper com o marido, a moga se apdia em Lidia, amante dele. Apenas instrumento, 0 personagem-mediador mobiliza na perso- nagem central uma tazao mais profunda que o atinge ¢ supera. Virginia, submissa desde crianga ao irmao volun- tarioso, hostiliza, por ele instigada, a irma Esmeralda. Da- niel medeia, pois, 0 seu rompimento com a familia e o seu éxodo do campo para a cidade. E gracas ao amante (Vi- cente), consegue Virginia romper com a servidao que a acor- rentava a Daniel, para, finalmente, sem sair do citculo fa- tal de um conflito interior insoltivel, afastar-se de Vicen- te, em demanda do campo e da familia. Dessa forma, as heroinas dos dois romances absorvem Os outros personagens, que sdo menos agentes auténomos concorrendo para configurar uma trajet6ria comum, de que a rigor ficam excluidos, do que instrumentos a servigo da situagdo conflitual interior de ambas. O papel da protagonista, tanto em Perto do coragao selvagem como em O /ustre, excede a fungdo de um pri- meifo agente, que apenas conduz ou centraliza a agao. Ela €a origem eo limite da perspectiva mimética, 0 eixo atra- ° PCS, 44-53. 29 vés do qual se articula o ponto de vista que condiciona a forma do romance como narrativa monocéntrica, isto é, como narrativa desenvolvida em torno de um centro pri- vilegiado que o proprio narrador ocupa. Em suma, a posi- co do narrador se confunde ou tende a fundir-se, nessa forma, com a posicao da personagem. E 0 que podem 1 mosttat-nos os aspectos do discurso narrativo ". A romancista, que adota a terceita pessoa, nao se su- prime como instancia externa da narracdo. Mas também percebe € sente com a personagem. Ora a ela aderindo, ora lhe impondo a sua presenca como sujeito-narrador, a romancista pratica um modo de ver oscilante, verdadeiro regime de transagio '*, que se teflete na alternancia do discurso direto ¢ do indireto, contiguos e deslizantes, um ja silhuetado no outro, conforme se vé neste trecho semi- monologal de Perto do coragéo selvagem: Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de fe- bre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa forca e essa fraqueza, batidas desordenadas do cora- 40. Quando a brisa leve, a brisa de veréo batia no seu cor- po, todo ele estremecia de frio e calor. E entao ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. E porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou néo me tocam, sinto — refletia. Pensar agora, por exemplo, em re- Por aspectos do discurso narrativo, entendemos, com Todoroy, que distingue entre a narrativa como histOria ¢ a narrativa como discurso, os modos de relacionamento do narrador com a hist6ria. H& quatro desses modos de ''ver'*, que refletem “a relation entre un i/ (dans Vhistoire) et un se (dans le discours) entre le personnage et le narra- teur’’: a sisdo por detras, propria da narrativa classica (narrador > personagem); a vi so '‘com o personagem'’ (nattador = personagem) ¢ a visdo ‘‘do exterior” (narrador < personagem). (Tzvetan Todorov, Les catégories du récit littéraire, Communications, Seuil, 1966, n. 8, p. 127, 138, 141, 142.) * Nesse caso, a “‘visdo com o personagem"’ € tanto interior quanto exterior, embora © narrador tenha a sua perspectiva centrada, conforme vimos, na protagonista. (V. a distingdo de Roland Barthes, Introduction 3 !'analyse structurale des récits, Communi cations, Seuil, 1966, n. 8, p. 19.) Natrando em terceira pessoa Clarice Lispector jamais se iguala com 0 personagem — ao contrario de Kafka, que adota o modo de ver de seu personagem, suprimindo-se como instncia externa nas suas trés novelas, O proces 50, O castelo ¢ América. (Vide Martin Walser, Descripci6n de una forma, em Ensayo sobre Franz Kafka. Buenos Aires, Sur, 1969, p. 18-20.) Mas tampouco deixa de perce ber e sentir com ele, cedendo-lhe entdo a iniciativa na primeira pessoa 30 gatos /ouros. Exatamente porque nao existem regatos louros, compreende? assim se foge. Sim, mas os dourados de sol, louros de certo modo... Quer dizer que na verdade nao ima- ginei. Sempre a mesma queda: nem o mal nem a imagina- ¢&o. No primeiro, no centro final, a sensac&o simples e sem adjetivos, tio cega quanto uma pedra rolando. Na imagina- ¢d0, que sé ela tem a forca do mal, apenas a viséo engran- decida e transformada; sob ela a verdade impassivel. Mente- se e cai-se na verdade. Mesmo na liberdade, quando esco- thia alegre novas veredas, reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo 0 caminho tragado. Ela sé ve- ria 0 que j4 possuia dentro de si. Perdido pois o gosto de ima- ginar. E 0 dia em que chorei? — havia certo desejo de mentir também — estudava matematica e subitamente senti a im- possibilidade tremenda e fria do milagre ? (PCS, 16). Quanto a O /ustre, seu modo de ver nao cabe nesse regime de transac4o; mas a proximidade entre o sujeito- narrador e a personagem se faz gracas ao elo afetivo criado pelo adensamento expressionistico na maneira de narrar, que adere desde o inicio, por empatia, a visao infantil de Virginia, povoando de coisas vivas e patéticas o mundo de Granja Quiet: Ela abria grandes olhos. La estava a pedra escorrendo em orvalho. E depois do jardim a terra sumindo bruscamente. Toda a casa flutuava, flutuava em nuvens, desligada de Brejo Alto. Mesmo 0 mato descuidado distanciava-se pélido e quie- to e em vao Virginia buscava na sua imobilidade a linha fa- miliar; os gravetos soltos sob a janela, perto do arco deca- dente da entrada, jaziam nitidos e sem vida. Dai a instantes porém o sol surgia esbranquicado como uma lua. Dafa ins- tantes as névoas sumiam com uma rapidez de sonho dis- perso e todo 0 jardim, o casardo, a planicie, a mataria, re- brilhavam emitindo pequenos sons finos, quebradicos, ain- da cansados. Um frio inteligente, Idcido e seco percorria 0 jardim, insuflava-se na carne do corpo. Um grito de café fres- co subia da cozinha misturado ao cheiro suave e ofegante de capim molhado. O coracdo batia num alvorogo doloroso e Umido como se fosse atravessado por um desejo impossi- vel. E a vida do dia comegava perplexa \ (L, 16). 1? Os grifos so nossos. 1 Os grifos sdo nossos. 31 Ainda quando nao se retrai, mantendo-se, pelo uso continuo da terceira pessoa, numa relativa distancia, o sujeito-narrador est4 comprometido com o ponto de vista da petsonagem que lhe dé o centro privilegiado € discri- minatorio do discurso. O-carater restritivo da a¢ao roma- nesca, que decorte disso, € menos uma falha ou um defei- to de técnica, do-que uma caréncia intrinseca, estrutural, da forma-monocéntrica. A parciménia, a eventualidadee o carater distorsivo dos didlogos de Perto do coragao selva- gem e O Justre, que perduram em obras subseqiientes, co- mo traco peculiar da novelistica de Clarice Lispector, ligam- se a esse tipo de caréncia. A cidade sitiada é a cronica de Sa0 Geraldo, um subGrbio em crescimento, na década de vinte, ‘que j@ misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso’’ (CS, 14): novas fabricas em seus arredores, automéveis e cami- nhées na velha rua do mercado — ‘‘onde um gosto passa- do reinava nas varandas de ferro forjado, nas fachadas ra- sas dos sobrados’’ (CS, 15) — e grande naimero de cavalos por toda parte. Essas mudangas, que se refletem nos habi- tantes, se associam a experiéncia interior de Luctécia Ne- ves, a protagonista do romance, que leva uma vida diiplice. Mocinha namoradeira a caga de um bom partido, e bair- tista, ela passeia seu tédio pela cidade, caminhando, de devancio em devaneio, e nutrindo secretamente a espe- ranga de libertar-se dos muros imaginarios que sitiam Sao Geraldo. Casa-se, por fim, com um comerciante forastei- fo que a transfere para a metropole. Mas nem os museus nem os jardins nem os teatros, que Lucrécia Neves visita turisticamente, aplacam-lhe a nostalgia do subirbio, para onde ela volta ainda na companhia do marido, a quem detesta, pouco antes de tornar-se uma vitiva séria, orgu- UFSC 0.255-399-5 | Biblioteca Universitérta] i pn 33 ; Cee lhosa dos Gltimos progressos de sua cidade. E a vista de um novo bom partido, ela deixara novamente a terra natal. O primeiro aspecto a ser considerado nesse_terceiro romance-de-Clatice Lispector, € que 0 diferencia dos ante- riores, € a presenca de um ambiente, o suburbio, que cir- cunscreve os gestos € atos dos personagens, inclusive ¢ principalmente da protagonista. As mudangas do meio de- limitam a ac&o romanesca, que principia com elas e ter- mina quando se completam. A desercdo final de Lucrécia Neves é parte do éxodo dos habitantes, que abandonam a cidade no momento em que ela perde o carater provin- ciano € caem os muros do tempo que a cercavam: Fora levantado 0 sitio de S. Geraldo. Dai em diante ele teria uma hist6ria que nao interessaria mais a ninguém, lar- gado as suas sérias subdivis6es, 8s penas de multa, as suas. pedras e bancos do jardim, avarento de quem em punic’o ninguém mais cobigasse os tesouros. Seu sistema de defe- sa, agora inutil, mantinha-se de pé ao sol, em monumento histérico. Os habitantes 0 haviam desertado ou dele deser- tado seus espiritos. Embora também ficassem entregues a liberdade e & soliddo (CS, 220) A aventura matrimonial de Lucrécia Neves se inscre- ve nos fastos da vida do subirbio, em torno da qual gravi- ta a vida intima da mocinha. O segundo aspecto a destacar diz respeito 4 sucessio dos episédios que formam, em conjunto, quadros estati- cos da vida de provincia, alguns dos quais primam pelo detalhe caricatural e pela intencio satirica. Assim o ‘‘Te- souro exposto’’ (Cap. IX) descreve, como farsa conjugal, a felicidade pequeno-burguesa da heroina com Mateus, o comerciante forasteiro, feita de frases banais, de clichés afe- tivos e de atitudes estereotipadas que garantem a paz € 0 decoro domésticos. Atinge a romancista, no retrato de Mateus, pintado conforme o via a propria mulher, um tra- ado caricatural e grotesco: Um adestramento continuo. Ele era masculino e servil Servil sem humilhago como um gladiador que se alugasse. E ela, sendo mulher, o servia. Enxugava-Ihe o suor, alisava- lhe os musculos. Aviltava-a viver as custas das idas e vin- das dos treinos de Mateus, estendendo camisas que a poei- ta da cidade logo sujava, ou alimentando-o com carnes e vinhos. Mas nao podia sen4o fascinar-se com aquela minu- ciosa ordem, que hé muito parecia ter ultrapassado os mo- tivos, ndo podia sendo gastar os meses a prepard-io para 0 combate. Esperando que um dia enfim alguém esmagasse 9 seu colosso — e, com horror, ela ficasse livre. Cada vez que ele regressava ao hotel, a esposa se surpreendia de vé- lo ainda solto. Ali todos alias pareciam viver ilicitamente, de empregos extraordindrios. Mateus Correia por exemplo era: intermedidrio. Essa funcdo 0 deixava enigmatico e satisfei- to: comia pouco de manhé, beijava-a, a boca através do ca- fé cheirando a pasta de dentes e a enjéo matinal. Usava anéis nos dedos como um escravo (CS, 138). Mas a despeito desses elementos que realcam o hu- mor, ausente dos romances anteriores, como dimensao pr6- pria da obra — A cidade sitiada nao chega a ser uma satira -de-costumes, O humorismo a que nos referimos, abran- gendo o satirico e o caricatural, esta relacionado com 0 4n- gulo que a narradora adota para acompanhar os devaneios de Lucrécia-Neves e registrar os acontecimentos salientes de Sao Geraldo. Esses devaneios contém, de maneira arre- fecida, a direcao da experiéncia interior das personagens de Perto do coragao selvagem e O Justre: a inquietude, o desejo de transgredir os limites preestabelecidos (no caso, as fronteiras de Sao Geraldo), a busca de uma nova vida para além da muda existéncia que estava sempre acima dela, a sala, a ci- dade, o alto grau a que chegavam as coisas sobre a prateleira, o passarinho prestes a voar empalhado pela ca- sa, a altura da torre da usina, tanto intoleravel equilibrio. (CS, 75). Mas, em A cidade sitiada, a0 conttatio do que suce- de naqueles romancés, a narradora se distancia da heroina e, descomprometida com as suas vivéncias, empresta-lhe aos gestos ¢ atitudes algo de maquinal, e aos pensamentos mais sectetos uma énfase cémica. Vem dai, desse distan- = 35 ciamento assumido que reduz 0 patético € 0 grave, 0 cara- ter burlesco da conduta de Lucrécia que se estende a at- mosfera do-subarbio: A mocinha estremecia de medo de estar viva. Certas coi- sas davam o mesmo sinal — a falta de vento — um cego tocando — 0 luar na pedra... persignou-se rapidamente en- quanto um rato gordo se dourava sob o poste. Passos se- cos soaram. O soldado diminuido pela distancia apareceu numa esquina e sumiu por outra... sdbado era noite de bé- bados. Um papel estremecia no cho: entdo ela comecou a correr antes que tudo comegasse até encostar-se a porta de casa. Tocou a campainha longamente... (CS, 13) O humorem A cidade sitiada neutraliza a realidade, dissolvendo-a numa sucessao de aparéncias equivocas. Ma- quinais nos sentimentos e cercados de coisas rigidas *, os personagens desse romance aparecem como fantoches nu- ma atmosfera de sonho. A pantomima substitui os gestos, a pose suprime a atitude, a caricatura, o retrato. Sao todos figuras-servas da cidade. Nao é de outro tipo a presenga de Perseu, o namora- do da heroina, que surge no comego do romance (‘‘O ci- dadao’”’) ‘‘heréico e vazio’’, de pé, 4 janela de um segundo andar, sob a aparéncia de um relevo da paisagem urbana a que se integra — ‘‘porque ele era apenas um dos modos de ser de S40 Geraldo’’ (CS, 32). Lucrécia Neves € tam- bém um modo de ser do subtirbio, refletindo o espitito da provincia em que ela se mira. ‘Tudo era real, mas co- mo visto através de um espelho’’ (CS, 46). Esse espelho the devolve uma imagem exterior de si mesma — pois ‘‘tu- do o que Lucrécia Neves podia conhecer de si mesma esta- va fora dela: ela via’’ (CS, 77). “Os materiais da cidade! Ela estava olhando as coisas que nao se podem dizer. Certos attanjos de forma despertavam-the aquela atencZo oca: os olhos sem piedade olhando, 4 coisa deixando-se olhar sem piedade: um tubo de borracha ligado a uma torneira quebrada, o casaco pendurado atris, o fio elétrico enrodilhando um ferro. Ver as coisas € que etam as coisas’ (CS, 111). 36 Em A cidade sitiada, a romancista acentua particu- larmente, gracas ao Angulo do distanciamento, essa rever- sao da experiéncia interna, objetificada para o préprio sujeito, como reflexo de uma realidade que lhe é estranha ¢ com a qual ele se identifica. Assim mostra-nos, de pre- feréncia, Luctécia Neves ocupando uma posic4o espetacu- Jar, de exterioridade cénica. Ora mocinha timida e medrosa, ora namoradeira, ora jovem casada e boa esposa, a perso- nagem compée todos esses papéis e, a eles entregue por uma natural simulacao, toma lugar numa cena onde é, ao mesmo tempo, atriz e espectadora. S6 ela ainda estava consciente demais para comecar 0 dis- farce, 0 vento entre os sobrados apressava-a... Afinal a es- colha de um chapéu a concentrou permitindo-Ihe pér-se a par do aposento. Abriu a gaveta e da escuriddo para 0 ar trouxe 0 chapéu mais trabalhado. Procurou com ateng¢éo um novo modo de usé-lo. Seu impulso era duro e jamais se quebraria em ldgrimas: com o chapéu enterrado até a testa olhou-se no espelho. Fazia-se inexpressiva e de olhos vazios como se este fosse 0 modo de se ver mais real. Nao chegava no en- tanto a atingir-se, encantada pela profunda irrealidade de sua imagem. Passou os dedos na lingua, umedeceu as sobran- celhas... entéo olhou-se com severidade (CS, 37-8) Mas essa composigao da individualidade aparente de que se reveste a personagem, segue um modelo, um pa- drao a imitar que o subtrbio lhe fornece. Depois de pron- ta, ‘‘sua figura se ocultaria sob emblemas e simbolos’’ (CS, 39). Ao lado de Perseu, Lucrécia Neves sera como as ruas, os sobrados, a praca, a Igreja e o Morro do Pasto, um as- pecto da paisagem de Sao Geraldo. ‘‘Em breve ela desvai- tava um pouco, sonhava em andar sozinha como um cao e ser vista sobre 0 morro: como o postal de uma cidade”’ (CS, 46). Tanto quanto a do namorado, a posi¢ao da pro- tagonista € espetacular e cénica. Sao ambos espectadores das coisas € a0 mesmo tempo atores em espetaculo, que se com- pletam pela possibilidade de serem olhados pelos outros no desempenho de um papel definido: N&o importava 0 que téo animados se diziam: eles mes- mos eram para serem vistos, como a cidade. E se alguém 37 os visse de longe enxergaria um saltimbanco e um rei. Cami- nhar depressa os alegrava — 0 rei sorria e era belo, o saltim- banco se esforcava em caretas de graca; havia um descon- trole mecanico no caminhar de ambos — eram uma s6 pes- soa com uma perna curta e outra comprida, a beleza do ra~ paz e 0 horror, a flor e © inseto, uma perna curta e outra comprida subindo, descendo, subindo. Por vezes 0 rapaz pa- recia andar para a frente e a moca ao redor dele dancava era quando ele sorria divino e puro, a Lucrécia Neves falava — e assim os outros viam (CS, 49) Morando numa casa ‘‘que parecia ornamentada com os despojos de uma cidade maior’’, a heroina e a mae con- vivem através de uma relacao de exterioridade, que o olhar reciproco dimensiona: As duas mulheres se tornaram sonsas e.sagazes, corren- do cheias de cuidado como ratos pela sala em penumbra e assumindo cardter desconhecido de dois personagens que elas jamais saberiam descrever mas que podiam pintar, ape- nas imitando-se (CS, 72) A protagonista € tao exibivel quanto uma estatua publica: Na posiggo em que estava, Lucrécia Neves poderia mes- mo ser transportada 4 praca publica. Faltavam-lhe apenas o sol e a chuva. Para que, coberta de limo, fosse enfim desa- percebida pelos habitantes e enfim vista diariamente com in- consciéncia. Porque era assim que uma estétua pertencia a uma cidade (CS, 88) Luctécia Neves, que copia o invisivel modelo de Sao Geraldo, é um emblema do espirito provinciano, uma pro- jec4o da cidade que prové o repertorio de suas dissimula- des. Sao Geraldo € um pouco mais do que esse espitito. De fato, a cidade que o progresso revolucionou exemplifi- ca menos um meio social definido em mudanca ? do que ? Divergimos nesse ponto de Assis Brasil quando afirma que em A cidade sitiade “‘Clasi- ce Lispector trabalha seus personagens em fungao de um meio social...''. (Clarice Lispee- ‘or. OrganizagOes SimGes, 1962, p. 60.) Falta nesse romance a forma de apreensio da realidade que sintetiza 0 subjetivo e o objetivo, através da correspondéncia entre um meio social determinado ¢ a experiéncia individual das personagens. 38 uma situacao genérica personificada. Nao tem A cidade si- tiada, enquanto crénica de um subirbio em transforma- cdo, o sentido de uma forma de vida completa, que integre a experiéncia individual dos personagens. E uma alegoria das mudangas no tempo dos individuos e das coisas que os rodeiam. Lucrécia Neves personifica essa abstrac4o ro- manesca *. “As abstragdes esto personificadas; por isso, em toda alegoria ha algo de romanesco."” (Borges, Das alegorias aos romances, em Nova antologia pessoal, Rio de Janeiro, Sabia, P. 228.) 3 A MACA NO ESCURO OU 0 DRAMA DA LINGUAGEM I a 4 se observou a ‘‘pouca importancia de que se revestem os falsos motores da aco na obra de CL”’ *,, co- mo em A magé no escuro, o ctime material do protagonis- ta, acontecimento basico em torno do qual o aparente en- redo desse romance se articula. Julgando ter assassinado sua mulher, Martim, um en- genheito, foge desespetadamente e chega a uma fazenda. Por ele attaida, a proprietaria da fazenda (Vit6ria), mu- Ther voluntariosa e solitaria, com quem mora uma prima vitiva (Ermelinda), aceita-o para trabalhos bracais. Entre © protagonista e-essas duas personagens cheias de frustra- Ges € conflitos, tao inquietas ¢ reflexivas quanto Joana de Perto do coragao selvagem e Virginia de O /ustre, format- * Eliane Zagury, Clarice Lispector e 0 conto psicol6gico brasileiro, em A palavra e os ecos, PetrOpolis, Vozes, 1971, p. 22 40 se-4 um singular triangulo amoroso, em que se reprodu- zem, numa-forma de comunicagao reticente e distancia- da, através de didlogos que separam em vez de unir, as relacdes de antagonismo ja encontradas naqueles dois pri- meiros romances. Para defender-se da seducdo do intruso, Vit6ria denuncia Martim a policia, que o procurava por tentativa de homicidio. Numa longa cena em que o cémi- co € o patético se misturam, o engenheiro entrega-se sem resisténcia aos policiais que vém busca-lo. Nisso se resume o enredo propriamente dito, que nfo € sendo um esque- ma de apoio da natracao, cujo objeto — a experiéncia in- terior do protagonista — foi polarizado pelo acontecimento determinante da sua fuga. O personagem foge duplamente: das conseqiiéncias do crime e do seu proprio passado. E na medida em que foge fisicamente, o crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num movimento de evasio interior. Ele rejeita, juntamente com aquilo que foi, o cédigo moral que infringiu. Entrelagando, pois, a eva- sao fisica 4 psicolégica, a ago romanesca, que se desen- volye interna ¢ externamente como em O /ustre, descreve, no espaco € no tempo, singular trajetéria que acompanha a errancia do personagem. Podemos distinguir nessa tra- jetOria, entre a transgressdo inicial cometida e a final san- ¢4o do crime, as etapas de um itinerario, que Martim per- coffe, apds a ruptura com o passado e com a sociedade, a busca de si mesmo, de sua identidade pessoal. As etapas correspondem 4s trés partes do romance: a primeira ‘‘Como se faz um homem'’, que sucede ime- diatamente ao divércio com a sociedade, € a fase de isola- mento interior completo, de plena solitarizagao da cons- ciéncia, durante a qual 0 personagem, em meio aos rudes trabalhos do campo, reconhece a singularidade do seu ser individual; a segunda, ‘‘Nascimento do heréi’’, € a fase da reconstrucaéo de Martim como pessoa, quando ele, ja . ligado afetivamente a Vitéria e a Ermelinda, se faz herdi, capaz de altos sacrificios e destinado a desempenhar uma ra) missio entre os homens; a terceira, ‘‘A maga no escuro’’, no fim do romance, com a chegada dos policiais, em que a sangao, desagregando essa identidade postiga de heréi, e anulando os efeitos de ruptura do delito, devolve o su- posto criminoso ao convivio dos outros. Temos ai um sé movimento em dois tempos, que vai da transgressao co: mo ato de liberdade, do crime como afirmagao do indivi. duo que alcancou, através da revolta, a consciéncia de si, ao fracasso dessa rebeldia, diante da ordem social impla- cavel que absorve o fugitivo. Mas a linha, nitidamente romantica, que a associa- cao de crime e rebeldia imprime ao tracado desse itinera- rio, complica-se com a dialética da vida espiritual presen- te no romance, e que assume, concorrendo com a samgao no momento do desfecho, a forma de stibita conversdo te- ligiosa do protagonista, que parece ver no seu ato de vio- léncia um ardil irénico de Deus, em funcao de insonda- veis designios. Assim podemos caracterizar uma segunda linha da acao, ja de carater mistico, que vem juntar 4 imagem da revolta romantica — estampada na figura de Martim, re- belde e criminoso feito heréi — a imagem de uma pere- grinagao simb6lica da alma — estampada tanto na primeira como na terceira partes do romance, nas principais peri- pécias do engenheiro, que ora agindo as cegas, ora julgando obedecer 4 sua vontade prépria, segue, sem o saber, atra- vés de rodeios que o expdem a miiltiplos perigos, um ca- minho que se destinava a leva-lo de volta a si mesmo. Na primeira parte de A maga no escuro, ‘‘Como se faz um homem’’, logo que se inicia a fuga, Martim encontra-se sucessivamente — depois de ter abandonado, a noite, um quarto de hotel — ‘‘no meio de uma exten- sao deserta que se perdia de vista para todos os lados’’ e no alto de uma encosta, de onde descortina, antes de chegar a fazenda que lhe servira de refiigio, ‘‘uma atmos- fera de jibilo’’, ‘‘uma harmonia imensa e sem sentido’’ A caminhada nas trevas, a passagem pela aridez do deser- 42 to € 0 descortinio do esplendor do mundo do alto da mon- tanha, que correspondem, respectivamente, ao extravio dos sentidos, ao isolamento afetivo e intelectual ¢ a visdo ex- tatica das coisas, sao as principais peripécias de uma pere- grinagao mistica, em que elementos exteriores da paisa- gem simbolicamente interiorizados — as pedras e seu ‘‘fais- car silencioso”’, as quais o homem dirige a palavra, o pas- saro que lhe serve de companhia, o ‘‘vento Aspero’’, a be- leza das arvores, o descampado, a graca do ar — formam 0 contorno alegérico de estados da alma. Em contacto com a terra, na fazenda, Martim entra, de fato, até pela execugo afincada de suas tarefas servis, num ciclo de disciplina ascética: em vez da fala, a mudez; em vez do pensamento abstrato, a percepcdo; em vez da identidade pessoal e das relagdes intersubjetivas, a impes- soalidade da consciéncia, agregada 4 natureza e solidaria das coisas. A inteligéncia € mortificada pelo nao-enten- dimento, a vontade, pelo nao-querer. Liberada a sensibi- lidade, a visdo direta sobrepde-se a idéia, o ver ao dizer, a coisa a palavra que a nomeia: Os olhos de Martim, tornados ignorantes pela longa noi- te, olharam entao com estranheza o terreno baldio que a meia claridade de sonho revelou pela janela atrés do depésito. Aparentemente esquecera de que dormira no campo. No terreno, através da névoa rasa, viu com curiosidade infantil uma terra suja e seca, endurecida pela madrugada. O ho- mem néo antecipou nada; viu o que viu. Como se os olhos nao fossem feitos para concluir mas apenas para olhar (ME, 62-3) Em transe diante daquilo que vé, o personagem tem um conhecimento sem palavras. So momentos de repen- tina clarividéncia, de instantaneo descortinio: petcepcio extasiada que 0 esvazia, reduzindo a vida de seu espirito a uma exptessao minima, rudimentar, que confina com © torpor vegetativo e com a imobilidade animal. 43 O siléncio das plantas estava no seu proprio diapasdo:-ele grunhia * aprovando. Ele que nao tinha uma palavra a dizer, e que no queria falar nunca mais. Ele que em greve deixara de ser uma pessoa. No seu terreno, ali sentado, ficava go- zando 0 vasto vazio de si mesmo. Esse modo de no enten- der era 0 primeiro mistério de que ele fazia parte inextrincé- vel (ME, 64) O esvaziamento interior do personagem contrasta com a plenitude do mundo exterior em sua perfeigao e beleza, de que ele retira uma impresso de jabilo ¢ de gloria. E a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distancia se agregava aquele mundo sem Deus. Pois quando o homem erguia os olhos — as 4rvores distantes eram to altas, t&o altas como uma beleza: 0 homem gru- nhia aprovando. Quanto mais estupido, mais em face das coisas ele estava (ME, 64) Nesse estado de esvaziamento, mas também de re- ceptividade 4s coisas, que a recusa da palavra ¢ 0 siléncio determinam, Martim est4 mais préximo da Natureza do que das duas mulheres da fazenda. Com aquela estabele- ce a intimidade de um contacto silencioso, contemplat vo, mas satisfatério, através de rapidas frases monologais, 4 beira do inexprimivel; com essas iltimas, o distanciamen- to de um contacto verbal eliptico ¢ reticente, mas insatis- fat6rio, através de didlogos esporadicos, que pouco ou na- da dizem. Na terceira parte do romance, que corresponde a il- tima etapa do itinerario, a peregrinacdo simbélica chega ao seu termo com o transe da conversao religiosa, j4 de- pois de haver Martim alcancado, na segunda, consciéncia de si, de sua pessoa, na medida em que o crime longin- quo transformou-se para ele num ato de rebeldia — ‘‘o seu primeiro ato de homem’’ (ME, 100). ? O recuo a animalidade ou a simples poténcia da vida animal tem nesse grunbido um indicio constante. Em diversas passagens ocorre 0 verbo grunhir: ‘“O homem grunhiu aprovando...”” (ME, 14). '“Era nisso que dava a liberdade. Seu corpo grunhiu com pra- zer... (ME, 22). Repete-se a idéia em O livro dos prazeres. Ver, a tespeito, 2* parte cap. 3, “O mundo da néusea e 0 fascinio da coisa" 44 Essa fase heréica e ética dura bem pouco. Sabendo que se aproxima a-hora de a policia vir busc4-lo, Martim procura refiigio num bosque, em notte escura > — um dos topoi da via mistica — e ai, confrontado 4 lembranga de seu crime, mas sem o disfarce da interpretacdo que lhe im- primira a qualidade de ato afirmativo, teve tanto medo que pela primeira vez compreendeu em to- do o seu inexprimivel sentido o que significava a salvacdo (ME, 170). Percebe ent&o que, a despeito do seu esforco para construit-se, apenas percorrera um circulo fatal perfeito — até encontrar-se de novo, como agora se encontrava, no mesmo ponto de partida que era 0 préprio ponto final. E se esse caminho apenas circular aca- bara de tornar inuiteis todos os passos que ele dera, no fun- do mesmo de seu medo o homem de repente pareceu con- cordar com esse caminho, com dor e com medo pareceu admitir que sua natureza desconhecida fosse mais podero- Sa que sua liberdade. Pois de que me valeu a liberdade, gritou-se ele, Nada fizera dela... (ME, 171): Instrumento da paciéncia de Deus, vitima de seu ar- dil, porque, como ele saber4 logo depois, o seu crime ti- nha sido incompleto (a esposa, que julgara ter assassina- do, escapara da morte), Martim necessita abdicar de si mes- mo — de seu nome e de sua condicao — para encontrar, absorvido pela realidade absoluta que 0 cercava e incluia, como fonte remota e escura dele mesmo, a sua verdadeira identidade no total despojamento do Eu. S6 que antes de ser admitido na primeira lei, um homem teria que perder humildemente o proprio nome (ME, 174) _ Seria A maga no escuro, portanto, de acordo com es- sa linha mistica, que até aqui acompanhamos, uma par4- » Particularmente em San Juan de la Cruz como noite sensitiva ¢ intelectual, moche escura da alma. (Vide “'Subida del Monte Carmelo’’, livro primeito e ‘Noche escu- 1a", Obras de San Juan de la Cruz, tomo primeito, Buenos Aires, Editorial Poblet, 1944.) 45 bola da maxima evangélica segundo a qual aquele que per- de a sua vida ha de ganhé-la *. No entanto, esse aspecto mistico-espiritual do. romance, por mais saliente que seja, nao prepondera-sobre.o outro, romantico, o da rebeldia e do destino excepcional que a vontade forja, da aspiracao ética, do amor e da agao transformadora do mundo, tam- bém marcante da segunda para a terceira parte da obra, isto €, nas duas tiltimas fases do itinerario percorrido, quan- do, por efeito do jtibilo que lhe infundem a contempla- c&o das coisas € o interesse das duas mulheres °, Martim sai do estado de siléncio, de quietude mental, de paralisia afetiva em que o vimos submergido no comego °, € se em- penha em alles uma nova existéncia: Foi assim que jé tendo perdido na montanha a primeira modéstia, Martim foi perdendo sem sentir as derradeiras amarras, até que j4 ndo era monstruoso uma pessoa se dar fungéio de pessoa e de “‘reconstruir’’. O que Ihe pareceu fa- cilimo. Até hoje tudo o que vira fora para nao ver, tudo 0 que fizera fora para nao fazer, tudo o que sentira fora para nao sentir. Hoje que se rebentassem seus olhos, mas eles veriam. Ele que nunca tinha encarado nada de frente. Pou- 4 “0 que se prende & sua vida, perdé-la-4; e 0 que perder a sua vida por meu amor, aché-la-a” (Mateus, X, 39). A insisténcia sobre a idéia de fracasso, de perda, confirma esse sentido do achamento mistico da vida, cuja plenitude, na acepcdo de obra acabada ¢ perfeita — como as aves do cu (Mateus, VI, 26) ¢ os lirios do campo (Mateus, VI, 28) — € ressaltada em outras passagens de cunho parabélico do romance. Assim, por cemplo, na seguinte: ":Afogado num mar de seixos — Nao s6 a realidade, mas tam- bém a meméria pertence a Deus. O homem se revolveu no escuro. Ele tinha ficado preso dentro da construgio do proprio passado. Nada jamais tinha saido do mundo, nada ja- mais tinha entrado no mundo: eram as mesmas pedrinhas sempre, o jogo sempre estava feito, ¢ 2 improvisacdo era impossivel pois esses eram os elementos — 05 que ja estavam ali — e de repente havia fechado a porta, ¢ nada mais fora permitido entrar ou sait. E se, para o futuro, ele quisesse fazer nova construcdo — teria que destruir a primeira a fim de ter pedrinhas a usar, pois nada podia mais entrar no jogo ¢ nada mais podia sair: 0 material de sua vida era esse mesmo"” (ME, 138). A propésito dessa feicio parabé- lica, que abona a linha mistica do romance, € oportuna a observagio incidental de Luis Costa Lima sobre 0 tomneio da frase em A maga no escuro: ‘*Curiosamente, a frase acu- mula um tom e um corneio repetitivos que fartamente sugerem a proximidade proposi- tal com textos sagrados’’. (Luts Costa Lima, Clarice Lispector, em Afrénio Coutinho, dir. A literatura no Brasil, moderismo, 2. ed., Rio de Janeiro, 1970, v. 5, p. 466.) “Assim, cada dia, quando se livrara das ordens de Vit6ria, ia esperar na encosta pela volta daquele instante quando, entorpecido, se aproximara da fazenda pela primeira vez ¢ pela primeira vez fora alertado. E de novo ¢ de novo voltava. Repetir lhe era es- sencial. Cada vez que se repetia, algo se acrescentava. Tanto que Martim ja estava co- mecando a se perturbar — ele era um homem, mas restava algo inquieto: que € que um homem faz?"’ (ME, 99). ° O que o personagem chama a sua greve (ME, 64). 46 cas pessoas teriam tido a oportunidade de reconstruir em seus prdprios termos a existéncia (ME, 109) Mas para tornar-se uma pessoa, nao lhe bastara, como an- tes, apenas ver o que existe em torno de si. Ja necessita do dizer, da palavra que exprime e que interpreta, que fixa valores e define objetivos. Sua fungao de pessoa esta- tia em fungdo das palavras, do uso renovado que delas fi- zesse para reconstruir-se, a comegar pela recusa do signifi- cado corrente da palavra crime. Sua obscura tarefa seria facilitada se ele se concedesse 0 uso das palavras j4 criadas. Mas sua reconstrugdo tinha de comegar pelas proprias palavras, pois palavras eram a voz de um homem. Isso sem falar que havia em Martim uma cau- tela de ordem meramente pratica: do momento em que ad- mitisse as palavras alheias, automaticamente estaria admi- tindo a palavra crime — e ele se tornaria apenas um crimi- noso vulgar em fuga (ME, 101). Assim, uma vez que o seu crime nao fora um delito comum mas um ato liberador que lhe permitia agora transformar-se numa pessoa, manter-se-ia, no seu esforco para ser, o primitivo impulso, a original violéncia de sua transgressao. Sem adocao de uma linguagem propria, que conservasse em aberto a ruptura inicial produzida como fundamento de sua nova identidade, seria inviavel esse es- forgo de reconstrugao. Porque acontece que ele queria a palavra. Enquanto fos- se quem era estaria preso a sua propria respiracdo a espera de que ela 0 unisse a si mesmo, vivendo com essa pala- vra na ponta da lingua, com a compreensdo quase por se revelar, nessa tensdéo que termina por se confundir com a vida, e que é ela propria, acontece que ele queria a palavra (ME, 128). . Como herdi rebelde, gerado pela palavra formadora, esse homem tem 0 seu tanto de apéstolo ¢ de poeta. Sua liberdade, que uma primeira revolta alimenta, uniria a ex- Pfessdo 4 acdo, o dizer ao ser. Ao transformar-se, gracas as palavras com que se interpreta, quer também transfor- mar o mundo. Transgressor do cédigo moral, faz-se igual- 47 mente transgressor do cédigo lingiiistico: acima da lingua- gem comum, coloca-se, também, como personalidade ex- cepcional em projeto, sonhando a reconstrugéo do mun- do ’, acima dos outros. Mas quando 0 instante da sang4o sobrevém, esse pro- jeto de rebeldia liberadora se desmantela. E 0 fiasco da identidade pessoal de Martim. O convivio dos outros, a ordem social transgredida, a linguagem comum violada, absorvem-no como uma sé realidade global, indiferencia- da, objetiva e indiscutivel: construcao absoluta e perfeita, que obtém o grato reconhecimento do transfuga, com ela enfim reconciliado e pronto a expiar asua culpa. A cons- ciéncia de Martim transfere-se 4 dos quatro representantes da Lei que o vém buscar e com os quais confraterniza # Enquanto, portanto, a linha mistica da trajet6ria de A maga no escuro tedunda numa conversao espiritual, a sua linha fomantica tetminatia num conformismo social de cunho transcendente. A certeza Gltima que se atribui ao petsonagem € uma espécie de fé, de verdade interiori- zada, misto de rentincia e de abdicacao, de abandono e de desprendimento estdicos. Tudo est certo no final, mas porque tudo € no final obscuro e inexplicavel. Miraculosamente certo. Oh, Martim sabia que em face da inteligéncia seria muito tolo dizer isso. Mas acontece que, enfim to apoiado pelos quatro, ele nao estava com medo de ser tolo. Oh, como explicar que tudo estava certo? Inicia- do agora no siléncio — nao mais no siléncio das plantas, nao mais no siléncio das vacas, mas no siléncio dos outros ho- mens — ele no sabia mais como se explicar, sé sabia que se sentia cada vez mais um homem, cada vez mais ele se sentia Os outros. O que, ao mesmo tempo que lhe parecia Sim. A reconstrugio do mundo. E que o homem acabara de perder complet: 4 vergonha. Nao teve sequer pudor de voltar a usar palavras da adolescéncia nha pouco tempo ¢ devia comecar agora mesmo, por assim dizer."’ ‘Da reconstrugao do mundo dentro de si, ele passaria & reconstrucéo da Cidade, que era uma forma de viver e que ele repudiara com um assassinato; eta pata isso que o tempo era curto."” ‘Acho que nao sou nada tolo!’, pensou fascinado”’ (ME, 105). ‘Espantado diante dos narizes ¢ bocas com que nascemos, Martim olhou os quatro homens: todos sabiam a verdade. E mesmo que a ignorassem, 0 rosto das pessoas sa- bia. Alids, odo o mundo sabe tudo'” (ME, 233-4) 48 a grande decadéncia e a queda de um anjo, pareceu-ihe tam- bém uma ascensdo. Mas isso sé entende quem, em esfor- ¢o impalpavel, ja se metamorfoseou em si mesmo, Martim nem sequer conseguiria explicar por que um homem teria como ideal a urgéncia de ser um homem (ME, 234-5). duas linhas de acao, a romantica ea mistica, que nam ao longodo itinerario, transpassam-se ao tér- ‘mino do romance, concorrendo para a ambigitidade do de- senlace, que fica entre o conformismo da conversao — de uma espiritualidade aparente — e a espiritualidade da san- ¢40 — de carfter punitivo aparente. Contraditérios, esses significados sao partes constitutivas de um s6 paradoxo que compromete o sentido da narrativa. Sem verdadeiro des- fecho, A maga no escuro tem um final problematico, que deixa em suspenso quer a natureza quer o término da tra- jetoria delineada. Conforme veremos adiante, essa singularidade decorre da problematizacao mesma do romance como forma nar- tativa, que se reflete na posicao do sujeito-narrador em face do protagonista. Il Como nos romances anteriores, a narrativa de A ma- a no escuro € feita na tetceita pessoa. O sujeito-narrador, sem_tettair-se, esta sempre a ilharga do personagem. Acompanha-lhe os movimentos, os gestos, as impressdes € Os pensamentos, inspeciona-o interior ¢ exteriormente em atitude de maxima proximidade, mas sem chegar a uma identificagao completa, a um conhecimento efetivo de seu modo de ser. Os registros numerosos € minuciosos que con- signam os sucessos internos € externos nos quais Martim se acha envolvido, nao constituem senao uma parte do dis- curso narrativo de A maga no escuro, precisamente aquela que se compée, via'de regra, de enunciados assertoricos cortespondentes a uma visdo direta e proxima da experién- cia do personagem. A outra parte compée-se de enuncia- 49 dos modais — dubitativos e hipotéticos — sobre essa mes- ma experiéncia. Pela sua natureza modal, os enunciados dubitativos vinculam um grau de incerteza, e os hipotéticos um grau de probabilidade as ocorréncias. Os primeiros traduzem, através de analogias, paralelos e comparacdes, um estado de nao-conhecimento, que se atém a um jogo de seme- Ihangas e diferengas substitutivas da realidade: jogo que consagra as aparéncias na forma de como se. Os segundos, que ainda nao alcancaram o estado de conhecimento, in- dicam uma verdade apenas possivel ou provavel na forma do parece, do quem sabe ¢ do provavelmente. Ambos enunciados modais, ao contratio dos assertéricos, cortes- pondem a uma visao indireta e distanciada dos aconteci- mentos narrados. A proximidade maxima ao petsonagem que os enun- ciados assertoricos traduzem € contrabalancada pelo dis- tanciamento introduzido pelos modais. Assim, a roman- cista oscila entre a vis@o direta e proximae a visto indireta e distanctada. Nos dois trechos a seguir transcritos, cujas unidades narrativas minimas assentam nos dois tipos de enunciados, pode ser constatado esse deslocamento de pon- to de vista: 1) 0 préprio siléncio se tornara diferente. Embora 0 ho- mem nao percebesse nenhum som, os passarinhos voavam mais agitados como se ouvissem o que ele nao ouvia. O ho- mem parou atento. Havia um deslocamento de ar como se um dinossauro se transladasselento'em-alguma parte do glo- bo... Martim mal e mal constatou a propria sensaco, tendo OCuidado de nao constatar demais e deixar de perceber. O desfeito alarido Ihe chegava como se de muito longe Ihe so- prassem perto do ouvido: foi esta a obscura nogdo de dis- tancia que ele teve, e parou farejando, Embaracadamente entregue ao recurso de si mesmo, parecia tentar usar 0 pré- prio desamparo como buissola. Experimentou calcular se es- taria perto ou infinitamente longe daquilo que acontecia em algum lugar. Mas parava, e de novo 0 siléncio do sol se re- fazia e o desorientava (ME, 39) 2) Provavelmente aquela coisa para a qual, incerto, o ho- mem caminhava era apenas criada pela sua ansia. E aquele a 50 modo intenso de querer se aproximar — pois solto no campo de luz o que aquele homem parecia apenas querer era obs- curamente se aproximar — na certa seu modo desajeitado de querer se aproximar nado passava de um substituto 4 sua auséncia de linguagem. Quem sabe se ‘‘querer’’ seria de ago- ra em diante a sua Unica forma de pensar. Martim continuou a avancar, sem se dar conta de que apressava os passos em diregao a nada mais que a uma alusdo do vento ° (ME, 39). No primeiro trecho, prevalecem os enunciados asser- t6ricos, no segundo prevalecem os demais. Mas em ambos Martim aparece numa posi¢ao espetacular, cénica, exterio- tizada, cuja realidade interna, objeto de suposigdes, que atribuem uma dada ordem de motivos 4 sua conduta, é mais postulada que conhecida, mais interpretada que apreendida. O que o olhar da narradora surpreende é um conjunto de aparéncias fugidias e equivocas, que fixam, como numa série mutavel de croquis, de esbocos indispen- sAveis mas insuficientes, diversas hipéteses sobre o verda- deiro modo de ser e de agir do protagonista. Com a leveza do cansago, como se usasse sapatos de ténis, ele avancava. Uma elegancia astuciosa j4 0 tomara: ele estava se preparando para defrontar gente. E quanto mais se aproximava, mais reconhecia aquele quieto tumulto da vida que horas antes ele farejara e a0 qual parecia ter dado © nome intimo de ideal — e que agora, mesmo ainda néo dividido em sons, the era familiar. [...] Ele avancava flexivel A essa altura sua cabeca vazia ja nao lhe era mais de ne- nhum socorro. Na verdade seu avanco parecia ser guiado unicamente pelo fato daquele homem estar entre terra e céu Eo que o sustentava era impessoalidade extraordindria que ele alcangara, como um rato cuja Unica individualidade é aquilo que ele herdou de outros ratos. Essa impessoalidade, o homem a manteve em leve repressdo de si proprio como se soubesse que, do momento em que se tornasse ele mes- mo, cairia emborcado no chao. A propria extrema individua- ° Num reforco do exemplo, observe-se ainda neste outro o insistente emprego do ver- bo parecer; ‘Era uma atmosfera de jabilo,.. Ele nunca estivera tio perto da promessa que parece tet sido feita a uma pessoa quando esta nasce... Parecia ter atingido aquela coisa que uma pessoa nio sabe pedir” (ME, 40). “E aquele homem, que era um exagerado, parecew que por assim dizer trabalhara duramente para chegar a essa coisa valiosa e inttil” (ME, 41). 51 lidade que ele tinha alcangado na montanha ndo devia ter sido senéo um espasmo da cega totalidade com que ele avancava: levitado pelo cansaco, transladava-se sem sentir os pés tocarem no chao, tendo como tinico ponto fixo a esperé-lo a nitida casa cada vez maior, cada vez maior (ME, 42-3) Nas passagens aqui registradas, ha um comentario re- flexivo, que penetra a narra¢do propriamente dita, pondo em jogo o seu objeto. Nao apenas os atos € feitos do per- sonagem, como matéria a narrar | , Se interiorizam em fun- cao do comentario reflexivo que tenta descrevé-los, mas também a propria experiéncia interna que do epos restou se torna problematica quanto 4 forma de sua tepresenta- cao '*. Ora, essa forma de representacdo € a narrativa co- mo tal. O carater problematico da forma narrativa em_A-mza- ga no escuro, de que os enunciados modais sao 0 indicio, manifesta-se principalmente por uma temética da fingua- gem comumas duas linhas da ag4o,-a- romantica. ¢ a misti- ca, que confluem no itinerario de Martim. Ja desse ponto de vista, semelhante itineratio pode set. -compreendido como um éxodo.— ume-retirada, uma errancia para fora da linguagem comum. ‘‘Perdi a lingua- gem dos outros’’ — € o que ele exclama ao iniciar a sua fuga. Recusando 0 significado cortente, codificado, da pa- lavra crime, 4 busca de palavras novas ou de novos signifi- cados para o seu ato, a luz dos quais feinterpreta um pas- sado comprometedor, o her6i apenas conquista, por toda identidade, uma mascara verbal, retorica. O episddio pa- tabélico, do Sermao as Pedras no come¢o do romance, pa- rodisticamente emoldurado por famosas pecas do fabula- tio mistico (Sermdo aos peixes de Sto. Anténio e Sermao 40s passaros de S. Francisco), figura essa atitude da cons- 1° Enquanto matéria de diegesis, modo de mimésis, segundo a nogio aristorélica. Vide Poética, | 448a. 7 Ver a respeito do problema da narrativa como forma de.representagao literisia, es- pecialmente no romance, Gérard Genette, Frontiéres du récit, Communications, Seuil, n. 8, p. 152-63. 52 ciéncia solitaria, que se inventa na medida em que se ex- prime ¢ que se disfarca na expressao alcancada. Diante das pedras que lhe servem de ptiblico — ‘‘pois estas pareciam homens sentados ?’’ — Martim produz uma peca autojustificativa (seu crime fora o salto, a trans- gressao liberadora), que também o produz, emitindo-o na posse de uma identidade ret6rica. Ja estamos no ambito da temAtica da linguagem. O episédio da entrada no bosque em ‘‘noite escura’’ na terceira e Gltima parte do romance, esta em correspon- déncia com a passagem do Sermao as Pedras. No sentido de uma tematica da linguagem, que deixa em suspenso o alcance mistico do incidente, a conversao religiosa, por que teria passado Martim nesse lugar, parece mais uma pe- ripécia ret6rica. Quem antes se defrontara com a palavra crime, defronta-se agora com a palavra “‘salvagdo’’, que o empolga. Salvagdo? ele se espantou. E se fosse esta a palavra — seria entéo assim que ela acontecia? (ME, 170) Assim 0 itinerario do personagem é também um ca- minho por entre palavras — mas numa peregrinacgao em circulo, que volta ao ponto de partida: a linguagem co- mum, constituida de frases feitas e de clichés verbais. A verdade dos outros tinha que ser a sua verdade ou o trabalho de milhdes se perderia. No seria esse 0 grande lu- gar comum a todos? (ME, 230-1) O espaco da comunicagéo nao é outro senio o lugar-comum. Esté 0 personagem, portanto, submetido, do princi- pio ao fim de seu itinerario, 4 provac4o e 4 provocacao da linguagem. Pelo siléncio a que recua, foge a forca alician- te do dizer, 4 exorbitancia do simbolo sobre a realidade, De j — Bu era como qualquer um de vocés, disse entdo muito subitamente para as pedras pois estas pareciam homens sentados’’ (ME, 29). 53 mas perde a sua individualidade numa vida sensitiva e ani- malesca; pela readmissao do dizer, as palavras que o pes- soalizam, investem-no de uma persona, de uma mascara verbal — identidade evasiva que lhe propicia a fuga de si mesmo: Martim alcangou enfim seu estado, pulando como um he- r6i por cima de si mesmo (ME, 115) Sao as palavras que o formam e que o deformam, revelando-o ¢ ocultando-o, fazendo-o ser uma pessoa € desapossando-o de sua identidade. Esse conflito do personagem, que define o carater pro- blematico de sua experiéncia interna, ¢ que tematiza a lin- guagem no romance, € um conflito dramAtico, que se es- tende a propria forma narrativa de A maga no escuro, so- bre a qual pende o perigo de simulacao e de ocultamento — 0 risco do discurso que cria a sua matéria e que nao pode mostrar sem inventar. A contingéncia de narrar, trans- formada numa necessidade cautelosa que perpassa 0 ro- mance, € a contingéncia desse conflito dramatico, desse drama da linguagem que se incorpora 4 forma narrativa, minando-a internamente. Pode-se ver no desenyolyimen- to em camara lenta do discurso, que assinala o seu proble- matismo ao evoluir, esse aspecto do drama da linguagem a que nos referimos. Sao seus indicios, além dos enuncia- dos modais j4 registrados, as frases interrogativas abundan- tes, que marcam as hesitagdes do narrador, dubitativo e perplexo quando coloca um novo elo hipotético, conjec- tural, na cadeia de suposic6es que vai formando: Que € que aquele homem em duas semanas apenas ter- minara por fazer do seu proprio crime? (ME, 31). Quais eram 0S pensamentos daquele homem? (ME, 71). — E de novo e de novo voltava. Repetir Ihe era essencial. Cada vez que se repetia algo se acrescentava. Tanto que Martim jé estava comecando a se perturbar — ele era um homem, mas res- tava algo inquieto: que é que um homem faz? (ME, 99) Essas interrogacdes pontuam o comentario reflexivo que interioriza a matéria narrativa do texto, valorizando, 54 inclusive, 0 apelo silencioso das coisas ¢ os momentos ine- narraveis '°. Mas pelo comentario que interpreta a expe- riéncia narrada, o sujeito-natrador, continuamente presen- te, também a si mesmo interpreta. A servigo do persona- gem, a sua voz, gue fala dele e por ele, alca-se do espago comum da narrativa, convertido num espaco agénico, on- de se representa o drama da linguagem e da expressao, e que ambos ocupam. Nesse sentido, as relagdes entre 0 sujeito-narrador e © personagem, que agora podem ser estabelecidas com maior rigor, sao relagdes mais intimas no plano da propria ago romanesca. Cada vez mais distante do personagem quando mais dele se aproxima, o sujeito-narrador nao se identifica com Martim nem dele possui efetivo conheci- mento. E 0 discurso natrativo que os une ¢ que os separa. Como se entre eles a linguagem formasse um écran, a to- mancista sO pode ver o personagem em projecao. Intér- ptete de Martim, que se enreda as palavras, a romancista, que o acompanha, interpreta desse espago agénico que tam- bém ocupa, o drama da linguagem, no qual se acha en- volvida. Ela participa, como agente da nartacao, do plano mesmo da aco romanesca que dirige. O autor se tor- na ator por desdobramento dramitico ‘4 . A romancista, que fala do personagem e pelo perso- nagem, também fala com ele e por ele. Envolvida na pré- pria narrativa, a sua voz auténoma, a sua voz de ator, in- terroga ou apostrofa: E foi assim que aconteceu, sem mais nem menos: ele te- ve a certeza, Como? Oh, vamos dizer que uma pessoa ti- vesse um cérebro matematico mas ignorasse que existem numeros — de que modo entdo essa pessoa pensaria? ten- do a certeza! Oh, também a esperanca é um pulo. Martim entdo jogou tudo na certeza. E ficou muito quieto (ME, 238) 19 “S49 momentos que nio se narram, acontecem entre trens que passam ou no ar que desperta nosso rosto que os dé o nosso final tamanho, ¢ entdo por um instante somos a quarta dimensio do que existe, so momentos que no contam’” (ME, 89-90) 0 eescritor se revela como autor, sujeito do livro e objeto do espeticulo, ator. De semelhante desdobramento, que é também do texto romanesco, como pritica e pro- duro, trata Julia Kristeva. Vide, da autora, Le texte clos, Language, Didier Larousse, 1968, m. 12, p. 111. 55 Num dos momentos mais patéticos da terceira parte, essa voz acode ao desamparo do personagem, falando ora a Deus, ora a si mesma, ora ao leitor: Oh Deus, Deus: ele estava exausto. Ele nao queria ne nhuma apoteose. Agora sério, exausto, olhou de mos cai- das. Estivera brincando até agora, por pura excitacdo. Mas agora ele quis foi pobreza e docura. Estava mole, cansado, ele queria... que é que ele queria? Que é que quero? Oh Deus, ajude-o, ele ndo sabe o que quer. Ele ndo sabia. E num es- forgo sobre-humano de se dar, fez uma expressdo de rosto que se soubessem ler saberiam o que ele queria, mesmo que no pudessem dizer 0 qué. Que é mesmo que ele queria? nao sabia, uma pessoa substitui tanto que termina por no saber. Oh, também nao vamos complicar demais. Pois afi- nal tudo, em ultima andlise, se reduz a sim ou no. Ele que- ria ‘‘sim’’. Que poderia ser dado indiferentemente com a ca- beca baixa ou com todos os membros da companhia.no pal- co, 6 uma pequena questdo de preferéncia pessoal, e gosto n&o se discute (ME, 245) Entramado ao comentario reflexivo que 0 conduz, o discurso narrativo compoe-se de variagdes extremas, har- monizando diferentes modos de dicc4o, como 0 irénico € 0 cémico 8, Podem ser registradas em A magd no escuro passagens de dicgao irénica ¢ cémica, as vezes Hum mesmo episédio, a exemplo daquele questionario-didlogo entre Martim ¢ a alma do pai que o visita, tal como um fantasma hamle- tiano tardio, para trazer-lhe, 4 guisa de assombracao da infancia, os moldes da clicheria verbal, dos lugares-comuns, que ligarao novamente o filho a linguagem banal: Como vao suas relagdes sexuais, meu filho? — Muito bem, respondeu com vontade de mandar o pai para o infer- no de onde o tirara. — Vocé sabe que 0 amor é cego, que quem ama o feio bonito Ihe parece, e que seria do amarelo se ndo fosse 0 mau gosto? e que em casa de ferreiro espeto +5 Os modos de diccdo de que aqui tratamos slo mais de cardter temitico do que fic- cional, segundo a distingdo proposta por Northrop Frye em Anatomy of criticism, em Theory of modes, New York, Atheneum, 1966, p. 52 et seqs. 56 de pau, e quem nao tem cao caga com gato, e boca-ndo- erra? disse 0 pai descarrilhando um pouco mais, nao faltava muito para comegar a contar o que fazia com mulheres an- tes naturalmente de ser casado com tua mae. Vocé sabe que esperanca é duro combate que aos fracos abate, e aos for- tes etc.? — Sim, sim, meu pai. — Meu filho. Vocé esta cons- ciente de que de agora em diante, para onde vocé va seré perseguido pela esperanca? — Estou sim, meu pai... (ME, 256). A narrativa, que se espraia nesses modos de diccao, © que alcanca, como no trecho acima, um_nivel parodisti- co \*-éa-narrativa problematizada, em cujo espaco agéni- co, de contrastes e patadoxos, onde tem lugar o drama da linguagem, baralhando as duas linhas concorrentes da a¢io romanesca, o verdadeiro e 0 falso se misturam quanto ao “conhecimento’’ do personagem e as intengdes do narrar. A mentira pode ser um modo de se chegar a verdade. E é verdade que menti muito, menti tanto quanto preci- sei... (ME, 240) diz Martim no Gltimo instante. Como numa parédia da doutrina védica de que nao h4 nem assassino nem assas- sinado ‘” , crime também aqui nao houve: falso foi o acon- tecimento, falsa foi a situacdo do personagem. Paira sobre a acéo uma possibilidade de logro, de embuste. Do jogo entre a realidade e a linguagem, a que a narrativa esta su- jeita, resta o vistumbre de um sentido, mas tao vago e dis- tante quanto uma ‘‘maca no escuro’’ que estivesse fora do alcance de quem tem fome: Em nome de Deus, diz, no final do romance, o sujeito- narrador, dirigindo-se aos leitores na pessoa dos quatro po- liciais que levam Martim, espero que vocés saibam o que estéo fazendo. Porque eu, meu filho, eu sé tenho fome. E esse modo instavel de pegar no escuro uma macé — sem que ela caia (ME, 257) 16 Nesse, como em outros romances, hi um trabalho ''com discursos literrios prévios"’, conforme observou Dirce Cértes Radel em Situagdo Atual do Romance Brasileiro — 1 Congresso Brasileiro de Literatura (de 3 a 17 de julho de 1969) —, Rio de Janeiro, Gernasa, 1970. 1 "Se o assassino pensa que matou, se © morto pensa que morreu, ambos desconhe- cem a verdade’’ (Katha Upanishad). 57 Como a existéncia pessoal de Martim, que fracassa, também fracassa o dizer da narrativa. Todos os temas ge- rais, de ordem filos6fica e religiosa — liberdade e acao, bem e mal, conhecimento e vida, intuicao e pensamento, o cotidiano e as coisas, Deus e a existéncia humana — que aparecem entrelacados na pratica meditativa de A maga no escuro — podem ser reduzidos a um sé problema, la- tente ao itinerario do her6i ¢ a trajet6ria da propria narra- tiva, e que da a esse romance uma latitude metafisico- teligiosa: 0 problema do ser e do dizer. iro e até agora tinico romance de Clarice Lis- Pesta na primeira pessoa, A patxdo segundo G.H. € a con- issio de uma experiéncia tormentosa, motivada por um acontecimento banal. ‘A personagem narradora, G.H., apenas identificada por essas-iniciais;-esmaga uma barata na porta de um atda-roupa. Em panico quando viu o inseto emergir do indo do mével — localizado no quarto da empregada, que se dispusera a arrumar —, agiu instintivamente, por um misto de medo e de 6dio. Mas como € estreito 0 apo- sento, onde se sente presa dentro de fatal armadilha, a mu- Iher espavorida, que vai dar o golpe de misericérdia, defronta-se com o inseto agonizante. E olhando sua viti- ma inerme que também a olha, sob o fascinio da barata que a repugna e atrai, o espasmo de uma nausea seca pre- cede o éxtase selvagem que entao se inicia, absorvendo G.H. na continuidade alucinatéria de uma vida envolvente, em que se vé sendo vista, esvaziada de sua vida pessoal. Toma 0 que eu vi: pois 0 que eu via com um constrangi- mento t&o penoso e tao espantado e t4o inocente, o que eu 59 via era a vida me olhando. Como chamar de outro modo aqui- lo horrivel e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali esta- va, enquanto eu recuava para dentro de mim em néusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama — era lama e nem sequer lama ja seca mas lama ainda timida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentiddo insuportével as raizes de minha identidade (PSGH, 57) Nao é sem resisténcia que G.H. cede a atragao dessa realidade impessoal de que tem, por um contato fisico de todo o seu corpo, um conhecimento participado. Até su- cumbir ao éxtase que a integra a exterioridade da matéria viva, G.H. esta dividida entre 0 desejo de seguir o apelo do mundo abismal ¢ inumano onde vai perder-se, e a von- tade de conservar a sua individualidade humana. Tudo 0 que tem, inclusive a esperanca, ser-lhe-4 atrebatado no do- minio da identidade pura que lhe foi entreaberto: E uma metamorfose em que perco tudo o que eu ti- nha e o que eu tinha era eu — sO tenho o que eu sou e agora 0 que sou? Sou: estar de pé diante de um susto. Sou 0 que vi. Nao entendo e tenho medo de entender, o mate- rial do mundo me assusta com os seus planetas e baratas (PSGH,. 67) Projetam-se diante dela, em figuras mutaveis, os con- trastes inconciliaveis da existéncia — amor € 6dio, acao e inacdo, violéncia e mansidao, crueldade e piedade, santi- dade e pecado, esperanga e desespeto, sanidade e loucu- ra, salvacdo e danac4o, pureza e impureza, liberdade e servidao, o belo ¢ 0 grotesco, o humano € o divino, 0 esta- do natural e 0 estado de graca, 0 sofrimento e a redencio, o inferno € 0 paraiso. Cada um desses pélos se confunde com 0 seu oposto, na visio abismal que reduz as diferen- gas e tende a suprimi-las. Alegria e dor se interpenetram; presente e futuro tornam-se momentos indivisiveis da exis- téncia em ato, idéntica, abolindo a separagao e a divisdo. G.H. passa por um processo de conversdo radical. A experiéncia do sacrificio de sua identidade pessoal impée- The a dolorosa sabedoria da rendncia, traduzida numa ati- tude negativa de despersonalizacao ou ‘‘deseroizagao’’ 60 A despersonalizac&o como a destituic¢éo do individual inutil — a perda de tudo que se possa perder e ainda assim ser. Pouco a pouco tirar de si com um esforco téo atento que ndo se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da pré- pria pele, as caracteristicas. Tudo que me caracteriza é 0 mo- do como sou mais facilmente visivel aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecida por mim. As- sim como 0 momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de-todas as mulheres (PSGH, 176) Além de dolorosa, essa sabedoria € paradoxal, pois quea perda de G.H. transformar-se-4 em ganho. Pela ne- gacao de si mesma, ela alcancara a sua verdadeira ¢ pr6- ptia realidade= a: Toda uma aT metamorfose interior e espiritual resultou, portanto, de um pequeno e doméstico inciden- te. A barata que o provocou nada tem de uma entidade slegbries, Foi a barata “‘teal’’, 0 mero inseto doméstico eriplaneta americana (Linneus), do género dos ort6p- teros e da familia dos blastideos — 0 agente dessa estra- nha converséo, que transtornou a existéncia arrumada de G.H. O confronto da personagem com o animal, ¢ preci- samente.com um animal dessa espécie — cuja ancestrali- dade, que precedeu o surgimento da vida humana na Terra, a natrativa destaca — assinala a maxima oposicio que engloba os demais contrastes expostos no relato de G.H., entre humano e nao-humano, o natural e o cultu- tal. Se o inseto do romance de Clarice Lispector nada pos- sui de alegérico, € porém ambiguo o papel que ele desempenha no desmoronamento do sistema dentro do qual a narradora vivia. Oculta-se em G.H., sob aparéncia de uma vida tran- qiiila, independente, mundana, estavel, situada no topo da hierarquia social (ela mora num apartamento de cober- tura), uma vida secreta que ela conhece apenas de relance e que lhe vai ser revelada no momento do confronto. Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora eu prova- velmente chamava de verdade, ora de moral, ora de lei hu- 61 mana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espetho. Dois minutos depois de nascér eu ja havia perdido as minhas origens (PSGH, 27) Confere-Ihe esse olho humano, exterior e estranho, uma identidade cénica, espetacular ¢ nominal; 0 do ani- mal, inumano, nem interno nem externo, mas expressao de outra existéncia, ariterior e contraria ao cotidiano orga- nizado, subtrai-lhe essa identidade. O senso da ordem, da beleza, do bom-gosto, continham o impeto de G.H. — a sua inquietacao destrutiva, a sua capacidade de violén- cia, que o medo e¢ 0 édio a barata desencadearam. Um passo antes do climax, um passo antes da revolucdo, um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida — que por uma espécie de forte ima ao contra- rio, eu nao transformava em vida; também por uma vonta- dé de ordem. H4 um mau gosto na desordem de viver. E mesmo eu nem saberia se tivesse desejado, transformar es- se passo latente num passo real (PSGH, 27-8) Eo animal que a leva a dar o passo no caminho da desordem, da desorganizacao ¢ da tragédia. Sem ele ja- mais alcangaria o climax de sua existéncia, dividida entre as preocupacoes artisticas ¢ alguns casos de amor. O confronto coma barata marca o inicio de uma rup- tura ndo apenas com essa maneira de viver, mas com a en- grenagem — com 0 sistema geral dos habitos mundanos. Mediador de violenta ¢ completa desorganizagao do mun- do humano, o animal exterioriza as forgas traigoeiras que solapam a estabilidade desse mundo e que desalojam G.H. do circulo da existéncia cotidiana. A partir do momento em que a personagem, a caminho do quarto de emprega- da, transpoe a parte social do apartamento, ja se faz sen- tir, na 4rea de servico, estendendo-se por todo 0 edificio, a ac4o sorrateita de tais forcas estranhas. Dali podem ser vistos, como uma paisagem privada de sentido humano, os fundos do prédio: 0 bojo do meu edificio era como uma usina. A miniatura da grandeza de um panorama de gargantas e canyons: ali 62 fumando, como se estivesse no pico de uma montanha, eu olhava a vista, provavelmente com o mesmo olhar inexpres- sivo de minhas fotografias (PSGH, 35) G.H. reencontra, de chofre, nas figuras desnudas que a empregada gravara a catvao, como ameaca dirigida a pa- troa, numa das paredes do quarto, a presenga ‘‘da nature- za tertivel geral’’ *. O quarto divergia tanto do resto do apartamento que pa- ra entrar nele era como se eu antes tivesse saido de minha casa e batido a porta. O quarto era o oposto do que eu cria- ra. em minha casa, 0 oposto da suave beleza que resultara do meu talento de arrumar, do meu talento de viver, 0 oposto de minha ironia serena... (PSGH, 42) Trazendo a desordem e 0 desequilibrio, no estreito aposento onde a personagem se sente prisioneira, a apati- ¢40 da barata vem consumar um processo subterraneo e fatal de desagregacdo que ja se iniciara. Desse modo, a rup- tura com o sistema jamais sera da inteira responsabilidade da mulher. E-uma espécie de factum que a obriga a descer no seu intetior tumultuado, para encontrar, no mergulho introspectivo do éxtase, uma tealidade abismal e incon- trolavel, sem beleza ou consolo, ao mesmo tempo repulsi- va e fascinante, inseparavel do grotesco. O grotesco é, desde o comego da experiéncia de G.H., a nota dominante. Sobressai nas figuras da parede do quar- to da empregada: um homem, uma mulher e um cao mal- tracados, dando a impressao de autématos ou de mtimias desproporcionadas, ¢ rigidas. Acentua-se, ainda mais, no momento da nausea, com a barata em primeiro grande pla- no, maximamente aproximada: Era uma cara sem contorno. As antenas saiam em bigo- des dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. 1 “Mas algo da natureza terrivel geral — que mais tarde cu experimentaria em mim — algo da natureza fatal saird fatalmente das maos das centenas dos operarios priticos que haviam trabalhado canos de 4gua ¢ de esgoto, sem nenhum saber que estavam cerguendo aquela rufna egipcia para a qual eu agora olhava com o olhar de minhas fo- tografias de praia. $6 depois eu saberia que tinha visto; s6 depois, ao ver o segredo, reconheci que jé 0 vira”” (PSGH, 36). 63 Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata t&o velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tdo velha como salamandras, e grifos, e leviatas. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: l4 estava a boca real (PSGH, 55) E uma visdo envolvente que se faz contato fisico do sujeito com o objeto. Perdendo a distancia que habitual- mente a separa das coisas, a vista decompée e penetra aqui- lo que vé. E eis que eu descobria que apesar de compacta ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como as de uma cebola, como se cada uma pudesse ser levantada pela unha eno entanto sempre aparecer mais uma Casca, e mais uma (PSGH, 56). Mas nessa visao carnal, 0 objeto, despido de sua for- ma familiar e reconhecivel, apresenta-se como um sujeito em face de outro. Ligadas pela existéncia impessoal de que ambas sao os sujeitos, a mulher e a barata ocupam um mes- mo plano ontoldgico: " A descida na direcdo dessa existéncia impessoal pro- duz-se como verdadeira ascese; a personagem desprende- se do mundo e experimenta, apés gradual reducao dos sen- timentos, das representacdes € da vontade, a perda do ew. I A despeito dos diferentes padroes de cultura religio- sa a que se vinculam, as correntes misticas do Oriente € do Ocidente véem no ascetismo uma pratica negativa de purgacao e desnudamento da alma. Seja apenas emprega- do para liberar a alma de suas limitacdes pelo conhecimen- to, ou também para uni-la a divindade 7, 0 ascetismo é um método ° que visa fundamentalmente ao sacrtificio do * Procuramos abranger, por meio dessa conceituacdo tinica, os dois tipos extremos: 0 estado de unido do misticismo cristo, que tem como pressuposto a idéia de Deus co- ‘mo ser pessoal ¢ providencial, quanto a liberacdo budista (Samadhi) da existéncia ilu- s6tia no Nirvana a reconversio braminica do homem ao divino. > ““Lascetisme est une méthode, c'est une lutte, l'ascéte est un athlete, asxein signifie combattre.'" (Roger Bastide, Les problémes de la vie mystique, Paris, Armand Collin, 1948, p. 56.) 64 eu, extirpando o senso de : Propriedade da criatura huma- na em relacdo a si mesma *. A ascese s6 se completa quan- do, pela acdo conjugada de suas téchicas de redugao da sensi bilidade, da inteligéncia ¢ da vontade — que levam ao despojamento i interior e aos diversos graus de vida con- templativa —, da-se.a.superacao das limitacdes egoisticas que separam o individuo da totalidade do real. Nesse sen- tido, a nudez € o esvaziamento ascéticos constituiriam uma antecipacao da morte. ‘‘Este cAlice € motrer a sua nature- za, desnudando-a ¢ aniquilando-a...’’ °, disse Sao Joao da Cruz, resumindo a esséncia sacrificial e tanatica do as- cetismo. Levada em éxtase a conhecer a nudez ¢ o aniquila- mento, G.H. bebe desse cdlice a que se referiu 0 mistico espanhol. Ao longo de sua experiéncia, cessa o império da “vida sentimentalizada’’ com os afetos ¢ paixdes exclusi- vistas. O amor deixa de ser um sentimento limitado, de pessoa a pessoa; a sensibilidade se concentra toda na visio teceptiva; 0 querer, ndo mais movido pela esperanca, aquieta-se e nada anseia. A alma esvazia-se® de tudo quan- to a separa do ser indiviso, verdadeira identidade a que se sente integrada, e que nao mais lhe pertence ’. G.H. chega a mudez de sua natureza e ao vazio do aniquilamento. in effet, quel est le but de la méthode mystique? Tuer le moi! Anéantir ce sens egoiste de la proprieté que posséde tout homme, afin de laisser le champ libre a I’oeu: vre divine de transformation et de depersonnalisation.”” (Roger Bastide, Les problémes de la vie mystique, Paris, Armand Collin, 1948, p. 93.) § San Juan de la Cruz, Subida del monte Carmelo, Buenos Aires, Poblet, 1944, t.1 12, cap. 7, p. 102 ° Esoaziamento: metéfora da nulificagdo, No misticismo especulativo de Eckhart, a te- dugio da criatura ao seu proprio nada, precedendo a aglo divina: “Onde a criatura termina, af Deus comeca a ser. Deus somente pede que vos retireis de seu caminho, enquanto sois criatura, que o deixeis ser Deus em vs”. “Ego, a palavra Eu", diz Eckhart, ““€ adequada apenas a Deus em sua unicidade. Vor significa ‘v6s' na medida em que realizastes a unidade na unicidade de Deus’’. Raymond Bernard Blakney, Ser- mons, em Meister Eckhart; a modern translation, New York, Harper S. Brothers, 1957, p. 127 191. 7 Sob esse aspecto, de importincia capital, essa identificagdo com o ser indiviso aproxi- maa experiéncia de G.H. mais do misticismo oriental ¢ de certas formas do misticismo especulativo cristdo marcadas pelo neoplatonismo. No misticismo cristio sem domi- nante influéncia do neoplatonismo, a personalidade “se transfigura ¢ se fortalece no divino, perdendo seus limites egoisticos proprios, mas permanece distinta””. (V. Vezzani, Le mysticisme dans le monde, Paris, Payot, 1955, p. 56.) 65 Eu estava em pleno seio de uma indiferenca que 6 quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferen- te sono acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que se eu amava, ndo compreendia o que ele queria de mim (PSGH, 127) Mas essa experiéncia de desapossamento do nticleo da individualidade ultimar-se-4, como numa réplica impoten- te do misticismo que também fosse a sua parédia grotes- ca, quando G.H., para confirmar o seu estado de unido, tenta;-ingerindo armassa branca da barata esmagada ®, redimir-se na e com a propria coisa de que participa. Euma espécie de-comunhao negra, sacrilega e primitivista, que ritualiza o sacrificio consumado. Todavia, com esse gesto de reptidio, de extremo desprezo a pessoa, relegada a ab- jecao do imundo, sobrevém, em vez da transubstanciacao, um acesso de incoercivel nojo, tal como no comego. Ago- ra, porém, a ndusea estanca o éxtase a que deu origem. Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora 0 nojen- to na minha boca, e ent&o comecei a cuspir, a cuspir furio- samente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase adocicado como de cer- tas pétalas.de flor, gosto de mim mesma — eu cuspia a mim mesma. sem chegar jamais ao ponto de sentir querentim ti- vesse cuspido minha alma toda (PSGH, 168) Pela repugnancia, G.H. saira de seu mundo e pela repugnancia retorna 4 normalidade do cotidiano. E, como quem volta de uma viagem, voltei a me sentar quieta na cama. Eu que pensara que a maior prova de trans- mutacdo de mim em mim mesma seria botar na boca a mas- sa branca da barata (PSGH, 168-9) Comio-s€ nada tivesse havido, a personagem esta de novo dentro do sistema que transgredira. Nada mudou em torno dela; a ordém das coisas continua imutavel. Ela se tecompée como pessoa € retoma o seu lugar no mundo que a redencao devia ser na propria coisa. E a redencdo na propria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata’” (PSGH, 164) 66 humano, sempre organizado e estavel, sobranceiro a aco, que se tornou inécua e contra a qual se imunizou, das for- ¢as hostis da Natureza. No entanto, a personagem, que retorna ao mundo, € € nao € mais a mesma que fora quando dele foi aparta- da. Sua experiéncia negativa tera sido um processo de trans- formacao interior, consumada, como o dos ascetas, no segtedo da consciéncia solitaria, entre um momento de rup- tufa e um momento de retorno. Essa trajet6ria, que sinte- tiza a linha da aco de PSGH, acompanha, de muito perto, a via mistica, teproduzindo-lhe as imagens tipicas de des- /ocamento-espacial (saida/ entrada), a t6pica do deserto (ari- dez, secura, solidao, siléncio) ¢ a contraditoria visto do inefavel (tealidade primaria, nGcleo, nada, gléria). Ao sair de seu mundo, G.H. entra noutro de absolu- ta solidao ° Se soubesses da solidao desses meus primeiros passos. Néo se parecia com a solid&o de uma pessoa. Era como se eu ja tivesse morrido e desse sozinha os primeiros passos em outra vida. E era como se a essa solidéo chamassem de gloria, ... (PSGH, 63). E “‘a larga vida do siléncio’’ 1°, interior e exterior, siléncio compact que tem a amplidao ea aridez de um deserto", ° Em Sta. Tereza d’ Avila, a imagem de entrada esta bem definida pela outra grande imagem de um caste/o com suas salas e andares: metéfora geral do processo de ascese, compreendendo, até 3 unio, os diferentes graus de vida contemplativa. Unir-se a al maa Deus é como entrar num castelo onde jé estamos. Nesse percurso ha momentos, de “‘estranha soledade"" (ver Castelo interior ou moradas, em Obras de Sta. Tereza de Jesus, Vores, t. 4, p. 191) G.H. transpde ‘os portdes que esto sempre abertos”” para entrar “no seio da natureza’”’ (PSGH, 81). 20 Essa “larga vida do siléncio"” abre-se com ‘‘uma lentido de porta de pedra...”’ (PSGH, 98). A respeito do siléncio, veja-se Meister Eckhart..., cit., p. 107: “"E na quietude, no siléncio, que a palavra de Deus pode ser ouvida. Nao ha melhor via de aproximacio a sua palavra seno através da quietude e do siléncio””. No niicleo da alma, onde a presenca de Deus se manifesta, reside o siléncio central, onde ‘‘a alma nem pensa nem age € nfo produz mais nem uma idéia, seja de si mesma ou de qualquer outra coisa’’ (ibid. , p: 96) ™ “Aquietai-vos ¢ deixai que Deus opere em vés ¢ fazei o que ele quer... Entéo de uma s6 vez Deus manifesta-se em vosso ser e em vossas faculdades, pois v6s estais como sum deserto, despossuidos de tudo quanto vos pertencia’’ (Eckhart, op. cit., p. 115). 67 E na minha grande dilatacdo eu entrara no deserto. Co- mo te explicar? Entrava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um c&ntico monétono @ remoto chama (PSGH, 60) Mas esse deserto da alma antecipa a realidade i impes- soal, sem qualidades ou atributos — ‘‘a mais priméria vi- da divina’’, a “‘gléria divina primaria: © nada a que ela chega, 0 néicleo’? onde ela entra’. S6 os paradoxos po- derao exprimir essa realidade, a mais concreta ¢ a mais abs- trata, visivel e invisivel, que tudo abrange sem nada s ser “Eu chegara ao nada e o nada era vivo e Gmido.”’ E 0 na- da-que-a constitui, € do mada que ela participa. Conver- géncia de todas as coisas, nticleo que lhes € comum, extensao que as abrange, esse nada que G.H. palmilha tem, por ser o lugar dos contrastes extremos, a atdéncia de um inferno e o refrigério de um paraiso. Foi assim que fui dando os primeiros passos no nada Meus primeiros passos hesitantes em direcdo a vida e aban- donando a minha vida. O pé pisou no ar, € entrei no paraiso ou no inferno: no nucleo (PSGH, 81) ™ © nficleo, para Eckhart, sempre 0 nticleo (der Kern) da alma, onde opera a divinda- de, Mas através dele, o mistico acede 3 realidade sem qualidades ou atributos do amor divino. £ 0 '‘abismo sem fundo" de que fala Ruysbroeck, “‘onde todos os nobres espiti- tos ficam suspensos, mergulhados no gozo e perdendo-se 4 medida que af sossobram’” (Y de Ruysbroeck, © reino dos amantes, em Cbuores choisies, Pati, Aubier, 1946, p. 158.) Nesse ponto deparamos com os paradoxos que caracterizam a teologia negativa. Deus nao pode ser concebido por intermédio de qualquer categoria. Estando acima do ser ou da existéncia, Ele nada €. O mada exprime essa realidade sumamente negativa, da qual, como se vé em Dionisio Areopagita, nao se pode falar sendo por exclusio de to- dos os atributos, qualidades e coisas: ... nem a razdo pode atingi-lo, nem nomeé-lo, nem conhecé-lo; nao € nem a escuridio nem a luz, nem 0 falso nem o verdadeiro; nem pode qualquer afirmagio ou negacdo ser-lhe aplicada, pois no obstante possamos afir- mar ou negar as coisas abaixo d’Ele, ndo podemos nem afirmé-lo nem negé-lo, uma vez que a suprema e tinica causa de todas as coisas transcende toda afitmacio, ¢ a sim- ples preeminéncia de sua natureza absoluta esté fora de toda negacio — livre das limi tagbes e acima delas todas’. (Dionysius the Ateopagita, The mystical theology, mysticism; a study and an anthology, F. C. Happold, Penguin, 1963, p. 196.) G.H. esta diante de Deus como diante do mada: ““E agora eu estava como diante Dele € nao entendia — estava inutilmente de pé diante Dele, ¢ era de novo diante do nada. A mim, como a todo 0 mundo, me fora dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo, E vendera a minha alma para saber. Mas agora eu entendia que nao a vendera 20 de- ménio, mas muito perigosamente: a Deus. Que me deixara ver. Pois Ele sabia que eu ‘do saberia ver 0 que visse: a explicagdo de um enigma € a repeticdo do enigma. O que Es? e a resposta é: Es. O que existes? ¢ a resposta é: o que existes. Eu tinha a capa- cidade da pergunta, mas nao a de ouvir a resposta’” (PSGH, 135) 68 Como no éxtase mistico, a personagem percorre, até © seu retorno ao mundo humano do qual saira, a escala dos sentimentos extremos e conttaditérios, que sao esta- gios e figuras da vida espiritual: um ‘‘horrivel mal-estar feliz’’ aproxima-a do inferno; a repugnancia 4 matéria vi- neutra, pré-humana e divina, proporciona-lhe a ‘‘ale- Pere demonjaca ¢ infernal; a dor se lhe tora indiferente, e tem o efeito consolador de um paraiso **. Se a primeira e pior descoberta de G.H. nesse per- curso ‘‘foi a de que o mundo nao é humano e de que nao somos humanos’’, a segunda foi que aquela sua alegria situaya-a no ‘‘pdlo oposto ao pélo do sentimento huma- no cristo Essas duas descobertas se harmonizam com a ditegao da experiéncia de G.H. marcadamente imanentista (assi- milagao da matéria viva com a vida divina), € que mais sé avizinha, como né-lo mostra a negacao da idéia de Deus enquanto ser pessoal, proyidencial e transcendente, assu- mida pela personagem, da tradi¢do oriental, bramanica e budista *°. Para a personagem-narradora, a idéia resultante dessa negacao é da mais alta importancia, porque consti- tui sua softida conquista. Nao escrevera mais a palavra Deus sendo precedida do artigo. Dews, nome proprio por exce- * B acentuado esse aspecto do deleite abismal na experiéncia mistica de G.H. na qual © divino se apresenta como informe e caético — ‘‘um inferno de vida crua’”. O refrigé- tio da visio, consoladora, que € uma espécie de visto supra-ética na qual os contrérios — bem e mal, amor ¢ édio, divino diab6lico — se identificam, sucede a um éxtase orgiaco, @ alegria impura de um Sabath. ‘Eu entrara na orgia do Sabath. Agora sei © que se faz no escuro das montanhas em noites de orgia. Eu se! Sei com horror! gozam-se as coisas. Frui-se a coisa de que sto feitas as coisas — esta € a alegria crua da magia negra. Foi desse neutro que vivi — o neutro era o meu caldo de cultura. Eu ia avangan- do ¢ sentia a alegria do inferno’’ (PSGH, 102). *S De um modo geral, a impessoalidade de Brahma ou 0 vazio nirvinico, ‘‘espécie de abismo inconsciente e divino’’, correspondem mais 4 est realidade priméria coma qual se identifiee:-Sua-unido-coma matéria viva € neutra € como a unio do mistico indu,*“opetada entre todas as almas, no ndo-eu"’ (Vide Emmanuel Aegerter, Mysti- cisme oriental sans dieu personnel, em Le mysticisme, Paris, Flammarion, 1952, p. 119). Essa matéria viva e neutta, que nada delimita, que € em sie por si, € as vezes substin- cia, no sentido spinozista ¢ as vezes inorganizada-e-cadtica (matéria-pfima), anterior a toda forma: Trata-se de unr dissolvente que funde as metiforas do ser primeiro, in- clusive a impulsividade (Schnsuct) da concepgio romantica de Schelling, como cla € vida, numa indeterminagio origindria do atual ¢ do possivel, 69 léncia, torna-se ‘‘o Dews’’, nome comum, substantivo de todas as coisas. Escuta sem susto-e’seny Sofrimento;.o.neutro do Deus é to grande e vital. que eu,.no agéentando a célula do Deus eua tinha humanizado. Sei que é horrivelmente perigoso des- cobrir agora que 0 Deus tem a forca do impessoal — por- que sei, oh, eu sei que é como se isso significasse a destruico do pedido (PSGH, 148) Esse pedido, que corre o risco da destruigao, significa a forma de relacionamento do homem (natureza inquieta ¢ carente) a Deus (principio ¢ fim de sua existéncia) na f€ e na esperanca paulinas *°. Essa forma de relacionamen- to, inerente a re/igio, ao religare, qué uniria o homem a Deus pela promessa de uma outta vida, separa-os também em planos ontolégicos distintos — o humano em estado de caréncia (pecado), buscando no tempo o que somente o divino podera assegurar-Ihe na eternidade (salvacao). En- tre Deus e o homem intercala-se a distancia soteriolégica preenchida pela figura de Cristo, que vai da promessa ao seu cumprimento, do presente, como fe, ao futuro, como realizado da esperanga. c Na-visdo imanentista que a narradora, numa expe? riéncia agénica, sobrepde penosamente ao_salvacionis- mo cristéo mais reinterpretado-do-que-anulado, Deus ¢ o homentsituaf-se-iam_num mesmo plano ontolégico, conservando-se embora a caréncia do Gltimo, j4 com um sentido tragico, posto que a acao providencial e a trans- cendéncia de Deus foram substituidas respectivamente pela existéncia substantiva pura e pela atualidade do ser. De- sapareceria, conseqiientemente, com o laco da promessa, a projeco da esperanga que perfaz a temporalidade do cris- “Porque o Deus nao promete. Ele € muito maiorque isso: Ele € e nunca para de ser’’. Para G.H. essa atuali- *® A f€ como ‘‘o fundamento das coisas que se esperam'’ (Sio Paulo, Hebrews, 11, 1), a crenca na realizacao das promessas de Cristo 70 dade divina é a possibilidade do reino dos céus sobre a terra 17, Desse ponto de vista, a caréncia humana converte-se numa falta necessdria que j4 nos une a Deus, e que deve ser aprofundada, para que cada vez dele mais precisemos, € pata que, com ele, que de nds também precisa **, se rea- lize numa intertroca (a santidade) 0 maximo do ser e da existéncia. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos. Ele deixa. (Ele ndo nasceu para nés nem nds nascemos para ele, nds e ele somos a0 mesmo tempo.) Ele esta ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estéo sendo, mas ele ndo im- pede que a gente se junte a ele e, com ele fique ocupado em ser, numa intertroca to fluida e constante — como a de viver *° (PSGH, 151-2) Aflora, no que ficou exposto, a aguda contradi¢ao desse atualismo mistico de G.H.: Deus € a nossa mais intima pos- sibilidade na medida da intertroca aberta pela caréncia; mas ja € também, na medida em que somos patticipes da exis- téncia substantiva que nos engloba, a nossa realidade. Por um lado, ainda estarfamos a caminho do ser, entre 0 possi- vel ¢ o real; mas por outro, ja estarfamos na plenitude do ser, onde o possivel ¢ o real coincidem. O divino ¢ 0 real se equivalem. ‘‘O divino pata mim € 0 real’’ ?°, afirma G.H.-detendo a contradi¢ao no paradoxo. “E eu ndo quero o reino dos céus, eu no quero, s6 agiiento a sua promessa! A ia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclismica, e de novo perto do demonfaco. Mas € s6 por medo. £ medo. Pois prescindir da esperanca significa que ‘eu tenho que passar a viver, ¢ ndo apenas a me prometer a vida. E isto € o maior susto ‘que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino ja comecou’” (PSGH, 149). *S “Nao necessitais de chamé-lo como se ele estivesse distante, pois que ele espera mais urgentemente do que vs que a porta se abra. Sois mil vezes mais necessirio para ele do que ele para vés"". (Eckhart, The Sermons, cit., p. 121-2.) 19 Nessa passagem sobressai a afinidade da idéia de G.H. com a posigio advaita do hinduismo. Parece haver aqui um eco do Mundaka Upanishad: ‘A alma do homem € um pissaro que permanece com Deus pousado numa mesma drvore e que em seu cenlevo se distrai ¢ esquece..."’. (Troisiéme Mundaka, trois Upanishads, Shri Aurobin. do, Albin Michel, p. 264-5.) 2° Frase que se tepete, ligando o final de um capitulo a0 comego de outro (PSGH. 169 € 170). a 71 Como é paradoxal esse conhecimento que resume a sabedoria dolorosa da narradora, nada sera absolutamen- te verdadeiro ¢ tudo pende da incerteza na experiéncia de G.H. E muito embora a intensidade passional que domi- na o relato dessa experiéncia seja animada por um intuito cognoscitivo **, por um anseio de encontrar o real € 0 ver- dadeito, a verdade que G.H. busca depende, em diltima andlise, como veremos a seguir, da veracidade de sua nar- rativa. Il A experiéncia de G.H., que procuramos circunscre- ver em seu aspecto confessional, abstraindo as circunstan- cias da narrativa, € uma experiéncia multivoca. A via mistica, eixo dessa experiéncia em torno da qual a acao romafiésca se esquematiza, é uma via aberta a miltiplos temas, como a linguagem e a arte, entramados ao da bus- ca espiritual, €- que sao fundamentais a0 desenvolvimento da narrativa. A medida que a sua experiéncia progtide, mais au- menta, para G.H., que recua.a-um-estado de siléncio, impedindo- se de dar nome Aquilo que sente ¢ vé, a dis- tancia entre palavra coisa. Até 0 momento de ver a barata eu sempre havia chama- do com algum nome o que eu estivesse vivendo, sendo ndo me salvaria. Para escapar do neutro, eu hé muito havia aban- donado 0 ser pela persona, pela mascara humana. Ao me ter humanizado, eu me havia livrado do deserto (PSGH, 92-3) O deserto da vida divina € 0 siléncio das coisas que a viséo alcanga, o siléncio da coisa em sua nudez, a que a palavra fos liga e de que a palavra nos separa. 21 “G_H."", observa Luis Costa Lima, ‘“— cujo nome desaparece desde que renunciara a0 individual para forcar a porta inédita do inumano — é sem davida um personagem. A sua trajet6ria, continuando inventada (ficcional), recusa-se portanto a ser encerrada no ficcional”’. (Luis Costa Lima, A mistica ao revés de Clarice Lispector, em Por que Jiteratura, Pets6polis, Vozes, 1966, p. 123.) Uma.yontade.de sentido oposto, diminutiva ¢ redu- tora, devera resguardar a arte, \pois quando a arte é boa é porque tocou no inexpressi- \vo, a pior arte € a expressiva, aquela que transgride 0 pe- \dago de ferro e 0 pedaco de vidro, € 0 sorriso, e 0 grito (PSGH, 144). Em vez da beleza, irradiacdo das palavras, G.H. bus- ca 0 inexpressivo pelo despojamento ascético dos sentimen- tos particulares, equivalendo a uma depuracdo antiestética da prdpria arte. N&o quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensd-la. 0 mundo n&o tem inten¢&o de beleza, e isto antes me teria chocado. no mundo no existe nenhum plano estético, nem mesmo 9 plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus € maior que a bondade com a sua beleza (PSGH, 160). Podemos pois distinguir, em A patxao segundo G.H., uma pauta do discurso que versa sobre o tema da arte € da linguagem — pauta transversal 4 outra, parateolégica, contendo a pratica meditativa sobre Deus e a existéncia, da qual nos ocupamos anteriormente. A primeira indica- nos o movimento da prépria narrativa na direcdo do inex- pressivo,-figurado pela mesma fealidadé nua, vazia e si- lente _da-vida.divina. Agora.aquilo.que me apela e me chama 6 0 neutro. Nao tenho palavras para exprimir, @ falo entéo"em neutro. Te- nho apenas éxtase que também n&o é mais 0 que chamava- mos de éxtase, pois ndo é culminancia. Mas esse éxtase sem culminancia exprime o neutro de que falo (PSGH, 161-2) A busca do inexpressivo e do neutro acha-se instau- tada desde 0 comeco da narrativa, onde principia uma lon- ga ¢ tumultuosa introspeccao, durante a qual G.H. sacrifica a sua ‘‘organizacao humana’’, despojando-se dos bons e belos sentimentos, dos requintes da experiéncia interna, das riquezas € galas de uma vida interior singular, profunda ¢ incomum. Ela adere ao grotesco, que € 0 mais estranho, o mais diferente e oposto a be/ ame. 73 Era-me nojento 0 contato com essa coisa sem qualida- des nem atributos, era repugnante a coisa viva que nao tem nome, nem gosto, nem cheiro (PSGH, 86) Na verdade, o confronto com a barata, ponto de rup- tura do sistema em que a personagem vive, marca 0 inicio de sua experiéncia como autoconhecimento vertiginoso. Mas essa descida a realidade interior abismal e grotesca con- duziu a personagem, também sujeito-narrador, aos limi- tes do aprofundamento introspectivo. A introspeccao, que atinge uma realidade interna transformada em matéria re- pulsiva e impura, converte-se num mergulho escatolégi- co, destinado ao siléncio. A alma, repugnante e infernal, deixa de ser ‘‘un paysage choisi’’ 77. ‘‘Lasciate ogni spe- ranza, voi ch’entrate.”” “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo’’ (PSGH, 71).Tudo quanto decorre da ruptuta do sistema — o dilaceramento do sujeito.e-da-linguagem, o ciclo da vida infernal, a pura identidade, na qual se anula a dife- renga entre 0 sujeito interno € 0 objeto externo, ambos com- penetrados numa visdo reciproca sem transcendéncia — € agora-a-conseqiiéncia de uma transgressao. Fora do siste- ma, a personagem passafia, através do éxtase, da existéncia pessoal a uma existéncia em terceita pessoa, na qual os seres existem os outros como modo de se verem (PSGH, 76). A diferenga entre sujeito ¢ objeto reaparece interior- mente como desdobramento do ew num eé/e, que exerce a acdo de existir. Nem G.H. nem a barata existem sim- plesmente ou apenas coexistem; uma é para si mesma aqui- lo que se espelha no olhar da outra. O ew nao se relaciona com um /#, mas com um ¢é/e que também €. Acio e pai x4o do sujeito, que se torna agente e paciente, a sua exi: téncia € a existéncia do outro que ele ja € em si mesmo. 22 No sentido de recesso, de intimidade, a que corresponde conhecido verso de Verlai- ne (“*Vorre ime est un paysage choisi'? — “\Clair de lune”, em Fétes galantes). 4 Dai o regime reflexivo forcado que a narradora empresta aos verbos sere existir, e a dupla teflexividade do verbo ol/har: 'Q mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas (PSGH, 66) Aquilo que eu chamava de nada era no entanto tao colado amim que me era... eu? e portanto se tornava invisivel co- mo eu me era invisivel, e tornava-se um nada (PSGH, 79). A vida se me é e eu n&o entendo o que digo (PSGH, 182) _O outro (vida, mundo, nada), que o sujeito também_ é, manifesta-se no vacuo do ex desdobrado. Eo outro.co-- mo presenca obliqua, presentia in absentia € eu, que agora passa a existir reflexivamente na forma do mim. Instancia ambigua do didlogo, nem completamen- te pessoal (falo de mim e a mim como se falasse de um ele), nem inteiramente impessoal (falo a mim mesmo co- mo s¢ falasse a um tu). O mim sera, para G.H., o lugar da identidade plena do sujeito e do otro. Na auséncia do primeiro, 0 segundo é 0 ¢u a quem ela fala, como ao ele com quem se identifica. Essa diferenca na identidade, que G.H. experimenta e quer abolir, € 0 que se exprime lapidarmente no fat tuam asi dos hindus (isso que tu és eu sou também) por ela parafraseado: Eu nao sou Tu, mas mim és Tu. S6 por isso jamais pode- rei Te sentir direto: porque és mim (PSGH, 132). O que fi- zeste sou eu? e no consigo dar o passo para mim, mim que és coisa e Tu (PSGH, 139) Essa identidade do ser, que se procura exprimir, assi- nala, ao mesmo tempo, o extremo limite da introspeccdo e da linguagem, j4 confinando com 0 inexpressivo que se busca, e além do qual nada mais pode ser dito. A identi- -dade pura, a plenitude do ser, seria o siléncio inenarravel. Entre o set ¢ o dizer abre-se um hiato, uma distancia Derr que a prépria linguagem assinala e na qual _ ela se move. O regime reflexivo forcado, que nos revel; tam aquelas frases anteriormente destacadas, € 0 indicio do dilaceramento da narradora, presa 4 identidade impes- soal do ser na visao silenciosa que-a-solidariza com as coi-_ 75 sas, e obrigada a aprofundar, pela narrativa, a despeito de sua busca do inexpressivo, a distancia entre ser e dizer, entre a imanéncia e a transcendéncia, entre a realidade e a lin- guagem. Essa direco da narrativa, discurso transversal ao discurso parateolégico, segue o curso da via mistica. Na trajet6ria da ascese, que levaria do pessoal ao im- pessoal, o ex sacrificado da personagem, como sujeito de uma experiéncia de natureza mistica, € 0 mesmo ez como sujeito emissor da | natracdo, uma vez que nesse romance em primeira pessoa’ © narrador e a personagem formam uma s6 € mesma instancia. O sujeito que narra € 0 sujeito que se desagrega. E 4 medida que narra a sua desagregacio, ese desagrega enquanto narra, o sentido de sua narrativa vai se tornando fugidio. A metamorfose de G.H., que ela propria relata, € concomitantemente a metamorfose da nat- rativa. A primeira metamorfose, no rumo da experiéncia mistica, se dé como perda da identidade pessoal; a segun- da, no rumo do siléncio que a busca do inexpressivo im- poe, da-se como perda de identidade da propria narrativa. Ambas se produzem como um esvaziamento — esvazia- mento da.alma e da narrativa: a alma desapossada do ew € a narrativa, de seu objeto. ~~Esse duplo Sevaziamento se reflete na fuga de um mes- mo. significado ** através-da-cadeia metaforica formada por uma série de significantes. Dentto da experiéncia e: tatica relatada, aquilo de que G.H. nos fala € a principio a matéria branca do inseto esmagado e é, depois, sucessi- vamente, /ama, plasma seco, vida e matéria-prima. O-sig- nificado evasivo que nenhum_desses.significantes preen- che, e que se desloca através da representacao insuficiente de cada um, € ora escatolégico, ora teolégico. Da mesma forma, 0 @mido, 0 seco, 0 cru, 0 insosso, 0 inexpressivo, > A fuga do significado acompanha esse esvaziamento como descentramento do ew — entre um mim e um ele, na forma do outro — e da narrativa, espelho que se parte € se multiplica, partindo e multiplicando a imagem do sujeito, investido pela cadeia do discurso como ‘‘glissement incessant du signifié sous le signifiane...””. (Cf. Lacan, L'instance de la lettre dans I'inconscient, Ecrits, Paris, Seuil, 1966, p. 502.) 76 so outros tantos atributos de uma mesma coisa, que tam- bém significa 0 nada ¢ o divino. Mutuamente-conversi- yeis,.o escatolégico ¢ 0 teolégico se confundem no curso do.éxtase.que separou a personagem. de seu mundo. O es- tado de indiferenciacao orgiaco (dionisiaco), desindividuan- do 0 sujeito, ¢ portanto anulando seu esforgo humano, que consiste-em-transcender « as coisas, €.0 impessoal estado de imanéncia que a narradora tem como horizonte a naffa- tiva como ponto zero, inicial e final de seu precdrio movi- mento, ameacado, em cada uma de suas fases, de afundar no siléncio de onde veio e pata onde vai. Em A paixio segundo G.H. a natragao caminha, por assim dizer, 4 contra-corrente da experiéncia narrada. Eo parodoxo egolégico desse romance: a nattag4o que acom- panha 0 processo de desapossamento do ez, ¢ que tende a anular-se juntamente com este, constitui o ato desse mes- mo ez, que somente pela narracdo consegue reconquistar- se. Por isso mesmo, extrema-se aqui o drama da lingua: Esch Sasinlaataaey agénico do sujeito € do senti- ‘ do — espaco onde ele erra, isto €, onde ele se busca — o deserto em que se perde ¢ se reencontra para de novo perder-se, juntamente com o sentido daquilo que narra, num processo em circulo, que termina para recomegar, ¢ cujo inicio nao pode ser mais do que um retorno. O romance comega quando a personagem esta retor- nando da alienagdo prolongada que nos descrevera em se- guida — quando, portanto, se desfez a ruptura que a separou do mundo e que vai ser narrada. Veja-se, no pr6- prio texto, a indicagdo material dessa ruptura (os seis pon- tos precedendo a primeira frase, cujo inicio desarticulado se perdeu) que a origem da narracdo ultrapassou: . estou procurando, estou procurando. Estou tentan- do entender. Tentando dar a alguém 0 que vivi e nao sei a quem, mas ndo quero ficar com o que vivi (PSGH, 9). - 9 DO MONOLOGO AO DIALOGO O. romances anteriores a. A paixio segundo G.H. dispdem deum aparato monologal abundante: em Perto do coragao seluagem, 0 discurso diteto alterna com o indi- reto até assumir, em diversos trechos, sobretudo na parte final, a forma de monélogo interior; em O /usire, o pri- meiro se insinua no segundo, levando a narrativa a apro- ximar-se daquela forma, que vigora de modo pleno em A paixio, ¢ de que se afastam, devido ao distanciamento do sujeito-narrador em relacdo aos personagens centrais, A cidade sitiada e A maga no escuro. Mas em todos esses romances que antecedem A paixdo, inclusive em A cida- de sitiada e A maga no escuro, 0 aparato monologal esta latente no comentario reflexivo que acompanha o desen- volvimento da acdo no primeito, e que chega, no segun- do, onde o ew narrador se transforma em ator, participan- do;-juntamente com o petsonagem, dos acontecimentos narrados, a problematizar a narracdo propriamente dita. Observa-se ainda que, paralelamente a essa _presenga do mon6logo, intermitente quando manifesta, e sempre po- 78 larizadora da narrativa, o dialogo tem carter acidental ¢ desempenha fungao distorciva nesses romances. Esporadico em Perto do coragaéo selvagem e O lustre, quase inexistente em A cidade.sitiada e A maga no escuro, o didlogo-assinala, como se pode constatar naquele quarto romance, um ponto de encontro e de divergéncia entre duas falas que se-desentendem, € cujo reciproco relacionamen- to, tomando a forma de uma conversacao distorciva, nada mais é do que a interferéncia mdtua e exterior de dois mo- ndlogos intercruzados. Conyersacao distorciva e fugidia, a dialogacao padece da incomunicabilidade monadica que fe- cha a consciéncia dos interlocutores. Em vez de aproxima- los, acentua 0 estado de antagonismo entre eles — antago- nismo insuperavel, que faz do didlogo um _mondlogo a dois ' ¢ do. mondlogo, o didlogo da consciéncia consigo mes- ma. Em A paixdo.segundo G.H., a petsonagem, que che- ga visao silenciosa onde o mondlogo i intetior se-esgota, inventa, para garantir a possibilidade da narrativa, a pre- senca de um interlocutor imaginario, de quem finge segu- Tatas.maos. E um estratagema contra a incomunicabilida- de, que nao consegue superar a angiistia da ‘‘consciéncia de si’’, a caminho de uma nova ruptura dentro da prépria narrativa qué se interrompe no final do romance. O que ha de realmente novo em Uma aprendizagem ou O hivro dos prazeres, contrastando com 0s romances an- teriores, € que a narrativa esta polarizada pelo didlogo e nao pelo mondlogo. Embora presa do mesmo dilaceramen- to que afeta Joana e Virginia, Lori, a personagem de Uma aprendizagem, que conhece'a extrema solidao desagrega- dora de G.H., encontra em Ulisses, um professor de filo- sofia, o interlocutor que a devolve a si mesma e 4 realida- de. Ao contrario de um conflito intersubjetivo da prota- 1 monélogo-a-dois nao surge aqui pela neutralidade do ew em face do tu ou por insuficiéncia da subjetividade, como sucede — mostrou-o Affonso Romano de Sant’ Anna — em Vide secas, de Graciliano Ramos. O didlogo-a-um ou 0 monélogo-a-dois, na obra de Clarice Lispector, decorre do fechamento monidico da consciéncia e, portan- to, da subjetividade excessiva: o extremo da consciéncia de si. Vide Affonso Romano de Sant’Anna, Exercicio de analise estrutural: Vidas secas, Cadernos da PUC, Pontift cia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, jul. 1971, n. 6, p. 96. 79 gonista com o personagem principal mediador, vamos as- sistir a uma diferente espécie de relacionamento, como ja nos mostra o pacto firmado entre eles: Ulisses s6-possuira Lori, que jA teve cinco amantes eventuais, quando esta pu- der.a ele entregar-se de corpo .e alma, numa uniao amoro- sa completa-e-sem reserva. A aco desse romance, que ainda corresponde a uma busca, podendo serenfeixada na trajetoria que a protago- nista percorre da solidao 4 comunhao, do auto-isolamento ao abandono na pessoa do outro que a identificara consi- go mesma, poe face a face, em vez de uma protagonista ¢ de um mediador externo, duas consciéncias que se reco- nhecem, a principio de maneira reticente, para se comu- nicarem em seguida através do siléncio ¢ da palavra, da carne e do verbo. Por isso mesmo a narrativa oscila entre umidades mo- nologais e unidades dialogats. Aquelas sio mais numero- sas no comego; estas, mais freqiientes 4 medida que o ro- mance s¢ desenvolve, predominam-no-final. E 0 fecho da obra €. um didlogo: conversacao plena e nfo distorciva en- tre dois ew que se revezam um para o outro na posi¢ao pes- soal do ¢u. A passagem do monélogo ao diélogo, da mo- nologacao interior que fecha a consciéncia a dialogac4o in- tersubjetiva, em que ela se abre a outra consciéncia, € 0 movimento tentado pela romancista em Uma aprendiza- gem, contrariando um aspecto comum de suas obras an- teriores, ¢ procurando vencer, por esse meio, a caréncia es- trutural e intrinseca que lhes impunha, com o monocen- trismo da narrativa, a posicdo absorvente da protagonista, sempre ocupando uma situacao conflitual fechada. Depois da experiéncia de.A paixdo-segundo-G.H., mondlogo interior completo, volta Clarice Lispector, em O hivro dos prazeres, 4 natrativa em terceita pessoa, mas adotando a conivéncia com 0 pefsonagem, que ja tivemos oportunidade de observar. Agora, porém, o regime de tran- saco entre o ew nartador € a personagem nao se opera pe- la alternancia dos discursos direto e indireto, mas, so- 80 bretudo, nas primeiras paginas que constituem a apresen- tacao de Lori, pela variacao do discurso indireto, com sua desigualdade ritmica e seu espagamento, aquela e este cor- tespondendo a uma diferenciacao da temporalidade, des- de 0 passado remoto ¢ impessoal, de onde a personagem vem, ao passado préximo de um acontecimento que a ins- tala em sua intimidade pessoal: , estando téo ocupada, viera das compras de casa que a em- pregada fizera as pressas porque cada vez mais matava ser- vico, embora sé viesse para deixar almoco e jantar prontos, dera varios telefonemas tomando providéncias, ... entéo do ventre mesmo, como um estremecer longinquo de terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do titero, do coragao contraido veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo — e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petrdleo rasgando a terra — veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som al- gum até para ela mesma, aquele que ela nao havia adivinha- do, aquele que ndo quisera jamais e ndo previra — sacudida como a 4rvore forte que é mais profundamente abalada que a arvore fragil — afinal rebentados canos e veias, entéo sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o creptsculo mais tarde tal- vez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensacgées, faz de conta que a infancia era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia nao se abrira e faz de conta que ela no estava em siléncio alvissimo escorren- do sangue escarlate, e que ela ndo estivesse pdlida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, (LP, 10). Esse discurso, que passa de um a outro nivel do tem- po sem perder a continuidade, e que ja é, como a virgula inicial indica, a continuagao de um movimento, esta re- cortado nas unidades monologais de um autocomentario Jrico”, que funde a voz do narrador com a intimidade da personage. ? Assim chama Hermann Bloch a espécie de desenvolvimento em camadas que deu a0 discurso narrativo de A morte de Virgilio (Der Tod des Vergil), ¢ com 0 qual as uunidades monologais do texto de Clarice Lispector tém afinidade. starindadapien> de -desce-se camada por camada.”’ (Hermann Bl ues a propos de la Morte de Virgile, Création littéraire et connaissance, Paris, Gallimard, 1966, p. 178.) 81 Vale salientar que a oscilacao entre as unidades mo- nologais e dialogais ao longo do romance faz-se acompa- nhando as variagGes internas da narrativa, ora reduzida a forma de anotagdo diaria (LP, 27 e 29) ou ao registro de uma Gnica palavra na pagina em branco (28), ora a escrita dentro da escrita (33-7) ou a histéria dentro da histéria (44-6) e 2 transcricdo (131-2). A narragdo evolui lentamen te, part passu com o alongamento da busca que é dificil, com a do tempo da aprendizagem, que é demorado. Co- mo num Einbildungroman, cada episddio retoma o fio de uma mesma experiéncia que continua € cresce. Livro de experiéncia, a obra se compée da aprendizagem que nela vai tomando forma. E de maneira curiosa, essa aprendiza- gem da vida é também uma recapitulacao, uma confirma- cao e uma cortegdo de motivos, situagdes e temas dos ro- mances anteriores da autora, port meio de referéncias dire- tas.¢.alusdes. Desse modo, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres pode ser considerado um romance deroman- ces, mais pafticularmente relacionado com A paixdo segun- do.G.H., de que constitui a réplica ou a inversdo, na base dos mesmos temas. Percebe-se 0 reflexo, 0 eco de G.H. sobre trospeccao abismal, sensibilidade para o ada, € cia pelo siléncio, sedugao do indizivel e do ser impessoal, conceituacgdes de Deus como pura identidade e totalidade césmica. Mas enquanto A paixao foi uma desaprendiza- gem das coisas humanas, O /ivro dos prazeres é, sem abs-/ trair as verdades tragicas daquela experiéncia, uma.recu- peracao_corajosa do.sentido.da-existéncia individual. Em Lori, cuja aprendizagem representa uma .contestagao..a G.H,, tealiza-se, até porque ela também, como a outra, necessita de maos que a segurem, o efetivo retorno ao mun- do ¢.ao.cotidiano, que ficata em suspenso no romance-an- terior. ‘‘O que mais aspira o ser humano € tornar-se um ser humano’’ (LP, 78). Ea condicao essencial de sua hu- manidade € a linguagem. Mal pode | Lori imaginar como seriam as coisas sem as palavras. “Nos nao fomos feitos senao para os pequenos siléncios’’ (LP, 36). Aspiramos 4 82 salvaco € necessitamos invocar.o Deus como-um-zz, a quem dirigit o pedido que nasce da caréncia, ainda que sabendo ‘‘que até agora rezara para um ew mesmo, so que poderoso, engrandecido ¢ onipotente, chamando-o de o Deus e assim como-uma‘crian¢a via 0 pai como a figura de um rei’’ (LP, 68). O estado de graca € um estado de lucidez trangiiila — lucidez do conhecimento que vé, do saber sem esforco captando a beleza como irtadiacao das coisas e das pessoas, mas fora de qualquer espécie de tran- se. Se esse estado nos fosse freqiientemente acessivel ‘‘per- deriamos a linguagem em comum’’ (LP, 151). Toda essa conquista, por parte de Lori, de uma sabe- doria dimensionada 4 vida humana, é articulada por Ulis- ses, cuja posicao mediadora — exercida com. pedanteria ¢ em tom didatico — tem um sentido rfiaiéutico) Pelo dia- logo, compreendendo palavras que silénciame pausas de siléncios que falam, ele conduz a sua aluna nao apenas ‘‘a estar viva através do prazer’’ (LP, 97), mas também ‘‘a en- trar num realismo novo’’ (LP, 139), que a leva a reconhecer- se até nas aspiracGes de liberdade e de justica da vida co- mum. A consciéncia de si mesma no ox/ro, finalmente al- cancada pela entrega amorosa sem reservas, também abran- ge a consciéncia de sua condigao social. A liberdade indi- vidual encontrada, ensina-lhe Ulisses, ‘‘provoca o desen- cadeamento de muitas outras liberdades, 0 que é um risco para a tua sociedade’’ (LP, 175). Pela primeira vez, ainda que de maneira canhestra, abstrata e pedante, a vida social como tema ingressa no romance de Clarice Lispector, ao mesmo tempo que o dia- logo, precedendo e sucedendo 0 ato de amor, aproxima as consciéncias em vez de separa-las. Assim como no co- me¢o a naffativa se apresenta continuando um movimen- to de escrita, ela termina com 0 indicio (dois pontos de continuacao), de que prosseguira, para além do romance, a dialogacao, apenas interrompida, que a polarizou. 6 A FORMA DO CONTO Co: ja se tem afirmado, 0 conto de Clarice Lis- pector respeita as caracteristicas fundamentais do género ad concentrando num s6 episédio, que lhe serve de nucleo, € que corresponde a determinado momento da experién- cia interior, as possibilidades da narrativa. Os contos da autora, enfeixados nas suas trés coletaneas, Lagos de fa- milia, A legiao estrangeira ¢ Felicidade clandestina *, se- guem 0 mesmo eixo mimético dos romances, assente na consciéncia individual como limiar originario do relacio- namento entre o sujeito narrador e a realidade” Mas tam- bém no dominio do conto certas diferenciages especificas quanto hist6ria propriamente dita e ao esquema do dis- ' Massaud Moisés, Clarice Lispector; ficgio ¢ cosmovisio, O Estado de S. Paulo, 26 set. 1970, n. 689, Suplemento Literétio, « Humboldt, 1971, n. 23. ? Das 25 historias de Felicidade clandestina, somente nove ('‘Felicidade clandestina”” “Restos do camaval’’, ‘“Cem anos de perdio”, “‘A criada’’, “’Uma hist6ria de tanto amor"’, ‘““Encarnagao involuntéria”’, ‘‘Ditas hist6rias a meu modo’ ’, “*O primeiro bei- jo’’ € "Uma esperanca’’) sto inéditas. Quinze das dezesseis restantes foram enfeixadas em A Jegiao estrangeira, ¢ tsés delas com titulos diferentes dos que figuram nesse livro: ‘Viagem a Petr6polis'” como “‘O grande passeio’’; ‘A vinganca"’ como "*Perdoando Deus”; ‘‘Desenhando um menino’’ como ‘Menino a bico-de-pena’’. ‘As aguas do mundo’’, que completa o total de 25, € um dos capitulos de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, romance. Entre as inéditas, ‘Uma esperanca” liga-se a0 motivo de “'Esperanga”’, coletada em A /egido estrangeira, parte 2, ‘“Fundo de gaveta’’, p. 235-6. 84 curso narrativo, resultam, como no romance, do ponto de vista-assumido pelo sujeito narrador em relacdo ao per- sonagem. Vejamos primeiramente aquilo que diz respeito a his- t6ria como tal *, Na maioria dos contos da autora, o epi- s6dio Gnico que serve de niicleo 4 narrativa € um momen- to de tensdo conflitiva. Como nucleo, isto €, como centro de continuidade €pica, tal momento de crise interior apa- rece diversamente condicionado e qualificado em fungio do desenvolvimento que a hist6ria recebe. Assim, em certos contos, a tensao conflitiva se decla- ta subitamente ¢ estabelece uma ruptura do personagem com o mundo. Noutfos porém a crise declarada, que rara- mente se resolve através de um ato, mantém-se do princi- pio ao fim, seja como aspiracdo ou devaneio, seja como mal-entendido ou incompatibilidade entre pessoas, toman- do a forma de estranheza diante das coisas, de embate dos sentimentos ou de consciéncia culposa. Tomemos ‘‘Amor’’ (LF), adiante resumido, como exemplo dos contos em qué ha ruptura da personagem com o mundo. De volta a casa, depois de haver feito as compras do dia, Ana, que parece ser uma mulher tranqiiila e em paz consigo mesma, recosta-se ‘‘procurando conforto, num sus- pito de meia satisfacdo"’, no banco do bonde. Ela alcan- gou, nao faz muito, a situacdo estavel em que vive: A cozinha era enfim espacosa, 0 fogdo enguicado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando (LF, 23). Seus filhos cresceram, 0 marido chega em casa 4 hora certa, o jantar se segue ao almoco, na rotina dos dias. Mas, segundo sugerem as primeiras linhas do conto, teria havi- do antes disso um acontecimento desagradvel, que a per- sonagem teme como um perigo iminente que pode repe- tit-se e contra o qual se acautela. A uma parada do bon- > Mantemos, para a anilise do conto, a distingao entre forma da hist6ria e forma do discurso. CE. a distingio de Todorov (récit comme histoire et récit comme discours), ou de J. Dubois, Rhésorique générale, Larousse, Paris, 1970, p. 172 (discours narratif et récit proprement dit). 85 de, Ana vé, de stibito, um cego mascando chicles. Trans- tornada por essa cena, ela deixa,cait ao chdo, com a arran- cada violenta do veiculo, o saco das compras. Est4 por fim inerme diante do perigo que temia, estampado agora na fisionomia grotesca do homem. A tranqiiilidade de Ana desaparece com a sensac¢ao de nausea que lhe vem 4 boca. Ela apaziguara to bem a vida, cuidara tanto para que es- ta nao explodisse. Mantinha tudo em serena compreensao, separava uma pessog das outras, as roupas eram claramente feitas para setem Usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite — tudo feito de modo que a um dia se seguis- se outro. E um cego mascando goma despedacava tudo is- so. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de nausea doce até & boca (LF, 27) Domina-a essa sensagao de nausea quando atravessa o Jardim Botanico para chegar a casa. Ali, em ago nas ar- vores silenciosas, desencadeia-se algo estranho ¢ hostil que o cego lhe revelara, e que agora, fascinada, experimentando um estado de verdadeito éxtase, vé estender-se sobre 0 mundo inteiro, Porém a repentina lembranga dos filhos atranca-a da sedugao desse horrivel espetaculo que ainda continuara, menos intenso, na cozinha de casa, onde Ana procura sair do transe. Os afazeres domésticos envolvem- na de novo como as maos do marido que a seguram, na tranqiiilidade aparente de seu dia-a-dia: E hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que ndo era seu, mas que pareceu natural, segurou a mo da mu- Iher, levando-a consigo sem olhar para trs, afastando-a do perigo de viver (LF, 33) O nticleo da histéria desse conto € aquele momento de tensao conflitiva, extensa e profunda, que se estabele- ceu entre a personagem e 0 cego, € logo entre ela e as coisas todas. O cego é, na verdade, 0 mediador de uma incompatibilidade latente com o mundo que jaz no 4ni- mo de Ana. De certa maneira, a sua funcio mediadora nao difere das arvores do Jardim Botanico, que também exteriorizam o perigo de viver. Essa incompatibilidade 86 est4 em correlacdo com a estranheza e a violéncia da vida, que agridem a personagem através da fisionomia grotesca do cego, quando ela sente a comogao da nausea assenho- tear-se de si. A tensao conflitiva vem, portanto, qualifica- da pela nausea, que precipita a mulher num estado de alheamento, verdadeiro éxtase diante das coisas, que a pa- ralisa e esvazia, por instantes, de sua vida pessoal. Contu- do, pela sua extensao ¢ profundeza, essa mesma crise arma- a de uma percepgdo visual penetrante, que lhe da a co- nhecer as coisas em sua nudez, tevelando-lhe a existéncia nelas represada, como forca impulsiva e ca6tica, € desligando-a da realidade cotidiana, do ambito das rela- des familiares. Momento privilegiado sob o aspecto de des- cortinio da existéncia, maldicdo e fatalidade sob 0 aspecto da ruptura, esse instante assinala o climax do desenvolvi- mento da narrativa. No entanto, ‘‘Amor’’ nao termina com a tensao conflitiva levada aos dois extremos que se tocam, do rompimento com a realidade habitual e da contempla- do extatica. Depois de atingir o 4pice, a hist6ria continua a maneira de um anticlimax. De fato, a situagdo que se desagregou recompée-se no final do conto, quando Ana regressa a casa e 4 normalidade entre os bragos do marido. O desfecho-de“*Amor’’ deixa-nos entrever que o conflito apenas se apaziguou, voltando 4 laténcia de onde emergira. Em outro conto exemplar, ‘‘O biifalo’’ (LF), o desfe- cho da narrativa ocorre no climax — momento culminan- te de uma crise que o amor nfo correspondido causara. Diante de um bifalo, no zoolégico, para onde a conduz seu conflito interior, a personagem vé refletido nos olhos do animal o édio que sente pelo homem que a despreza. O bufalo voltou-se, imobilizou-se, e a distancia encarou- a. Eu te amo, disse ela entéo com ddio para o homem cujo grande crime impunivel era o de néo queré-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao bifalo. Enfim provocado, o gran- de bufalo aproximou-se sem pressa. Ele se aproximara, a poeira erguia-se. A mulher esperou de bragos pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela nao recuou um s6 passo. Até que ele chegou as grades e ali parou. La 87 estavam 0 bufalo e a mulher, frente a frente. Ela ndo olhou a cara, nem a boca, nem os-cornos. Olhou seus olhos. E os olhos do bufalo, os olhos olharam seus olhos. E uma pa- lidez t80 funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dor- mente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e ver- melhos a olhavam (LF, 161) A tensao conflitiva, mediada pela fera, como antes, em ‘‘Amor’’, fora mediada pelo cego, resolve-se na auto- destruigdo da personagem, rompendo definitivamente com a realidade. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingénua, num sus- piro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mutuo assassinato. Presa como se sua mao se tivesse grudado pa- ra sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquan- to escorregava enfeiticada ao longo das grades. Em tao len- ta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu 0 céu inteiro e um buffalo (LF, 162). O conto tem o seu desfecho nesse ponto, que assina- la o climax da histéria. Mas também, como na composi- do anteriormente examinada, aparece em ‘‘O bifalo’’, condicionando.a crise no seu 4pice, 0 comfronto pelo olhar — dessa vez troca de olhares entre a mulher e o animal, que mutuamente se refletem, um vendo 0 outro € se ven- do no outro, um espelhando no outro 0 antagonismo que Os une € que os separa. Como nicleo da histéria, a tensdo conflitiva esta di- ferentemente qualificada nos contos de Clarice Lispector: € transe nauseante (‘‘Amot’’ ¢ ‘‘Os desastres de Sofia’, LE); acesso de cOlera (‘‘Feliz aniversario’’, LF); de ira (‘‘O jantar’’, LF); de édio (‘‘O bifalo’’, LF); de loucura (‘‘Imi- tacao da rosa’, LF); de medo (‘‘Preciosidade’’, LF); de an- gistia (‘‘A mensagem’’, LE) e de culpa (‘‘O crime do pro- fessor de matemitica’’, L). Momento privilegiado, cujo api- ce da algumas vezes o climax da narrativa, essa crise acha- se, via de regra, condicionada por uma situacao de con- fronto, nao s6 de pessoa a pessoa (“‘O jantar’’, ‘‘Amor’’, “‘Lagos de familia’, ‘‘Legiao estrangeira’’), e nao apenas entre pessoas (‘‘Feliz aniversdrio’’), mas também de pes- 88 soa a coisa (‘‘A mensagem’’, ‘‘Amor’’, ‘‘O crime do pro- fessor de matemitica’’, ‘‘Imitagao da rosa’), seja esta um objeto ou um ser vivo, animal ou vegetal. Num bom nt- mero de contos, associam-se a esse confronto, de natureza visual, os dois motivos, que s40 fecorrentes nos romances de Clarice Lispector, da poréncia magica do olhar ¢ do des- cortinio contemplativo silencio: , este interceptando o cir cuit fat 05>) Olag Bbalboit ert A velha de ‘‘Feliz aniversario"’ cospe no chao, de dio, ao olhar, colérica, os filhos maduros, reunidos para festejar- lhe a data natalicia, e que vé como ‘“‘ratos se cotovelan- do”’ em torno dela. O olhar recfproco revela, no conto ‘‘Os lagos de familia’, a mGtua afeicdo inconfessada que une mae e filha. Em ‘‘Os desastres de Sofia’, a personagem narradora fixa os olhos do professor temido, ‘‘olhos nus — que tinham muitos cilios’’, e que a paralisam de ter- ror, como se estivesse diante de uma realidade estranha: Eu era uma menina muito curiosa, e, para a minha pali- dez, eu vi. Ericada, prestes a vomitar, embora até hoje nado saiba ao certo 0 que vi. Mas sei que vi. Vi tio fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anédnimo como uma barriga aberta para uma operacao de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua ca- ra — o mal-estar jé petrificado subia com esforco até a sua pele, via a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta — mas essa coisa que em muda catdstrofe se desen- raizava, essa coisa ainda se parecia tf0 pouco com um sor- riso como se um figado ou um pé tentassem sorrir, ndo sei. O que vi, vi tao de perto que nao sei 0 que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era incompreensi- vel como um olho. Um olho aberto com sua gelatina mével. Com suas lagrimas organicas (LE, 22/23) A semelhanca do que sucede nesse conto, a crise € a visio dramatica coincidem em “‘Amor’’, ‘‘Preciosidade’’ e ‘‘O jantar’’: Ento ela viu, o cego mascava chicles... Um homem ce- go mascava chicles... 0 movimento da mastigacao fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar 89 de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressdo de uma mulher com édio (“Amor’’, LF, 25). Com brusca rigidez olnou-os. Quando me- nos esperava traindo 0 voto de segredo, viu-os répida... Nao deveria ter visto. Porque, vendo, ela por um instante arris- cava-se a tornar-se individual... ("’Preciosidade’’, LF, 105) No momento em que eu levava o garfo a boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pao com vigor e mecanismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando ("'O jantar’’, LF, 91) A excecao de ‘‘Qs desastres de Sofia’’ e de ‘‘O jan- tar’’ os outros contos mencionados adotam a forma da ter- ceira pessoa do singular. As variagGes concomitantes do ti- po de desenvolvimento da histéria até aqui estudado, e do discurso narrativo, que j4 podemos divisar em “‘Os de- sastres de Sofia’’, relacionam-se quase sempre com 0 uso da primeira pessoa, excepcional em ‘‘Lacos de familia’’, e mais freqiiente em ‘‘A legido estrangeira’’ ¢ ‘‘Felicida- de clandestina’’ *. A personagem narradora reflete, no anticlimax que arremata ‘‘Os desastres de Sofia’, ao qual ja nos referi- mos sob 0 aspecto do motivo do olhar, acerca do efeito inesperado, entre amor ¢ entusiasmo generoso, que a sua composicao escolar improvisada causara no professor taci- turno e temido, com quem ela se defrontou, e cujo rosto se descontraira num sorriso grotesco. Por meio da tensao conflitiva que decai apés esse confronto, e que correspon- de aum momento privilegiado de descortinio, Sofia com- preende a sua vocacao de escritora ¢ o destino intranqiiilo que o dom da palavra Ihe impunha. Através de mim, a dificil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. “ Em Lacos de familia, na primeira pessoa, apenas “'O jantar’”. Em A legido estrangei- ra, além de "Os desastres de Sofia’’, "°A reparticio dos paes'’, “'O ovo e a galinha’’, “A quinta hist6ria’’, ‘Uma amizade sincera"’ e, ambiguamente, no preambulo da historia, ““Os obedientes’’. Dente os inéditos de Felicidade clandestina, sio em pri- ‘meira pessoa, além da hist6ria que dé titulo ao volume, ‘*Restos do carnaval’’, “’Cem anos de perdio"’, “‘EncarnagZo voluntaria’’ e ‘‘Duas hist6rias a meu modo" (...] Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo que em mim nao prestava servia a Deus e aos homens. Tu- do 0 que em mim no prestava era o meu tesouro (LE, 28) A narrativa continua, pois, a partir desse momento, como um comentario /irico que franqueia ao sujeito- narrador, reforgando o tom confidencial e memorialista do conto, a interpretagdo do incidente narrado: De chofre explicava-se para que eu nascera com mao du- fa, @ para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te ser- vem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo’ do ho- mem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu nao te doa demais, meu amor, j4 que tenho que te doer, eu sou 0 lobo inevita- vel pois a vida me foi dada. Para que te servem essas maos que ardem e prendem? Para ficarmos de maos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto — uivaram os lobos, e olharam intimidados as prdprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir (LE, 28-9). Mas 0 comentario lirico, como esse trecho da a perce- ber, € uma pratica meditativa. A confidéncia e o memo- tialismo nao diluem a presenga do eu-narrador, que con- trabalanga a ‘‘efusio lirica’ pelo seu enquadramento pa- todistico duas vezes assinalado. Além daquele que marca a identificacAo literaria da personagem, réplica maligna da travessa Sofia, da Condessa de Ségur °, outro indice de pa- r6dia € 0 lobo da hist6ria do Chapeuzinho Vermelho, as- similado ao Jobo do homem. A digressao em torno do acontecimento sob a forma de um comentario que o interpreta, integra-se, por conse- guinte, ao desenvolvimento da histéria. No fim do conto, anarradora, que nele se investiu, divisa a possibilidade de ptincipiar outras histérias: $ O conto de Clarice Lispector adota o titulo que tomou em portugués Les malheurs de Sophie, paste da obra edificante da Comtesse de Ségur (Sophie Rostopchine). As travessutas da irrequieta ¢ inocente Sophie desse livro, no ambiente da alta burguesia fin-de-siécle, nao falta uma certa malignidade infantil que o conto de Lispector revela acentua na sua personagem homénima. 91 E foi assim que no grande patio do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrificio de n&o merecer, apenas para suavizar a dor de quem no ama Ndo, esse foi somente um dos motivos. E que os outros fa- zem outras historias... (LE, 29) O ex natrador €, pois, 0 sujeito € objeto da hist6ria, como repositério de outros contos possiveis, que serao par- tes diferenciadas de uma mesma matéria narrativa atuali- zavel em cada um deles. O comentario litico anuncia 0 re- torno da narracéo que’se limita a interromper. Em vez de aditar-se 4 historia, como um acréscimo caprichoso, o ele- mento expressivo mobiliza a narracdo e condiciona a possi- bilidade de seu recomeco. Em simetria com a alternancia dos discursos direto ¢ indireto nos romances, verifica-se em “Os desastres de Sofia’ uma constante oscilagao do narra- tivo ao expressivo e do expressivo ao narrativo — 0 épico € 0 lirico inter-relacionados € se delimitando mutuamente. JMas a posigdo do ex, assim firmada, como sujeito e objeto da narracao, delimita a historia por uma perspecti- - va memorialista, autobiografica °. Em outros contos po- rém essa posicao € a de um agente emissor, que assegura a hist6ria, como em ‘‘O ovo e a galinha’’ e a ‘‘A quinta hist6ria’’, por associagao e por desdobramento de unida- des narrativas de extensao desigual, um desenvolvimento transubjetivo, independente daquela perspectiva. O primeiro conto, ‘‘O ovo e a galinha’’ (LE), € todo um jogo de linguagem entre palavra e coisa. Como numa ° Em ““Os desastres de Sofia’’, a posi¢Zo do ew, como sujeito € objeto da narragio, tem a franquia da reminiseéncia, 0 tom confidencial de '‘Felicidade clandestina”, “Restos do carnaval’” ¢ “*Cem anos de perdio”’. Essa atitude, também a encontramos em certas narrativas curtas, que tanto podem merecer a designacio de conto ou de crb- nica, — como, entre outros, '‘Africa’” ¢ ‘Berna’ — incluidas em '*Fundo de gaveta’” onde a autora retine aquelas suas composicdes circunstanciais ou inacabadas, e que Ihe interessam por esse aspecto da imperfeigio e da feitura tosca ('*Porque o que presta também nio presta. Além do mais, 0 que obviamente ndo presta sempre me interessa muito. Gosto de um modo catinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajei- tadamente tenta um pequeno v6o € cai sem graca no cho" — ““Fundo de gavera” LE, parte II, p. 127). Desse ponto de vista, e para tais composicdes, a distincdo entre conto e crOnica, absorvida pela flexibilidade que a narrativa curta adquire em Clarice Lispector, tomna-se irrelevante. 92 fantasia verbal onirica, as frases-feitas, semelhantes as dos antigos livros escolares de leitura (‘‘O cao vé 0 ovo? sé as méaquinas véem 0 ovo. O guindaste vé 0 ovo.’’); 0 dispa- rate (“Ao ovo dedico a nacao chinesa. O ovo € uma coisa suspensa. Nunca pensou.”’); a patédia filos6fica (‘‘Sera que sei do ovo? E quase certo que sei. Assim: existo, logo sei.”’); 0 paradoxo (‘“O que eu nao sei do ovo € 0 que realmente importa. O que eu nao sei do ovo me dé 0 ovo propria- mente dito.’’) sucedem-se, alternam-se e misturam-se num ritmo febril e alucinatério, retomado de paragrafo a para- gtafo ao longo de cadeias de significantes em que a pala- vra ovo € reiterada: Otho 0 ovo com um sé olhar.../ Ver 0 ovo é impossivel.../ 0 ovo ndo existe mais... 0 ovo é uma coisa suspensa.../ O ovo 6 uma exteriorizagao. ../ 0 ovo 6 a alma da galinha.../ 0 ovo € coisa que precisa tomar cuidado.../ Com o tempo 0 ovo se tornou um ovo de galinha... ete. etc Essas cadeias de significantes sio, ao mesmo tempo, unidades narrativas que se desdobram dentro de cada pa- ragrafo ou de pardgrafo a paragrafo, reiterando o mesmo nome. De uma a outra cadeia, fala-se de uma s6 coisa, de um 86 objeto; mas o significado se evade quanto mais cresce a teia das definigdes por eles formada em torno do objeto ovo, definido de diversas maneiras. Dessa forma, como uni- dades narrativas que se associam, as cadeias constituem as- pectos desdobrados de uma ‘‘meditacao visual’? "dirigida a um objeto e dele separada pela seqiiéncia infindavel de frases que o envolvem, partindo da reiteracdo das palavras que o nomeiam. Ainda tendo um nome, ainda sendo “‘ovo’’, aquilo de que repetidamente se fala, passivel de receber outros nomes, sera até o fim do conto excedenta- tio aos simbolos destinados a circunscrevé-lo, reaparecen- do sempre, objeto visivel de significado indizivel, através 7 Expressio usada pela autora em A paixad segundo G.H. para designar o carter das visdes encadeadas da personagem. 93 dos elos que compéem a teia lingiiistica das definigdes que © transportam. Por esse jogo de linguagem entre palavra e coisa, 0 ovo ascende a categoria de acontecimento revelador, aber- to sobre uma tealidade indeterminada que ele representa — tealidade a qual a natradora se acha presa desde o ini- cio de sua descrigéo e em face da qual ela propria se narra. Como no relato de G.H., corre pela evasao do signi- ficado que acompanha o movimento do ew a busca de si mesmo, ¢ em tensa¢conflitiva com o objeto que o fasci- na, o desenvolvimento parabélico da narrativa. Comecei a falar da galinha e ha muito j4 nao estou falan- do mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo (LE, 61) Tanto 0 ovo e a galinha como a narradora, que assume em certo momento a funcdo impessoal de um 76s coletivo (Somos 0 que se abstém de destruir, e nisso se consomem Nés, agentes disfarcados e distribuidos pelas fungdes me- nos reveladoras, nds as vezes nos reconhecemos) (LE, 61), sao figuras de igual relevo no plano exemplarista do con- to, que é uma parabola do carater instrumental do amor e da vida, a servico da existéncia, forga latente, misteriosa € cega: Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sono pre- paro o café da manha. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas criancas que brotam de varias camas, arrastam cadei- Tas e comem, €.0 trabalho do dia amanhecido comega, gri- tado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que 6 0 nosso sal e nds somos 0 sal do dia, viver é extrema- mente toleravel, viver ocupa e distrai, viver faz rir (LE, 63) O desdobramento da histéria — evidentemente sem enredo — produz-se como desdobramento da visdo da per- sonagem, sujeito e objeto da narrativa, O eixo de desenvolvimento de ‘‘A quinta hist6ria’’ (LE) é também a personagem que narra. Um s6 aconteci- mento (a morte de baratas) € visto de quatro maneiras dife- tentes, que correspondem a quatro hist6rias distintas, cada 94 uma dessas maneiras comportando uma cadeia auténoma de significantes relacionados com as demais através do sujeito-narrador, lugar-comum onde elas se articulam e por onde os significados se evadem. A primeira hist6ria (‘‘Como matar baratas’’), anedota ou fabula em estado puro, enquanto registro de um acon- tecimento, resume-se na proposi¢ao inicial do conto que comeca assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu minha queixa. Deu-me a receita de como matad-las, Que mis- turasse em partes iguais acucar, farinha e gesso. A farinha e 0 acticar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro de- las. Assim fiz. Morreram (LE, 91) Na segunda hist6ria, denominada ‘‘O assassinato’’, © mesmo incidente cotidiano se transforma numa cena de cruel mortandade. Na terceira, ‘‘Estatuas’’, a mortanda- de assume as proporcGes de uma catAstrofe universal (a he- catombe de Pompéia), de que a narradora participa como testemunha e agente. Na quarta, que nao tem titulo, as baratas estotricadas de gesso representam o molde interno em que a personagem se mira: Eu iria ent&o todas as noites renovar o acuicar letal? co- mo quem jé néo dorme sem a avidez de um rito... Estremeci do mau prazer a visdo daquela vida dupla de feiticeira. E es- tremeci também ao aviso do gesso que seca: 0 vicio de vi- ver que rebentaria meu molde interno (LE, 93) Segundo esse esquema, andlogo ao procedimento no- velistico do encaixe °, poderia desenvolver-se, repetindo- se a mesma proposicAo inicial, além de uma quinta histé- tia, um niimero indefinido de relatos. O conto termina precisamente quando se esboca o comeco de nova cadeia, que se denominaria ‘‘Leibniz ¢ a transcendéncia do amor na Polinésia’’: ‘‘Comeca assim: queixei-me de baratas’” (LE, 94), ® Mecanismo do encaixe, como nas Mil e uma noites, mas numa perspectiva distinta, que seria a da causalidade psicol6gica. Ver Taveran Todorov, Os homens — narrativas, em As estruturas narrativas. Sao Paulo, Perspectiva, 1970, p. 121-3. 95 A diferenca entre esse conto e ‘‘O ovo ea galinha’’ est4 na extensdo do esquema de desenvolvimento que liga os dois entre si: no primeiro, a hist6ria resultou da asso- ciagdo entre cadeias auténomas de significantes como uni- dades narrativas minimas; no segundo, as quatro ou mais possiveis hist6rias desencaixadas correspondem a uma s6 historia, que se desdobrou em cadeias auténomas de sig- nificantes, como unidades narrativas minimas. Num e nou- tro caso, o Ultimo elo dessas cadeias, que condiciona a as- sociagdo no desdobranrento, € 0 sujeito que se narra, fa- zendo de sua experiéncia a condigao de possibilidade de todas as historias °. ° Em ““Duas historias a meu modo'” (Felicidade clandestina), essa experiéncia esti con- dicionada por um texto prévio, de Marcel Aymé, parafraseado e glosado, como exerci- cio de escrita (FC, 154). I | DA CONCEPCAO | DO MUNDO | A ESCRITURA | ga UMA TEMATICA DA EXISTENCIA D. Perto docoragao selvagem a O livro dos pra- zeres € possivel seguirmos uma linha de-continuidade te- miética, que os contos incluidos nas principais coletaneas da autora ainda tornam mais nitida. aaa ‘Autoconhecimento e expressao, existéncia ¢ liberdas de, contemplacao € acao, linguagem ¢ realidade, 0 ew.e_| ° mundo, conhecimento das coisas e relacdes intersub- jetivas, humanidade e animalidade, tais sio os pontos de referéncia do horizonte de pensamento que se descortina na ficco de Clarice Lispectog, como a diandia intrinseca de uma obra na qual € relevante a presenca de um intuito cognoscitivo, espécie de eros filos6fico que a af Mas a permanéncia desses temas nas diversas partes que a cons- tituem, nao poderia garantir, por si s6, uma concep¢ao do mundo. O que importa, independentemente da genera- lidade com que ai se apresentam, € a modulacao que lhes impdem determinados motivos, entrevistos nas analises da primeira parte deste ensaio, e que aparecem freqiientemen- te combinados ou de maneira isolada, mas com a insistén- \ cia de Jeitmotifi que atravessam a obra, repetidos de 10-| | mance a romance ou de conto a conto: a inquietacao, 0 | desejo de ser, 0 predominio da consciéncia reflexiva, a vio-)) | éncia interiorizada nas relagdes humanas, a poténcia ma- gica do olbar, a exteriorizagdo da existéncia, a desagrega-) ¢ao do cu, a identidade simulada, 0 impulso ao dizer ex-\ bressivo, 0 grotesco ¢/ou 0 escatolégico, a néusea e 0 des- cortinio silencioso das coisas. SOS i Esses motivos, que diferentes situagées reconfiguram, | ndo apenas se relacionam diretamente com os pontos de | teferéncia mais gerais da obra, mas se articulam entre si | formando a totalidade significativa de uma concepgao do | mundo. Nenhum desses motivos tem pleno sentido se des- | ligado dos outros, e cada qual, dentro do conjunto por to- dos formado, remete-nos 4 unidade do pensamento comum \ que os engloba, e por onde passa a linha de continuidade |tematica da obra de Clarice Lispector. : na assim compreendida é.uma_tem4tica mar- cadamente existencial. Muitos de seus registros especificos estdo intimamente ligados, conforme veremos nos capitu- los seguintes, a certos t6picos da filosofia da existéncia, e mais particularmente ao existencialismo sartriano. Admi- tir esse relacionamento nao implica admitit-se a interfe- réncia direta (ou a influéncia) de uma dada filosofia sobre a esctitora, para explicar (ainda que essa influéncia pudes- se ser determinada como matéria de fato) os aspectos pe- culiares de sua criacdo literatia. Trata-se de uma afinidade concretizada no ambito da concepgao do mundo de Clati- ce Lispector, mas que nao determina de fora para dentro essa concepcao, E existencial a tematica que Ihe serve de arcabouco. Mas o sentido global que:essa-totalidade signi- ficativa fos oferece ja diverge — e largamente — quer da filosofia darexisténcia centrada em torno da idéia de exis- téncia como realidade Factica, quer do-existencialismo pro- priamente dito, vinculado’ao pensamento de L'Evre et /e Néant. A divergéncia esta na perspectiva mistica que pte- valece afinal e redimensiona os nexos tematicos formado-_ tes da concepcao do mundo de Clarice Lispector — nexos 101 que comecam a ser repensados e desfeitos em O /vro dos prazeres, ‘romance de romances’’, como o denominamos (cf. ‘Do monélogo ao didlogo’’), onde a tematica da obra reflui, para ser reavaliada e suspensa a uma negacao imi- nente que ameaca rompé-la. Apreciaremos, nos capitulos seguintes, os _motivos constantes $ que se | fepetem nos contos e romances da au aut ta. Mas como esses motivos, que conduzem a-experiéncia interior, também qualificam a conduta das personagens, attibuindo a todas, independentemente das situagGes par- ticulares que ocupam, uma mesma configuracdo que as de- fine do ponto de vista de suas relacdes com os outros ¢. com as préprias coisas, comecatemos pela descricao do modo de ser afetivo que as caracteriza, para chegarmos, por fim, ao mundo em que se movimentam. S6 entao poderemos entrever, na articulacgéo dos motivos, a forma de sentir e de pensar que constitui a totalidade significativa de uma concep¢ao do mundo. Q.valor da nduseajem Clarice Lispector remete-nos a uma atitude petante as coisas ¢ o ser em geral, que « diferé da sartriana\Gonforme veremos, a perspectiva sue plantaa existencial inerente 4 tematica da obra. Mas em conseqiiéncia disso, a subjetividade, e portanto a experién- cia interior, perderao o privilégio ontolégico que o exis- tencialismo propriamente dito lhes outorga. As relages praticas parecem consolidar e agravar, no mundo de Cla- tice Lispector, uma alienagdo sem remédio enraizada na propria existéncia individual. 2 A PAIXAO DA EXISTENCIA E DA LINGUAGEM I /m_primeito trago comum a salientar nas per-_ sonagens de Claric -Lispector seria a violéncia represada- dos sentimentos primarios e destrutivos — cé/era, ira, rat- ?@,-6dio — que subitamente explodem. Ao ver o marido que escreve, Joana, talvez de inveja, sem nenhum motivo aparente, odiou-o com uma forga tao bruta que suas m&os se fecharam sobre 0 bra- ¢o da poltrona e seus dentes se cerraram (PCS, 96). No conto ‘‘O j ) jantar’’, o espetaculo de um velho co- mendo desperta a ira do personagem que descreve a cena. Um simples olhar, portanto, desencadeia impulsos de agressao € destruicao: a perplexidade de Ana, em ‘‘Amor’’, diante do cego que masca chicles, est4 carregada de dio; Luctécia Neves, de A cidade sitiada, sente raiva ao olhar a nuca de alguém. Esses sentimentos, que se acumulam interiormente, abrem possibilidades 4 Aybris, a um exces- 103 so, a um arrebatamento de que essas individualidades ne- cessitam para afirmar-se, ainda que isso nao as conduza a verdadeiros atos. Mesmo quando amam, elas precisam da célera (L, 35). E uma ‘‘grande célera’’ que leva Mar- tim ao crime. Uma ‘‘sGbita c6lera’’, uma ‘‘escura raiva no peito’’, acompanham as decisdes de Vit6ria *. Para que- brar o tédio e a monotonia da vida em Sao Geraldo, Lu- crécia Neves tenta ‘‘excitar a sua ira até chegar 4 sua propria forga’’ (CS, 81). Impulso cruel e vivo (L, 79), que as vezes da prazer (L, 152), a ira manifesta-se em Joana de Perto do coragao selvagem, como sensagao de liberdade. Vé-se, pois, que esses sentimentos fortes e violentos, que polarizam a vida afetiva em constante metamorfose, esto sujeitos a bruscas transformagoes. A célera € 0 rever- so do amor *. Tormentoso, tiranico e maligno, o amor traz sempre uma ‘‘vontade de édio’’, ¢ o 6dio, uma vontade de amor. Na raiva de Vitéria, que ‘‘se transformara dian- te do homem concreto (Martim) em édio mortal de amor”’ (ME, 178), esses contrarios se interpenetram. Ermelinda nao deseja Martim porque o ame; ela o ama porque dese- ja ama-lo. Assim, um sentimento nasce e se identifica quando nomeado, como objeto do desejo. Mas ao ter um nome, j4 se modifica ou se extingue na expressao verbal que lhe deu forma. Quebrando o encanto de suas relagdes com Virginia, Vicente notou imperceptivelmente que ndo a amava, que a amava talvez exatamente antes de dizer: ‘eu te amo’’ (L, 235). As palavras amortalham os sentimentos que elas pr6- prias partejam. O dizer modifica o sentir: * “Até que esta, em siibita célera, despertara afinal, ¢ recomecara a sua propria vida"” (ME, 55). “A principio a obediéncia com que ele a ouvia deu a Vitéria uma escura raiva no peito” (ME, 69). ? “4 minha célera — que é ela sendo reivindicagdo? — a minha célera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cdlera é 0 reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho 4 dogura do mun- do, entéo chamarei minha ira de amor” — ‘Uma ira’’ (LE, 196). 104 Desse modo, sujeitas 4 roda de estados mutaveis que as encadeiam num fluxo e num refluxo imprevisiveis, as © petsonagens de Clarice Lispector sao mais pacientes do que y | agentes de uma experiéncia interior que nao podem con- aii e onde nada ha de permanente.a-nao ser a paixao da existéncia que também lhes € comum. Essa paixo a todas qualifica e a todas iguala, como se formassem uma s6 figura humana inquieta e perplexa diante da realidade factica da existéncia *, objeto das re- flexdes de Joana: Mesmo sofrer era bom porque enquanto 0 mais baixo o sofrimento se desenrolava também se existia — como um rio aparte (PCS, 41). Mas a existéncia que a singulariza como um rio apar- ze € sem justificativa e por isso tragica. Como era horrivel, puro e inapelavel viver (L, 315), exclama outra personagem. Aflorando de consciéncias so- litatias, paixdo de tal ordem, baixo-comtinuum da intros- peccao, € neutralizada pela vida diaria e reavivada pelo siléncio. Mas é que basta silenciar para sé enxergar, abaixo de to- das as realidades, a unica irredutivel, a da existéncia (PCS, el Através de todas as situagées particulares, de todos os estados mutaveis, de todos os acontecimentos externos, per- dura 0 interesse apaixonado pela existéncia *, que nivela exemplarmente as personagens todas. Onde quer e como quer que se situem, elas j4 se encontram situadas no mundo por esse nexo afetivo preliminar que comporta, para o exis- * 0 abandono do ser humano enquanto Dasein. Cf. Heidegger, Ser e tempo, cap. I, § 29, primeira secdo. \c | *No sentido kierkegaardiano: “Para o'existente, existir € 0 supremo interesse, € | o interesse pela existéncia é a realidade’’. ““Existir, se nao entendemos por isso um simulacro de existéncia, ¢ algo que nao se pode fazer sem paixao””. (Ver Post-scriptum aux mieltes philosophiques, Paris, Gallimard, cap. 3, p. 206-10.) 105 tente, a condicao de abandono, de ser derelicto *, sem ou- tra realidade além da existéncia factica. O tespaldo do ex romantico ° nao mais sustenta es- sas figuras, psicologicamente inclassificdveis, carentes da- quele modo constante de sentir, pensar ¢ agir, que define ocarater, e abrigando, como o Harry Haller, de Hermann Hesse, ‘‘milhares de contrastes entre inumeraveis posicdes’’ e sendo, como ele, “um-feixe. de eus disparatados’’ ’. Mas pela introspecg4o que as subjuga, fadario da es- tirpe lispectoriana, ea de acuidade reflexiva — ‘‘ter- rivel doenca’’, como a chamou, num autodiagnéstico, certa figura de Dostoievski ®. Mas essa enfermidade lhes é ino- culada pela paixao da existéncia, matriz-da-inquietagao por todas grandemente partilhada, e desembocando no dese- jo de set como um misto de impeto libertario, de impulso ao dizer expressivo-e-de aspiracao ao conhecimento, que pela primeira vez encontramos na Joana de Perto do cora-' ao selvagem. II A acuidade reflexiva e a inquietacao formam, nas per- sonagens de Clarice Lispector, os elos inseparaveis da ‘‘cons- | ci€ncia de si’’. Espectadoras dos seus proprios estados e atos, que tém a nostalgia da espontaneidade, enredadas em suas vivéncias, essas personagens obedecem a necessidade de um aprofundamento impossivel, e perdem-se entre os milti- plos reflexos de uma interioridade que se desdobra como superficie espelhada e vazia em que sé miram. Nelas, a * A expressdo ser derelicto ¢ aqui usada em aproximacdo a abertura do Dasein co- mo ser que se encontra existindo num certo estado de animo (Geworfenheit). (V. Heidegger, Ser e tempo, cit.) © Com a perda do roméntico, aparece, segundo explica Wylie Sypher, o tema exis- tencial da Geworfenheit: “the state of being “‘thrown”” into a world where we do not ‘belong’ (Wylie Sypher, The romantic self, em Loss of the self in modern lite- rature and art, New York, Vintage Books, p. 28.) | Hermann Hesse, Le loup des steppes. (Traité du loup des steppes, XII, XXII.) “Possuir uma consciéncia com demasiada acuidade é uma terrivel doenca’” (Dos- toievski, A voz subterrénea). | 7k Iconsciéncia reflexiva é ‘‘consciéncia infeliz’’ °. Quanto mais sabem de si menos Vivem, € mais se exteriorizam. E tu-_ do o que finalmente conhecem de si mesmas ja é a ima- gem de um ser outro com que se defrontam. ~~ Ocspel mo mediador ambiguo do desdo-- bramento da consciéncia de si *°, Refletente ¢ refletido da_ realidade interior, assinala o momento no qual, através do __ confronto com a imagem do préprio corpo estranhado, que _ parece servir de veiculo a forcas obscuras ¢ 4 sensagao de_ liberdade *', a identidade natcisista se transforma em al-_ tetidade. Como para Joana de Perto do cora¢ao selvagem, que se vé absorvida numa corrente espessa € vagatosa den- tro dela, borbulhante como um quente lengol de lavas (PCS, 71), realiza-se, diante do espelho, a experiéncia de um desdobramento. Interiormente, esto pois as persona- gens de Clarice Lispector, que se desdobram, em perma- nente conflito. Nas suas relagdes entre si e com as coisas que as cercam, o conflito interno se torna antagonismo externo. O /ustre focaliza, de maneira nitida, a irredutibilida- de hostil de uma consciéncia a outra, como forma de rela- cionamento intersubjetivo, seja na amizade ou no amor. No convivio das duas criangas, que a primeira parte do roman- ce descreve, ha, conforme j4 observamos (cf. 1? parte, cap. 1) ‘A narrativa monocéntrica; item II), aquela solidarieda- ° “0 que importa afinal’’, pergunta Joana, ‘‘viver ou saber que se esta vivendo?”” (PCS, 60). A falta de espontaneidade pelo continuo desdobramento importa na “onsciéncia infeliz’”, no sentido hegeliano de ‘‘consciéncia cindida no interior de * (cf. Fenomenologia do Espirito, LV, 13, ‘‘Liberdade da consciéncia de si”; “Es- toicismo’’, ‘‘Cepticismo e a consciéncia infeliz’”), *° espelho significa para as personagens de Clarice Lispector um momento de provagao e de confirmacdo: “Quando me surpreendo ao fundo do espelho, assusto- me’ (PCS, 59). “Sair dos limites de minha vida, nao sabia ela o que dizia, olhando-se no espelho do quarto de héspedes”” (L, 78). Também G.H. defronta-se com 0 es- pelho, antes da crise: ‘‘Eu vivia mais dentro de um espelho"” (PSGH, 27). 1¥ «Quando me surpreendo ao espelho nao me assusto porque me ache feia ou bo- nita. E que me descubro de outra qualidade ... Também me surpreende, os olhos abertos para 0 espelho palido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa”” (PCS, 59).

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