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Maravilha, 13 de abril de 2010.

CARTA À EQUIPE DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL DE MARAVILHA

Caros ex-colegas:

No início da tarde de ontem assinei minha rescisão, deixando o cargo de Diretor


de Cultura. Agora, madrugada, ainda sem dormir, peço licença para ao menos expressar
o quão perplexo me encontro diante tal fato.

Neste tempo que fiquei à frente da gestão cultural de nosso município,


empenhei-me ao máximo para fazer o melhor trabalho possível, inserindo uma real
percepção sobre a amplidão da área e a importância da Cultura na sociedade. Muito foi
feito em apenas um ano, e muito está encaminhado. Infelizmente, fui tolhido de
prosseguir, devido a um motivo que até agora tento compreender.

A Cultura se faz, principalmente, de produções artísticas e intelectuais. Sou um


artista. Há muito tempo faço teatro, escrevo poesias, contos e crônicas, sou desenhista e
também produtor audiovisual.

A maioria da população de Maravilha conhece meu trabalho “1984 – Quando o


Céu Derramou”, um documentário que conta sobre o vendaval que devastou a Cidade
das Crianças na década de 80. Além dele, trabalhei em mais oito filmes, sendo que
todos concorreram em importantes festivais de cinema no país. Fui premiado, por
exemplo, como melhor fotografia e melhor filme pelo curta-metragem “Acerto de
Contas”, onde fui diretor de fotografia e atuei, interpretando um violento oficial do
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), nos tempos de ditadura militar. O
filme em questão tem cenas de violência, assassinato e estupro.

Ocorre que, no mês de fevereiro deste ano, em período de férias, produzi um


curta-metragem que conta a história de um personagem acometido pelo distúrbio
psicológico do exibicionismo, que em sua solidão, procura uma forma de obter prazer
desenhando um par de olhos a fim de, supostamente, observar-lhe enquanto se
masturba. Um trabalho do qual me orgulhei muito, assim que o finalizei, pois consegui
produzir sozinho uma obra audiovisual de extrema qualidade técnica e artística,
obedecendo a criteriosos detalhes de fotografia, planos e angulações de câmera,
iluminação, cenografia, trilha sonora, montagem e edição. E, além de produzir o filme,
também atuei, interpretando o personagem que protagoniza o enredo. O filme, chamado
D’EXIBICIONISMO, é uma obra de ficção. As cenas foram filmadas em diversos
planos e repetidas inúmeras vezes. É um fato óbvio, até para o mais leigo, que se trata
de uma simulação. O filme em questão foi produzido para ser inscrito no 18° Gramado
Cine Vídeo, importante mostra competitiva brasileira e latino americana, e uma vitrine
para os produtores independentes.

O Cinema é uma arte, que busca retratar o comportamento humano. Cenas de


masturbação, por exemplo, são notáveis. Cito aqui alguns exemplos, como o caso dos
filmes “A Lei do Desejo” e o aclamado “Kika”, do diretor espanhol Pedro Almodóvar;
os renomados “O Silêncio dos Inocentes”, de Jonathan Demme, e “Babel”, de Alejandro
González Iñarritú; e o belíssimo filme brasileiro “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando
Carvalho. Sei que nada adianta citá-los, pois acredito que nenhum dos senhores deva ter
visto qualquer uma destas obras. O gosto e a compreensão pela arte é, infelizmente, rara
em Maravilha.

O fato é que fui impelido à deixar o cargo de diretor de Cultura, por ter
produzido uma obra onde interpreto um homem com distúrbios sexuais, e simulo
masturbação.

Entendo as preocupações políticas da equipe, com relação ao zelo pelo nome e


trabalho do prefeito Orli Berger, pelo qual dispenso enorme carinho, admiração e, o
principal de tudo: respeito.

Mas fui injustiçado. Sinto-me na condição de alguém condenado por um crime


que em momento algum tenha cometido! O tal Conselho Político da Administração
Municipal de Maravilha, julgou-me sem ao menos, dar-me o direito à defesa. Passei a
ser um reles “punheteiro”, não valendo de nada todas as ações e o trabalho que muito
contribuíram para a boa imagem e reputação do trabalho desta gestão. Se é questão
política decidir o que mantém uma boa imagem que vá garantir a reeleição, é também
questão política defender um colega de equipe, ou então – ao menos – dar-lhe o direito
de se defender. Mas não tive este direito. Ainda em viagem fui julgado e condenado, por
um júri que não esteve presente na hora da sentença, deixando a árdua tarefa de me
dispensar de meus serviços ao nobre e honroso Orli, o mesmo que confiou em meu
nome e me conhece, desde criança, e que sempre apostou em minha capacidade.

Sou um artista. Assim como o cantor canta, o desenhista desenha, o escritor


escreve, o cineasta faz filmes. Já ocupava este ofício antes de assumir, e é natural que
quando me sobrou um pouco de tempo, eu fosse produzir minha arte.

Não admito que meu caráter, minha honra e honestidade, e a minha capacidade
profissional sejam julgadas pelas cenas de um personagem fictício!

Foram centenas de dias trabalhando e pensando – na verdade vivendo para o


meu trabalho frente ao setor de Cultura de nosso município. Assim como todos os ex-
colegas, eu também acordava cedo, trabalhava até mais tarde, levava trabalho pra casa...
E, diferente da maioria dos ex-colegas, ainda passava os finais de semana trabalhando.
Isto me proporcionou reconhecimento, tanto da sociedade, quanto dos colegas da área.
Fui eleito presidente do Colegiado de Cultura e Turismo da AMERIOS, coordenador do
Comitê Temático de Turismo, Cultura e Desporto da SDR de Maravilha, representante
dos Pontos de Cultura da região Grande Oeste de SC, delegado estadual na II
Conferência Nacional de Cultura, coordenador do Conselho Estadual de Gestores
Públicos da Cultura da FECAM. Nunca me candidatei a nada, fui sempre indicado,
devido à propriedade com que tratava dos assuntos do setor. Sou preparado para a
função, tenho conhecimento da área, por ser um produtor cultural e por ter estudado
muito sobre gestão cultural.

Ser relegado à posição de dispensável, por um trabalho sério que produzi e que
fora mal interpretado por uma minoria é, sinceramente, deprimente. O filme em questão
está disponível no Youtube desde fevereiro, quando também o divulguei em meu Orkut
e meu Twitter. Inúmeros foram os acessos, inclusive de pessoas de Maravilha. Neste
tempo, o trabalho foi muito elogiado. Em São Francisco do Sul, na TEIA Sul (encontro
de Pontos de Cultura da região Sul do país), presenciei o filme sendo aplaudido de pé
pelo público presente àquela mostra audiovisual; no mês de março, fui sondado por um
representante do núcleo audiovisual da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
– para lhe autorizar a incluir o filme no acervo da renomada instituição de ensino;
também em março, o filme foi exibido na TEIA Nacional (encontro nacional de Pontos
de Cultura), em Fortaleza (CE); sendo também em março, exibido em mostra paralela
na II Conferência Nacional de Cultura, recebendo congratulações pelo teor e pela
qualidade da produção. Mas, como toda obra incita reações e interpretações, ela
consequentemente não agradou a um determinado público, que por ignorância e
desconhecimento (muito se lê a Bíblia, pouco se estuda sobre a arte!) acabou
confundindo o resultado de uma produção fictícia com minha pessoa. O que me espanta,
de verdade, é que isto tenha sido o motivo de minha saída. Fiquei surpreso com a
posição adotada por todos os que sempre eu defendi.

Por muitas vezes me caracterizei de palhaço, auxiliando em promoções de


diferentes setores desta administração, alegrando principalmente crianças e idosos. Em
momento algum este fato me remeteu ao tratamento de retardado mental, após tirar a
maquiagem. Mas agora, argumentam-me que o filme D’EXIBICIONISMO seria
passado aos idosos, e que pais de crianças não deixariam o filho freqüentar a biblioteca
por eu ser um punheteiro??? Onde está a coerência?! Ao ator que interpretou Cristo na
Via Sacra não vão pedir milagres, mas aquele que interpreta um compulsivo sexual se
dispensa atenção e cuidados, e se exclui da sociedade?

O fato é que produzi um TRABALHO sério, de qualidade, e fora do horário de


trabalho, em minha casa. Argumentos de defesa não me faltam. Sou um produtor, e por
muitas oportunidades divulguei o nome de Maravilha pelo país, como na vezes em que
Maravilha foi divulgada na páginas da revista Caras, por exemplo, graças à produção de
um de meus filmes.

Passei a noite revirando minhas coisas, tentando esconder desenhos, charges,


poemas e crônicas que tivessem algum teor mais polêmico, com medo de no futuro ser
condenado à morte. Ainda na faculdade, atuei em um curta-metragem produzido pelos
acadêmicos do curso de Rádio e TV da UNOESC Joaçaba, interpretando um matador
em série. Estou apenas aguardando o dia raiar, e esperar a hora da faculdade abrir, para
ligar lá e pedir para que queimem todas as cópias do filme!

De nada adianta eu aqui citar nomes de artistas renomados, que usam do


comportamento humano para dar tema às suas obras. Mas, são vários poemas, contos,
crônicas, romances, esculturas, pinturas e filmes que retratam a doença, a miséria, a
violência, a psicopatia, a nudez... Infelizmente, a percepção, a compreensão e o respeito
à arte é para poucos. Já dizia Rogério Sganzerla, em seus filmes, que “o homem boçal é
um homem normal”!

Lamento muito por todos os encaminhamentos que até agora foram dados, e que
ficarão comprometidos. O Ponto de Cultura, algo por que tanto lutei e trabalhei, e que
agora que estava a pouco de ser implantado. O sistema municipal de Cultura, uma ação
que daria destaque à Maravilha, como cidade preocupada com as questões do setor. O
convênio com o SESC e todos os espetáculos que ainda virão. A FECIMAR e os seus
shows artísticos. A todos os projetos idealizados e implantados que eu coordenava.
Lamento, por todo este trabalho não ter tido valor algum, nem ao menos, para me
defender perante o inquisidor tribunal do Conselho Político do município.
Ainda agora não consigo sentir nada além de uma enorme perplexidade. Está
difícil assimilar tamanho golpe. Aos poucos vou percebendo que a racionalidade
política nem sempre é humana. Lamento.

Espero pelas palavras do prefeito Orli. Estarei sempre à disposição para qualquer
auxílio, da mesma forma que auxiliei enviando minhas propostas e intenções quando da
redação do Plano de Governo, na campanha eleitoral. Luto e lutarei sempre pela
evolução cultural de nossa cidade. Quem sabe assim, outros artistas não sofrerão
preconceito vil e poderão gozar de uma plena liberdade para se expressar.

Admiro e tenho enorme carinho e respeito pelo homem Orli Genir Berger.
Homem de coração bom, que a vida lhe transformou em político, e no qual eu dediquei
meu primeiro voto, acompanhando-o nas urnas em todas as vezes que pôs seu nome à
concorrência política. Agradeço a confiança em mim depositada e espero ter
contribuído, assim como espero sinceramente, voltar.

" E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-
lhe: Mulher, onde estão àqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse:
Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não
peques mais." (João 8:10-11)

JONE CRISTIAN SCHUSTER

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