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Néstor Garcia Canclini O PaTRIMONIO CULTURAL E A CONSTRUCAO IMAGINARIA DO NACIONAL TRADUGAO DG Mauaicia SANTANA Dias Nos debates sobre o patriménio historico ccostuma-se ver como inimigos dos atuais processos de mudanga desenvolvimento urbano, a mercantilizagio, as indistrias culturais € 0 turismo, Neste trabalho consideraremos ‘essas “ameagas” como contextos, que nio sé devemos accitar por serem as condigdes em que hoje 8 bens histéricos cxistem, mas também porque contribuem para repensar 0 que devemos entender por patriménio historico € por identidade nacional. Os processos de urbanizagio, industrializagio ¢ massificagio da cultura, as migragdes ¢ a transnacionalizayo dos bens materiais ¢ simbélicos, a globalizagao e as formas de integrago econdmica exigem a redefinigio do que hoje podemos entender por nago. © que concebemos como tal jé no é unicamente 0 conjunto de bens e tradigbes sungidos e mantidos no territério historicamente habitado por uma comunidade. A populagio originaria se alimenta, se informa c sc entretém ‘com muitos bens e mensagens procedentes do estrangeiro, os quats, porém, vimos incorporando 4 nossa vida cotidiana. Vérios milhdes de mexicanos vivem fora do pais, principalmente nos Estados Unidos, mas ali reproduzem grande parte do que entendemos como cultura nacional ¢ mantém relagées fluentes com a gente que permaneceu no México, Estes intercimbios sio faeilitados pelos eios le comunicagao dle mass, tantas vezes acusados de substituir ¢ maltratar 0 folelore. Na verdade, 0 rédio, a televisio, o cinema, os videos ¢ 08 discos tornaram-se recursos-chave para a documentagao e a difsio da propria ccaltura, para além das comunidades locais que a geraram. So, por isso, parte do nosso patrimdnio, de um modo diverso do que 0 si0 as pirimides, 08 centros histéricos © 0 artesanato, mas as vezes tao signficatives quanto ‘esses bens tracliciomais: sobretudo se levarmos ‘em conta o importante papel de recursos como a rmiisica, 0 cinema e a TV na consagrago, socializagao ¢ renovagdo de certos ‘comportamentos. Como, entio, devemos redefinir 0 patriménio cultural, de acordo com as condigdes bistéricas, sociais ¢ comunicacionais deste fim de século? Atualmente, existe nas ciéncias socials tum triplo movimento de reconceitualizagio, que sintetizarei nos seguintes pontos 4) Afirma-se que o patriménio nio inclui apenas a heranca de cada povo, as expressdes “mortas" de sua cultura — sitios arqueologicos, arquitetura colonial, antigos objetos em desuso —, mas também os bens culturais, visiveise invisiveis: novos artesanatos, linguas, ° conhecimentos, documentagio € comunicagio «lo que se considera apropriado através las indiisteias culturais 1b) Ampliou-sc, também, a politica patrimonial de conservacio ¢ administracao do. que foi produvido no passado avs usos sociais, que relacionam esses bens com ay necessidades contempordneas das maiorias. «) Por iltimo, em oposigo-a uma seletividade {que privilegiava os bens culturais produzidos pelas classes hegemdnicas ~~ piramides, palicios, objetos ligados 8 nobreza ou a aristocracia —-. reconhece-se que o patriménio de uma naga também se compde dos produtos da cultura popular: rmisica indigena, textos de camponeses e ‘operivios, sistemas de autoconstrucao e preservagio dos hens materiaise simbilicos elaborados por todos 0s grupos socials. Esta ampliagio do conceito de patriménio, parcialmente advinda de alguns documentos do ‘governo mexicano! e de organi internacionais de que o México participa’, ainda no possui uma legislagao suficiente para proteger manifestagées culturais to diversas e intervie em seus us0s atuais. Freqilentemente, as Ieis existentes ou nde prevéem as praticas de érgios oficiais e entidades privadas, ou entram em choque com elas. ‘Queremos analisar, aqui, seis da novas questies tedricas © politicas que precisam ser trabalhadas: 1) 0 patriménio cultural ea desigualdade social; 2) a construgio imaginaria do patriménio nacional; 3) 08 usos do patriménio; 4) 0s propésitos da preservagai 5) © patriménio na cra da indhistria cultural; 6) os critérios es 18 ¢flosificos [que o avaliam, preservam ¢ difundem]. PaTrimonio CULTURAL € DESIGUALDADE ‘© patriménio cultural expressa a solidariedade {que une os que compartilham um conjunto de bens ¢ priticas que os identifica, mas também ‘costurna ser um lugar dle cumplicicad social. As atividades tlestinarlas a definilo, preservécto & difundi-lo, amparadas pelo prestigio historica & simbdlico dos bens patrimoniais, incorrem quase sempre numa certa simulagio ao sustentarem que a sociedade nio esta dividida em classes, etnias ¢ grupos, ou quando afirmam que a grandiosidade ¢ o prestigio acumulados por esses bens transcendem essas fragdes sociats © estudo de outros aspectos da vida social tem resultado numa visio menos harménica. Se se revisa a nogio de patriménio sob a dtiea da teoria da reprodugio cultural, os bens rcunieos por cada socierlacle na histria no pertencem realmente a todos, ainda que formalmente parogam ser de todos € estar disponiveis a0 uso de todos, As investigagbes socioldgicas ¢ antropologicas sobre as maneiras como se transmite 0 saber de cada sociedade através das cescolae ¢ museus, demonstram que diversos grupos se apropriam de forma desigual ¢ diferente da heranga cultural. No basta que as escolas ¢ os muscus estejam abertos a todos, que sejam gratuitos e promovam em [todos os sctores] sua agio difusora; 4 medida que descemos na escala econdmica e educacional, diminui a capacidade de apropriagio clo capital cultural transmitido por essas insituigdes’ sta variada capacidade de relacionamento ‘com 6 patriménio se origina, primero, da participagio desigual dos geupos sociais em sua, Formagio, Mesmo nos paises em que a legislagio © 05 discursos oficiais adotam a nogio antropoldgica de cultura, que confere legitimidade a todas as formas de organizar € simbolizar a vide social, existe uma hierarquia dos capitais culturais: vale mais a arte que os artesanatos, a medicina cientifica que a popular, a cultura escrita que a oral. Nos paises democriticos, ou onde os movimentos revolucionérios conseguiram incluir saberes praticas de indigenas e camponeses na definicio de cultura nacional, como no México, os capitals simbélicos dos grupos subalternos tém um lugar subordinado, secundirio, dentro das instituiges dos disposi ‘0s hegeménicos. Por isso, a reformulagio do patriménio em termos de «capital cultural tem a vantagem de no representi-lo como um conjunto de bens estivels e neutros, com valores ¢ sentidos fixos, -aas sim como um processo social que, como 0 ‘outro capital, se acumula, se renova, produz rencimentos de que os diversos setores se apropriam de forma desigual*. Se é verdade que o patriménio serve para unificar uma nag2o, as desigualdades na sua formagdo e apropriagio exigem que se 0 estude, também, como espago de luta material ¢ simbélica entre as classes, as etnias € 0s grupos. Este principio metodolégico corresponde ao cariter complexo das sociedades ‘contemporineas. Nas comunidades arcaicas, ‘quase todos os membros compartilhavam os ‘mesmo conhecimentos, possuiam crengas ¢ gostos semelhantes e tinham um acesso aproximadamente igual ao capital cultural comum, Atualmente, as diferengas regionais, ‘riginadas pela heterogeneidade de experiéncias € pela divisio téenica e social do trabalho, sio utlizadas pelos setores hegeménicos para que obtenham uma apropriagio privilegiada do patriménio comum. Consagram-se como superiores certos bairros, objetos e saberes, porque estes foram gerados pelos grupos dominantes, ou porque tais grupos contam com a informagao ¢ formago necessarias para ‘compreendé-los e aprecié-los, ou seja, para controlé-los melhor. O patriménio cultural serve, assim, como Fecurso para produzir' as diferencas entre os _grupos sociais ¢ a hegemonia dos que gozam de ‘um acesso preferencial 3 produgio ¢ distribuigio dos bens. Os setores dominantes nio sb definem quais bens sio superiores e merecem ser conservados, mas também dispdem dos meios econdmicos e intelectuais, tempo de trabalho e de dcio, para imprimir a esses bens maior qualidade e refinamento, Nas classes populares encontramos as vezes uma extraordinaria imaginacio para construir casas com dejetos ‘num {conjunto periférico], para usar as habilidades manuais ¢ dar solugdes técnicas apropriadas ao seu estilo de vida. Mas dificilmente esse resultado pode competir com o de quem dispie de um saber acumulado historicamente, emprega arquitetos ¢ ‘engenheiros ¢ conta com vastos recursos nateriais € a possibilidade de confrontar seus desenhos com os avangos internacionais. (© mesmo poder-se-ia dizer ao se comparar ‘um conjunto de miisicos aficcionados de um ovo indigena a uma orquestra sinfonica nacional. Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da histdria local e mais adequados as necessidades mania cultural Op nico | Aariarece Macromat. © patriménio cultural Néstor Garcie Canctint presentes do grupo que os fabrica. Constituem, neste sentido, seu proprio patriménio. Também podem alcangar altos graus de criatividade & valor estético, como se comprova com 0 artesanato, a literatura e a miisica de multas regides do México. Tém, no entanto, menor possibilidade de realizar varias operagies indispensiveis para converterem esses produtos ‘em patriménio generalizado e amplamente reconhecido: acumulé-los historicamente (sobretudo quando sofrem de pobreza ou repressio), converté-los numa base do saber objetivado (relativamente independente dos Individuos e da simples transmissio oral), expandi-los mediante uma educagao institucional «© perfecciondelos através de uma investigagio experimentagao sistematica. Alguns destes pontos se efetivam em certos grupos: por exemplo, na acumulagio ¢ transmissio historica dentro das etnias mais fortes. Mas a desigualdade estrutural impede que se retinamn todos os requisitos indispensivets para que intervenha plenamente no desenvolvimento desse patriménio dentro das sociedades complexas. Esta desvantagem costuma acentuar-se nos setores populares mais integrados a0 desenvolvimento modemo. A produgio cultural dos operirios, observa a antropéloga brasileira Eunice Ribeiro Durham, quase nunca é arquivada. A meméria popular, & medida que depende das pessoas, “é uma meméria curta”, ‘sem os recursos para alcangar a profundidade hhstérica obtida pelo patrimdnio reunido por intelectuais na universidade’. No México, 0 registro da produgio cultural de setores populares ndo indigenas tem sido escasso € recente. Sio programas isolados, como odo Museu Nacional de Culturas Populares: suas cexposigdes ¢ livros ampliam a documentago das cculturas subalternas para além da indigena, reconhecendo o lugar da cultura operiria e urbana dentro do patriménio nacional IMAGINANDO A Nagao. Aquilo que se entende por cultura nacional muda de acordo com as épocas. Isto demonstra que, mesmo existinda suportes concretos e continuos do que se concebe como nage (0 territério, a populagio e seus costumes etc.), em boa parte 0 que se considera como tal uma construgio imaginéria 0 imaginario discursivo sempre contribuiu para a concepgio do México, na configurago do seu sentido. Desde as descri¢des de Hernin Cortes até as crdnicas de Humboldt, desde os discursos dos presidentes e politicos até as ‘cénicas literérias ¢ jornalisticas (das de Justo Sierra is de Carlos Monsiviis), desde a iconografa cinematogrifica até as cangoes urbanas ¢ os grafites, todos descreveram a realidade materiale simbélica do México; disseram como ele é e sobretude como queriam aque fosse. Esses discursos contribuiram para formar o sentido do nacional, selecionando e ‘combinando suas referéncias emblemiticas, dando-lhe até hoje uma unidade e uma coeréncia Jmagindrias. Chamo-os assim pelo cariter de construcio desses textos ¢ imagens, e porque informam tanto sobre feitos altamente significativos quanto sobre 6 modelo ideal de nagio dos que os elaboram. A medida que esses discursos alcancam uma eficicia social, ou seja, que sio partilhados © contribuem para formar a concepgio coletiva de México, se constituem em um patriménio. O patriménio cultural — ou seja, 0 que um cconjunto social considera como cultura pripria, {que sustenta sua identidade e 0 diferencia de outros grupos — nio abarca apenas os monumentos histéricos, o desenho urbanistico € ‘outros bens fisicos; a experiéncia vivida também. se condensa em linguagens, conhecimentos, tradigdes imateriais, modos de usar as bens e os espagos fisicos. Contudo, a quase totalidade dos estudos e das acdes destinados a conhecer, reservar ¢ difundir o patriménio cultural ‘continuam se ocupando apenas dos monumentos (pirimides, locais histéricos, museus), Desde os trabalhos precursores de Manuel Gamio ¢ Alfonso Caso até os programas recentes do Concelho Nacional para a Cultura eas Artes, tem-se privilegiado o valor testemunhal dos documentos materiais de cardter monumental e de épocas distantes. Para isso também contribui o fato de que a investigagio e preservagio cstiveram predominantemente em mios de arqueélogos, arquitetos e restauradores, ou seja, dos especialistas no passado. Os estudos folcloricos, que produziram desde fins do século XIX um vasto conhecimento empirico sobre os ‘grupos étnicos, sua religido, medicina, festas e artesanato, utilizam quase sempre uma concepgio arcaicizante dessas manifestagBes clturais, encontrando dificuldades para entender como elas se renovam nos processos ‘modemizadores suscitados pela urbanizagio ¢ industrializago da cultura. So na tltima década as ciéncias sociais que se ‘ocupam da vida contemporinea ¢ dos processos uurbanos (antropologia social, sociologia, urbanismo, semidtica) se interessaram pela produgao cultural imaterial. Seus enfoques tedricos e metodolégicos, com mais capacidade para examinar sociedades complexas, permitem tuma melhor avaliacio dos contextos modernos balicos tradicionals, ¢ assim surgem novos referentes de ‘em que se transformam os bens identificagao coletiva. As crénicas de autores como Carlos Monsivdis, Elena Poniatowska, José Joaquin Blanco e Herman Bellinghausen’, entre outros, sao as andlises que mais contribuiram para por as claras os referentes no materiais na construgio, do sentido nacional. As maneiras de ver ¢ ouvir, pensar € nomear, contar¢ filmar a cidade sio reconhecidas em suas descrigdes como fatores decisivos na formagio do significado dos ‘espagos, no estilo dos usos e na configuragao do imaginirio social. Mas como situar essas describes das erOnicas Literdrio-jornalisticas em anilises conceituais que organizem esses materiais para a fundamentagio de politicas culturais consistentes? A literatura sobre comunidades imagindrias pode nos ajudar a elaborar este problema. A obra de Benedict Anderson costuma ser citada como o ponto de partida de uma reconcepgio das identidades, Este autor pds em evidéncia que ‘0 nacionalismo é um artefato cultural ¢ no um objeto natural, é uma ficgdo constituida historicamente. Este cariter imaginério no 0 tora falso, como se percebe pelas pessoas que estio dispostas a realizar “sacrificios colossais™ por suas “estreitas visdes do que ¢ 6 nacional”. Do mestno modo, historiadores como Serge Gruzinski*, antropélogos como Renato Rosaldo! e semidlogos como Armando Silva"! © pairimaale cultural Néstor Garcia Caneltat tém demonstrado o importante papel que as ficgdes desempenham na formagio das identidades. A construcio da cidadania cultural se efetua nio s6 sobre prineipios politicos e participacio “real” nas estruturas juridicas ou socials, mas também a partir de uma cultura formada pelas ages ¢ interagdes cotidianas, na projegio imaginaria dessas ages, em mapas mentais da vida social. A cultura “especifica” de uma nagio cosmopolita como 0 México se formou nao s6 mediante a reproducio de suas tradigdes pré-colombianas, coloniais e modernas, mas também através da apropriagio ¢ do uso de bens e mensagens multiculturals trazidos pelos migrantes campesinos para as cidades, pelo turismo, pelo olhar dos estrangeiros e pelas indiistrias culturais Dai surge a necessidade de se empreenderem estudos ¢ politicas sobre identidade ¢ patriménio com uma nova orientagio. Devemos transcender a simples anilise das relagdes com o territério originario ocupado por cada grupo, com as sedimentagoes monumentals ¢ institucionais, Os movimentos contemporéneos de transnacionalizagio € destervitorializacdo da cultura (migragoes, indiistrias culturais etc.) tin mudado os processos de formagio, produgio ¢ transformagio dos patriménios simbilicos em. relagio aos quais se definem o perfil da vida cotidiana ¢ 0s tragos de identficagdo dos grupos. ‘Torna-se, portanto, prioritiria a adogio de politicas para a preservagio e difusio dos acervos literarios, musica, filmicos ¢ de video como representagies da vida social e da meméria historica. Os Usos Do PaTRIMONIO ‘Apontar a desigualdade estrutural entre as diferentes classes na formagio ¢ apropriagao do patriménio ¢ fundamental, porém insuficiente.. A sociedade nao se desenvolve apenas por meio da reprodugio incessante do capital cultural hegeménico, nem o higar das classes populares se explica unicamente pela sua posigio subordinada. Como espaco de disputa econdmica, politica simbélica, o patriménio cesta atravessado pela agio de trés tipos de agentes: o setor privado, o Estado ¢ os ‘movimentos sociais. As contradigdes no uso do patriménio tm a forma que assume a interagio entre estes setores em cada periodo. A ago privada em relagio ao patriménio cestd regida, assim como em outros mbitos, pelas necessidades de acumulagio econémica € reprodugdo da forga de trabalho, Freqiientemente, esta tendéncia leva & cexploragdo indiscriminada do ambiente natural ¢ urbano, 3 expansio voraz da especulagio imobilisria ¢ do transporte privado, em detrimento dos bens histéricos e do interesse das ‘maiorias. Mas como nao hé um s6 tipo de capital, tampouco existe uma s6 estratégia privada em relagio ao patrimdnio. Por isso, as generalizages que etiquetam o comportamento dos diversos agentes com o simples rotulo de “burguesia” ou “interesses mercantis” no servem, Em parte, a degradagio do meio natural urbano deriva de que os diversos tipos de empresa — industriais, imobiliérias, turisticas —- utilizam [a seu bel-prazer] o patriménio sob ‘uma 6tica setorial e competitiva. As contradigdes entre seus interesses s30 mais destrutivas quando no existem programas piblicos que definam 0 sentido do patriménio para toda a sociedade, regulem energicamente 0 desenvolvimento econémico ¢ estabelegam um marco geral bascado em interesses coletivos — para o desempenho de cada setor do capital ‘A agio privada nem sempre pode ser reduzida a uma simples agressio ao patriménio, posto que alguns grupos apreciam o valor simbélico que incrementa o valor econdmico, Existem imobilidrias que defendem a preservagio de um bairro muito antigo para aumentar o custo dos imaveis que tém al. Algumas empresas turisticas conserva 0 sentido cenogrifico dos edificios historicos, ainda que introduzam mudangas arquiteténicas & fancionais com fins lucrativos, como no convento convertide em Hotel Presidente de Oaxaca, onde as celas foram transformadas em suites e se colocou ma piscina num dos patios, adaptando-se a capela para centro de convengies festas!2 Talver os eleitos da mercantilizagao sejam ‘mais ambivalentes nas culturas populares tradicionais. Quem sabe por isso muitos estudos 10s se furter & analise dessa © documentos poli ambigilidade. ... preferivel denunciar, simaplesmente, que os artesanatos submetides a0 regime de valor de troca sofrem uma deterioracio om sua qualidade ¢ em seus componentes simbélicos tradicionais, Mas inegivel que cm certos povoados pobres, para cujos habitantes a Unica opgio & emigrar, a incorporagio dos artesanatos a0 mercado urbano € turistico possibilita que muitos indigenas ¢ camponeses permanegam em suas comunidades © reativem suas tradiges produtivas e culturais © problema nao é tanto a mudanga de cenario & de uso das cerimicas ou teeidos, nem as adaptagdes que experimentam, mas as condigées de exploragio em que se produzem, Por isso, ‘uma politica de apoio ao patriménio artesanal que apenas se dedique ao resgate € & conservagao ddas técnicas € de estilos tradicionais ser’ ineficaz. Assim como a defesa do patriménio urbano requer o enfrentamento da crise estrutural das grandes cidades e da injustica softida pelos setores pobres, uma verdadeira intervengio no desenvolvimento atual dos artesanatos necessita de uma politica cultural combinada a transformagées sicio-econémicas nas condigées de vida dos camponeses. © Estado também tem uma relagio ambivalente com o patrimén‘o, Por um lado, valoriza-o como elemento integrador da nacionalidade. No México pés-revolucionario, sobretudo no cardenismo, a politica cultural buscou combinar a cultura de elite e a popular erm um sistema, ¢ tratou de usi-le — junto & castelhanizagio dos indigenas, a reforma agrivia © 0 desenvolvimento do mercado interno — para superar as divisdes do pais. © indigenismo, {que guiou durante décadas a politica de investigagio arqueolégica ¢ de “resgate” das culturas populares, extraiu do passado das principais etnias algumas bases do nacionalismo politico. Sem a agdo do Estado, a vasta reabilitagio de sitios arqueoligicos e centros histéricos, a criagio de tantos muscus € publicagaes dedicadas a preservar a meméria, ¢ (uso desses recursos para configurar uma ‘dentidade compartilhada, seriam inexpliciveis. Essa intervengio estatal, sem comparagio com a de qualquer outro pais latino-americano, Nestor Gareie Canctias © pares conseguiu ~~ antes das comunicagies de massa e do turismo — fazer com que os artesanatos de diversos grupos étnicos, os simbolos histaricos ¢ alguns saberes regionais transcendessem sua conexio exclusiva com a cultura local. A difusio conjunta por todo o pais dos tecidos totziles © das imagens artisticas da Cidade do México, da cerdimica tarasca e das pirimides maias, formou tum repertério iconogrifico unificado que é visto ‘como representativo da mexicanidade até em populagdes que nunca tiveram experiéncias diretas dessas manifestacdes regionais. Fazem parte do seu imaginario nacional Nao obstante, como todo Estado mederno, a0 promover 0 patriménio o Estado mexicano tendeu a converter essas realidades locais em abstragdes politico-culturais, em simbolos de ‘uma identidade nacional em que se diluem as particularidades e os contlitos. As vezes, 0 Estado se interessa pelo patriménio a fim de frear o saque especulativo; noutros casos, porque o alto prestigio dos monumentos é um recurso para se legitimar ¢ obter consenso; noutros ainda, assinala Carlos Monsivais, por simples complacéncia cenogrifica!’. Mas se centendemos que o Estado néo € unicamente 0 _governo, devemos ver também o peso maior ou menor de cada uma dessas trés priticas como resultado do grau de participagao dos diferentes setores na apropriagao desses bens. Faz pouco tempo que a defesa e 0 uso do patriménio se converteu em interesse dos movi \entos sociais. Como afirma o préprio Monsivais, esses temas nfo fzeram parte nem ‘dos programas partidarios, nem da cultura politica (nem mesmo nos agrupamentos progressistas): Durante décadas, a esquerda cometeu o grave erro de julgar, por exemple, a luta pela preservasao de ‘monumentos coloniais como tarefa de guarda-roupa evocative da direita, talver até algo plausivel, mas de nenhum modo tarefa prioritéria. Em sua preocupaio de adequar-se a0 sentido do devir, a exquerde “preseateou" 0 passado & direita, reservando-se apenas a {clausura] da interpretagao correta e ciemifica™ Em anos recentes, a expansio demogrifica, a urbanizagio descontrolada ea depredagio ecolégica suscitam movimentos socials preocupados em recuperar bairros e edificios, ou em manter 0 espaco urbano habitivel. Na Cidade do México, lugar dos sismos de setembro de 1985, produziram-se avancos extraordindrios na organizagio e participacio popular: agrupamentos de vizinhos inventaram formas inéditas de solidaviedade e claboraram solugies coletivas, pondo em primeiro lugar a reconstrugio de suas casas de acordo com seu estilo de vida, mas propondo-se também a assumir criticamente “o valor histérico do centro” da cidade em relago “a todos os servigos necessirios para uma vida digna’”® No entanto, esta preocupacio nio ¢ ‘macigamente compartilhada, A organizacio ¢ as mobilizages diminuem quando passam as crises, ‘Também percebemos o uso desigual da cidade na distribuigio dos interesses pelo patriménio, nos temas prioritirios dos diversos setores. £ compreensivel que as classes populares, cenredadas na escassez das moradias ¢ na necessidade da sobrevivéncia, se sintam pouco cenvolvidas na conservagéo de valores simbolicos, sobretudo se no so os seus. Mesmo em relacdo a0 seu proprio capital cultural, os setores subalternos manifestam is vezes uma posicio tibia ou vacilante, como se tivessem interiorizado a atitude desvalorizadora dos ‘grupos dominantes dirigida 4 cultura popular. $6 alguns setores médios ¢ populares, especialmente afetados pelo agravamento da situagao, vio aprofandando sua consciéncia coletiva. Novos movimentos, desde os populares urbanos até os ecolégicos, comegam a muda lentamente a agenda piblica, ampliando. debate sobre © patriménio. Trés fatores caracterizam uma transformagio perceptive! nestes setores: a) a questio do patriménio ambiental — natural ¢ urbano — nao & vista como apenas de responsabilidade do governo; ) compreende-se que, se néo houver mobilizagdo social pelo patriménio, sera dificil que 0 governo o vincule is necessidades atuais € cotidianas da populagao; ¢) 0 efetivo resgate do patriménio inclui sua apropriagio coletiva € democritica, ou seja: criar condigBes materiais e simbélicas para que todas as classes possam encontrar nele um significado, e compartilhs lo. No fundo, as novas interagSes entre capital, Estado e sociedade esto mudando a problematica patrimonial. J’ nfo se trata apenas das questées que monopolizam quase toda a bibliografia: como conservi-lo ou restauri-to devidamente (se um certo material & mais adequado, se fica melhor uma patina) e como protegé-lo com maior seguranca (aperfeicoar as, leis, instalar alarmes eficazes contra roubo). A questio do patriménio extrapolou a alcada dos. responsiveis por essas tarefas, os profissionais da conservacio ¢ o Estado. Considerando-se a enorme importancia que a preservagio e 2 defesa ainda tém, 0 problema mais desafiante, agora, sio os usos sociais do patriménio. .,, ai ‘que se devem concentrar os maiores esforgos de investigagio, reconceitualizagio e de politica cultural. IMAGINARIOS DA PRESERVACAO Hi pelo menos quatro paradigmas politico- cculturais a partir dos quais se definem os objetivos da preservacio de patrimdnio. O primeiro, que chamaremos tradicionalismo substancialista, é 0 dos que julgam os bens histéricos unicamente pelo valor gue tém em si mesmos, ¢ por isso concebem sua conservago independentemente do uso atual. Consideram {que 0 patriménio esta constituide por um mundo de formas e objetos excepcionais, onde ‘no contam as condigdes de vida ¢ trabalho de {quem os produziv. Esta posicio ¢ sustentada por diversos atores socias, ainda que prevalega nas tendéncias aristocrético-tradicionais do campo académico ¢ dos aparatos politicos. Seu trago ‘comum ¢ uma visio metafisica, ahistbrica, da humanidade ou do “ser nacional”, cujas rmanifestagdes superiores teriam se dado mum passado desvanecido, sobrevivendo hoje apenas nos bens que o rememoram., Preservar um centro cerimonial ou méveis antigos sio tarefas indiferentes &s preocupagdes préticas; seu tinico sentido é salvaguardar esséncias, modelos Eestéticos ¢ simbdlicos cuja conservacio inalterada serviré precisamente para ‘testemunhar que a substincia desse passado glorioso transcende as mudangas sociais. Ficarn fora desta politica os bens precirios ou cambiantes, os que s6 documentam priticas 103 = ° Néstor Gerete Conetias © patrimsnin cultural populares ou acontecimentos culturais, sem que consigam, assim, alcancar um lugar de relevncia na historia culta das formas e dos cstilos, Os outros paradigmas correspondem a0 privilégio outorgado a cada um dos trés agentes sociais descritos (Os que véem no patriménio uma ocasiio para valorizar economicamente 0 espago social ou um simples obsticulo ao progresso ‘econdmico sustentam uma concepeao mercantilista. Os bens acumulados por uma sociedade importam na medida em que favorecem ou retardam “o avango material” Este destin mercantil guiard os eritérios ‘empregados em todas as ages. Os gastos requeridos para preservagio do patriménio si0 ‘uma inversio justificivel caso resulte em dividendos para o mercado imobilisrio ou a0 turismo, Por isso, atribui-se ds empresas privadas um papel central na selecio dos bens culturais. A este modelo corresponde uma ‘estética exibicionista na restauragio: os critérios artisticns, historias e téenicos se sujeitar 4 cespetacularidade e & utilizagdo recreativa do patriménio com o fim de incrementar seu rendimento econdmico. Os bens simbélicos sio valorados na medida em que sua apropriagio privada permite torné-los signos de distingio ow artigo de consumo em um show deluze som. papel de protagonista do Estado na dlefinigdo ¢ promogio do patriménio se funda ‘em um imaginario conservacionista ¢ monumentalista. Em geral, as tarefas do poder publico consistem em resgatar, preservar «€ custodiar especialmente os bens histéricos ‘capares de exaltar a nacionalidade, de serem simbolos de coesio grandeza. Ante a ‘magnificéncia de uma pirimide maia ou de um palicio colonial, no lhe ocorre minimamente pensar nas contradigdes sociais que expressam. A atengio privilegiada & grandiosidade do cdificio costuma também desviar dos problemas regionais, da estrutura dos assentamentos rurais ‘ou urbanos em meio aos quais os monumentos adquirem sentido: tem-se notado varias vezes que a salvaguarda do patriménio é eficaz quando leva em conta as grandes obras em relagio aos sistemas construtivos ¢ aos usos contextuais do cespago'*. Mas é grande a tentacdo de associar 0 Estado as herangas monumentais para legitimar © sistema politico vigente: afirma-se assim cle ‘mesmo, buscando-se identificar 0 enraizamento histérico de quem conserva ¢ “reinaugura” os ‘monumentos, depois de restaurd-los, usando-05, na forma mais plena da apropria¢io, como sede fisica de um organismo oficial. No México, esta concepgio monumentalista no se mostra ‘unicamente na politica de conservagio e uso de cedificios antigos; est presente também na arquitetura que evoca a monumentalidade pré~ colombiana ou colonial, originando reclaboragies felizes — as do Museat Nacional de Antropologia e O Colégio do México —, reinvengdes brilhantes que inscrem 0 modelo piramidal nas buscas geométricas contempordneas — o Espago Escultérico na Cidade Universitaria da UNAM —, mas também a grandiloqiiéncia [aclimatada] da Praca ‘Tapatia de Guadalajara e a Macroplaza de Monterrey, onde a aspiragio auto-exaltadora do poder politico € econémico sacrificou a onganizagao historica ¢ 0 equilibrio estético do espago pablico. (© quarto paradigma, que denominamos Participacionista, concebe o patriménio e sua preservagio relacionando-os com as necessidades globais dla sociedade. As fumgdes anteriores — 0 valor intrinseco dos bens, seu interesse mercantile sua capacidade simbélica de legitimagiio — séo subordinadas as demandas presentes dos usuarios. A selecdo do que se preserva ¢ a maneira de fazé-lo devem scr decididas através de um processo democritico ‘em que os interessados intervenham, trazendo para o debate seus habitos e opiniges, Este enfoque se caracteriza, deste modo, por incluir ‘no patriménio tanto 0s edificios monumentais quanto a arquitetura habitacional, os grandes espacos cerimoniais ou piblicos do passado e os parques © pracas de hoje, os bens visiveis ¢ os costumes e crengas. © acento na participagio social ¢ 0 recurso-chave para se evitarem os dois cfeitos mais freqiientes que Oriol Bohigas observa nas cidades ou bairros antigos: a sua conversio em “cidades-museu” — ou seja, ‘lustragdes historicas de estruturas e formas que ficaram sem fungo — e em “cidades para mobs” — reas apropriadas para uma elite de artistas, intelectuais, burgueses e sobretudo especuladores, que véem nesses conjuntos urbanos um modo de sublinhar sua distingo"” Sob a perspectiva participacionista, € possivel colocar &s potiticas culturais perguntas reveladoras sobre 05 usos que sio dados aos bens historicos: a) com que dtica sdo restaurados? A aristocritica, que tantas vezes os engendrou, ou ado conhecimento e utilizagio dos que agora desejam entendé-los?; b) de que modo se apresentam e se explicam os edificios antigos ao serem abertos ao piblico? e os objetos, ao serem cexibidos em museus?; ©) apenas a catalogacio e a restauragio fazem parte da politica cultural, ou também se procura conhecer as necessidades e 08 ‘cédigos do piiblico? © que acontece na recepgi0 ‘¢ apropriagio que cada-grupo faz da historia? No México, estas perguntas tém recebido mais respostas provenientes de ages do que de cestudos sisteméticos sobre os usos do patriménio € as necessidades populares, Existem no pais organismos dedicados a promover o patriménio “vive”, que tém feito investigagSes sobre a participaco social, como o Instituto Nacional Indigenista, a Diresdo Geral de Culturas Populares e 0 Museu Nacional de Culturas Populares. Contudo, é dificil avalia os efeitos das diversas concepgdes que os orientam, entre outras razdes porque hi poucos estudos sobre a recepgio de seus trabalhos. Predomina a vontade de difundir e promover o patriménio popular, ou 0 acesso a cultura geral por parte z das classes subalternas. Esta politica promocional vem gerando valiosas experiéncias cedlucacionais e participativas — museus 10s comunitarios ¢ escolares, programas de divulgacio cultural —, mas raras vezes baseia sua agéo difusora em investigagdes sobre 0 que pensam e fazem os que a recebem, Por sua importincia para a participagso da sociedade civil no patriménio cultural, queremos destacar uma dessas earéncias: 0 estudo do pablico ¢ dos usuarios. significative que disponhamos de uma vasta bibliografia de catalogacio e descrigio de sitios arqueol6gicos, edificios coloniais e ‘monumentos, obras e tendéncias artisticas, enquanto que as pesquisas publicadas sobre a recepeio de bens nfo passam de uma dezena, © patriminio caltoral Néscor Goreie Canetinr © patriménio cultural Néstor Garcia Cancline Sabemos que 0s museus ¢ as zonas arqueolégicas recebem anualmente um vasto piiblico: nos ‘ilkimos anos, algo em torno de sete milhes de pessoas ingressaram nos museus de antropologia « histéria (sem incluir os de arte) e 0: sitios arqueolégicos recebem de trés a quatro milhdes de visitantes por ano", Algumas exposiges de artes plisticas, por exemplo as de Diego Rivera no Museu Tamayo ¢ no Paldcio de Belas Artes, alcangaram um piblico de meio milhio. Mas 0: cestudos do gostos do piblico que vai a esses espagos culturais —- como os utiliza, 0 que prefere ou rechaga, de que modo se apropria do patriménio nacional e que dificuldades encontra para relacioné-lo com sua vida — esto apenas comegando”. io se lograré uma politica efetiva de preservacio e desenvolvimento do patriménio «aso este nao seja avaliado adequadamente pelo piiblico dos museus e sitios arqueolégicos, pelos habitantes dos centros histéricos e receptores de programas educativos e de difusdo. Para cumprir estes objetivos, nio basta multiplicar as pesquisas patrimoniais, os museus € a divulgacao: & necessirio conhecer € entender os parimetros de percepcio e compreensio em que se bascia a recepgio dos destinatarios. A participacio do pablico e dos usuarios nao substitui a problemética especifica da valoragao hhistdrica e estética dos bens culturais, nem papel do Estado ow dos historiadores, arqueélogos e antropélogos especializados na investigagio e conservacio do patriménio, mas oferece outrossim uma referéncia — uma fonte de sentido — com a qual deveriam redefinir-se todas as tarefas para que se avance na democratizagao da cultura. O Patrimonio NA Epoca DA INDUSTRIA CuLTURAL ‘A massificagio das sociedades contemporaneas [reformulou] os problemas do patriménio e da participagao. Milhdes de pessoas que nunca tinham ido aos museus, ou que apenas haviam se inteirado na escola das obras ali expostas, ‘vem hoje essas obras em suas casas, pela televisio. Pareceria supérflua deslocar-se: as Imagens das pirimides e os centros histdricos cchegam até a mesa onde a familia come, se cconvertem em temas de conversa ¢ se misturam aos assuntos de todos os dias. A televiséo transmite também mensagens publicitarias em que se usa o prestigio de ‘edificios antigos para atribuir virtudes a um ‘carro ou a.um licor, video clip difundido, diariamente durante o campeonato mundial de futebol de 1986, em que imagens das antigas pirimides se dissolviam em outras modernas, ‘ou dos jogos de bola pré-colombiano transformados em dangas que arremedavam © futebol atual, propunha uma continuidade fluida, sem conflitos, entre a tradigdo € & modernidade., E notavel que esta visio conciliadora das contradigSes histéricas, ‘transmitida por uma empresa privada — Televisa ——, se encontre também em mensagens do Estado; por exemplo, o primeiro filme mexicano em sistema Omnivision, O povo do sol, projetado no Planetario de Tijuana dentro do programa de afirmacio da identidade nacional na fronteira norte, descreve a etapa colonial como um simples enriquecimento das culturas pré-colombianas. Isto sugere que a eliminago dos conflitos seja um dado mais, extensivo aos meios de massa que a outros modos de documentasio e difusio da historia, Contudo, 0 problema nio se reduz a ‘melhorar a interpretagao ideologica do passado. As possibilidades de difusio de massa e espetacularizagio do patriménio oferecidas pelas tecnologias de comunicay3o modernas colocam, novos desafios: como usar os meias de um modo ‘mais imaginativo e critico para o desenvolvimento da consciéncia social sobre 0 patriménio? Quais seriam os limites da re-semantizagio que a industria da comunicagio reatiza sobre as culturas tradicionais? Como legislar estes temas sem afetar os direitos bisicos de livre informagio e comunicagio social? Como interagem estes direitos com os dos grupos indigenas e populares, 20s quais pertencem historicamente esses bens culturais? Estas perguntas mostram a urgéncia de se ampliar 0 campo de problemas ¢ o ambito disciplinar em que 0 patriménio costuma situar-se. Precisamos de novos instrumentos conceituais ¢ metodolégicos para analisar as interagies atuais entre o popular ¢ o de massa, 0 tradicional e 0 modemo, 0 publico ¢ o privado, ¢ isto requer ‘uma maior vinculagao entre as ciéncias antropolégicas, a sociologia e os estudos sobre comunicagio, ‘As mudangas na produgio, circulacio consumo da cultura exigem que se modifique também a concepgio de patriménio utilizada pelas politicas piblicas. Sem diivida, a ampliago do conceito elitista de cultura e a incluso das formas artesanais de producao popular foram tum avango: hoje quase no existem discursos oficiais que neguem um lugar no patriménio cultural i masica, dangas ¢ literatura indigena. Mas falta estender a competéncia do Estado as manilestagies no tradicionais. A acio _governamental se concentra na conservagiio & defesa dos bens histéricos — sitios arqueolégicos, arquitetura colonial —, na Promogao de atividades artisticas que representam os valores mais altos da nacionalidade — desde o folclore até as artes plisticas modernas -~ e na protegio de algumas priticas culturais cujo custo de produyio e cescassez de pablico tornaram problemitico seu futuro — nema, teatro, revistas de arte. Mas o mercado simbélico de massa atrai pouco interesse estatal, e as privatizagdes dos iltimos anos acentuaram sua utilizagao empresarial, ‘As novas tecnologias de comunicagio slo vistas, freqientemente como uma questio apartada do ‘campo cultural; sio mais associadas com a seguranga nacional e a manipulagao politico-ideologica As pesquisas sobre o consumo de cultura, as quais me referi anteriormente, indicam que os gastos domésticos se concentram cada vez mais nna aquisi¢io de *maquinas culturais” — televisores, toca-discos, videos, ridios para cada membro da familia para o carro — em detrimento do gasto em publicagées e espeticulos teatrais, cinematogrificos e musicais que se realizam fora de casa. Esta “cultura a domicilio”, manobrada pela iniciativa privada, cresce em recursos, em eficicia comercial e simbélica, enquanto os Estados continuam se dedicando prioritariamente as priticas culturais que esto perdendo influéncia. A que se deve essa resisténcia em estender 2 responsabilidade patrimonial do poder piblico a0 novos circuitos ¢ tecnologias culturais? AevisTA 90 Pereimouse Husvonico | Antinties Nacional ° oO pat Néstor Goreto Cenetiat Provém, em parte, do temor de se enfrentar os grandes consércios privadas. As poucas tentativas de empreendimento de ages mais, definidas do Estado em relacio as instituigdes culturais receberam reagdes violentas: os cempresirios, além de defenderem seus negocios, argumentam que o controle estatal dos espagos simbélicos é uma forma de autoritarismo, que leva & burocratizagdo e & unilateralidade dos meios de massa. Por que esta restrigio do Estado as formas ‘tradicionais ou cultas do patriménio é aceita por tantas responsiveis pela politica governamental, que defendem com firmeza sua participaso no Ambito educativo, e inclusive por partidos progressistas da oposigdo, que tampouco incluem em suas propostas estes novos espacos cculturais? Uma das explicagies poderia ser ‘encontrada nessa ampla crenga de que a cultura a “erudita” e tradicional, e que sua convivéncia ‘com a de massa acabaria por prejudicé-la. Ainda escutamos com freqiiéncia que, ante a degradago “fatal” que o crescimento urbano e as indstrias culturais trazem, s6 resta preservar os bens histéricos e os costumes tradicionais, testemuhos puros de tempos melhores. Esta posigdo no se mantém de pé quando a confrontamos com 0 que se quer salvar. Porque ‘3 centros histéricos sio resultado de etapas diversas do desenvolvimento em que se foram sedimentando estilos construtivos ¢ concepgdes dispares do espaco urbano, Do mesmo modo, os artesanatos tradicionais surgiram de progressivas adaptages do meio natural e de distintos tipos de organizasao social, primeiro pré- colombianos, depois coloniais e por ultimo do capitalismo moderno. Nio vemos por que os antigos desenhos dos edificios devam permanecer indiferentes is novas fungies que thes sio conferidas, nem por que a olaria e os tecidos no possam se adaptar as condigdes sécio-econémicas ¢ culturais dos indigenas que ‘emigram para as grandes cidades ou habitam vilarejos camponeses transformados. Encontramos uma légica inquestionavel no fato de que os purépechas, por exemplo, que durante séculos compuseram a iconografia de sua cerimica com diabos, serpentes e pissaros, ho} grandes cidades ou passam varios meses do ano — quando vio vender suas pecas nas ‘tabathando como pebes nos Estados Unidos — fagam com o barro diabos que viajam em avides ‘ou em énibus da rota *México-Laredo”, que falam no telefone ou com vendedores ambulantes. O problema nao reside na mudanga ddas imagens tradicionais, mas sim em seus critérios e em quem os decide: os artestos, 0 intermedisrios ou os consumidores? © processo social de desenvolvimento do patriménio requer que diferenciemos, nele, segundo os termos de Raymond Williams, 0 que € arcaico, residual ¢ emergente. © arcaico é 0 que pertence ao passado e é reconhecido como tal por quem hoje o revive, quase sempre “de tum modo deliberadamente especializado”. Por outro lado, © residual se formou no passado, ‘mas se encontra em atividade dentro dos processos culturais. O emergente designa os novos significados e valores, novas priticas e relagdes socials®, A politica cultural dirigida a0 patriménio, acrescentamos, nio pode apeger se 20 primeiro sentido, como costuma acontecer; precisa articular a recuperagio da densidade historica com os significados recentes que geram as priticas inovadoras na producio ¢ consumo. Diante dos conflitos que as transformagies socials propdem ao patriménio, & possivel formular trés critérios gerais para orientar as decisdes: a) a preservagao dos bens culturais ‘nunca pode ser mais importante que a das pessoas que necessitam deles para viver: a0 recuperar um centro histérico, a revalorizagio dos monumentos néo deve pesar mais do que as necessidades habitacionais e simbélicas de seus habitantes, nem a politica artesanal pode antepor adefesa dos objetos & dos artesios; b) as solugdes devem buscar um equilibrio orgénico centre as tradigdes que dio fdentidade —a um bairro, aos produtores de artesanato — c as ‘musdangas requeridas pela modernizagio; c) as politicas e as decisdes sobre estes problemas devem ser tomadas em instincias © com rocedimentos que tornem possivel a articipagio democritica dos produtores usuarios: por que quase sempre que se reabilitam os centros histéricos $6 os funciondrios ¢ os arquitetos intervém, mas nio ‘0s que habitam o bairro? por que os artesios nunca fazem parte de jurados nos concursos onde se premiam artesanatos, nem lhes pedimos que opinem sobre os folhetos turisticos que dizem como interpreti-los? As experiéncias de co participagio de especi desenvolvidas nos trabalhos de reconstrugio posteriores ao sismo, assim como as associages de consumidores ¢ de defesa do patriménio natural, mostram que estas utopias comecam a ser realizadas no México. A BATALHA DAS Derinices EsTeTicAs Uma rea decisiva do debate sobre 0 imaginario patrimonial ¢a sua valoragio estética e filoséfica. Vamos analisar, para concluir, 0 critério que comumente se considera como fundamental: o da autenticidade. Este é 0 valor proclamado com mais insisténcia pelos folhetos que falam dos costumes foleléricos, pelos guias turisticos quando exaltam os artesanatos e festas “autéctones”, pelos cartazes do FONART que garantem a venda da “genuina arte popular mexicana”, Mas o mais alarmante & que este ritério continue sendo empregado em grande parte da bibliografia sobre o patrimanio para demarcar o universo de bens e priticas que merece ser considerado pelos cientistas sociais ¢ politicas culturais. Qualificamos de alarmante esta pretensio de autenticidade porque as atuais ccondigles de circulagao e consumo dos bens simbélicos imapediram as condigdes de produgio que, noutra época, tornaram possivel o mito da originalidade na arte, na arte popular e no patriménio cultural tradicional. Na ARTE Desde 0 célebre texto de Benjamin de 1936, tum dos temas cruciais da estética é a maneira como a reprodutibilidade ténica da pintura, da fotografia e do cinema atrofiam “a aura” das ‘obras artisticas, essa “manifestacio irrepetivel de uma distincia™* que a existéncia de uma obra tania, mum sé lugar, tem para aquele que peregrina a fim contempli-la. Quando se multiplicam em livros, revistas e televisores os © patrimanis calturale. © patriménio cultural Garete Canclian quadros de Orazco © as fotos de Alvarez Bravo, 4 imagem original é transformada pela repeticao ‘exaustiva. © problema da autenticidade e uunicidade da obra muda o seu sentido. Percebernos entio, com Benjamin, que “o auténtico” é uma invengéo moderna e transitéria, De um lado, porque “a imagem de ‘uma virgem medieval nio era auténtica no ‘tempo em que foi feta; 0 foi sendo no curso dos séculos sucessivos, ¢, mais exuberantemente que ‘nunca, no século passado”®. De outro lado, fica ‘evidente que a mudanca atual nio é apenas efeito das novas tecnologias, mas uma tendéncia histérica global —“aproximar espacial ¢ hhumanamente as coisas é uma aspiracio das massas de hoje” — uma exigeneia histdrica ‘Ainda que continue havendo uma distingo entre se perguntar pela obra original na arqueologia e nas artes plésticas ou no cinema e no video, onde a questio jé nao faz sentido, © niicleo do problema é que mudow a insergio da arte nas relagées sociais: agora as obras quase snunca se vinculam a tradigio através de uma relagio ritual, de devogio a obras tinicas, com seu sentido fixo, mas se difundem em miitiplos cenirios e propiciam leituras diversas. Muitas, técnicas de reprodugio e exibigdo dissimulam essa mudanga hist6rica; por exemplo os museus que solenizam objetos que foram cotidianos, os livros que divulgam o patriménio nacional com ‘uma retérica empolada ¢ assim neutralizam a pretensa aproximacio cam o leitor; [mas também a multiplicagio desses museus cotidianos montados no quarto de cada um, onde se prega na parede um cartaz com uma foto de Uxmal, junto 4 reprodugio de um Toledo, recordagées de viagens, um recorte de jornal do més passado, o desenho de um amigo, cenfim, um patriménio proprio que vamos renovando & medida que a vida fui Este exemplo extremo ndo quer sugerir que os museus ¢ os centros histéricos tenham se tornado insignificantes ¢ néo meregam ser visitados, nem que 0 esforgo de compreensio requeride por um centro cerimonial pré- hispinico ou um quadro de Toledo se reduzam hoje a recortar suas reprodugdes e pregé-las no quarto. Preservar a meméria individual nao & 0 mesmo, ¢ claro, que colocar o problema de como assumir a representagio coletiva do passado. Mas o exemplo do museu particular sugere que é possivel introduzir mais liberdade idade nas relages com o patriménio. ‘Também permite pensar como se transforma a apropriagio da arte quando se passa de urn mundo rigidamente hierarquizado, onde os que detinham o poder dispunham de refigios reservados, para este tempo em que “as imagens artisticas so efémeras, ubiquas, acessiveis... Nos rodeiam do mesmo modo que iguagem nos rodeia. Entraram na corrente principal da vida, sobre a qual nao tém nenhum poder em si mesmas”! Permitem-nos ainda definir de outro modo como se forma a experiéncia histérica a0 se relacionar o passado com o presente, como éncontramos e transformamos o significado de nossas vidas participando de processos de reelaboragao, dos quais podemos nos converter em agentes ativos. Nas Artes POPULARES Os artesanatos de maior venda séo imitados em ‘outros povoades ¢ em oficinas das grandes Gidades. A ceramica de Tonalé tem sido ‘methorada ¢ redesenhada em oficinas de “Tlaquepaque com alta temperatura; a olaria crua de Patamban agora ¢ feita também em ‘Taintauntzan; os tecidos e cerimicas originarios de pequenos povoados do Estado do México, Oaxaca e Michoacin, jé sto produzidos na Cidade do México, em parte por migrantes vindos de vilarejos onde esses artesanatos nasceram, em parte por fbricas urbanas que contratam esses migrantes como assalariados ou copiam diretamente os desenhos para usufruir de seus éxitos no mercado, Fssas mudancas na produgio tém seu correlate no consumo. Ao estudarmos o artesanatos purépechas, observamos que cada vex que se 1é “Recuerdo de Michoacin” se sabe que esse objeto foi feito para nao ser usado em Michoacin. Essa formula, supostamente destinada a garantir a autenticidade da pega, é 0 I de sua inautenticidade. Lim tarasco jamais precisara marcar a origem nos potes ou jarros ‘que cle produz para usar em seu povoado. A inscrigio é necessiria para o turista que ‘confundirs essa cerdmica com a adquirida em ‘outros lugares: significa menos o sentido de ‘origem dos objetos do que a distingio social, o prestigio de quem esteve em tais lugares para compri-tos. Em suma, a inscrigio é desmentida pelo fato de estar escrita. Se foi preciso gravar sua origem, supde-se que se pode esquecer, ou desconhecer, sua procedéncia, A maioria dos objetos que trazem essa formula de identificagio nao & comprada dos produtores, nem escalhida pela relagao afetiva de interesse e compreensio que o forasteiro estabelece com quem os faz Quando obtemos a confianga do artesio, ele nos mostra aquilo com que mais se identifica, e talver nos oferega uma pega, mas nio seguramente das que rotula como “lembrangas fingidas para vender nos mercados urbanos", No Patrimonio CuLTuRAL TRADICIONAL Houve uma época em que os museus produziam pias das obras antigas para expé:las As intempéries e ao contato com os visitantes. A reprodugio de pinturas, esculturas e objetos Jogo buscou difundi-los na educagio e no mercado turistico. Em muitos casos, as novas pegas realizadas por arquedlogos ou técnicos em restauragio alcangaram tamanha fidelidade que se tomou quase impossivel diferencié-las do original. Por exemplo, as réplicas de estatuetas pré-colombianas que se fabricar nas oficinas do INAH, na Cidade do México. A diferenciagSo entre o original e a cépia é biisica na pesquisa cientifica e artistica da cultura, Deve-se também distingui-los na’ difusio do patriménio. E, porém, necessirio separar 0 reconhecimento do valor de certos bens da utilizagio conservadora que algumas tendéncias politicasfazem deles. De um lado, 0 reconhecimento que certos objetos e priticas merecem por representarem descobertas na érea do saber, achados formais e sensiveis, ou acontecimentos fundadores da historia de um. ovo; de outro, a pretensio ideolégica de quem ‘busca construir “o auténtico” no centro de uma Revers 99 Parnmoase Witrenco © Ansterico Nasional © patrimdaio colurat Néstor Gorcie Cenctiat © patrimanie culiusal Néstor Gereto Casctens concepgio arcaicizante da sociedad, e pretende {que 0s museus, assim como os templos ou parques nacionais do espirito, sejam os custédios da “verdadeira cultura”, refiigio diante da ia na sociedade de adulteragao que nos opri ‘massa, Sua maniaca oposigao entre um passado sacro, em que os deuses teriam inspirado os artistas ¢ 0s povos, ¢ um presente profano, que trivializaria essa heranga, encontra ao menos trés sificuldades: 1) Idealiza algum momento do passado € 0 prope como paradigma sécio-cultural do presente, decide que todos os testemunhos atribuidos sio auténticos e detém, por isso, um poder estético, religioso ou magico insubstituivel. As refutagées da autenticidade sofridas por tantos fetiches “histéricos” obrigam a ser menos ingénuo. 2) Elimina demasiado rapidamente, com a velocidade do preconceito, todas as oportunidades de ampliar 0 acesso & experiéncia € compreensio do proprio passado ¢ de outras, cculturas, que as técnicas de reprodugao ‘contemporineas oferecem, Pot que impedir que 1s poucas pegas sobreviventes da escultura ¢ a ‘cerimica de alguns dos principais povos pré- hispinicos sejam conhecidas de forma direta, igracas a réplicas exibidas em virios museus, afastando-as dos descendentes dessas cultures? 3) Esquece que toda cultura é resultado de uma selegio ¢ uma combinaglo, sempre renovadas, de suas fontes. Dito de outro modo: € produto de uma encenagio, onde se elege € adapta o que se vai apresentar, de acordo com 0 {que 0s receptores podem escutar, ver compreender. As representagdes culturas, desde ‘os relatos populares aos museus, nunca apresentam 0s fatos, nem cotidianos nem ‘transcendental: sdo sempre re-presentacdes, teatro, simulacro. Sé a fé cega fetichiza os objetos eas imagens acredltando que neles se deposita a verdade. O olhar moderno sabe que os objetos adquirem € mudam seu sentido em processos histéricos, dentro de diversos sistemas de relagies sociais e submetidos a construgées ¢ reconstrugdes imaginrias. Um testeraunho ou tum objeto podem ser mais ou menos verossimeis, « portanto significativos, para os que se relacionam com cle e se interrogam sobre o seu sentido atual. Esse sentido pode circular e ser captado através de uma reprodugie cuidada, com explicagoes que situem a pega em seu ambiente sécio-culeural, com uma museografla mais interessada em reconstruir seu significado do que em promové-ls a espeticulo ou fetiche. Por outro lado, um objeto original pode ocultar o sentido {que teve — pode ser original e no entanto perder ‘sua relagio com a origem — porque foi descontextualizado, porque seu vinculo com a «anga ou a comida em meio as quais ele era usado foi cortado, atribuindo-se-Ihe uma autonomia inexistente para seus primeiros ususrios. Isto significa que a distingdo entre uma cestrela original ¢ uma cépia, entre um quadro de Diego Rivera e uma imitago, tomou-se indiferente? De modo algum. Tio obscurecedora quanto a posicdo que absolutiza uma pureza iluséria ¢ a de quem, resignado ou seduzido pela mercantilizagdo e suas falsificagdes, por certa liberagdo pés-moderna ‘ou um cinismo histérico, prope aderir alegremente aboligao do sentido, ao giro vertiginoso e histérico dos significantes que dangam nas vitrines", J4 dissemos que ha objetos singulares por sua espessura cultural ow valor estético, pelo seu carster Unico na sociedade que 0s engendrou ou pelo significado que adquirem na historia, Morecem, por isso, que cada povo continue preservando-os como testermunbos, cultivando sua meméria sua admirac3o em museus, exposicées itinerantes, bem como nas multiplas reproduces — filmica, televisiva, em e6pias do proprio objeto — que possam contribuir para 0 seu conhecimento ¢ apreciagio. Para se elaborar 0 sentido histérico ¢ cultural de uma sociedade, & importante que sc extahelega o sentido original que tiveram, que se diferenciem os originais das imitagdes. Também parece elementar que, quando as pegas sio deliberadamente construidas como réplicas, ou quando nio se tem certera sobre sua origem ou periodo, esas informagGes sejam indicadas numa legend, ainda que amitide os muscus as omitam por temor de, assim, perderem o interesse do visitante. Torpe suposicio: dividir com o plblico as dificuldades da arqueologia ou da histéria, a luta dos pesquisadores para descobrir lum sentido ainda seguro, pode ser uma técnica legitima para suscitar curiosidade ¢ atragio pelo conhecimento. A incerteza é também a ocasiio para que resplandesga o que uma méscara ou ‘uma vasitha acolhem de mistério e poesia ConcLusAo A politica cultural relerente ao patriménio no tem como tarefa resgatar apenas abjetos “auténticos” de uma sociedade, mas os que sio culturalmente representatives. Os processus nos interessam mais do que os objetos, ¢ nos interessam nio por sua capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas sim porque “representam certos modes de conccber ¢ viver 0 mundo ¢ a vida préprios de certos grupos sociais™. Por isso mesmo a investigacio, a restauragao © a difusdo do patriménio no tém por fim Uikimo perseguir a autenticidade, ou reinstaura la, mas reconstruir a verossimilhanga histérica, Em quase toda a bibliografia sobre 0 patriménio, ainda é necessério efetuar essa ‘operagao de ruptura com o realisme ingénuo que @ epistemologia realizou ha tempos. Assim como 0 conhecimento cientifice nio pode refletira vida, tampouco a restauragio, ou a mascografia, ou a divulgagio mais contextualizada e diditica conseguirdo abolir a distincia entre realidade e representagio, Toda operago ciemtifica ou pedagdgiea sobre o patriménio é uma meta-linguagem, nao fx falar as coisas, mas fala dee sobre elas, Alberto Cirese diz a respeito do museu: “para incluir a Vida, o- muscu deve tanscendé-la, com sua propria linguagem e em sua prépria dimensio, criando outra vida com suas préprias eis, ainda que sejam homélogas ¢ também diferentes daquelas da vida real”. O muscu e qualquer politica patrimonial devem tratar os objetos, 05 ‘oficios ¢ os costumes de tal modo que, mais que cexibi-los, tornem inteligiveis as relagbes entre eles, proponham hipéteses sobre © que significam para a gente que hoje os vé ¢ evoca. Um patriménio reformulado que considere seus usos socials, no a partir de uma mera atitude defensiva, de simples recolhimento, mas ‘com uma visio mais complexa de como a sociedade se apropria de sua histéria, pode © patrimdnta cultural Néstor Garete Conciins © par 2 Gere Nee abranger novos sctores. Nao hi por que reduzir- se a.um assunto de especialista no passado: Interessa aos funcionérios e profissionais ‘ocupados em construir 0 presente, aos indigenas, camponeses, migrantes ¢ a todos os setores cuja identidade costuma ser depreciada pelos usos hegeménicos da cultura, A medida que nosso estudo e promogio do patriménio assuma os conflitos que 0 acompanham, poder- se-4 contribuir para a afirmagio da nagio, nao ‘como algo abstrato, mas sim como aquilo que tune ¢ concentra num projcto histérico s (08 grupos sociais preocupados com a forma ‘como habitam seu espaco e conquistam sua qualidade de vida, NOTAS 1. Vejam-se os materiais reunides no livro de FERNANDEZ, Salvador Diaz-Berro. Conservacién de monumentos y zonas. México: INAH, 1985. 2. Quero destacar a documentagso produzida pela UNESCO em tomo do que denomina ‘patriménio material”, Vejase a “Recomendagio sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular", aprovada na 25* Conferncia Geral, em 15 de novembro de 1989, em Paris, © 0 diagnéstico sobre cesta drea de GRUZINSKI, Serge, “Sauvegerde du patrimoine non-physique: bilan et nouvelles, perpectives”. Paris, outubro de 1992, 3. Trata-se de um principio gera, estbelecide por ‘quem investiga as leis sociis da difusio coltural (vcjam-se especialmente BOURDIEU, Pierre ¢ PASSERON, Jean Claude, La reproduccién, Elementos pra una teore del sistema de enseianze. Barcelona: Lia, 1977; e BOURDIEU, P. © DARBEL, Alan, amour de Har, les mses dart européens et leur public. Paris: Minuit, 1969). Ngo se trata de uma ddeterminagao mecénica do nivel econdmico ou ‘ectucacional sobre a capacidade individual de apropriagdo do patriménio, mas 0 que as indagagtics revelam sobre o modo desigual com que as insttuigdes transmissoras do patrimSaio permitem sua apropriagio, devido & sua organizacio e sua articulagio com outras desigualdades sociais. (Conclusies semelhantes se encontrar no bivra de CANCLINI, Néstor Garcia (coord.). El consumo culturoben México. México: CNCA, 1993), 4. Adota-se aqui o conceito de capital culeural Utilizado por Bourdieu para analisar processos culturais e educacionais, ainda que ele nio.0 ‘empregue especificamente em relagdo ao patriménio, Dada a extensio © 0 propésito desse texto, apenas s¢ assinala sua fecundidade para dinamizar a noso de patriménio e situi-la na reprodugzo social. Um uso mais sisteritico deveria colocar, como qualquer apticagio de um conceito a outro campo, as condigies epistemoligicase os limites do uso metaférico numa rea para a qual nfo foi trabalhedo como conceito

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