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O CAMPO DO PATRIMONIO CULTURAL: UMA REVISAO DE PREMISSAS Ulpiano Toledo Bezerra de Menese. RESUMO O objetivo da conferéncia é convidar a uma reflexao critica permanente sobre certas premissas que orientam o trabalho no campo do patriménio ¢ que, por acomodacao nossa, acabam por se desgastar ou se reduzem a referéncias mecanicas. Inicialmente, apresenta-se como a desarticulagio entre praticas e representacées, acentuando estas tiltimas, esvazia o patriménio de seu contetido existencial ¢ privilegia os perversos “usos culturais da cultura’, concentrados em segmentos a parte do cotidiano e do universo do trabalho. A seguir, discute-se a inconveniéncia da polaridade entre material e imaterial. Ao se examinar a Constituigéo de 1988, vé-se que sua grande novidade, no tema, foi deslocar do estado para a sociedade ¢€ seus segmentos a matriz do valor cultural. Impée-se, assim, repensar 0 quadro de valores culturais vigentes ¢ que precisarfamos formular do ponto de vista das préticas culturais ¢ seus praticantes, nao mais supondo que tais valores sejam imanentes as coisas. PALAVRAS-CHAV Patriménio cultural, Matriz cultural, Categorias de valor cultural, Praticas culturais. Fiquei muito honrado e agradecido com 0 convite do presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, para falar nesta sessio de abertura de um evento tao importante como o I Férum Nacional do Patriménio Cultural. Fico agora um tanto preocupado, porque as falas que me precederam foram perfeitas para uma sesso de abertura, foram capazes de definir horizontes, balizas, situar trajet6rias, propor metas ¢, mais ainda, insuflar os animos, alimentar o entusiasmo e recartegar as baterias para 0 trabalho que viré nos préximos dias. De minha parte, programei falar de *Professor emérito da FFLCH/USP Conselheiro do Conselho Consultivo do Patrimonio Cultural Conferéncia Magna 25 26 Vol.1 | Forum Nacional do Patriménio Cultural problemas conceituais ¢ de fundamentos que devem nortear nosso trabalho de especialistas do patriménio cultural - tema talvez pouco apropriado para uma abertura de evento e quase certamente menos apropriado ainda para este hordrio tardio. No entanto, é na disposigao de ser titil que escolhi o tema “O campo do patriménio cultural: uma revisio de premissas”. Sua formulagao pode parecer um tanto pretensiosa, mas meu objetivo é chamar a atengao para a necessidade indispensdvel e urgente de manter permanentemente uma atitude critica em relagéo a certas premissas que devem orientar a atividade no campo do patriménio cultural ¢ que acabam por se desgastat, se banalizar ou se perder em desvios. Nao pretendo dar ligdes ou doutrinar, nem mesmo ser sistemdtico, mas propor uma agenda de questées que, na minha perspectiva, merecem aprofundamento critico reflexao continuada. Considerei oportuno tomar como referencia desta minha exposicao um cartum publicado hé muito tempo numa revista ilustrada francesa — perdi a pista, mas ¢ muito provavel que se trate de Paris-Match. Essa imagem me acompanha desde que comecei a me interessar pelo patriménio cultural, pela sua capacidade de sintetizar uma série de problemas com uma extraordinatia forga de conviccao que s6 08 artistas so capazes de obter (tenho a vaga meméria de que o cartunista seria Sempé). Nessa imagem, no interior hierdtico, solene ¢ penumbroso de uma catedral gética (Chartres), aparece uma velhinha encarquilhada, de joelhos diante do altar-mor, profundamente imersa em oragao. Em torno dela, a contemplé-la interrogativamente, disp6e-se um magote de orientais, talvez japoneses. A presenga de um guia francés nos permite considerar que se trata de turistas em visita & catedral. O guia toca os ombros da ancia e lhe diz: — “Minha senhora, a senhora esté perturbando a visitacao”. Eis um retrato impressionante da perversidade de certa nogao de patriménio cultural vigente entre nés. CULTURA: ENTRE PRATICAS E REPRESENTAGOES Conviria comecar por identificar as diferengas cheias de implicagoes entre a velhinha, os turistas ¢ o guia. Ela, ao que tudo indica, é uma habitante do lugar que também abriga a catedral. Sua agao é plenamente territorializada: nada nela indica que seu procedimento se dissocie dos demais espagos contiguos em que se desenrolaria sua vida cotidiana, a comecar pelas roupas simples, do dia a dia ¢ pelo fato de se encontrar sozinha, apesar das caréncias trazidas pela idade. Alids, ela pode ser rigorosamente considerada 0 protétipo do habitante — para o que a cotidianidade é precondigao. O verbo habeo em latim significa possuir, manter relagdes com alguma coisa, apropriar-se dela. Com o acréscimo da particula is, que indica reforgo (como em salio, “dangar, pular” ¢ saltito, “dar pulinhos”), o verbo habito acrescenta intensidade e permanéncia a essas relagoes. Hdbito, habitualidade expressam bem essa nocéo de constancia, continuidade. Trata-se, portanto, de uma relagio de pertencimento — mecanismo nos processos de identidade que nos situa no espaco, assim como a meméria nos situa no tempo: sao as duas coordenadas que balizam nossa existéncia. Consequentemente, a relagio da velhinha com a catedral nao deve ser pontual, de excecao ou que se consuma num momento privilegiado ¢ depois nao mais se repita, ou se repita de forma atenuada ou descontinua. A relagao da velhinha é existencial, pressupondo tempos dilatados (morar, moradia sao palavras que também explicitam esse contetido de extensio temporal no habitar). Jé para os turistas, a atividade que executam se revela desterritorializada, secionada de seu cotidiano, opondo-se mesmo a ele, pois desprendida de habitualidade. De qualquer forma, pressup6e-se um fosso entre 0 cotidiano desses turistas € o tempo/espago comprimido da visita & catedral. Além disso, a forma de relacionar-se que habitante ¢ visitantes desenvolvem com o — vamos chamar assim - “bem cultural” é funda- mentalmente diversa. A vida cultural, no caso da velhinha, pode ser entendida como uma forma de qualificacao pelo sentido e, portanto, como raiz de interioridade ¢ consciéncia. Rompido, porém, 0 quadro da habirualidade e da reiteracao, o potencial de qualificagao se restringiria. Mas a fruigéo da velhinha é profunda, vivenciada, e sua oragao na catedral deve envolver ndo sé uma apropriacao afetiva, como também, sem diivida, estética, isto é perceptiva, jé que o ambiente emite estimulos de toda a ordem para aprofundar o tipo de agéo que ela esta praticando. Por certo, essa fruiggo é também cognitiva: ela pode néo ter conhecimento especializado, mas, ainda que possivelmente sem saber que sua catedral é um extraordinério exemplar da arquitetura gética do século XII, deve aprender a antiguidade do templo, o que isso representa de trabalho embutido, de experiéncias acumuladas ao longo do tempo, de enraizamento e referencias para 0 espago de sua cidade e de interac com seus vizinhos, com os frequentadores e responsaveis dos cultos, com a comunidade de fi¢is. Mais Conferéncia Magna 27 28 Vol.1 | Forum Nacional do Patriménio Cultural ainda, sua oragao busca transcendéncia e comprometimento, que envolvem dimensdes profundas e abrangentes do ser, da subjetividade, de outras esferas de sua existéncia. Para cla, 0 “bem cultural” é, antes de mais nada, um bem, quer dizer, coisa boa, Boa de conhecer, de ver, de sentir, de experimentar como um vinculo pessoal e comunitirio e, finalmente, boa de usar, de praticar — pragmaticamente é um bom lugar para rezar. De seu lado, a fruigao dos turistas consuma-se na mera contemplacao de um lugar de culto, agora transformado em lugar de representagao do lugar de culto: a catedral tornou-se bem cultural e essa perspectiva esvazia usos antigos ¢ torna anacrénicas as préticas anteriores. A gama diversificada de apreensbes possiveis estreita-se, assim, ao limite da visio. Quase poderfamos falar de um voyeurismo cultural: 0 voyeur, com efeito, restringe sua gratificagao essencialmente a visio € nao se exp6e, nao se compromete, em suma, no muda. Seu espaco de habitualidade, aquele em que as transformagées profundas podem ocorrer ¢ se manter, nao é mobilizado, Mais precisamente, contudo, a redugao talvez nem seja & visio, mas & audigao, j4 que os turistas ouvem distraidamente — pois mais interessados na ancii — 0 que o guia tem a dizer, ao invés de viver e de interagir diretamente com 0 bem. Sao apenas informados sobre ele, necessitam da mediacéo do guia. A experiéncia cultural, portanto, passa a depender da atuagio de especialistas. David Horne, estudioso da public culture, diz que © padrao das visitas guiadas é 0 da transferéncia: vé-se aquilo que o guia declara que se est vendo. Seja como for, 0 envolvimento de nossos turistas € nulo ou superficial, sobretudo externalizado, Estou, sem duivida, radicalizando os dois paradigmas, para melhor analisé-los, mas nfo ignoro a existéncia, entre eles, de uma vasta escala intermedidria que, todavia, nao € 0 caso de desenvolver aqui. Assim, com 6s turistas, tem-se a cultura como um dominio 4 parte na vida, embora se trate de um compartimento nobre e nobilitante, marcado por certo tipo de objetos ¢ préticas, que deteriam em si a prépria significagdo, j4 pronta e acabada. Sao espagos, tempos € comportamentos desejéveis e prescritos, embora descontinuos e, em regra, excluidos do cotidiano e do universo do trabalho, duas referéncias que marcam contextos essenciais da existéncia humana. Constituem focos de condensacio, que podem atingir picos de intensidade, mas depois se esvaziam: ¢ a cultura-célica. Ao espasmo segue- se 0 descongestionamento progressivo ¢ a volta ao ponto de partida. Ea cultura dos produtos culturais, dos produtores, consumidores, equi- pamentos, instituigdes, espacos, organismos, érgaos ptiblicos, mercados. Seria dispensavel observar que tal entendimento, dominante entre nés, é o que melhor atende ao mercado simbélico, parte importante do mercado tout court. Em contraponto, com a velhinha, a cultura se apresenta nao como esse segmento recortado da vida, mas como uma forma de qualificar diferencialmente (pelo sentido, pela significacio, pelo valor) qualquer fatia, instincia, tempo, objeto ou pratica. O uso que a velhinha faz do bem cultural é qualificadamente existencial, por oposigao ao “uso cultural” dos turistas. O uso cultural da cultura ao invés de estabelecer uma interagao das representacdes ¢ praticas, privilegia as representagdes que eliminam as praticas. O simbélico substitui as condigées concretas de produgio ¢ reproducao da vida. De passagem observo que a politica de patriménio imaterial que o Iphan vem desenvolvendo procura reconhecer que 0 campo cultural diz respeito i totalidade da vida social, quando diferencialmente qualificada (pelos sentidos, valores). Linhas de agao, como “sistemas agricolas tradicionais”, por exemplo, sio capazes de articular organicamente facetas & primeira vista tao alheias & cultura, quando cla ¢ equivocadamente entendida como uma gaveta a parte. Uma palavra quanto aos turistas. Seria perverso pretender negar acesso a valores que podem ser partilhados ¢ cuja partilha, alids, deveria ser incentivada. O que é bom é para ser dividido — e se trouxer beneficios econémicos, tanto melhor. Da mesma forma, porém, seria perverso admitir que o regional, o nacional ou o universal, para se realizarem, esvaziem outros legitimos sentidos e praticas otiginais locais, que nao correspondem mais a uma nova ordem de interesses. O comportamento da velhinha, de fato, transgressor, cla de fato perturba a visitacao e estd deslocando a atengao dos visitantes pelo seu anacronismo. Tal modalidade de musealizacao, de “culturalizagio” funciona, assim, precisamente como vetor de especializacao dos “beneficios” que os “bens culturais” poderiam produzir. Pior seria — ¢ ¢ssa situagdo nao é propriamente excepcional — que bens declarados de valor mundial fossem ignorados pela populagao local (salvo como mercadoria como pode algo valer para o mundo todo, se nao vale para aqueles que dele poderiam ter a fruigao mais continua, mais completa, mais profunda? Como pode o patriménio mundial nao ter, antes, valor municipal? (Esta frase é dedicada ao prefeito Angelo Oswaldo). Conferéncia Magna 29 30 Vol.1 | Forum Nacional do Patriménio Cultural Alids, € necessdrio repensar a escala de alcance dos bens culturais (municipal, estadual, federal), quase sempre definidos a partir de critérios juridico-administrativos ou quantitativos ou segundo apenas a extensio espacial da ocorréncia. Lembro-me de um poema de Carlos Drummond de Andrade: O poeta municipal discute com o poeta estadual, qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso, o poeta federal tira ouro do nariz. O presidente Luiz Fernando de Almeida lembra, também, que, quando Ouro Preto ganhou o titulo de Monumento Mundial, Carlos Drummond de Andrade saiu-se com essa no Jornal do Brasil: “Qualquet dia Ouro Preto vira monumento interplanetétio e continuard com os mesmos problemas”, E preciso introduzir outros critérios para avaliar os circulos concéntricos de pertinéncia e interesse do bem, que possam antes de mais nada definir seu potencial de interlocugéo. A grade referéncia deveria ser esse potencial de interlocugio, comesando sempre com os interlocutores locais. MATERIALIDADE / IMATERIALIDADE Voltando & imagem, 0 que nela se vé é uma ancid e um grupo de turistas orientais que tém em comum o fato de estarem onde estdo, embora reagindo ao ambiente de formas muito diferentes — mas se referindo sempre ao mesmo objeto material complexo: a catedral. Esse mesmo objeto tem significados diversos, em cada caso. Para os turistas, ele tende, como jé dissemos, a dispor de significados em si, estaveis, fixos, definidos, que nao so identificados e fruidos diretamente, mas pela informacao especializada do guia. E como se esses significados fossem imanentes & coisa, mas necessitassem da mediagéo de um profissional para produzir efeitos. Para a velhinha, tudo leva a crer que a catedral é um vetor de significagoes miiltiplas, que nao sao inerentes a coisa, mas geradas dentro e fora dela, naquela teia de relagées a que também acima aludi. Para a apropriagao espectfica que ela tem da catedral (lugar de oracéo), a velhinha contaria com outras possibilidades: orar é uma forma espiritual de comunicagio que no exige um lugar especifico. Mas que pode ser enriquecida, potenciada, qualificada pela mediagao de lugares especificos, como nossa catedral gética. Portanto, essa forma espiritual de comunicacao se potencia pelo aporte material do lugar, que fornece os estimulos préprios, inclusive as imagens objetos sacros carregados de contetidos simbélicos, o todo acentuado pelas marcas do hdbito, da interagao, da meméria, etc. Assinalei a forma espiritual de comunicagéo, contudo nio estou esquecendo que nao é apenas seu espirito que est4 empenhado no ato de orar, mas também todo seu corpo. Postura, fisionomia e — se a imagem chegasse a esse ponto de precisdo — quem sabe até mesmo 0 movimento dos labios que to comumente serve de lastro para o que vai na alma do fiel. A boca (0s, oris em latim) é um dos érgios da oragao. Podemos concluir que o patriménio cultural tem como suporte, sempre, vetores materiais. [sso vale também para 0 chamado patriménio imaterial, pois se todo patriménio material tem uma dimensio imaterial de significado © valor, por sua ver todo patriménio imaterial tem uma dimensdo material que lhe permite realizar-se. As diferengas nao sio ontolégicas, de natureza, mas basicamente operacionais. A Constituigio Federal de 1988, ao introduzir uma listagem de categorias de patriménio cultural, incluiu o patriménio intangivel, caracterizado mais por processos do que por produtos, como formas de expresso, modos de criar, fazer viver, os quais, porém, se examinarmos mais de perto, pressupdem miiltiplos suportes sensoriais, incluindo 0 corpo. Os constituintes talvez. nem tivessem consciéncia de que, desse modo, estavam, incluindo o corpo como participe do patriménio cultural! © “saber-fazer”, por exemplo, néo € um conhecimento abstrato, conceitual, imaterial, filosdfico ou cientifico, mas um conhecimento corporificado. Os especialistas falam de uma meméria-hébito ou meméria corporificada (embodied memory). E.a meméria que nos permite guiar um veiculo ou andar de bicicleta como se fossem aces geneticamente previstas em nosso programa biolégico. E a meméria do miisico, da cozinheira, do artesio. Seja como for, embora nao convenha alterar a nomenclatura internacionalmente corrente, seria desejavel que, ao utilizarmos a expresso “patriménio imaterial” a despissemos de qualquer polaridade com um patriménio material. No filme Kenoma de Eliane Caffé, 1998, quando um ajudante levanta restrig6es intelectuais a um matuto, cujo sonho obsessivo era construir uma miquina de moto-perpétuo, este replica que a mente podia ser pobre, mas a mio ia fazendo e 0 cérebro acompanhando. Bate com 0 que Marcel Conferéncia Magna 31 32 Vol.1 1 Forum Nacional do Patriménio Cultural Mauss, um dos heréis fundadores da antropologia, pensava do homem como o animal que pensa com as maos. E por esse caminho que valeria apenas conduzirmos as relagoes do material e do imaterial, Daniel Miller, antropélogo pesquisador da cultura material, aponta um paradoxo crucial nessa drea: a imaterialidade s6 pode se expressar por intermédio da materialidade. Para completar, o filésofo da técnica, Bernard Stiegler cunhou a expressdo “materialismo espiritualista” para referir-se aquele que nao diz que o espirito é redutivel & matéria, mas que a matéria €a condigao do espirito em todos os sentidos da palavra condigao. Impée- se, pois, superar dualismos insustentdveis, como esse em que matéria e espirito sio mutuamente excludentes. Qual o fundamento dessa perspectiva? A resposta é precisa: nossa condigio corporal. Outro antropélogo especialista na cultura material, Jean- Pierre Warnier, insiste em que nao basta dizer que temos um corpo; é necessdtio precisar que somos um corpo. Quer dizer, essa é a maneira de estamos no mundo, neste mundo. Aqui est4, pois, 0 coragdo de nosso problema: falar e cuidar de bens culturais nao ¢ falar de coisas ou préticas em que tenhamos identificado significados intrinsecos, préprios das coisas em si, obedientemente embutidos nelas, mas ¢ falar de coisas (ou priticas) cujas propriedades, derivadas de sua natureza material, sio seletivamente mobilizados pelas sociedades, grupos sociais, comunidades, para socializar, operare fazer agir suas ideias, crengas, afetos, seus significados, expectativas, juizos, critétios, ormas, etc., etc. — e em suma, seus valores. Sé 0 fetiche (feitico) tem em si, por sua autonomia, sua significagao. Fora dele, a matriz desses sentidos, significages e valores nao estd nas coisas em si, mas nas préticas sociais, Por isso, atuar no campo do patriménio cultural é se defrontar, antes de mais nada, com a problemética do valor, que ecoa em qualquer esfera do campo, VALOR Portanto, essa seria uma questéo central, a demandar tratamento adequado — que ainda nao recebeu em nossa formacao especializada. Fala- se muito em valor, mas é raro que se saiba, precisamente, do que se esté falando e de suas consequéncias. Por certo, nao é este o momento de tracar uma stimula da problemética do valor, questo espinhosa e que demandaria tempo. Ou de examinar a inconveniéncia das categorias usuais de “valor arquiteténico” ou “valor histérico”, por exemplo. Irei diretamente para a questéo nuclear: a matriz do valor. Se o valor é sempre uma atribuigao, quem o atribui? Quem cria valor? Vale a pena reproduzir o famoso artigo 216 de nossa Constituigdo de 1988, pois ela toca diretamente nesse ponto: Constituem patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material ¢ imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia & identidade, a aco, & meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem... (e ai vem uma listagem de modalidades). Entre os profissionais, costuma-se considerar que a grande novidade oferecida por esse artigo é a incluséo dos bens de natureza imaterial. Na verdade, 0 que € radicalmente novo nao ¢ uma extensao do horizonte do patriménio, mas um deslocamento da matriz, Para melhor aferir a amplitude dessa rotagao de 180° convém confronté-la com a legislacao anterior. O Decreto-Lei 25/1937 (que organizou o patriménio no Brasil ¢ ainda serve de guia) estatui: Art.1° Constitui 0 patriménio artistico ¢ histérico nacional o conjunto dos bens méveis iméveis existentes no pais ¢ cuja contervasao seja de interesse pitblico, quer pot sua vineulagio a faros memordveis da histéria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueoldgico ou etnogréfico, bibliografico ou artistico. Eo pardgrafo 1° completa: Os bens a que se refere 0 presente artigo s6 serao considerados parte integrante do patriménio histérico artistico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos 4 Livros do Tombo, de que trata o art. 4° desta Lei. Em outras palavras, era 0 poder puiblico que institufa o patriménio cultural, 0 qual s6 se comporia de bens tombados. O tombamento, portanto, tinha papel instituinte do valor cultural - daquele valor que credenciava a incluséo do bem num rol formalmente definido. Ao inverso, anova Constituicéo Federal reconheceu aquilo que € posicéo corrente, hé muito tempo, nas ciéncias sociais: os valores culturais (os valores, em geral) nao sao ctiados pelo poder puiblico, mas pela sociedade. O patriménio antes de mais nada um fato social — essa afirmacéo, nos érgdos de Conferéncia Magna 33 34 Vol.1 | Forum Nacional do Patriménio Cultural preservacdo, nas décadas de 1970 e 1980, provocava escdndalo ¢ alimentava mal-entendidos. E claro que o estado e o governo podem participar da criagdo desses valores, privilegiando ou marginalizando uns e outros, mas sempre no jogo das prticas sociais. Estas é que séo o ventre gerador. O poder ptiblico, agora, tem um papel declaratério ¢ Ihe compete, sobretudo, protecao, em colaboragao com o produtor de valor, a comunidade (para usar um termo problematico pela sua ambiguidade e utilizado pelo constituinte). Entretanto, mesmo sem qualquer intervengao do poder ptiblico, existe o “patriménio cultural nacional”. No entanto, consolidou-se entre nés uma pratica esquizofrénica, em que as novas diretrizes constitucionais parece valer s6 para 0 patriménio imaterial ¢ as antigas, que foram constitucionalmente invertidas, continuam em vigor nas ages relativas ao patriménio material. Af, continuamos a trabalhar como se o valor cultural fosse identificdvel exclusivamente a partit de certos tragos intrinsecamente presentes nos bens. F. deslocamento de significados, reificagao, fetichizacao. Se fosse aceitdvel, bastaria um contador Geiger para bens culturais, cuja agulhinha girasse emocionada diante de um belo exemplar que ostentasse uma porcentagem determinada de sintomas, numa checklist capaz de identificar esséncias presentes na coisa/pratica. Também se observa certa esquizoftenia na personalidade aut6noma do patriménio material ¢ do imaterial - esquizofrenia que, alids, se reflete no interesse das “comunidades” que solicitam o registro de expressdes de seu patriménio imaterial, e que procuram reconhecimento, afirmagéo, estimulo a autoestima — e, de outro lado, a reacio frequentemente negativa ou, no minimo, o desinteresse dos “interessados” (antes de mais nada os proprietérios), quando se trata de bens arquiteténicos ou espacos urbanos. A fora da especulagao imobilidria, neste tiltimo caso, no € razao tinica ¢ suficiente para gerar tal resistencia. Desconhecer os mecanismos de funcionamento da sociedade também tem parte na responsabilidade. Estarfamos diante de uma nova polatidade: valor técnico versus valor social? Nao ainda, mas 0 risco esté presente. Por isso, julgo premente comecarmos a rever nossa postura a respeito do valor e da avaliacio (reconhecimento do valor), sem excluir a perspectiva do especialista, obviamente, mas sempre privilegiando aquela do usudrio, do fruidor — em outras palavras, a perspectiva da velhinha do cartum. Ela, em tiltima instincia, é produtora do valor em causa e que ela tem o dircito ¢ a gratificacéo de fruir. Sem entrar em detalhes, gostaria de propor aqui um roteiro para tal avaliacdo, que permitisse identificar componentes ou referéncias do valor cultural. Embora se deva tratar 0 patriménio unificadamente, sem distinguir as categorias de material, imaterial, natural, ambiental, histérico, arquiteténico, artistico, etc., a imagem que nos serve de guia condensaré na catedral a referéncia basica, que pode ser estendida as demais categorias. Penso nos seguintes principais componentes do valor cultural: valores cognitivos, formais, afetivos, pragmaticos e éticos. Preliminarmente, porém, vale acentuar que tais componentes nao existem isolados, agrupam-se de forma variada, produzindo combinagées, recombinacdes, superposigées, hierarquias diversas, transformagées, conflitos. 1) VALORES COGNITIVOS, Se (ou quando) a catedral de nosso cartum tiver condigoes de conhecimento, ou constituir oportunidade relevante de conhecimento — qualquer conhecimento — entao 0 valor dominante, af, é cognitivo. Por seu intermédio pode-se conhecer 0 conceito de espaco que organizou o edificio, seus materiais ¢ técnicas, seu padrao estilistico; podemos tracar os efeitos dos interesses em causa na sua projetacao, as condigoes histéricas (técnicas, econémicas, politicas, sociais, culturais) de sua construcao, usos ¢ apropriagées, os diversos agentes ou categorias sociais envolvidos, sua trajetéria, sua biografia. O bem esté sendo tratado, entao, como documento, ao qual se dirigem questes para obter, como resposta, informacéo de miiltipla natureza. E um valor de fruico basicamente intelectual. 1) VALORES FORMAIS Quando, porém, essa mesma catedral é percebida (ou também & percebida) no tanto como documento, nao tanto para produzir informagéo, mas como oportunidade qualificada para gratificar sensorialmente ¢ tornar mais profundo 0 contato de meu “eu” como 0 “mundo externo” ou “transcendente”, entao o valor predominante é 0 formal ou estético. Estou tomando estético no sentido original, tomado do grego. Aisthesis significa percepcao. Nao estou me referindo a beleza, bela forma, aos sistemas do belo, canones historicamente mutdveis, ndo universais. A Conferéncia Magna 35 36 Vol.1 : | Forum Nacional do Patriménio Cultural estética diz respeito a essa ponte fundamental que os sentidos fornecem para nos possibilitar sir de dentro de nés, construir e intercambiar significados para agir sobre 0 mundo. Trata-se, no caso, do efeito da presenca, nos objetos, de atributos capazes de agugar a percepcio, de levar a uma apreensio mais profunda, de induzir a produgio e a transmissio mais amplas de sentidos — alimentados pela meméria, convengGes ¢ outras experiéncias— qualificando minha consciéncia e meu agir. A estética, assim, € uma mediagao que nos faz humanos. Isso nao coincide com estilos, embora atributos formais dos estilos possam, precisamente, agugar minha percepgao, qualificando-a. it) VALORES AFETIVOS Os valores que costumamos chamar de histéricos (mas relacionados & meméria ¢ nao a conhecimento controlado) estariam mais bem enquadrados na categoria de valores afetivos. Nao sio propriamente histéricos, jd que se trata de formulagéo de autoimagem e reforgo de identidade. Sao afetivos, pois constam de vinculagées subjetivas que se estabelecem com certos bens, como ocorre certamente ~ ¢ intensamente — com a velhinha. Aqui é bom lembrar: meméria e Historia nem coincidem, nem sao duas faces da mesma moeda. Por isso, se se tratar de Histéria como produgio critica de conhecimento, estamos no dominio dos valores cognitivos (o primeiro mencionado). Se se tratar de carga simbélica e de vinculos subjetivos, como o sentimento de pertenga ou identidade, 0 dominio é dos valores afetivos. Nao ignoro que meméria e Histéria partilham de varios atributos comuns, inclusive de cardter subjetivo cognitivo, sem, todavia, afetar a distingo acima proposta. Quanto aos valores afetivos, sua afericao ndo pode confundir-se com pesquisas de opinigo, muito menos com a adesao a abaixo-assinados e manifestagoes equivalentes. Envolve mecanismos complexos, como as representagées sociais eo imaginério social, para os quais a psicologia social desenvolveu métodos de pesquisa adequados. Em tempo: a prépria nogao de histérico adotada pelo Decreto-Lei 25 vai na direco do valor afetivo, quando seleciona objetos que séo contaminados pelo contato com eventos ¢ personalidades; nada impede, contudo, que eles possam ser alvo de valores cognitivos, se tratados como documentos. Em tltima instancia, documento é todo suporte empirico capaz de responder a uma pergunta do observador — 0 que os leva muito além daquilo que poderiamos chamar de “documentos de nascenga”. ) VALORES PRAGMATICOS Sio mais que valores de uso. De novo a velhinha: ela, certamente, a0 procurar o templo para sua ora¢io, embora nao fosse indispensdvel, deve ter percebido como suas condigées de uso disponivel sio capazes de televantemente qualificar sua prética, por causa também de valores pragméticos. Para dizer com outras palavras: valores pragmaticos sao valores de uso percebidos como qualidades. Tais valores séo comumente marginalizados ou ignorados entre nés, com significativa frequéncia. Nao estranha, pois vivemos numa sociedade que ainda nao superou a heranga escravista, em que o trabalho eo trabalhador nao gozam de cidadania plena, em que “ctiada” quer dizer “empregada” e em que “clevador de servigo” quer dizer “elevador de servigal”. E em que o desperdicio chega a 15% do PIB, em que o reuso nao é tema relevante nas escolas de arquitetura ¢ assim por diante. V) VALORES ETICOS Sao aqueles associados nao aos bens, mas As interagGes sociais em que eles so apropriados ¢ postos a funcionar, tendo como referéncia o lugar do outro, A postura do guia, no cartum, revela que tal valor nao faz parte dos critérios que dao rumo &s suas agdes. Uma discussio sobre os valores éticos exigiria 0 tratamento de questoes espinhosas como o relativismo (cognitivo, cultural, moral), assim como os direitos culturais em face dos direitos humanos — quest6es que nao cabem neste contexto. E preciso, todavia, apontar que, se o direito & cultura € 0 direito & diferenga, esta s6 tem legitimidade quando é capaz de dialogar e produzir transformagées mtituas. Sem isso, o multiculturalismo, de que tanto se fala, muitas vezes pode se transformar numa cortina de fumaca em que certo universalismo (que paradoxalmente permite a diversidade) mascara normas, valores ¢ interesses ~ como nao deixaram de observar socidlogos, antropélogos ¢ filésofos que trataram do assunto, tais como Birkhu Parekh ou Charles Taylor, por exemplo. Por isso, & conveniente, hoje, distinguir diversidade cultural de diferenca cultural. Homi Bhabha ¢ incisivo ao dizer que a tradigao liberal (particularmente no relativismo filoséfico ¢ antropolégico) tornou pacifica e generalizada a ideia de que as culturas sao diversas e que, de certo modo, adiversidade das culturas é algo bom e positivo em si e por si e deveria ser automaticamente endossada. Assim, seria lugar comum das sociedades democraticas dizer que incentivam e acomodam a diversidade cultural. Na verdade, porém, o sinal de uma atitude “civilizada” nas sociedades Conferéncia Magna 37 38 Vol.1 | Forum Nacional do Patriménio Cultural ocidentais, como notam esses autores, é a habilidade de apreciar culturas diversas, mas como num “museu imagindrio”. Quando as culturas saem do museu ea diferenca cultural (e nao mais apenas a diversidade cultural) passa a ser um dos componentes ativos das tensdes sociais, 0 encorajamento da diversidade cultural se acompanha de mecanismos de contengao da diferenga cultural. Em outras palavras, tem ocorrido, com 0s mesmos sujeitos, que a diversidade cultural possa ser grandemente apreciada nos museus, embora rejeitada na interacao social. A reacao diante de tracos culturais ¢ diante dos préprios portadores da cultura pode nao coincidir. Para finalizar estas reflexes sobre valor, penso oportuno dizer algo sobre antinomia corrente que opée o valor cultural ao valor econémico (valor de troca). Na perspectiva que desenvolvi, nao hd qualquer antagonismo. Hé uma dimensio econdmica no bem cultural, assim como uma dimenséo cultural no bem econémico. Haja vista ao que foi entre nés a cultura da inflagao ¢ a percepgao do sequestro da poupanga, no Plano Collor, como atentado & memoria, detectada em escala nao desprezivel de poupadores. A oposicao existe, sim, entre a légica da cultura (que € uma légica de finalidade, em que a produgao do sentido e da comunicagao é que constitui prioridade, como acentua Garcfa Canclini) e a légica de mercado (que tende a instrumentalizar a cultura, na obtengao do lucro). CONCLUSAO O campo dos valores nao é um mapa em que se tenham fronteiras demarcadas, rotas seguras, pontos de chegada precisos. E, antes, uma arena de conflito, de confronto — de avaliagao, valoragao. Por isso, 0 campo da cultura e, em consequéncia, 0 do patriménio cultural, é um campo eminentemente politico. Politico, nao no sentido partidério, mas no de pélis, a cidade dos gregos, isto é, aquilo que era gerido compartilhadamente pelos cidadaos; a expresséo correspondente entre os romanos, res publica, representa a outta face da moeda: a coisa comum, o interesse piblico. A democracia garante direitos ¢ acesso; a reptiblica, finalidade ¢ responsabilidades. A cidadania haveria de ser obrigatoriamente democrética € republicana ¢ instaurar direitos e as correspondentes obrigacées. Nesse patamar, nao basta um tratamento técnico-cientifico das questoes: ele nunca dard conta de toda a problemédtica presente. O que é proprio desse campo é aquilo que Apel ¢ Habermas chamam de ética do discurso: a base racional ¢ universal dos principios da ago, partindo da forma de comunicacao linguistica humana e da modalidade especifica que é a argumentagao, 0 convencimento, a demonstragéo. Nao a exibigio de axiomas € razGes universais ou das Idgicas profissionais (corporativas) absolutas, Como os valores nao estéo previstos geneticamente, mas sio ctiados, eles precisam ser enunciados, explicitados, fundamentados e podem ser propostos, recusados, transformados — nao impostos. Desse modo, a atividade no campo do patriménio cultural é complexa, delicada e trabalhosa. Exige postura critica rigorosa. Exige capacidade de ir além de suas préprias preferéncias pessoais. Mas por isso também é tao fascinante e gratificante, pois estamos tratando, nao de coisas, mas daquela matéria-prima — os significados, os valores, a consciéncia, as aspiragées ¢ desejos — que fazem de nés, precisamente, seres humanos. Conferéncia Magna J

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