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(Oh “Tt ANATIS DA T* REUNIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA Realizada de 3a 8 de Julho de 1955, na Cidade do Salva- dor, Estado da Bahia, Brasil S. A, ARTES GRAFICAS BAHIA 1957 viBepdosuy ap v: Y sagjunea sep Bun ap ojsedsy: Ile Reunido Brasileira de Antropologia INTRODUGAO A 2» Reunido Brasileira de Antropologia realizou-se, na Cidade do Salvador, Bahia, de 3 a 8 de julho de 1955 em consequéncia de uma resolugio adotada na 1* Reunido (Rio de Janeiro, Nov. 1953). Em dois aspectos diferiu niiidamente a primeira da segunda Reunido, Enquanto aquela fora iniciativa do Museu Nacional e se realizara sob 0 patrocinio do Ministério da Educacio e Cultura por intermédio da Reitoria da Universidade do Brasil, a ultima ja foi uma iniciativa dos préprios antropologistas ali reunidos, marcando a tendéncia a constituigao de um érgao profissional que nao se orga- nizou formalmente na ocasido devido a dificuldade de encontrar uma formula satisfatéria, mas que veiu a constituir-se na reuniio da Bahia. A diferenca mais significativa entre as duas reunides foi © fato de que a primeira consistiu por assim dizer num balanco dos estudos antropolégicos feitos no Brasil até aquela data; ao invés de “teses”, de trabalhos de livre escolha, de comunicagées indivi duais, 0 temario constou, por deliberagio da_respectiva comissio organizadora (*), de relatrios sébre 0 estado dos problemas de ensino de Antropologia ¢ as possibilidades de pesquisa e de exerci- cio de atividades téenico-profissionais, no Pais, bem como sobre os estudos realizados nos campos de etnografia indigena, contribui- Ses culturais do aborigene, do negro e do branco, de comunidades, de areas regionais, de cultura e personalidade, de antropologia fisi ca, arqueologia e linguistica. Levada a efeito apenas dois anos depois, 9 28 Reuniao nao poderia ter as mesmas caracteristicas; dai haver resolvido a sta comissio organizadora dar-lhe um pouco o carater de congresso, ao qual se comunicariam “teses” e trabalhos cientifi- cos da preferéneia dos participants, os quais, por sua vez ndo fun- cionariam como relatores previamente designados. Isto néo exclui: a conyeniéncia, reconhecida logo na reunifo preparatéria da mesa cleita para presidir o conclave, de dedicar uma parte da Reuniso & exposicao das experiéncias adquiridas nos dois anos decorridos e dos planos de trabalho das varias organizages de pesquisa e de ensino que no Brasil operam nos dominios da Antropologia. (*) Comissio Organizadora: E. Roquette Pinto (Presidente), He- loisa A. Torres, Eduardo Galvao, Darcy Ribeiro, Edson Carneiro, J.’ Bas- tos de Avila, M. Jlia Pourchet Passos, M. Diégues Jr., José Bonifa- cio M. Rodrigues, L. A. Costa Pinto e L. Castro Farias (Secretério) . A mésa diretora: H. Baldus (Presidente), Thales de Azevedo (1° Vice Presidente), J. Loureiro Fernandes (20 Vice-Presidente), M. Diégues — Jr. @ René Ribeiro (1e e 2° Secretérios) . 4 ‘Anais da Ie Reuniio Brasileira de Antropotogia Funcionou, pois, a Reuniao de acérdo com o Regulamento adotado pela sua comissao organizadora, acrescentado ao Art. 7 um jtem relativo a uma série de simpésios, em que, sob a orientagao de um coordenador escolhido de antemao, se relatariam as ditas experiéncias e planos. © regulamento executado foi o seguinte: REGULAMENTO Art. 1 — A II Reunido Brasileira de Antropologia realizar-se-4 na Cidade do Salvador, Bahia, na semana de 3 a 8 de julho de 1955. Art, 2 — © temario da Reuniao compreendera os assuntos contides nos seguintes campos: I. Pré-Histéria (Paleontologia humana e Arqueologia) Il. Antropologia Fisiea MI. Antropologia Cultural e Social IV. Linguistica V. Folclore VI. Problemas profissionais e de ensino de Antropologia Art. 3 — Serio aceitos como membros da Reunia @) os Professéres universitarios, docentes livres, assistentes ¢ auxiliares de ensino de Antropologia, Etnologia e outras ciéncias sociais; b) os pesquisadores e técnicos, os diplomados e estudantes de nivel superior de Antropologia, Etnologia e outras cién- cias sociais, assim como os autores de publicagdes e outros trabalhos de valor nos mesmos campos. Art. 4 — Os membros da Reunifio pagarao as seguintes quo- tas: estudantes Cr$ 100,00; os demais, referidos nos itens a e b do Art, 3, Cr$ 200,00. ‘Art, 5 — So direitos dos membros da Reunido: a) apresentar e discutir comunicacées; 6) votar e ser votados; c) receber os anais da Reuniio Art. 6 — Os trabalhos da Reuniio serio dirigidos por uma Mesa, eleita em sesso preparatéria, no dia da abertura, composta de um Presidente, dois Vice-Presidentes e dois Secretarios. Art. 7 — Constard a Reunifio de: a) conferéncias, a convite da Comissio Organizadora; b) comunicagdes apresentadas nas Ses- sdes de estudos; c) simpésios. Art. 8 — As comunicagées deverio constar de trabalhos iné- ditos, dentro do temario, com o maximo de 30 (trinta) paginas, tamanho officio, datilografadas em espaco duplo numa sé face do papel; s6 serfio incluidas no programa das reunides de estudos as comunicagdes cujo titulo e resumo escrito (de cerca de 10 linhas) forem entregues & Comissio Organizadora até o dia 15-6-1955 Art. 9 — Cada autor dispora de 20 minutos improrrogiveis para a apresentacio do seu trabalho, mais 10 minutos, ao fim da discussio, para esclarecimentos; os membros da Reuniao disporio de 5 minutos, prorrogiiveis uma vex, por periodo breve, a juizo da Mesa, para a discussio de cada comunicagao, evitados os apartes e didlogos. Introducio a Art. 10 — Nio sera permitide o uso da palavra para mocoes, requerimentos, discursos ou comunicagées estranhas ao temario, Art. 11 — Os casos omissos serfo resolvidos pela Mesa. Salvador, Ba. 1° de marco de 1955. A Comissio Organizador: Thales de Azevedo — Presidente. Frederico Edelweiss Carlos Olt Heloisa A. Torres Egon Schaden A Comissio Organizadora recebeu as seguintes adesées: * Thales de Azevedo Ay. Princésa Isabel; 31 —— Salvador-Bahia * Frederica Edelweiss Fac. de Filosofia da Univ. da Bahia — Salvador-Bahia * Carlos Ott Alto dos Bandeirantes, 64 — Salvador-Bahia Heloisa Alberto Torres Rua Paissandu, 228, Apte. 201, Flamengo — R. de Janeiro DF. * Egon Schaden Caixa Postal, 5459 — Sao Paulo Antonio Rubbo Miiller Rua General Jardim, 552 — Sao Paulo * Gerardo Alves de Carvalho Escadinha Saint Roman, 5, Apfo. 704, Copacabana — Rio de Janeiro — D.F Henri Laurentie Rua Ibitara, 138, Apto, 301 — Rio de Janeiro — D. F Estacio de Lima Inst. Médico Legal Nina Rodrigues — Rua Alfredo Brito — Salvador-Bahia * Maria Thetis Nunes Riachuelo, 596 — Aracaji-Sergipe Liberato Joo Affonso di Dio Padre Rolim, 11 — Belo Horizonte — Minas Gerais Caio Flaminio Silva de Carvalho Nova Monteiro, 6 — Salvador-Bakia Carlos Galvao Krebs Rua Alvares Machado, 314 — Porto Alegre — R. G. do Sal Hildegardes Cantolino V: Ay. Joana Angélica, 261 — Salvador-Bahia Aldemiro José Brochado Pires de Carvalho, 50 — Salvador-Bahia Armando Bordallo da Silva Trav. 14 de Marco, 866 — Belém-Paré Josildeth da Silva Gomes Nagdes Unidas, 132 — Salvador-Bahia Harry William Hutchinson Rua Sta. Rita de Cassia, 14 — Salvador-Bahia Anais da 11+ Reunl&io Brasileira de Antropologia José Newton Alves de Souza Praca General Osério, 129 — Salvador-Bahia Darcy Ribeiro Av. Graca Aranha, 81 — 4° — Rio de Janeiro D. F Manuel Diégues Jénior Rua da Matriz, 92 — Rio de Janeiro-D Luis de Castro Faria Museu Nacional — Rio de Janeiro-D.F Herbert Baldus 5 Praga Benedito Calixto, 79 —— Sio Paulo Carlo Castaldi Rua Gal. Jardim, 193 René Ribeiro Rua Henrique Dias, 271, Derby — Recife-Pernambuco Marialice Pessoa Rua Pereira da Silva, 784 — Rio de Janeiro-D Marcia Alves de Souza Av. Visconde de Albuquerque, 175 — Recife-Pernambuco Maria Dolores Correia Goncalves Guerra Rua José Osério, 429, Madalena — Recife-Pernambuco, Ana Maria de Cerqueira Antunes Rua do Sossego, 651 — Recife-Pernambuco Maria Carmelita T. J. Ayres Hutchinson Rua Sta. Rita de Cassia, 14, Apto. 501 — Salvador-Babia Charles Walter Wagley Columbia University, N.Y. — E.U. da América do Norte Lygi ‘0 de Oliveira Rua Santo Elias, 389 — Recife-Pernambuco Margarida Sinay Neves Rua Rockefeller, 4 — Barris — Salvador-Bahia Osvaldo Gaetano de Souza Ay. Joana Angélica, 16-C — Salvador-Bahia Valentin Calderon Pensfo Gloria — Rua Monte Alverne, 11 — Salvador-Bahia Rica Rigueirédo Av. Cerqueira Lima, 26 — Gareia — Salvador-Bahia Sigismundo José Rangel Ladeira da Barra, 401 — Salvador-Bahia Anibal Mattos Av. Franeiseo Sales, 1446 — Belo Horizonte — Minas Gerais Camilo Cecchi — Sao Paulo Ay. Bernardino de Campos, 531 — Santos — Sio Paulo Joao Inacio Mendonca Rua Bandeirantes, 86 — Salvador-Bahia Thekla Hartmann Antonio Bento, 70, Jardim Paulista — Sio Paulo Renato R. Mesquita Rua Marqués de Leso, 40 — Salvador-Bahia Myrthes da Fonséea Pinto Rua Sebastido Pereira, 206 — Sao Paulo introducéo 7 * Litcia Wollet de Mello .Rua Consolacio, 3095 + Lauro de Andrade Sampaio Boulevard América, 16 — Salvador-Bahia * Jairo Carvalhais Camara Escola de Policia Rafael Magalhdes — B. Horizonte -- M. Gerais + Alvaro Froes da Fonséca Décio Vilares, 289, Apto. 101 — Rio de Janeiro-D.F. * Olyntho Orsini de Castro Rua Rio de Janeiro, 1662 — B. Horizonte — Minas Gerais * Carlos Eduardo da Rocha Escola de Belas Artes — Salvador-Bahia + Myriam Pinto de Goes Rua Pedro Américo, 5 — Salvador-Bahia Consuélo M. Pondé Rua Boulevard Suico, 10 — Salvador-Bahia * Waldir Freitas Oliveira Pr, Com. Joio Neiva, 16 — Salvador-Bahia * Norma M* Ramos de Freitas Rua Julio Barbuda, 5 — Salvador-Bahia Alfredo Azevedo Museu Nacional — Quinta da Boa Vista — Rio de Janeiro-D.F. Artur Ferreira Rua Alagoinhas, 38 — Salvador-Bahia Hiroshi Saito Escola de Sociologia e Politica — Sao Paulo Gilberto de Macédo Senador Mendonca, 180 — Maceid-Alagéas Sio Paulo No podendo comparecer, enviaram telegramas de aplauso as seguintes pessoas: Marina Vasconcelos — Rio, A. R. Miiller — Si Paulo, Anisio Teixeira — Rio, J. Matoso Cémara Jr, — Rio, Anibal Matos — Belo Horizonte, J. Loureiro Fernandes — Curitiba, Heloisa A. Torres — Rio, Fernando B. Avila, S. J. — Rio, Plinio Airosa — Sio Paulo, Mdrio Wagner Vieira Cunha — Sio Paulo, L. A, Costa Pinto — Rio. De particular significado foram as mensagens de apoio rece- bidas do Marechal Candido Rondon, Presidente do Conselho de Pro- tecio aos Indios, e do Ministro Renato Almeida, Presidente da Comissio Nacional de Folclore. Estiveram presenfés 47 antropologistas ¢ estudantes, assinala- dos na lista de adesdes com um asterisco. Estiveram também pre- sentes varias representacdes oficiais: Conselho Nacional de Protec’ Representante: Darcy Ribeiro. Faculdade de Filosofia, Ciéneias e Letras, Univer: Paulo — Representante: Egon Schaden ao Indio, Rio de Janeiro — jade de Sao 8 Anais da II? Reuniflo Brasileira de Antropologia Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério de Educacio e Cultura, Rio de Janeiro — Representantes: C. Wagley, Bertram Hutchinson, Josildeth S. Gomes. Instituto Nacional de Imigracéo e Colonizacao, Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro — Representante: M. Diégues Jr. Divisio de Cultura, Secretarfa de Educacio e Cultura, Rio de Grande do Sul — Representante: Carlos Galvdo Krebs, Museu Histérico Nacional, Rio de Janeiro — Representante: Gerardo Alves de Carvalho. Escola de Policia Rafael Magalhaes, Belo Horizonte, M. Gerais — Representante: Jairo Carvathais Camara. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Social, Recife, Pernam- buco — Representante: René Ribeiro De decisiva importincia para o éxito da Reunito foram 0 apoio ¢ a ajuda financeira da Reitoria da Universidade da Bahia, gracas & compreensio do Magnifico Reitor Prof, Edgard R. Santos, e da Fundagio para o Desenvolvimento da Ciéncia na Babia, a cujo Presi- dente, Prof. Thales de Azevedo, também muito deve a Reuniio. As sessdes fizeram-se todas no edificio da Faculdade de Filo- sofia da Universidade da Bahia, presente as de inauguracio e de encerramento o diretor em exercicio daquele estabelecimento, Prof. F. P. Magalhaes Neto, a quem se extendem os agradecimentos dos participantes da Reuniao. © programa executado fol o seguinte: Domingo, 3 de julho — 16:00 hs. — Sessao preparatoria. Elei- sao da Mésa. 20:30 hs. — Abertura. 1. Conferéncia: Uira vai ao encontro de Maira (As experién- cias de um {ndio Urubu que sai 4 procura de Deus), Prof. Darey Ribeiro (Univ. do Brasil e Servico de Prote¢ao aos indios) . Segunda-feira, 4 8:30 hs. 2. A distincfio entre Pré-Historia e Arqueologia, Prof. Herbert Baldus (Museu Paulista e Escola de Sociologia e Politica, Sao Paulo). 3. Notas sobre Arqueologia da Bahia, Prof. Carlos Ott (Univ. da Bahia). 4. Reclassificaciio de algumas pinturas rupestres epipaleoli- ticas, Prof. Valentim Calderén (Faculdade Catélica de Filo- sofia da Bahia). 14:00 hs.: 5. Habitacio rural de japonéses nos Estados de S. Paulo e Parana, Dr. Hiroshi Saito (Escola de Sociologia e Poli- tica, Sio Paulo); relatado por Josildeth da Silva Gomes 6. Karl Von den Steinen e a etnografia Brasileira, Prof. Egon Schaden (Univ. de Sao Paulo). 7. Efeitos dissociativos da depopulacio por epidemias entre indios, Prof. Darcy Ribeiro. Introductio 9 8. 0 estado de “eré”, Pierre Verger (Bahia e Dakar, A.O.F.). 20:30 hs.: 9. Conferéncia: Personalidade e Cultura, Prof. René Ribeiro (Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Recife) Terea-feira, 5 8:30 hs.: 10. A tribu pauxiana e sua lingua comparada com o idioma macuxi, dom Aleuino Meyer, 0.S.B. (Bahia) 11, Pesquisas em térno do prognatismo superior, Prof. Alde- miro Brochado (Univ. da Bahia e Fac. Catdlica de Filo- sofia da Bahia). 12 mongélica em M. Gerais, Prof. Olintho Orsini de Minas Gerais). 13 rio das “Aparadeiras” ¢ “sendeironas”, Bel. Hil- degardgs C. Viana (Comissio Bahiana de Folclore) “Simp 14.00 hs.: 414. Aculturacao de italianos em $. Paulo, Dr. Carlos Castaldi (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério de Educagio e Cultura, Rio de Janeiro). 45. Aculturacio e urbanizaczo, Prof. Thales de Azevedo (Univ. da Bahia e Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia — Colimbia University) . Quarta-feira, 6 8.30 hs. 16. Adaptacdes do Folclore para uso escolar, Dr. €. Galvéo Krébs (Secretaria de Edueacio e Cultura, R. G. do Sul). Simpésios 9:30 hs, 17. Um programa de ensino da cadeira de “Lingua Tupi”. Prof. Darey Ribeiro. 18. Etnologia indigena. Coordenador: Prof. H. Baldus 19. Problemas de ensino em Antropologia. Coordenador: Prof. E. Schaden. Simpésios 14 hs. 20. Etno-psicologia; Atividades do Instituto Joaquim Nabueo Coordenador: Prof. René Ribeiro 21. A antropologia nos cursos da Funda Prof. M. Alice Pesséa 20:30 hs.: Candomblé — S. Goncalo do Retiro Quinta-feira, 7 230 hs.: 22. Consideracées em torno 4 2 conjuga derico Edelweiss (Univ. da Bahia) 23. Antropologia e educacio popular, D. Margarida Sinay Neves (Pré-Matre da Bahia). 14:00 hs 24. Notas preliminares ao estudo da familia no Brasil, Dra. Jo Getdlio Vargas tupi, Prof. Fre- Ai 10 Anais da 11+ Reuntlo Brasileira de Antropolosia Maria Carmelita Ayres Hutchinson (Programa de Pesqui- sas Sociais Estado da Bahia — Colimbia University). 25. Curso experimental de dangas foleléricas no R. G. do Sul, Dr. C. Galvio Krébs. Simpésios 15.00 hs.: 26, Politica indigenista do Servigo de Protecao aos indivs. Prof. Darey Ribeiro. 16:30 hs. Visita a Reitoria da Univ. da Bahia 17.00 hs.: Cocktail. 21:00 hs.: 27. Conferéncia: Estudos de Aculturagio no Brasil, Prof, Bgon Schadex Sexta-feira, 8 8:30 hs.: 28. 0 movimento messidnico do Contestado ¢ 0 Folclore, Prof Maria Isaura Pereira de Queiroz (Univer. de S$. Paulo e Eeole Pratique des Hautes JGtudes, Sorbonne, Paris); rel tido por Josildeth da Silva Gomes. 29, Relacées raciais entre brancos e pretos no Brasil meridio- nal, Renato Henrique Cardoso ,Renato Jardim Moreira e Otavio Ianni (Univ. de Sho Panio); relatado por Maria Azevedo 30, A estrutura de uma comunidade do nerdeste acucareiro, Prof. Harry W. Hutchinson (Prof. visitante da Univ. da Bahia e do Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia — Columbia University) . Simpéstos 14:00 hs.: 81, Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia — Coliim- bia University, Prof. €. Wagley (Colimbia University, Nova York) 32. © museu de Arqueologia da Univ. de Minas Gerais, Prof 0. Orsini. 20:00 hs.: 33. Conferéncia: Contribuigdes do Principe Maximiliano de Wied aos estndos dos indios no Brasil, Prof. Herbert Baldus. Encerramento solene. * Apesar de funcionar em parte com o carater de congresso, a Reunido nao se perdeu em formalismos ou convencionalidades que, tantas vezes, afetam as assembleias cientifieas; teve, antes, 0 cunho de um seminario, de uma troca informal de experiéncias e conhe- cimentos, de um esforcgo de colaboracio, entre os participantes, para © progresso dos estudos antropologicos e para a criagao de wma consciéncia profissional entre os antropologistas brasileiros. Um dos resultados aleangados na Reuniao foi exatamente a constituigo da Associacio Brasileira de Antropologia, de acordo Introducio u com a resolugio abaixo, proposta por uma comissio escolhida no momento para opinar sobre a aspiragao j4 manifesta, como se disse, em 1953: RESOLUGAO 1, A 2% Reuniao Brasileira de Antropologia, realizada em Sal- vador, Bahia, no més de julho de 1955, em cumprimento do mandato conferido pela assembleia da 1* Reunigo Bra- ra de Antropologia, realizada em novembro de 1953 no Rio de Janeiro, cria a Associagdo Brasileira de Antro- pologia (A.B.A.) com sede e foro no Rio de Janeiro. A Associacdo Brasileira de Antropologia é um érgio de Ambito nacional destinado a congregar os especialistas em Antropologia com exereicio nos setores profissionais do ensino e da pesquisa. A categoria de membros efetivos sera reservada exclusiva- mente aos professores de Antropologia das Faculdades, aos especialistas qualificados dos institutos oficiais de pesqui- sa e aos autores de obra antropoldgica de notério valor, a juizo do Consetho Cienlifico 4. AA. B. A. tera, além dos membros efetivos, outras cate- gorias de sécios, que serio estabelecidas pelo Regimento. 5. AA. B. A. podera ter secgdes regionais, nos centros onde houver pelo menos um membro efetivo decidido a criéla € a coordenar as suas atividades. A A. B. A. tera um presidente e pelo menos um s rio ¢ tesoureiro 7. Podera ser cleito presidente do A. B. A. qualquer membro efetivo, de qualquer regiéo do pais. 8. 0 secretério e 0 tesoureiro serio sempre membros da Sec- ¢do Regional do Rio de Janeiro 9. AA. B.A. terd.um Conselho cientifico composto de 9 (nove) membros e renovados de 1/3 de dois em dois anos. Caberio a ésse Conselho tdas as resolugdes de carater técnico-cientitico ereta- 10. AA. B. A. promoverd reunides periddicas dos seus mem- bros. Essas reunides terdo também o carater de assem- bleias gerais. 11. Ficam constituidos nesta sessio plenaria da 2* Reuniso Brasileira de Antropologia a primeira diretoria e o pri- meiro Conselho Cientifito 12. A presidéneia deveré promover a redagio definitiva dos Estatutos da A. B. A. dentro do espirito desta Resolucdo e submeté-lo no prazo de 60 dias ao Conselho Cientifico para ratificagio. Salvador, Sala das Sessdes da 2° Reuniio Brasileira de Antropologia, 8 de julho de 1955. Aprovada a resolugao acima por unanimidade, em reunifo ple- naria de 8 de julho e ratificada na sessio solene de encerramento, hi 2 Anais da It Reuniéo Brasileira de Antropologia instalou-se imediatamente a A. B. A, elegendo a sua primeira diretoria: MESA Presidente — Prof. Luiz Castro Faria, Muscu Nacional Secretaria — Prof. Darey Ribeiro, Servigo de Protegio aos Indios Tesoureiro — Lic. Roberio Cardoso, Rio de Janeiro CONSELHO CIENTIFICO Prof. Egon Schaden, Universidade de Sao Paulo Prof. J. Loureiro Fernandes, Universidade do Parand Prof. René Ribeiro, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Recife Prof’ Heloisa A. Torres, Museu Nacional Prof» Marina Vasconcelos, Universidade do Brasil Prof, Thales de Azevedo, Universidade da Bahia Prof. Renato Locchi, Universidade de Sio Paulo Prof. A. Froes da Fonseca, Universidade do Brasil Prof. Eduardo Galvao, Museu Goeldi, Belém Na mesma reunido aprovou-se a mocao abaixo, a qual foi devi- damente eneaminhada: MOCAO “No Estado do Parana os sambaquis acham-se protegidos pelo decreto n. 1.346, de maio de 1951 que os reservou para pesquisas cientificas e pelo deereto n. 5.405, de maio del952 que estabeleceu normas para a exploragio industrial que so podera ser permitida quando aprovada pela Divisio do Patrimonio Histéri- co e Artistico Cultural do Parana 0 governo estadual de Sao Paulo eriou a Comissio de Pré-hi téria pelo deereto 21.935, de 19 de dezembro de 1952, destinada a proteger os sambaquis, grutas e lapas do Estado No entanto as grutas de Minas Gerais njo se acham ainda pro- tegidas por leis que impecam a sua destruicdo. Pela imprensa e por outros meios a Faculdade de Filosofia de M. M. G. tem protestado contra 0 aproveitamento que a inddstria vai fazendo do caleareo dessas grutas para 0 fabrico de cal, et prevendo ja varias grutas bastante danificadas com grave prejuizo para os depésitos arqueolégicos que jazem ali. Em marco de 1954 a Comissio de Pré-histéria de Paulo © a Sociedade Geografica Brasileira dirigiram um apelo ao Sr, Go- vernador do Estado no sentido de evitar-se a exploragio industrial que se vem fazendo naqueles sitios. Penso que seria oportuno que a IT Reunido Brasileira de Antro- pologia enviasse ao Sr. Governador de Minas Gerais um veemente apélo no sentido de impedir qualquer exploragao de carater indus- trial que se pretenda realizar naquelas grutas, sem que antes tenha a aprovagéo de uma comissio de técnicos constituida de elementos das Faculdades de Filosofia da Capital Mineira, do Instituto Histé- Introducio B rico e Geografico de Minas Gerais e da Sociedade Brasileira de Geo- grafia (Seccio de Minas Gerais)”. Salvador, 9 de julho de 1955. Olinto Orsini. A Comissio Organizadora da 2° Reuniao Bras pologia, escolhida na reuniio de 1958, constou de: Thales de Azevedo, da Universidade da Bahia (Presidente) Frederico Edelweiss, da Universidade da Bahia Carlos Ott, da Universidade da Bahia Heloisa A. Torres, do Museu Nacional Egon Schaden, da Universidade de Sao Paulo Na sessdo preparatéria, de 3 de julho a tarde, foi eleita a mesa que presidiu aos trabalhos Presidente — ‘Thales de Azevedo, da Universidade da Bahia Vice-Presidente — René Ribeiro, do Instituto Joaquim Nabuco — Manoel Diégues Jr, da Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro Secretarios — Frederico Edelweiss, da Universidade da Bahia — Carlos Ott, da Universidade da Bahia. A Comissio de Anais, eleita na sessio de encerramento, com- pie-se de: ira de Antro- Thales de Azevedo (Presidente) Frederico Edelweiss Carlos Ott. Desincumbindo-se de seus encargos, a Comissio de Anais orga- nizou este volume, obedecendo as normas adotadas durante a Reu- nido. De acdrdo com estas deixaram de ser incluidos os trabalhos do Sr. Carlos Galvio Krebs, cuja divulgacao foi considerada mais adequada em 6érgfos de folclore, e do Sr. Valentin Calderén, cujo inlerésse mais ibérico que brasileiro, aconselhava a publicagio em revista dedicada & arqueologia europeia. Deixaram de ser incluidos também os trabalhos cujos originais nao foram entregues & Comissio. Os trabalhos lidos perante os simpésios por L. Castro Faria e Roberto C. Oliveira, embora incluidos neste volume, deixaram de ser mencionados no programa realizado, Também é para notar que 0 titulo de algumas das comunicagGes foi resumido na relacdo cons- tante do mesmo programa. A Comissio Organizadora e a Comissio de Anais agradecem ao Prof. Harry W. Hutchinson a sua valiosa colaboracio na organi- zacio do programa da Reuniiio e na preparacio deste volume; apraz- ihes extender os seus agradecimentos A sua tesoureira, prof Tere: nha Pires de Souza, ¢ & Srta. Sénia Maria d’Oliveira Santos, da Fun- dacio para o Desenvolvimento da Ciéncia na Bahia, por sua dedi- cada cooperagio, bem assim ao dr. Luiz R. Sena, diretor do Centro Regional do INEP pela hospedagem de alguns participantes ¢ pela sua hospitalidade aos mesmos por ocasiao do cocktail; & Srta, Hele- na Cruz, Secretiria, e aos funciondrios da secretaria da Faculdade de Filosofia da U. da Bahia, pela sua inestimavel ajuda durante os dias da Réuniio, os mesmos cordiais agradecimentos. UIRA VAI AO ENCONTRO DE MAIRA ‘As experiéncias de um indio que solv @ procura de Deus Darcy Ribeiro 0 tema desta conferéncia é a narragdo e, no possivel, a inter- pretacio, das experiéncias de um indio Urubu que saiu 4 procura de Deus: — as desventuras do indio Uiraé que em novembro de 1939, depois de uma série de desenganos, matou-se na vila de Sio Pedro, A margem do rio Pindaré, no Maranhao. Sua histéria se filia a téda uma corzosa documentacao que vem acumulando-se desde 0 primeiro século da ocupacio do Brasil, sobre as experiéncias de fundamento mitico-religioso vividas por indios levadas ao desespero em consequéncia da expansiio de nosse socte- dade ¢ de seus efeitos dissociativos sobre a vida tribal. Todas elas, de resto, sio casos locais de fenémenos que tiveram lugar em varias partes do mundo onde povos de nivel tribal sofreram 0 impacto da expansao civilizadora da Europa. A andlise desta documentagao nos interessa duplamente: em primeiro lugar porque nos habilita a caracterizar algumas das faces do conceito de civilizacio; em segundo tugar, pelo que nos pode ensinar sobre a natureza humana ou, mais especificamente, sobre as reagdes que podem experimentar séres humanos enquadrados em tradigdes culturais particulares, quando, fevados ao desespero, per- dem 0 interésse pela existéncia, tal como ela se thes oferece. Diversos movimentos de fundamenta mitico-religioso ocorridos na América do Sul, foram analizados por Ehrenreich (1905), Koch- Grinberg (1910), Métraux (1931-1950) e Schaden (1945-1954). Em geral assumniam as formas clissicas do messianismo em que um redentor esperado era reconhecido por seu povo e€ 0 levava & rebe- lio ou a migragées e outros movimentos com a promessa de insti tuir uma ordem social idilica. © caso de Uird, nao tendo a mesma amplitude, nao pode ser caracterizado como messianismo, Trata-se, antes, de uma experién- cia individual, movida embora pelos mesmos fundamentos. Uird nao arrastou seu povo & sua aventura desesperada, nem foi, em qualquer momento, reconhecido como um profeta ou um messias. Simples- mente, diate de uma sifuacZo de desengano seguiu um caminho prescrito pela tradi¢ao tribal, caminho que no passado foi palmi- Mhado por muitos € que talvez volte a atrair outros no futuro. Aliés, éste caréter individual da experiéncia de Uira é que empresta maior interésse & nossa comunicaggo. Casos de messia- 18 Anais da It Reuniio Brasileira de Antropologia nismo e revivalisma em que tribos inteiras ou parcelas considerd- veis delas sio levadas a rebeliao, ilmente escapam a um regis- tro. Mas experiéneias sobrenaturais individuais, como a de Uira, via de regra, nao so nem meramente percebidas pelos que as pre- senciam. $6 um conjunto de circunstincias favoraveis chamaram nossa atengio para éle, permitindo reunir a documentagdo que ana- lisaremos a seguir. Antes, porém, devemos situar Uird em seu contexto tribal para compreender os fundamentos sociais de sua experiéncia Os indios Urubus vivem & margem de pequenos cursos dagua que correm para o rio Gurupi, 0 Turiassi e o Pindaré, na orla da floresta amazonica que avanca pelo territério maranhense. Consti- tuem em nosses dias os tltimos representantes dos modos de vida dos poves de lingua Tupi que ocupavam a costa por ocasiio da descoberta © nome urubus é naturaliente designacao brasileira e data do tempo em que constituiam a tribo mais aguerrida do Para, que man- tinha em pé de guerra todo o ‘alto curso do rio Gurupi. Eles se designam como Kaapor que significa, aproximadamente, “moradores da mata” ou selvicolas, se preferem. $6 foram chamados 20 nosso convivio pacifico em 1928, depoi de anos de esforcos do pessoal do S. P. I. Desde entio, tém-se mantide em paz com os moradores do Gurupi, indios ¢ civilizados, mas ainda sio temidos pela populaeSo sertaneja maranhense que circunda seu territério, ineapaz de acreditar que se possa conviver com indios em que fizeram tantas vitimas e dos quais sofreram tan- fos agravos. Incidentes ocasionais, fruto quase sempre da mdtua desconfianca que ainda prevalece, justificam esta atitude, aprofun- dando o ressentimento reciproce. Percorrendo a regido, sempre que nos hospeddvamos em casa de sertanejos, na margem maranhense e falavamos do nosso pro- jeto de visitar as aldeias dos Urubus, éramos instados a desistir do que thes parecia a aventura mais temeraria. Os que ndo se manifes- tavam déste modo, nos tomavam como “amansador de indio” que devia ser estimulado em seus propésitos generosos, mas um tanto imprudentes. Pouco mais de 25 anos de convivio pacifico custaram aos indios Urubus cerea de dois tercos de sua populacao, vitimada ja nao por trabueos, mas pelas epidemias de gripe, sarampo, coqueluche e outras moléstias que assolaram suas aldeias. Hoje éles estio tomando cons- ciéncia do preco que custaram as ferramentas, as missangas ¢ 0s poucos outros bens que obliveram dos civilizados e vollam-se para © passado que recordam como o hom tempo das grandes aldeias cheias de gente, dos rocados enormes e fartos, da alegria de viver que se vai esgotando. _B, & medida que cresce © desengano, voltam-se para as velhas fontes de emogao. A pagelanga, sé recordada nos mitos, cujas técni- cas mesmo se tinham perdido, ganha vigor, praticada por pagés Tembé que aos poucos vio conquistando a lideranga do grupo Darey Ribeiro — Uiré vai ao encontro de Matra 19 Os Tembé que vivem também no Gurupi e muitos dos quais recolheram-se as aldeias Urubus, jé percorreram todo o caminho do convivio pacifico em que os Urubus apenas se iniciam. Nao tém ilusdes sobre sua integracao na civilizagao que poderia ter sido um futuro, nem esperangas de reconstituir a vida antiga. Como os Apo- pocuva, estudados por C. Nimuendaji (1914), certos de que se encon- tram num mundo que ja nfo tem lugar para éles, os Tembé voltam- se para 0 passado, redefinindo 0 mito da criacao numa promessa do cataclismo que destruiré a terra e a vida. Aconselhados por éstes desenganados que falam uma variante da mesma lingua e se fundamentam na autoridade de uma mitologia comum, os indies Urubus sio envolvidos no mesmo desespero. Tal- vez ainda mais grave, porque, ao menos em um caso diretamente observado por nés, 0 pagé Tembé suscitava e capitalizava éste desen- gano para levar os indios Urubus a trabalharem em seu rocado Assim € que, tio poucos anos de convivio conosco, esto levando os indios Urubus a viverem antecipadamente momentos de um processo dissociativo que, sem a presenca dos Tembé, éles sé alcangariam no futuro e provavelmente exprimiriam por outras vias. Percorrendo as aldeias Urubus em 1951, registramos o easo de um indio que matou-se vazando © pescoco com uma flecha, em vir- tude do pavor a que fora levado por um pagé Tembé que 0 conven- cera de que 0 avido comercial que sobrevda semanalmente 0 terri- tério tribal, iria despejar do céu uma chuva de fogo Téda a gente de um outro grupo local destruiu suas casas e os bens mais pre- ciosos — as colegdes de adornos plumarios — para seguir 0 mesmo pagé que profetizara o fim do mundo pelo estouro do sol. Indios Urubus, que nada sabiam de pagelanga além dos relatos miticos, por instrugio dos pagés Tembé tomavam maracis e experimentavam seu poder xamanistico num esfrgo para controlar as foreas sobre- naturais ¢ livrar sua gente das ameacas incontroliveis que acredita- vam pezar sobre ela Intrigas de pagelanga e feitico provocaram recentemente, depois de nosso regresso, 0 primeiro assassinato de que tem noticia a tradi¢do tribal Urabu. Este ambiente de desengano, provocado pela mortalidade enorme © pelo enfraquecimento fisico ocasionado pelas doencas levadas pelos civilizados e por uma série de outras condicdes de crise e erbado por ‘um corpo de crengas e de praticas, constliul 0 fun damento das experiéneias de Uird. Tivemos pela primeira vez a historia de Uira diante de nos, como fatos, em 1951, na vila de Sao Pedro, no Maranhao, onde éle matou-se. Conheciamos ji a legenda; seu nome fora dado a um posto e a uma embareagio do Servico de Protecio aos Indios e sua historia inspirara poemas, artigos e até um ensaio. Este wltimo pro- curando demonstrar, com prova nas qualidades herdicas atribuidas a Uiré, que o indianismo romantico de Goncalves Dias era expres- sio conereta dos fatos. Uird seria o grande chefe dos indios Urubus que teria deixado um dia sua aldeia para uma viagem de confra- ternizagéo com os brancos. Trazia consigo a mulher e um casal de 20 Anais da IIs Rewnifo Brasileira de Antropologia filhos, éstes ultimos para educar. Em caminho fora de tal modo des- respeitado, maltratado e espancado que, de regresso, “chama a mu- ther e os fithos (citamos um déstes artigos) —~ diz-Ihes que consoan- te a lei da tribo nao podera voltar desonrado para a aldeia e com a aquiecéncia de todos passa a chefia ao filho Uirara!” Em seguida afasta-se do grupo ¢ langa-se no rio Pindaré, 4 voracidade das piranhas. Ainda em Sio Pedro ouvimos mais uma vez esta mesma hist6- ria. L4, porém, encontramos os ossos de Uird ¢ mais, 0 inquérito policial referente & sua morte, Pudemos ler os testeraunhos dos pes- cadores que tarrafearam os ossos, segundo os quais, ao suspende- rem-nos ainda tiveram de matar piranhas que yieram envolvidas nas vestes de Uira; “sé restaram os ossos”. O corpo de delito, fir- mado pelo farmactutico local, reza que a morte se deu por afoga- mento ¢ 0 corpo foi devorado pelas piranhas “sé ficando intactos os pés” Sio Pedro fica 4 borda da mata em que Uira deveria entrar para regressar a sua gente e éste era também nosso caminho para a segunda visita As aldeias Urubus. La procuramos reconstituir a his- tria, num esforco para explicar aquéle saicidio, 0 primeiro de que tivéramos noticia. Bem sabiamos que a legenda do grande chete, embaixador em missio de paz, nio podia ser verdadeira. Aos pow 08, no curso da pesquisa, foram se juntando os fatos até que numa aldeia enconiramos Katdi, vitiva de Uird e seus filhos com os quais podemos reconstituir os acontecimentos. Uiré era tio sdmente um chefe de familia, um lider de sua aldeia, Certamente mais emotivo que 0 comum, porque deixou-se afetar mais que os outros por desventuras que pezaram sdbre todos, mas sO 2 ée levaram a empreender a grande viagem dos desesperados. Foi impossivel obter de nossos informantes a narragao de todos os infortiinios que conduziram Uird ao desespero. Talvez esti- vessemos exigindo infortinios demasiados, & gosto de tragédia, a do cada sér humano tem sua propria medida de desengano Constalamos que uma epidemia de gripe assolara a aldeia matando muitos, inclusive um filho seu que se fazia rapaz. Uira comecou, entio, a percorrer os caminhos prescritos pela tradicio tribal para os infortunados, ficou ifaron. Esta expressio Tupi que tem sido traduzida por raiva, cdlera, indica para os indios Urabus um estado psicoldgico de extrema irri- tabilidade que exige 0 mais total isolamento para ser debelado. Desde que alguém se declara ifaron é imedistamente abandonado por todos, ficando com a casa, os bichos e téda a tralha a disposi gio para o que Ihe aprouver. De ordinario cura-se rapidamente que- brando potes, flechando xerimbabos ou, nos casos mais graves, cor- tando punhos de réde ¢ derrubando a prdpria casa. Quando passa © ataque de édio feroz, voltam os parentes como se nada houvesse, Teconstréi-se o destruido e a vida prossegue. Assim, 0 grupo reconhece e salienta o interésse coletivo na crise emocional individual, proporcionando ao raivoso um amparo e uma reveréneia que devem contribuir muito para fazé-lo voltar_pronta- Dai Ribeiro — Ulra wai ao encontro de Maira 21 mente 20 normal. Gracas a esta instituicéo, as tensdes dissociativas sfio desviadas, evitando-se os conflitos dentro do grupo. Uird, com a morte do filho, declara-se ifaron, é abandonado por algum tempo, age como se espera dos raivosos e mais tarde volta ao convivio de sua gente. Mas logo se viu, segundo deduzimos dos relatos, que ndo se tratava de um simples easo de ifaron, pois pouco depois Uird cai num estado cada vez mais profundo de prostragio, de tristeza e desengano. Estava apiay, conforme nos disse Kalai, a vitiva Decide, entao, experimentar outro caminho prescrito pela tra- dicdo tribal para as grandes crises morais: transformar as tensdes emocionais em furor guerreiro e sair pelas aldeias aliciando outros desenganados para uma sortida contra um grupo inimigo. Antigamente os indios Urubus tinham inimigos nos grupos de branco¥ e de indios Tembé e Timbira que circundam seu territério. Com a pacifieagao s6 restaram os Guajd — pequena tribo arredia que vive encravada nas matas de alto Pindaré e constitui o wtimo grupo inimigo que resta aos Urubus e, como tal, suporta todo 0 peso da instituicdo tribal de transferéncia de tensées emocionais. Cada epidemia que faz vitimas nas aldeias Urubus, engendra grupos de desesperados que vio vingar-se nos Guajd. Uira participou de um déstes bandos guerreiros de compensagio emocional contra os Guajd, fez vitimas ¢ sofreu ferimentos. De regresso, percorreu as aldeias narrando, no estilo pantomimico dos Urubus para éstes casos, os seus feitos. Representou no patio das aldeias, com a gesticulacio mais elogiiente, 0s combates de que participou e exibiu as cicatrizes como condecoragées Mas nem assim aleangou 0 contrdle emocional que procurava. Quando regressou & sua morada continuava apiay, pensando no filho morto e desgostando-se de tudo que a vida Ihe podia oferecer. Ha- viam-se esgotado para Uira as fontes do gésto de viver e nenhum consélo ou alivio Ihe trouxeram as formas tradicionais de reconquis- tar 0 equilibrio emocional: o isolamento e a guerra. Mas tinha ainda energia para uma tltima tentativa, aquela de que dio noticia os mitos tribais: as lendas dos herdis que foram vivos ao encontro de Maira, o eriador, Esta é a empresa mais terrivel que um indio Urubu pode ima- ginar. Nada indica que Maira queira acolher benevolentemente a seu Povo, em sua morada. As lendas s6 se referem a esta possibilidade, Para enumerar detidamente as provagdes terrificantes que devem experimentar os que ousam a tentativa. ador dos povos Tupi, aquéle a quem atri- buem a criagdo do mundo, dos homens e dos bens de cultura. Seus feitos foram registrados por Thevet (1544-1553) e outros cronistas coloniais entre os Tupinambd, e em nosso tempo, por Nimuendaju entre os Tembé (1915). A versio Urubu da cosmogénia Tupi justifica tratar Maira como algo mais que um heréi mitico. A realidade e atualidade de sua existéncia fazem déle quase uma divindade. Nao é apenas o demiur- g0 que operou numa era mitica criando © mundo e as coisas, mas Anais da Ut Reuniéio Brasileira de Antropotogia wn sér vivo e atuante. Ainda agora, as hecatombes, as tempestades e toda a vida, concebida como uma luta, é explicada pelos indios Urubus através da alegoria de um conflito permanente entre um Maira pai e um Maira filho em que duplicaram o heréi. Embora nfo esperem qualquer ajuda de Maira, nem concebam que se possa apelar para éle ou invocé-lo, sua acdo é necessaria ¢ eficiente para mamler & ordem césmica, agora como no tempo da criacio Vejamos alguns trechos da versio que colhemos da cosmogénia Urubu: —- Tudo era claridade, nao existia nada No principio nao existia nada, era s6 Maira e aquéle clarao. Maira fez 2 terra e os rios grandes, depois mandon um macaco gigantesco plantar a mata. — Quando a mata estava pronta, Maira fez as gentes, antes disto fez Tapixi, para ser sew irmio e mandou para o norte; Maira ficou no sul. — Depois de fazer as coisas Maira perguntava 0 nome, elas diziam: “eu sou mandioca”. Cada coisa disse seu nome e Majira os ensinou aos Kaapor. — Maira sé fez os grandes rios e a mata, Os igarapés e as cagas © 08 peixes foram feitos pelo filho de Maira, para que a gente pudesse viver -— Os homens foram feitos de madeira. Maira fez os Kaapor de pau arco (Tadyki), aos Karaiwa (braneos) de sumaii ma (axuigi) e aos Guajd de pau podre, por isto vivem no mato, nfo fazem casa, sé comem cco. — Maira queria que os Karaiwa fizessem as coisas 1f0 bem como éle proprio, que fossem iguais a dle. Os Karaiwa sabem fazer as coisas porque Maira ficou mais tempo com éles ensinando tudo. — Maira nfo quis ensinar aos Kaapor como se faz tercados, facas, machados, disse que os Karaiwa deviam fazer isto e dar aos Kaapor — Maira nfo ensinou aos Kagpar como fazer panos finos, disse que deviam andar como éle, nus, sempre com o arranjo de decéro e 0 corpo pintado de preto e yermelho — Maira ensinou aos Kaapor como fazer os diademas de penas amarelas, — Quando Maira acabou de fazer os homens escolheu os que seriam fuxauas e 03 que seriam eaciques para mandar e os que seriam miassi para trabalhar. — Maira no queria que os homens morressem, os fez como as cobras, as cigarras, as aranhas que, quando envelhecem, mudam © coro ¢ fieam javens outra vez —A gente dorme demais. Maira dizia aos homens que éle fez: “Nao darmam tanto, fiquem acordados”, mas éles vira vam e dormiam novamente. — Maira disse aos homens que Mird-Kurusa (a arvore de Maira que munca morre, porgue, coma as cobras, esta sempre Darey Ribeiro — Ulrd val ao encontro de Maira 23 mudando a casea) iria chama-tos & noite. Pediu que ficas- sem acordados, porque quem nao respondesse 20 grito de sua Arvore conheceria a morte. — Mas os homens dormiam muito. Mira-Kurusé chamou trés vezes v éles no ouviram; sé as arvores, a cobra e a aranha estavam acordadas e responderam. — Maira veiu e entéo disse: “agora voces serio mortais”, Desde entio quem morre aqui na terra vai para o céu, para a casa do filho de Maira, E quem morre 14 no céu, vem para a tetra, para a morada de Maira. A terra é 0 lugar de Maira, 0 eéu é 0 lugar de seu filho, desde que éle foi li encontrar-se com seu irméo, o filho de Mikura que morrera — Todos oy moradores do céu sio bonites. Quando chegam 1, Maira-mim{ os lava, puxa os dedos, os bragos, 0 topete da cabeca € passa agua no rosto para ficarem bonitos. — Desde que o filho de Maira subiu ao céu para ficar com seit irmgo éle esta sempre lutando contra o pai: todas estas pedras que se vé ai pelos rios, pelos outeires, quebradas, achatadas, foram casas de Maira que Mafra-mimi destruiu. — Quando relampeia e cai raio de fogo é vorque Maira-minn est brigando om seu pai — Maira nao pode parar muito tempo num lugar, tem que sair para outro porque Mafra-mimi 0 persegue — Maira esti magro, a cintura déle esta como tanajara, porque nfo pode comer, o filho deixa. Mas Maira no morre, o filho néo pode com éle. Quando acaba com uma casa, Maira vira jacaré e cai dentro dagua, fica até dias 1a dentro sem sair, por isto esta magro. — Agua nio faz bem @ Maira, por isto éle esti inchado, mas © filho nfo o deixa fora. — 0 fitho de Matra vive no céu com as afangas (almas) de todos que morreram, La, as yeres, tazem grandes cauina- gens, todos ficam bébedos. Maira toma um arco enorme € alira para todo lado, suas flechas sio os trovées e 0s raios: depois derrama os potes gigantescos em que guarda a agua € ela eai aqui como chuva. — Maira fez trés estrelas grandes para tomarem conta do vento, das aguas e dos peixes, destas trés nasceram t6das as outras, Sio: Kamaiano que manda o vento dertubar 2s arvores; Arapid que comanda o vento ¢ toca as embarcacées nos ries e Tusérain que incha os igarapés fazendo as en- chentes em que sobem logos os peixes para desovar. Nas noites de verdo os indios Urubus ainda vém Maira, 0 velho, ue se desloca pelo céu em visita a Tapixi. Entio téda a gente da aldeia grita: — “Eh Maira, nosso avo”! Também os moribundos Urubus vém Maira, o filho, que vem para encaminhé-los & sua morada. 24 Anais da Ti* Reunido Brasileira de Antropologia © que nos interessa aqui, porém, no mundo de comentarios que esta cosmologia poderia suscitar, so as possibilidades de alcan- car Maira, 0 velho, com o préprio corpo, que os Urubus entrevém nos textos miticos. Varios déles se referem a esta possibilidade. — A morada de Maira é para o sul, depois do segundo rio grande, longe. Ninguém pode ir la. Os moradores de 14 nfo morrem, quem morre vai 14. Os Karaiwa podem passar pelo lugar que nao vém nada. S6 os Kaapor antigos podiam ver. — Para chegar & morada de Maira tem de passar um rio grande, quando a canéa vai aproximando nao pode andar mais por- que a gua vira borracha e por mais que se reme ela nao anda. A pé também nao vai, a areia prega os pés da gente e nao deixa andar mais. Quem vai morre ali sem poder sair. — Gente que vai 1 vira pedra. Chega 4 margem do rio e grita para Maira pedindo tercado. Ble pergunta zangado: “Vocé nao sabe fazer tercado?” A gente nfo sabe e éle faz virar pedra ali mesmo onde esta. Maira corta uns paus, assim, (pedacos pequenos) e joga nagua, quando boiam ja é gente, Kaapor e Karaiwa; éles querem nadar para o lado de Maira, mas éle nao deixa, tém que vir para o lado de ca. De outro contexto selecionamos éste fragmento: —- A morada de Maira é de pedra, de espelho, no ha nada de madeira li. Maira se veste com roupa como espelho, tem também um espelho na testa, olha por éle e vé longe, quem se encaminha para sua morada. Se yé alguem, grita: “Va embora, sua pele nao presta”. Ninguém pode ir la. Um dos mitos fala de um homem que viu as filhas de Mafra e quis casar com uma delas. Juntou muitos presentes e partiu. Achou que 0 caminho era facil porque parecia perto. Mas nfo con- seguiu chegar porque a estrada era muito ingreme ¢ constantemente agoitada por uma ventania fortissima que o jogava em baixo. Dois outros mitos narram tentativas frustradas de chegar & easa de Maira. Vejamos o primeiro déles: —- A morada de Maira é para la (norte), depois de um rio grande que quase nao acaba. — Uns Karaiwa passavam uma vez descendo o grande rio para ir & casa de Maira e levaram com éles um Kaapor ainda jovem, Andaram, andaram, aquéle indio ficou homem. Ao atravessar uma terra encontraram um camaleio que os acompanhou. Queria ver Maira para arranjar um couro novo. — Andando, chegaram a um lugar que sé tinha cobra, as cobras subiram na perna de Kaapor e enrolaram, mas 0 camaleio cortou-as pelo meio. Ai o Kaapor voltou, nao quis mais seg viagem, os Karaiwa seguiram. —— Quando aquéle indio voltou ja era velho e 0 camaledo veiu com éle, por isto é que tem aquéle couro feio todo enco- Ihido. — Aquéle Kaapor ia com os Karaiwa para arranjar uns ter- gados e ferramentas com Maira, mas os Karaiwa, quando Ge voltou deram muitos tergados que o velho trouxe. — Os Karaiwa seguir em, andaram muito, atravessaram aquéle rio grande e chegaram & morada de Maira. Ai o viram, éle estava trabalhando em ferro: tin, lin, tin, era aquéle barulho déle batendo nos ferros para fazer machete. Tinha casa grande cheia de tudo que é ferramenta. viu e pegou os que pode, uns cinco ¢ foi batendo déles; cada um em que batia ficava enterrado até a cintura no chao e morria ali. Os outros Karaiwa fugiram Um outro mito nos fala de um pagé que desejando ir 4 mora- da de Maira juntou gente e seguiu: __ Para atravessar 0 rio grande éles fizeram pontes de cip6 de uma pedra a outra até alcancar a terra onde estava a casa de Mafra, Mas saiu gente que os viu chegando e foi atacé-los com flechas. Um Karaiwa matou aquéle pagé com duas flechadas no peito, éle caiu 14. Os outros voltaram; quando vinham pelo caminho, encon- traram daquelas frutas compridas como um braco e finas como 0 dedio do pé que os Karaiwa comem muito. Eles comeram daquela fruta também e continuaram viagem. Quando chegaram na aldeia déles foram ver a vitiva € con- tar o que tinha acontecido com o marido Em todos éstes textos esti presente para os indios Urubus, apesar das negativas peremptérias, a possibilidade de ir ter com Maira, desde que se esteja disposto a enfrentar as provagdes. Esta foi a decis 4, em seu desencantamento. Segundo prescrevem as tradicdes tribais fez pintar seu corpo com as tintas vermelha e preta do urucu ¢ genipapo, conforme en: nara Maira aos Kaapor. Paramentou-se com os adornos plumarios que foram também dadiva de Maira, Tomou as armas, 0 arco e as flechas que foram, igualmente, criagdes de Maira para 0 seu povo e, final- mente, um paneiro de farinha que deveria levar para, a0 deparar- se com Maira, tomar um punhado nas mfos e dizer: — Eu sou sua gente, a que come farinha Com téda esta paramentilia estava certo de que seria reconhe- cido por Maira como um Kaapor e tet ingresso com sua mulher e filhos em sua morada, onde ha morte, onde as flechas cagam sdzinhas; os machados a uma simples ordem, partem para a mata e fazem as derrubadas Figuremos Uira, magnifico em seus adornos, 0 corpo pintado, armas A mao, a tensio de quem enfrenta a mais terrivel provagéo expressa no rosto, nos gestos. Assim devia parecer 4 mulher e a0s filhos, aos olhos de sua gente. Para os sertanejos maranhenses com que iria deparar, porém, era tio sémente um indio nu, nu e armado, nu e furioso. * 20 ‘Anais da I+ Reunido Brasileira de Antropologia Segundo a narragao de Katdi, a viiva e Numia, o filho, per- correram rapidamente duas a trés centenas de quildmetros, através da mata até sairem na zona de campos cerrados. Uira sempre em seus paramentos, cacando e pescando para alimenti-los. No rumo que tomaram iriam ter fatalmente em Sio Luiz, capi- tal do Maranhio; mas para Uird éste era o roteiro da morada de Maira. Como era inevitavel, encontraram logo as ranchadas dos pio- neires sertanejos através das quais nossa sociedade se expande em seu avango pela orla da mata maranhense, Ora, esta é precisamente a gente que estando mais proxima dos indios e mais desamparada nos ermos inhdspitos e desolados em que se encontra, mais os teme. # facil imaginar a reacdo do primeiro micleo sertanejo a che- gada do pequeno grupo indigena, Uira com o corpo pintado de ver- metho e prelo, armas & mao, thes deve ter parecido o cabega de um troco de indios que vinha atacé-los. $6 assim se pode explicar o furor com que se langaram contra éles, os prenderam e espanca- ram, segundo o relato de Katai Mas vendo que nao apareciam outros indios, os animos se desar- maram, os trabucos foram guardados e, mais tarde, os refens foram deixados sua sorte. Uird refex como pode sua paramentilia, para isto trazia as tintas, mas os adornos e as armas sairam muito estro- piados déste primeiro choque. Nos outros vilarejos cada vez mais numerosos e mais populo- sos, & medida que prosseguiam, a mesma recepcio se repetiu, deze- nas de vezes. Desrespeitados, maltratados, espancados, seguiam a frenie Kalai e Numia relatam, entio, a prova mais dura suportada por Uiré: a descrenca déles proprios. Segundo suas expressdes, copiadas de nosso diario: “os karaiwa falavam, falavam, Uira nao escutava, néo enten- dia nada. Uird falava, falava, gritava que ia ver Maira mas ninguém entendia nada. Mais tarde chegaram os karaiwa que escrevem, éstes falavam, falavam em tom de quem pergunta, depois escreviam, escreviam, como faz voce”. “Dissemos a Uird que aquéle nio podia ser 6 caminho de Maira, mas éle sabia que era. Ble ficou ifaron. Nés nao queriamos ir adiante, éle nos espancava e obrigava a seguir. Todos os dias batia em nds”, Era a experiéncia mais terrivel para Uira, Até entio deve ter identificado a incompreensiio e os espancamentos que sofrera dos brancos como as provacées miticas que esperava e aceilava. Elas eram o preco, a verdadeira estrada que levaria a Maira. Agora, era a deserenga de sua propria gente que @le devia enfrentar. Mas como desistir depois de tantos sofrimentos, como regressar se também aio tinha mais porque viver a vida que se the oferecia na aldeia do filho morto, da gente enfraquecida, da vontade de viver perdida? Uird seguiu com sua gente, refazendo sempre a paramentilia, recusando-se a usar as caleas que Ihe queriam impor em cada vil rejo e que o desfigurariam aos olhos de Maira. Nesta marcha aleanga uma cidade, Sio Bento, com suas auto- ridades escrevedoras, sua policia, seus costumes mais exigentes. Ali Darey Bibelro — Uird vai ao encontro de Bfaira 27 ja nao era possivel largar um indio nu, um indio louco, a espancar a mulher ¢ os filhos Uira que se propunha viver a legenda dos heréis miticos de seu povo, era para S. Bento 0 indio louco que nao aceitava roupas e ameagava e vociferava a qualquer tentativa de controle. Uma vez definido néstes termos o problema, as autoridades cumpriram seu papel: prenderam o doido para remeté-lo a S. Luiz. Que nio foi facil fazé-lo entrar na canoa ¢ seguir viagem nos deu a entender Katai, contando que os barqueiros the quebraram a eabeca com os remos ¢ 0 amarraram. Assim foi entregue & policia da capital que © recolheu a uma enxov Esta foi outra dura provagio. Até entio havia enfrentado obs- taeulos contra os quais pudera reagir. Mas que fazer diante das gra- des de ferro, separado da mulher e dos filhos? Uira, em seu deses- pero, tomava com as maos as barras da porta, batia com a cabeca nos ferros, fazendo-se sangrar. Assim foi encontrado pelos funcionarios do Servico de Prote- gio aos Indios que levantaram um protesto pitblico contra as violén- cias e comecaram a tecer, incontinenti, a legenda do emissdrio de paz. Liberto, Uiré € posto em tratamento, ganha presentes ¢ enquan- to espera o regresso 4 aldeia que todos imaginavam ser seu desejo, passeia pela cidade. Ocorre, entio, um incidente sébre 0 qual nfo conseguimos colher dados precisos. Apenas sabemos que escapou uma tarde indo a uma praia. Li, nfo se sabe como, nem porque, entrou em con- flito com pescadores que o levaram de volta, garroteado, & inspeto- ria de indios. Em face da identificagio dos caminhos de Maira com o mar, é legitimo supor que Uira estivesse fazendo seus iltimos esforcos para aleancar a morada do heréi mitico. 0 tiltimo capitulo é a viagem de volta pelo Pindaré e, ja a0 fim, diante do caminho de casa, 0 suicidio pela forma mais terrivel que pode imaginar um indio Urubu, que tem verdadeiro pavor as piranhas. Contudo, Uira sempre cumpriu o destino que se propos. Nao podendo ir vivo ao encontro de Maira, sempre foi, porque a morte também é caminho para éle. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Ehrenreich, Paut 1905 —- “Die Mythen und Legenden der siidamerikanischen Urvéel- ker und Beziehungen zu denen Nordamerikas und der alten Welt”. Zeitschrift fiir Ethnologie, XXXVI, Supplement, Berlim. Mélrauz, Alfred 1931 — “Les homme-dieux chez les Chiriguano et dans l’Amérique du Sud” — Rev. Inst. Ein, da Univ, Nac. de Tucuman — Tomo II, pgs. 61-91 — Tucuman. 28 Anais da II¢ ReuniSo Brasileira de Antropologia 1933 — “Un Chapitre inédit du cosmographe André Thevel sur la géographic et Petnographie du Brésil”. Journal de la Société des Américanistes, N. S. XXV, Paris, pgs. 31-40. 1950 —. A Religido dos Tupinambds e suas relagdes com a das demais tribos tupi-guaranis — Brasiliana, vol. 267, Sao Paulo. Koch-Griinberg, Theodor 1910 — Zwei Jahre unter den Indianern. Reisen in Nordwest- Brasilien 1903/1905, Berlim. 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Possessdes - problema de etno-psicologia René Ribeiro A complexidade ¢ simultanea unidade do ser humano tém impos to as ciéncias que se ocupam do homem um problema curistico o de uma conceituagdo que abranja téda essa complexidade sem vio~ lentar-Ihe a unidade — e ao mesmo tempo um grau de cooperagio interdisciplinar e de flexibilidade em seus métodos que desde o inicio vem earacterizando estas ciéncias como decorréncia da natureza mesma do seu objeto de consideracao ¢ anélise. Na antropologia, cm pariicular, esta imposigao é ainda mais patente, seus focos principais de interesse constituindo-se simultaneamente no estudo do homem como ser vivo e como criatura humana, Desenvolvendo essa dico- tomia inicialmente sugerida por Kroeber, o professor Robert Redfield, em recente simpésio promovido pela Fundacio Wenner-Gren para Pesquisas Antropoldgicas, acentua que esse primeiro uspecto (o do estudo do homem como ser vivo) ¢ que estabelece as afinidades entre 4 antropologia e as ciéneias naturais enquanto o segundo (0 estudo do homem como criatura humana) determina as relagdes dessa disciplina com a psicologia, a sociologia e a filosofia — a humani- dade do homem se revelando no individuo sob a forma da persona- lidade; nos grupos sociais e nas sociedades sob a forma de sua cul- lura; ¢ entre os membros socializados da espécie humana, sob a forma da nalureza humana (i). Gilberto Freyre reconhece, para 0 socid- logo, essa necessidade “de cooperacéo com outras ciéneias no estu- do dos fatos bio-sociais e psico-sociais”, que na sua opiniio “se ante- cipam aos sociais e cullurais puros, naquela esfera em que a des- cricdo sociolégica pode ser pura e prescindir de compreensio e inter- pretacio que a completem”. “S6 assim” — continua — “sera possivel 4 sociologia apresentar a pessoa humana como unidade individual — animal e humana — e nao como um retalho de ho- mem: a sua parte unicamente animal; nem o ser des- garrado de condigdes animais e naturais com que se contentam “socidlogos” normativos ou teleolégicos” (2). 1) Roberto Redfield: — “Relations of Anthropology to, the Social Sciences and the Humanities” em Anthropology Today ed. ‘A. L. Kroeber. The University of Chicago Press, Chicago 1953, pag. 730. 2) Gilberto Freyre: — Sociologia, 2 vols. José Olympio, Rio, 1945 especialmente vol. I, pag. 121. Ver sobre nalureza humana, pags. 119 segts. 30. Anais da We Reuiso Brssileiva de Antropologia 0 carter interrelacionista da antropologia, como diria este ti mo autor, fazendo a abranger o estudo da personalidade individual na sua estilizagao pelas normas culturais e do mesmo modo o da cultura como influenciada pelos individuos que dela participam; ou a andilise do sistema de inter-relagées particularmente padronizades que se estabelece em {6Uas as comunidades humanas; ou a identi- ficago dos valores e das relaces entre as representucdes simbéli- cas e a culiura, decorre evidentemente daquela necessidade de enca- rar 9 homem globalmente, como ser fisico, social cultural, Meto- dologicamente, a atracao “centrifuga” da antropologia, como chama Kroeber & necessidade de abareay esta disciplina um “enorme terri- trio” (3) e atrair outras ciéncias, determinaria a utilizagéo tanto do método historico quante do cientifico — no primeiro caso, quando 0 antropélogo em delerminada situacao 0 que deseja é reve- Jar “a individualidade do fendmeno com téda a sua riqueza de qua- lidades concretas”; no segundo quando 0 que ele busca é estabele- cer a “relagdo necessdria que existe entre um fendmeno e outro, ou seja, a lei, que se aplica a fendmenos semelhantes” (4). Dai eviden- temente, a dificuldade de fixar-se 0 antropélogo num sé método ou de situar-se estritamente dentro de um s6 esquema conceitual Flexivel em seus métodes, ampla em seu objeto de estudo pro- curando compreender téda a complexidade do ser humano, e com afinidades evidentes nao sé com as ciéncias como com as humani- dades, havia de atrair a antropologia a estudantes das mais diver- sas orientacdes e especialidades: os casos mnis flagrantes, em nosso periodo histérico, 0 de Freud, buscando apoiar-se no antropdlogo Frazer para justificar a seu romance edipiano; o de Sullivan, deri- vando da sua associacio com Sapir muito da teoria das relacées inter-pessoais; 0 de Toynbee, alongando-se em antropélogo a sua man¢ira para interpretar a histéria das civilizacées; 0 de Cassirer abandonando a defini¢io do homem como animal racional pela de animal simbélico e dai derivando a sua Antropologia Filoséfica (5). Disciplina que havia de transformar-se no “ponte de encon- tro das pessoas interessadas pelo homem” (6) por seu caréter a um tempo humanistico © cientifico, a antropologia, no campo particu- lar do estudo do negro brasileiro, contou em sua fase pioneira com homens como Nina Rodrigues, legista e psiquiatra — a quem presta- mos aqui o preito da nossa admiracao por ter sido o iniciador dos estudas afro-americanos —; a Arthur Ramos, também psiquiatra e psicanalista, cujos ultimos anos de vida tio curta foram ocupados em organizacio internacional com os problemas da antropologia apli- 3) A. L. Kroeber: — An Appraisal of Anthropotogy Today, 8. Soh ‘Tax e outros, The Univ. of Chicago Press, Chicago, 1953, pag. 151. 4) Alfonso Caso: — An Appraisal of Anthropology Today, pig. 157. 5) Ernst Cassirer: — Antropologia Filaséfica, Trad. para 0 espa- nhol por Engénio Imaz. Fondo de Cultura Eeondmica, México, 1951, pig. 48. 6) Claude Levi-Strauss: — An Appraisal of Anthropology Today, pag. 153. René Ribeiro — Possessiio, problema de etno-psicologia a cada; Ulysses Pernambucano, professor de psicologia e Logica, psi- quiatra clinieo e professor de neuropsiquiatria que se alongaria em psiquiatra social depois de reformador corajoso dos métodos de assistncia aos doentes mentais, E que todos eles, como muitos dos que se thes seguiram, apercebiam-se da complexidade do homem e da necessidade para compreendé-lo, ou para resolver os seus proble- mas de convivéncia harmonica ou de equilibrio mental, de encari-lo como ser biolégico, como pessoa social, como portador e criador de cultura, como parte da humanidade. A todos estes pioneiros preocupou a contribuicao etnica e culiural da presenca do escravo negro no Brasil, 0 esclarecimento da proveniéncia dos africanos, suas formas de religido, seus costumes ¢ especialmente a influéneia das diversas tradigdes culturais aqui introduzidas sobre a cultura brasileira e 0 ajustamento do individuo As formas estilizadas de eom- portamento prevatentes em nossa sociedade. Nina Rodrigues preo- eupar-se-ia com 0 candomblé, os movimentos de rebeldia do negro, © folelore e a conduta criminal; Arthur Ramos ampliaria a contri- buigéo do mestre a quem tomara como modelo nao sé no campo das religides negras, como no estudo da aculturacio, introduzindo um elemento dinamico a preocupacio quase exclusivamente etnografica de seu antecessor, ao lado de uma base tedrica mais atualizada embora inspirada nos postulados psicanaliticos; Ulysses Pernambucano abor- daria o tema do ponto de vista inicial da antropometria do homem do nordeste para depois estender-se & consideracao das diferengas culturais na patoplastia dos distirbios mentais e estimular o estudo psicolgico dos membros das religides negras ou outras. A formacao cientifica desses homens parece-nos ter sido o fator determinan- teresse de médicos pela dimensio cultural de suas espe- te do seu cialidades, enquanto a formacio humanistica de Manuel Querino, outro pioneiro que aqui nao pode ser esquecido, haveria de levé-lo ao estudo das formas de expressfo religiosa e dos costumes da populacio de cér & qual ele mesmo pertencia. No estudo das formas de expressio religiosa do negro brasi- leiro nfo passou despercebida a nenhum desses pioneiros a impor- tancia dos fendmenos de possessdo, como a utilidade de sua abor- dagem com o auxilio da psicologia. Esta ciéncia tio afim da antro- pologia — ao ponto de Hallowell ter afirmado que “Se considerar- mos a psicologia em seu mais amplo sentido e a antropologia em todos os seus aspectos histéricos, torna-se aparente... que desde 0 comeco... a antropologia foi quase continuamente influenciada pela psicologia, embora nem sempre com relagdo aos mesmos pro- blemas” (7) — a época em que eles iniciaram suas investigacées nfio estava, porém, tio bem aparelhada nem tio universalmente ligada & antropologia quanto hoje em dia para esclarecer melhor a natu- reza do fendmeno da possessio. Antecipavam-se eles, de qualquer modo, nesse seu interesse, aos modernos estudos sobre as relagdes entre a personalidade © a cultura que abririam um novo campo de 7) A. Irving Hallowell: — “Psychology and Anthropology” em For a Science of Social Man ed. John Gillin. Macmillan Co., New York, 1954, pag. 162 32. Anais da U* Rounlllo Brasileira de Antropologia, estudos & antropologia — 0 da etnopsicologia — consagrado por uma avalanche de evidéncias empiricas, por métodos e teorias algo refi- nados, € por sua inclusio no temario do préximo congresso interna- cional de antropologia ao lado das classicas sub-divisdes desta dis- ciplina. = A possessio nao é simplesmente aquele episédio espetacular que coréa as ceriménias publicas do cantomblé, do xangé, da ma- cumba, ou aquela condicao especial em que se apresentam certos individuos durante os rituais privados dos grupos de culto afro- brasileiro, ou durante as sessées de caboclo, ou de espiritismo, mas um fendmeno de dissociacdo da personalidade afin de outras mais leves dissociagdes frequentes na experiéncia cotidiana do indivi duo (8) e do éxtase de outras religides que nao as “de possessio” Além disso, conhecida de amerindios, africanos, europeus, poliné- sios, e parte da experiéncia religiosa de tantos povos, cria a pos- sessiio, com seus miiltiplos aspectos, um problema fascinante para © antropdlogo interessado em aprofundar as relacées da personali- dade do individuo com a sua cultura. Sua importincia, para etno- psicdlogo, radica em ser esta experiéneia culturalmente estilizada, socialmente induzida ¢ ao mesmo tempo reveladora das motivacdes do individuo para sua parlicipagio religiosa. Nina Rodrigues foi 0 primeiro a refular aquela facil suposicio de estarmos apenas diante de um fendmeno de simulagio. “Nao haveria nada de mais falso” — diz ele — “que atribui-tos, como se faz geralmente, a simulagio ou a farca. A iniciacio de Olimpia mostrou-nos a possibil dade de nfo se manifestar o santo apesar de todos os preparados e invocagdes dos feiticciros. E este fato da a0 mesmo tempo ndo s6 a medida da sinceridade ¢ boa fé de Olimpia, como a prova mais cabal de que a inicia- gio no consiste na aprendizagem de meios de simula- gio, concertada entre o pai de terreiro e 0 iniciando. Nada seria mais facil do que Olimpia simular ali uma perturbacio qualquer, da ordem dos fendmenos de santo muito meus conhecidos, para que fossem imediatamente tidos como verdadeiros. Conheci uma rapariga ja fale- cida que tinha o maior sentimento de nunca ter conse- guido a manifestagzo do seu santo preparado no terreiro do Gantois. Gastou avultada quantia, submeteu-se a todas as prescricdes, € no entanto o santo nunca lhe subit @ cabeca” (9). & bem verdade que em determinados casos e em certas situa- gGes, nfo sd os fidis comuns como principalmente os dignatarios 8) Gardner Murphy: — Personality — a biosocial approach to origins and structure. Harper Bros., New York, 1947, pags. 435 seguintes. 9) Nina Rodrigues: — 0 animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Civil. Brasil, Rio, 1935, pag. 101. René Ribeiro — Possessio, problema de etno-psicologia, 33 do culto simulam a possessio, mas desde Nina Rodrigues que vom sendo registadas as precaugdes para evilar tais casos e as provas a que os chefes de cullo submetem aqueles « quem susyeitam de simular, embora ele mesmo tenha observado certa mae de santo “simular claramente um estado de santo para repreender uma sua iniciada e para resolver negocios particulares seus” (10). O assun- to, porém, parece-nos encerrar-se definitivamente com a observa- gio do professor Gardner Murphy, da Universidade de Colimbia, sobre idéntica suposic¢io levantada nos casos de personalidade miiltipla — “Existe naturalmente algo que sugere o histrionismo nesses casos, algo que nos recorda uma pose. Porém nés esque- cemos frequentemente que todas as atitudes mantidas num texto social tém uma qualidade histriénica. Elas servem um pro- pésito social e se cristalizam como papeis sociais [roles) mutuamen- te exclusivos” (11) A preparagio do individuo para essa fungao, 1 de possuido por uma divindade do culto afro-brasileiro, foi bem registada po) Nina. Eis como ele descreve a fase final da iniciacio “Raspada assim a cabeca, é ela vigorosa ¢ demora- damente lavada com uma infusto especial de plantas sagradas, processo que se acompanha de gestos ¢ pala- vras cabalistieas e por cujas virtudes se hi de dar a pos sessio, ou manifestagio do santo”... “A uma musica e camto especiais, revela-se 0 santo ¢ a iniciada, em estado de possessio, deve langar-se na danca. A meia noite, me anunciaram este cantico particular para o santo Osun, mas parece que 0 efeito desejado nao se produ- ziu, porque, depois de esperar muito tempo, um dos pais de terreiro chamou o regente para o recinto do Pegt ¢ s6 sob a influéncia do tabaque e mais um instrumento especial de Sang, comecou ela a dancar, acompanhada por um dos pais de terreiro que tinha presa nas suas uma das maos de inieiada” (12), A mudanca de personalidade, a utilizagio dos possuidos como veiculos para profecias da parte das divindades bem como a amne. sia posterior 4 possessio, também foram registradas pelo mestre bahiano: “A pessoa em quem o santo se manifesta” — diz-nos “que esté ou cai no santo na giria do candomblé, nao tem mais conseitneia dos seus alos, niio sabe o que diz, nem mesmo 0 que faz, porque quem fala e obra é © santo que dela se apodera. Por esse motivo, desde que © santo se manifesta, 0 individuo, que € dele porta: dor, perde a sua personalidade terrestre ¢ humana para adquirir, com tédas as honras a que tem direito, a do 10) Idem — cit. pags. 103-104 11) Gardner Murphy — cit. pag. 442. 12) Nina Rodrigues — cit. pags. 79, 81-82. of Anais da 1+ Reuniéo Brasileira ge Antropologia deus que nele se revela”... “& neste estado particular que se fazem as predigdes. O pontifice ou pai de terreira que dirige as cerim@nias € quem se comunica com o santo € interpreta os seus desejos ¢ ordens. As vezes esta cena é publica, e é dangande gue o santo manifesta a sua vontade, mas de ordinério o pai de terreiro con- versa com 0 santo em particular no santudrio, e de la traz as predigbes que devem ser transmitidas aos cren- tes"... “pois que, quando 0 santo abandona o médio, este ndo deve conservar a menor lembranga do que se passou” (13). Sua interpretagdo do fendmeno é feita em termos psicopatolo- gicos de acordo com a ciéncia de sua época, achando que a danga, a “fadiga da atengio", e a de “sonambulismo”, Em sua: ugestio” provocariam tais estados proprias palavras: “Do que tenho ouvido, dos casos que tenho observa- do, dos exames que tenho feito, sou levado a acreditar que os oraculos fetichistas, ou possessio de santo, nio sia mais do que estados de sonambulismo provocado, com desdobramento e substituic¢ao de personalidade” “Nada mais féeil de compreender, pois, como as coisas se passam no estado de santo. Cada santo fetichista tem ‘0s seus distintivos préprios; deste é uma cinta especial toda bordada de biizios; daquele € um ssiote branco ou vermelho, com uma espada, uma ventarola ou um enfeite qualquer; deste outro, so voltas de contas de varias céres, e assim por diante. Desde que o santo se mani- festa num membro do colégio ou confraria, este ¢ con- duzido ao Pegi, ¢ ali revestido das vestes e paramentos pertencentes ao santo que nele se acha, Assim vestido, ele volta a brincar e dangar até cair em letargia ou vol- tar a si, Outros assim revestidos so interrogados ou con- saltados © pronuneiam ordculos. Ora, 0 iniciado conhece a fundo a histéria do seu santo, dos milagres, dos fet tos porque se celebrizou; tem visto muitas vezes os com- panheiros cairem no santo; sabe como se comportam ¢ como sio tratados. Caindo em estado de sonarbulismo, as vestes, os ornatos com que o preparam sugerem-lhe, impGem-lhe a personalidade do seu deus ou santo, com @ mesma facilidade com que nas sugestdes gerais se trans- forma o hipnotizado em um sacerdote, em um rei, em uum general, ete” (14) Nina Rodrigues procurou reproduzir experimentalmente os fendmenos de possessiio com os quais se familiarizara durante suas Pesquisas de campo nos candomblés bahianos, Parlindo do pressi- Posto de que tratava-se de wm fendmeno induzivel por sugestio ele 43) Idem — cit. pags. 99-100-101. 44) Idem — cit. pags. 109, 114-15. René Ribeiro — Possosstio, problema de etno-psicologia 35 conseguiu reproduzir em Fausta um estado de santo, “e6pia fiel do estado de santo da mie de terreiro onde eu a tinha conhecido”. Nao foi, porém, capaz de fazé-la dancar porque “estévamos na quaresma € nesse tempo nao pode mais haver dana de santo” (15), conforme Ihe adiantou seu proprio sujeito de experiéncia, assim demonstran- do 0 condicionamento cultural do fendmeno. Manuel Querino alinhar-se-idt com 0 seu predecessor em con- siderar a possessio como um fendmeno de “auto-sugestio” : ‘ada existe de sobrenatural” — diz, contimuando: “A uuto-sugesiio adquirida nas priticas da camarinha, as bebidas e os banhos aromaticos de hervas narcéticas ¢ de efeitos outros condizentes as necessidades rituais, atuando sobre o organismo, tudo isso contribue para a formacio da crenga na existéncia de um espirito que encarna no corpo da novicz, com poderes para dirigi- la” (16). Sua, porém, & uma descrigfo razoavel da possessio espontinea ¢ da maneira como fazé-la terminar, bem como de uma das modali- dades de transmissio do santo quando do falecimento de seu devo- tado: a0 feiticista africano, 0 cair no santo é um esiado psicologico especial. O espirito, necessitande de um yeiculo para suas manifestages, apodera-se da mu- ther para esse fim, A pessoa atingida mostra-se logo inquiela, abandona suas ocupagdes, ¢ forcada dirige-se instintivamente a0 candomblé mais préximo e ai apre- senta-se com alvorogo, a cantar e a dancar, como se entendida fosse nos mistérios do rito. Depois, cai exausta e levantada por pessoas conhecedoras dos pre- ceitos © conduzida a camarinha, afim de que os interes- sados concorram com as despesas indispensaveis As obri- Bagi iciadas. Tanto quanto nos permi te a penctracio nesses segredos, essa exaltacio de sen- lidos € 0 resultado de uma ideia fixa determinada pela conversacio sdbre a espécie com pessoas entendidas, ‘ou por ter assistido aos atos feiticistas; tudo isso a influir no temperamento nervoso, auxiliado pelo histerismo, desde que esse fenémeno é peculiar ao sexo feminino, sempre impressionavel. Ainda assim os exemplos de Possessio . expontinea so rarissimos”,.. “Ao falecer uma mulher feita, na ocasiio de sair 0 cortejo finebre, © santo que nfo pode estar sem cavalo toma imedis- tamente um outro. A mulher preferida pelo sanfo tem, no momento, uma crise nervosa, cai repentinamente € debate-se com furor. Ato continuo, uma pessoa enten- “15) Idem — cit. pag. 121. 16) Manue! Querino: — Costumes Africanos no Brasil. Civil. Bra- sil. Rio, 193% pag. 74. oe 36 Anais da 11 Reunitio Masi potocia wilelra de A dida imerge uma das maos n’agua e asperge os ouvi- dos da vitima ¢ esta levanta-se: esta despachado 0 santo ‘ou encantado. Noutros casos, para que o santo se retire do corpo em que se encarnou, 0 processo a seguir € como passamos a deserever. Quem esti com o santo abraca os assistentes, di conselhos, improvisa cantigas, pre- vine 0 mal que esta para suceder, aperta a mio de todos, € corteja-os conforme a hierarquia de cada um. Em seguida deita-se, cobrem-no com um lengol e depois de breve descanco, da trés gemidos com intervalos. Quem esta encarregado do despacho, molha a mao direita Wagua fria e toca-a na testa, nos seios, na nuca e nos pés da vitima. Depois, levantando 0 lencol sacode-o e chama pelo santo. (21 Nesse momento, 0 cavalo do santo levanta-se estonteado, com indicios de que tem a ca- beca atordoada; descanca por alguns minutos, e esta despachado 0 santo”... “O ato de despachar o santo € 0 momento melindroso; é mistér muita vigilincia Para nao suceder que pessoas de ma indole aproveitem a ocasido para dar comida ou bebida contraria ao anjo da guarda da pessoa sob pena de fazé-la perder a fala por algum tempo, ter a cabeca sem governo e dar-se 20 abuso de bebidas alcodlicas” (17). Estes depoimentos estio sendo aqui evocados porque contém as observagdes essenciais para a compreensio e a interpretacio do fendmeno da “possessio” — tarefa que teremos de abordar logo mais, amparados em casuistica pessoal — dispensando-nos da tarefa de descrever os seus aspectos mais superficitis embora de igual relevancia, Arthur Ramos também encararia a possessio como fenémeno psicopatoldgico, apoiado em Kretschmer, Janet, e na psicandlise. Para ele, “a possessiio espirito-fetichista @ um fendmeno muito complexo, ligado a varios estados mérbidos. Pode ser aguda ou erdnica. No primeiro caso, nas formas paro- xisticas, transitérias, temos aqueles processos, affins da histeria, onde se verificam os mecanismos motores de reaciio ancestral: “tempestade de movimento”, e “refle- xo de imobilizaco”, e formas hipondicas de pensa- mento, mégico-catatimicas, comuns da histeria, dos esta- dos sonambiilicos, hipnéticos, oniricos, esquisofrénicos, com modificacdes da consciéncia e da personalidade. Nos casos sub-agudos e erdnicos, as perturbagdes demo- nopiticas e medionopaticas dos possessos, acham-se Tigados 20 automatismo mental, e vio desde os fendme- hos xenopiticos simples, até os delirios mais complexos, & base de influéncia”... “Nos candomblés e macumbas do Brasil, dansa é ulilizada, como vimos, para pro- vocar os “estados de santo” que, do ponto de vista psi- 17) Idem — cit. pags. 78-79. René Hivelto — Possesstio, problema de etno-pstcologia a7 canalitico, exprimem uma erotizagao compieta da corpo a mesma coisa que © ataque histérico, simbolo do coi- to” (18). : Mesmo muito tempo depois de ter observado pela primeira vex © fenémeno na Bahia, Arthur Ramos, em sua Introduce & Antro- “f “queda no santo” é um estado psicolégico espe- cial que caracteriza (das as religides chamadas de “pos- sessio”. O cansago fisioldgico provocado pela dansa, a fadiga motivada pela alengao dispensada aos canti- cos indefinidamente repetides, noite a dentro, tudo isso provoca © fenémeno da “queda no santo”, espécie de transe que ataca de preferéncia us mulheres. Ha toda ima variedade de expressio no “estado de santo”, desde os simples deliquios passageiros, alé as mais violentas explosdes motoras com suas convulsdes” (19). Dentre os alunos de Ulysses Pernambucano, Pedro Cavalcanti desereveu com bastante simplicidade e muita fidelidade, embora com algumas omissées, a possessio no xangd do Recife: “Os negros dos atabaques ja esto suados, mas o ritme néo se perde. Subito, desgarra da roda wma filha de santo e comeca a rodopiar freneticamente. Ela tem um jacies especial. Os misculos estdo contraidos. Um riso sardénico esti a mostra. Logo todos voltam a encdo para a possuida do santo, Os gritos de louva- Jo ecoam: Ogunhé! Ogunhé! Oguché! A roda para. Os entes acompanham interessados a manifestagio. Esta PI continua a dansar, a gingar, a rodopiar, a jogar os bra- cos aqui e acola. Ogunhé! Tomba daqui, quase cai ali. Mas nao para, As manifestacdes motoras se sucedem, se mulliplicam. Ogunhé! E correm longos minutos. A foada se repete, se repete, vinte, trinta, cineoenta, cem vezes. A mae pequena toma duma toalha e vai enxugar- the © suor, 0 que faz com dificuldade. Vezes ajudada por lorixis tiralhe 0 pano que tem enrolado a beca (iquete). O babalorix faz parar os ingomes A possuida do santo, ainda agitada, zonza, molhadinha de suor, sai a abragar o pai de santo e depois os pre- sentes, mesmo 28 visitas. Pde-lhes os bragos nas costus € leva a cabeca so ombro do abracado. Pouco depois & levada ao Peji, donde volta apés alguns minutos, ja sem estar possuida do santo. © teque tem sido recome- Jo” (20) 18) Arthur Ramos: — @ Negro Brasileiro. Civil. Bras ~ pags. 198, 288 19) Idem — Iatroducdo a Antropologia Brasileira, 1943, pag. 369. 20) Pedro Cavalcanti: —- “As Seitas Africanas do Recife” em Esfu- dos Ajro-Brasileiros. Ariel, Rio, 1935. pag. 246. 1. Rio, 1934, vol. CEB, Rio, 38 Anais da [It Reunifo Brasileira de Aptropologia oncalves Fernandes endossou as opinies de Nina Rodrigues ¢ de Arthur Ramos sobre 2 aaftreza da posse jonando uma Suposi¢io ao nosso ver inieiramente infundada de favorecerem sua eclosio com a “ingestio de bebidas diversas, infusées ¢ decotos de hervas, entre outras a maconha, usadas em virios terreiros durante ‘9 toque, enquanto o filho de santo faz 0 seu adobalé no Pegi (21). A Ulysses Pernambucano, porém, é que se deve a sugestio de anali- zarem os seus alunos, com o auxilio de testes psicoldgicos, a perso- nalidade das pessous que apresentam possesses habiluais ou episd- dicas. Pedro Cavalcanti ¢ nés mesmos utilizamos tais provas com 05 mediuns de centros espirilas strumento uillizado iquel Gpoca era inadequado a tal tipo de investigagio e a interpretacdo dos resultados baseava-se sobre 0 primado da sugestdo, seguindo a Bandoin, sobre as particularidades da “smentalidade preldgica” do conceito de Levy-Bruhul, as “reages motoras primitivas” € 0 pen- samento “hipondico” do esquema de Kretschmer e a psicanalise de Jones (22). Desde essa epoca (1937) porém, viamos na possessio uma oportunidade para certos individuos se libertarem de suas ten- sdes, como estudos mais modernos viriam comproyé-lo (23) Sdmente em 1943 seriam os estudiosos brasileiros alertados, pelo professor Melville J. Herskovits, da Universidade de Northwes- tern, em provocante conferéncia pronunciada na cidade do Salva- dor ¢ depois repetida no Rio e no Recife, sobre a natureza normal da possessio € sua interpretacdo A base das normas de conduta ests helecidas por determinadas culturas e do condicionamento sociat pelas normas cullurais. Sua orientagio psicolégica era a dos beha- vioristas —- da possessio ser a resposta a “im sinal convencionado” — a natureza social c cultural do fendmeno sendo destacada nos seytiintes termos: “Imaginemos agora uma pessoa que se tenha criado em um meio cultural onde se acredita profundamente nas divindades; onde desde a infancia Ihe tenham ensi- nado que tera, ou que é susceptivel de receber uma dessas divindades; que os deuses sio chamados por inter- médio de ritmos especificos de atabaque e de cfr especificos, a que respondem baixando na cabeca dos que escolheram para seu servico; sio muitas as proba- bilidades para que, em face do estimulo ensejado por todos os fatores de uma situacio conforme as indicacdes que fizemos, nfo tarde a resposta e a possessio tenha lugar” (24) 21) Goncalves Fernandes: Xangés do Nordeste. Civil. Brasil. Rio, 1937, pags. 111-112 22) Pedro Cavaleanti: — Contribuicdo ao Estudo do Estado Mental dos Mediuns. ‘Tese, Recife, 1934. 23) René Ribeiro: — “Alguns Resultados do Estudo de 100 Mediuns” em Estudos Perrambucanos dedicados a Ulysses Pernambu cano. Recife, 1937, pigs. 73-84 24) Melville J. Herskovits: — Pesquisas Etnoldgicas na Bahia. Publ. Museo da Bahia, 1943, pags. 25-26. René Bi — Possessio, problema de etno-psieologia 39 Sua réplica a possiveis objecdes a esta interpretagio do fend- meno é dada logo a segui “Porque entao, se objetara, nem, todos’ que perten- cem a esta cultura, mais cedo ou mais tarde, ficam pos- suidos? Teremos uma resposta no fato de mais pes- cairem no santo do que geralmente se presume © uma técnica completa existe por meio da qual esses individuos, que nao podem ou nao desejem iniciarem no culto, conseguem ter os deuses “assenta- dos”, a fim de que nio Ihes voltem. Outra resposta estar. na razio muito simples que nem a todos per- mite ser um grande pintor ou um carpinteiro com- petente, um musicista de renome ou um bom cozinhei- ro. Algumas pessoas nao respondem aos _estimulos porque sua constituigio nJo se presta a isso, o que é reconhecido tanto na linguagem como nas praticas do candomblé — no fato, por exemplo, de haver lugar no culto para a mulher que deseja associar-se mas que, como dizem, “no tem nada na cabeca” (25) A melhor descrigéo que se encontra na literatura especiali- zada, sobre a possessio, ainda é a do famoso africanista, pro- fessor de Northwestern. Dizia ele em 1941, & base de suas obser- vagées na Africa e nas Américas: “A possessio é em toda a parte um fendmeno social... Determinado ritmo do tambor, 0 som de um maracd, 0 canto ¢ as palmas de um ¢6ro sio quase sempre invariayelmente essenciais para que a posses- sio tenha lugar e o devoto de qualidades emocionais instaveis que por si mesmo se torna inquieto e entra em possessio constitui um caso pouco comum. Em regra, a possessfio tem lugar durante uma ceriménia em que o fiel de determinado deus ¢ influenciado pelos cinticos, as dancas e o toque dos tambores executados per um grupo do qual ele é um dos membros; 0 deus “desce na sua cabeca”, ele perde a consciéncia, trans- forma-se na divindade, e até que o despachem danca ¢ age 4 maneira do espirito que o possuiu. Naqueles pon- tos da area da escravidio em que se estudou a posses- sio, o comportamento motor das pessoas possessas apresenta similaridades dignas de nota. Quer se trate de um fiel que venha se sentindo inquieto ha algum tempo antes da ceriménia e esteja portanto no ponto de receber a “visita do deus” ou que tenha sido designa- do pelo chefe do grupo para ser objeto desta conside- racio por parte da divindade, o fiel que vai entrar em possession comeca por bater palmas, balancar a cabeca e marcar 0 compasso com os pés, seguinto o ritmo dos tambores. Nisso sua conduta se assemelha A dos de- 25) Idem — cit. pag. 26. 40 Anais da II Reunifio Brasileira de Antropologia mais assistentes, porém logo ele se destaca pelo vigor de seus movimentos e pela fixidez e alheiamento de seu oliar. Seus movimentos tornam-se cada vex mais promun- ciados até que, ainda em seu lugar, sua cabeca comeca a ser jogada para um lado e para outro bem como seus bracos. Finalmente ele salla para © centro da roda, onde comeca a correr, dar voltas, cair, girar sobre si mesmo, saltar, ¢ depois “falar lingua” e profetizar. Com 0 passar do tempo e quando ele sente que © chefe do ritual 0 sub- mete a certos atos rituais para despachar 0 santo, acal- ma-se € reune-se aos dansarinos que se movem sempre em circulo da esquerda para a direita. Neste caso sua saida da possessdo é gradual; outras vezes, entretanto, sua agitagio continua até que ele cai ao chio desmaiado, é retirado pelos que o cercam, voltando eventualmente para © local das dangas para reassumir seu lugar de espec- tador” (26). A possessio nos cultos afro-brasileiros € perfeitamente estiliza- da, Embora ela possa ocorrer em pessoas nao pertencentes a tais gru- pos e mesmo fora das ocasides rituais, a formas que assume tal fend- meno sio estritamente similares de um modo gerai ¢ ainda conforme ao deus de que se diz possuido 0 individuo. Gestos, modos de dangar, intensidade e qualidade da movimentacio, ordenacio dos cump mentos ¢ gestos rituais, uso da palavra para a comunicacdo da divin- dade com os sacerdotes ¢ simples fiéis ou tio somente de linguagem mimica sio préprios ¢ distintivos de cada ser sobrenatural que assim se “manifesta” e da condi¢io especial em que se encontram os ficis nesse momento. Mesmo os “santos brutos” — aqueles nio “assenta- dos” ainda no pegi ¢ assim sujeitos ao contréle dos sacerdotes ox cujos fiéis ndo foram treinados e preparados ritualmente para a Possessio — apesat de suas possessdes poderem se identificar por eves desvios dos padrdes estabelecidos, seguem em linhas gerais 0 esquema particular de possessio proprio de cada deus. De outro Jado, os individuos que apresentam possessées espontaneas e que aparentemente sao estranhos ao grupo de culto onde tal Thes sucedeu, demonstram quando interrogados sua familiaridade prévia com os aspectos gerais das religides afro-brasileiras e especialmente com os fendmenos de possessia. A iniciacao ritual, é importante realgar, comporta perfodos varidveis de treinamento e de indoutrinagio do eandidato nas regras rituais e de comportamento que regulam a vida do fiel e suas relacdes com o sobrenatural, inclusive a indugio das experiéncias de transe mistico, provocadas em varias ocasides du- rante © seu periodo de confinamento na camarinha. Os fendmenos de possessio também podem ser sustados mediante certas manipu- lagbes e rituais estabelecidas com esse fim, dal por diante 0 indivi- duo que obteve 0 assentimento do sea deus e cumprin com os neces- sirios ritos, ficando indene & possessio quer nas ocasides rituais em que habitualmente Ihe “desce 0 santo”, quer fora delas. Fi¢is ha 26) Idem — The Myth of the Negro Past Harper Bro: 1941, pags. 215-16. New York René Hideire — Possessio, problema de etno-psicologia Fr que apresentam possesses estreitumente semethantes aquelas de outros membros mais antigus, mas que “no falam” por nao lhes ter sido ainda imposta pelo sacerdote tal capacidade de profetizar ou de exprimir os desejos do seu deus, sé 0 fazendo apos o necessario rito de imposicao da fala, Outros, que a toada de set deus particular nao entram em possessio emi certos dias por nao estarem “com o corpo limpo” (em periodo de menstruo, ou por terem tide naquele dia relagdes sexuais, ele,), finalmente outros que entram em posses sao por designacio de sacerdote ou imposigao deste no caso em que chegado o momento tentam resistir a0 fendmena, enquanto a maio- ria dos fiéis nfio “cai no santo” fora de sua casa de culto, mesmo quando presentes « uma cerimdnia ou ritual, assistem 4 invocacdo do seu santo particular, Essa estilizacio compreende t6das as fase do episédio, inclusive sua terminagio, tendo certo sacerdote Go Reci- fe uma vex decidido que certo fiel simulava estar possuido por nio ter adequadamente respondido as ministracdes rituais que Ihe fizer: para “retirar 0 santo”, embora houvesse aceito toda a sequéncia anterior como fidedigna. A possessio é parte integrante e saliente do complexo ritual e de crengas que caracteriza as religides afro-brasileiras. Ela é um episdio importante no conjunto de rituais que visam integrar o indi- viduo ao seu grupo de cull e sancionar sua participacao nele, com- pletando-os a imponente ceriménia da “saida do yawo” que é uma sequéncia de possessées ptiblicas. Ela sucede sempre durante os rituais de “dar de comer ao santo”, ou quando dos sacrificios que constituem uma “obrigacio”, quer norms}, quer com fins especiais de aplacar as diyindades ou de obter sua cooperagdo na satistagio de desejos de fiel. Ela constitu, finalmente, a parte dramatica e essencial das ceriménias piblicas quando os deuses sio chamados a “brincar” durante as dangas cerimoniais. Nessa categoria, participa a possessio das fungdes sécio-cultu- rais e psicoldgicas dos grupos de culto afro-brasileiro, Estes grupos nao constituem somente unidades particulares de convivéncia dentro de nossa sociedade mais ampla, mas atuam como vetores de um sis- tema de valores e de padrées culturais de algum modo diversos daque- les vigentes em outros grupos sociais. Eles parecem-nos oferecer aos seus membros, sem forgit-los ao repadio dos outros valores e normas da cultura luso-brasiteiva, um sistema de crencas € um novo tipo de relages inter-pessoais que pode ser considerado como extremamente favoravel A reducdo de tensées. Individuos cujos status e papeis ou funcdes (roles) sa sociedade larga nao Ihes oferecem uma oportuni- dade para realizacio pessoal ou para o compramisso entre as realida- des da vida cotidiana e seus modelos ideais, parecem encontrat es- sas religiées ura explicacio do universo, um sistema de relacdes inter-pessoais e de hicrarquia, ao lado de um novo modo de relacio com o sobrenatural e de controle aparente do destino que ielhor satisfazem as suas necessidades bisicas de equilibrio e seguranca psi- colégica e de ajustamento social. A afiliagiio a esses grupos organi- zados de maneira distinta daqueles outros que conjuntamente com- PGem a nossa sociedade, bem como a aquisigio ali de novos papeis € novas posicées (frequentemente associadas a melhor status); de ido Brasileira. de Antropologia 42 Anais da 1) Rew aparente segutanca no controle da magia ¢ do acidente; de canaliz; io da agressio ou de reducio de ansiedades e frigdes, certamente oferecem-lhes experiéncias mais satisfalorias do que quaisquer outras que eles possam obier numa Sociedade em fase de urbanizagao e de integracao ainda imperfeita dos scus elementos constituintes, o atra- vés as pritieas do catolicismo ortodoxo, Rubem Braga com acuidade de cronista péde perceber parte da verdade, no processo atual de difusio da macumba, Depois de acentuar a ascensio social da classe operaria como um dos fatores de introducéo da macumba na classe média (a0 que poderiamos também adicionar o processo inverso € muito atual da proletarizacdo desta classe) diz-nos que a “gente pobre” procura, “sobretudo, um remédio para sua decepcio. Sua grande decepeao social que abrange apenas este ow aquele homem, ou governo, mas todas as instituigdes que a seus olhos representam a ordem deste mundo fisico € espi- ritual. Em suas afligdes @ dificuldades, ela se cansou de apelar para a bondade do governo, 2 caridade do rico, ¢ mesmo o consolo da religizo tradicional. Procura se armar de poderes secretos, se associar a forcas mis- teriosas que prometem melhorar sua vida neste mundo, © a curto prix, ao passo que as religides cristis prome- tem principalmente felicidade na outra vida; e ainda porque estas insistem em pregar o amor aos seus seme- Thantes, enquanto a imacumba Ihe abre a perspectiva de atrapalhar ou mesmo desgracar a vida do inimigo. Além disso — continua ele — as religides cristés perderam em grande parte, pelo uso, a grande forea de seducio que seu rito apresenta; a misica da macumba, por exem- plo, além de ser associada & danca, esté muito mais perto do gosto popular; nos terreiros menos artodoxos ela se confunde facilmente com o samba. De qualquer modo, a verdade @ que Ogun esti mais forte do que nunca, o que depde contra a eficiéncia tatica para ganhar ou manter prestigio nio apenas das réligides cirstis como também de credos politicos, especialmente 0 co- munista, Ogun esté muito forte” -— conclui ele (27). Regulam a conduta dos individuos participantes dessas religises istema de ctiqueta, ritos de purificacio ou propiciatérios, proi- bicdes de alimentos e outras normas de comportamento, reforca- das pelas sancdes sociais do grupo e pela disciplina exigida pelos dignatérios ou pelos préprios entes sobrenaturais. 0 exemplo pes soal, reforeado pelo prestigio dos patticipantes mais velhos ou de posiciio hier4rquiea superior; a indoutrinacso nas regras de etique- ta, rituais ou de conduta comum; a conviceio sobre a dependéneia do individuo das entidades sobrenaturais a quem ele cultua e presta obediéncias 0 incentivo para snas experiéncias de participacio no grupo de culto; a moralidade dos mitos, contos e provérbios, como de incidentes moralizadores presenciados ou relatados; as 27 Manchete — n. 161, de 21-5-1955, pag. 54 René Ribeiro — Possessdo, problema de etno-ps ogi 43 revelacées obtidas das proprias divindades através os varios siste- mas divinatorios, os sonhos e outros indicios de manifestagio da yontade dos deuses — tudo isso da ao individuo a medida da pro- priedade de sta conduta e uma visio nova dos problemas da vida e do destino do homem dentro desse quadro amplo das fungdes do agrupamento reli gioso ¢ cum referencia a seu papel na economia de vida do indi- vidue que a possessdo parece-nos dever ser estudada. Como um fendmeno que se verifies no homem, ela deve ter como este varias dimensées: a social, a cultural ¢ a psicotogica destacam-se especial- mente em importan nis As molivagbes ¢ 0s mecanismos psicolégicos envolvidos nesta ndigdo especial que se chama 0 estado de possessdo, apresentam a0 einopsicdlogo um problema complexo, mas digno de nossa maio: atengio. O professor Melville J. Herskovits, como ja vimos, foi o primeiro x se insurgir contra sua interpretacio em termos psicopa- tolégicos, ou seu estudo por meio de técnicas desenvolvidas com o fim especial de analizar e diagnosticar condigdes wérbidas. Apoian- do-se nas experiéncias de Sherif sobre o estabelecimento das nor- mas socivis, conclui ele estarmos diante de um fendmeno claramente dependente da situagke séeio-eultural, além de acentuar seu caré- de normalidade, como um tipo de conduta no s6 esperada, como determinada culturamente, Ele mantem, além disso, que a segu- tanga psicolégica obtida pelo individuo por meio da possessio, “deriva da cerieza da intimidade com as poléncias do universo, porém, também do status, das vantagens econdmicas, da expressio estética e da libertacdo emocional com que ela tavorece o fie!” (28). Ao mesmo tempo assinalou Herskovits que esta espécie de expe- parece prerrogativa dos membros do grupo de cullo que mm por sua instabilidade emocional, antes sucedendo a individuos com varios tipos de personalidades — aqueles que nunca experimentam a possessiio, sendo antes classificados pelas pessoas familiares com esta religido, como “menos ajustados do que os que caem em possessio” (29). Recentemente, um psiquiatra com expe- riéneia de observaco do candomblé bahiano e perspectiva transcul- tural em seus estudos de psicopatologia, 0 professor Bavrard Stain- brook, da Universidade do Estado de New York, ratificou esta dltima asserciio de Herskovits nos seguintes termos: “Existem também algu- mas mulheres que participam de grupo de eandomblé mas que nao experimentam a possessdo dissocialiva socialmente provocada, Entre- vistas com estas mulheres demonstraram geralmente ansiedade fora do comum ou definida resisténcia e hostilidade” (30). Roger Bas- tide também se alinha ao lado de Herskovits para “apresentar 0 eulto afro-brasileiro tal qual é na realidade, como uma coisa normal, 28) Melville J. Herskovits: Man und His Works, Knopf, New York, 1948, pags. 67 29) Idem t. pa 30) Edward Sta ome Characteristics of the Psycho- pathology of Schizophrenic Behavior in Bahian Society”. Am. Journ. Psychiatry, vol. 109 (1952) pag, 334, grifo nosso. “4 Anais da Il* Reunido Brasileira de Antropologia integrada numa cultura, sem selvageria nem barbarism, sem exas- peracdo dos sentides nem sexualidade” (31) — palavras suas — interpretando a possessao do seguinte modo: “0 transe determina uma mudanga de personalidade. Essa mudanga, que se nota até mesmo no rosto, depois dos primeiros estremecimentos dos ombros, do corpo ferido pela flexa divina, o ‘gingar caracteristico da que- da do santo, também é um fendmeno a ser estudado. Nao se trataria de uma desforra contra a vida cotidiana? A realizag&o desse bovarismo que ha no fundo de todos nds, segundo Jules de Gaultier, e ao qual o Carnaval e 0 baile de mascara acalmam de certa maneira; nosso de- sejo de metamorfose? A crianca é um ser miltiplo, rico de possibilidades, mas que & medida que eresce vai em- pobrecendo, sendo desbustada de todos os “eu” que po- deria ter tido, mumificando-se numa atitude esclerdtica Contudo, tédas as personalidades rejeitadas persistem no inconsciente e gostariamos as vezes de assumi-las, para representar uma outra pessoa. O homem é um ator condenado a um tnico papel e que procura, através de fugas, viagens e guerras, escapar A tirania da timica de Nessus que a sociedade uniu a sua pele. Ora, a reli gido teve sempre um papel importante nessa mudanga de vestudrio: os pseudénimos miltiplos com que Ki kegaard assina seus livros, e o gosto dos fitis de “en- xertar” em suas vidas 2 vida de um Deus para infundir em suas veias outra seiva que desabrochara em frutos novos, sio provas manifestas dessa afirmacio. Com muito mais razio quando — como 6 0 caso dos filhos dos “orixé”, que 0 mais das vezes pertencem as classes baixas da sociedade, lavadeiras, cozinheiras, empregadas domésticas — se trata de despir a roupa da servidao coti- diana para vestir a roupagem brilhante dos deuses” “Essa mudanca de personalidade se manifesta exterior. mente por uma mudanea de roupa simbéliea: 0 ser possuide por um deus adquire seus atributos”... “Um funciondrio piblico de ceria importincia, pertencente a uma seita africana do Recife, orgulhoso de sua posicio, do prestigio de sua classe e que tinha, no mais alto gran conseciéncia de sua dignidade, era “yemanji”. Ora, cada vez que caia em transe, dancava estendendo a mio, mendigando amor e dinheiro, implorava a caridade dos presentes, nao parava enquanto nfo tivesse reunido em suas miios, nas noites de danca, algumas moedas. Seu pai me contava como, a0 despertar, sentiu-se envergonha- do do que havia feito; téda uma vida de trabatho, de esforco para se elevar na sociedade, para atingir uma Posicio, desmoronava num instante, porque Yemanjé 31) Roger Bastide: — Imagens do Nordeste Mislico em Branco e Preto. O Cruzeiro ed., Rio, 1945, pags. 96-97. René Kibelro — Possessiio, problema de etno-psieologia, 45 gosta de dinheiro; t0da sua respeitabilidade de homem que tinha conseguido obter, com dificuldade, a indepen- déneia econdmica, desaparecia por que o “orixa”, quando se encarna, di a seu cavalo exatamente os scus carac- teres e a sua personalidade propria” (32). Téda conduta humana € motivada. 0 comportamento de cada individuo é ordenado em papeis ou funcdes (roles) que Ihe sio impostas desde a infancia, ou que ele assume posteriormente, fun- des que sio os instrumentos essenciais da comunicacdo e da inte- racdo social, permitindo ao individuo a consciéncia do seu proprio eu, a classificagio das outras pessoas segundo um esquema de refe- neia determinado culturalmente e a formacio de atitudes para com outrem, para consigo proprio, e eu-outrem (self-other). Essas fungdes estéo ligadas a um sistema de posicdes proprio e caracte- ristico de cada grupo social com que o individuo entra em contacto ou no qual nasce ou vem a pertencer, sistema esse derivado das normas vigentes em cada sociedade. O individuo geralmente inte- riorisa essas normas no curso do processo de socializacdo, incorpo- rando-as Aquela “total organizagio de predisposicdes & agio” (New- comb) que constitui a sua personalidade. Esta, evidentemente, de- corre de fatores constitucionais, dos efeitos da inter- social (criando no individuo sistemas particulares de referéncia, modos esti lizados de comportamento e atitudes), e da auto-percepeao adqui- rida no curso desse Ultimo processo, como no desempenho das fun- g6es sociais (social roles). No decurso do processo de socializagéo © individuo termina por incorporar as suas proprias motivacées a exigéncia social de conformacio e desempenho das funcdes que Ihe so reservadas pelos grupos de que participa ou aos quais toma como referéncia. Visto como tdda sociedade incentiva o desempe- nho dessas fungdes e 0 preenchimento de posicgdes dando 20 indi- viduo que com elas se conforma, prestigio e reconhecimento social ou status a regra geral é sua aceitagio inconsciente ou deliberada. Nem tédas as fungées, porém, apesar do individuo desempenhar sucessivamente um grande ntimero delas e até funcdes ou papeis antagonicos, sio aceitas pelo individuo como satisfatérias — dai tentar ele relegar algumas e assumir outras ou se comportar como marginal ou desviado, por nfo corresponder as expectativas de com- portamento que seu grupo social ou sua sociedade depositaram nele ao Ihe reservarem determinadas funcdes e posigdes. Esse é um fator — e dos mais importantes — na mudanga social e no ajus- tamento do individuo 2 sociedade ou de desajustamento e até de desintegracio pessoal. A dinamica das relacdes entre a personalidade individual e essas fun¢des sociais é muito bem expressa pelo pro- fessor da Universidade de Michigan, Theodore M. Newcomb, nas seguintes palavras: “A personalidade se modifica & medida em que se adquirem fungdes estilizadas {role patternsl, porque as predisposicdes a assumir fungdes tornam-se parte inte grante da organizacio total de predisposigdes da pes- 32) Idem — cit. pags. 90-91, 92. 46 ‘Anais da Ti+ Reunifo Brasileira de Antropologia soa. Porém a personalidade pré-existente em certo momento exerce sua influéncia sobre as funcdes esti- Jizadas & medida em que elas sao selecionadas e mol- dadas para se ajustarem a organizagio total das pre- disposigdes individuais. Para utilizar uma analogia grosseira, o descnvolvimenio da personalidude através a aquisigdo de fungdes {roles} se assemelha a um bem organizado clube. Porém, a natureza da organizagao, por sua vez, é grandemente influenciada pelas caracte- risticas dos novos membros que gradualmente se incor- poram a ela. Assim, as novas funcées que uma perso- nalidade seleciona mais facilmente e¢ mais expontanea- mente so aquelas que com menor atrito se ajustam a ela. Cedo ou tarde, porém, os “novos membros” tornam- se “antigos” — justamente aqiieles que dao a persona- lidade a sua feigio caracteristica. As fungdes estiliza- das nio sio, para continuar a analogia, a nica cate- goria de “membros” de uma personalidade. Mas sao elas que estao continuamente em atividade quando uma pessoa se encontra ou inter-age com outras pessoas, assim desempenhando 0 trabalho cotidiano da persona- lidade. Elas representam os “diretores sociais” da orga- nizacio. Embora inicialmente tenham sido escolhidos pela personalidade primitiva ¢ tenham ficado a sua disposicao, suas caracteristicas passam a dominar a personalidade & qual se incorporaram” (33). A definigio mais simplificada e cientifica de culfura é que esta constitui uma configuracao de condutas aprendidas e transmitidas dentro de uma sociedade. Mas essas condutas, como vimos, sio ensi nadas aos individuos pelos membros dos varios grupos de que ele participa na sociedade, sob a forma de fungdes definidas ¢ estiliza- das com 0 acréscimo da exigéncia do seu desempenho. 0 processo de enculluracdo e ré-enculluracdo que segundo Herskovits (34) refi- naria melhor 0 conceito de socializacdo, realcando o condicionamento das respostas individuais 4s normas do grupo social e a familiariza- 20 do individuo com os varios aspectos da cultura de sua sociedade particular, bem como sua conformacio com as normas de compor- tamento ali sancionadas, ou a adocac dos valores ali prevalentes, repousa principalmente — se quisermos penetrar melhor a intimi- dade das relagdes do individuo com a sociedade — sobre o desem- penho de fungées froles} e 0 estabelecimento de esquemas de refe- réncia resultantes da interagio dentro dos grupos sociais a que per- tence o individuo e na sociedade larga em que cle nasceu e em que vive. A conduta individual nfo seria condicionada e sim canaliza- da, visto como a influéncia da sociedade nio se limitaria a evocar respostas preparatérias, sujeitas a extingdo, que é 0 que acontece no 33) Theodore M. Newcomb don, 1952, pag. 482. 34) Melville J. Herskovits: — Man and His Works, pags. 40 € segs. ~ Soctal Psychology Tavistock, Lon- René Ribeiro — Posseasfio, problema de etno-psicolozia 7 condicionamento, mas respostus consumatérias, permanentes caracte- risticas desse processo psicolégico (35). O conjunto de condutas estilizadas, fixadas em fungdes igualmente estilizadas e em posicoes que © individuo ¢ compelido % ocupar ou que sio livremente esco- Thidas por cle —~ e que caracterizam 0 comportamento como a par- ticipagdo social do individuo, embora nem t6das as condutas indi- yiduais ou tédas as funcdes sociais sejam necessariamente padroni- zadas ou estiliz: (36), certo grau de variabilidade sendo tolerado © mesmo previste em téda cultura e em cada socicdade — depen- dem do aprendizado social, da percepedo e da motivagdo individual, mediados pela inter-acdo social e a comunicagio entre os indivi- duos. Personalidade, cultura e sociedade estio assim estreitamente culadas por processas psicoldgicos e sociais interdependentes € inclusivas. Os grupos de culto afro-brasileiro conté¢m um sistema de posi- cées hicrarquisadas e de fingses definidas ¢ estilizadas nisso obede- cendo a regra geral de estruturacdo e funcionamento de todo grupo social. O ser chefe de grupo, ou seu assistente, ou sacerdotisa, ou membro categorizado do culto, ou simples fiel implica no preenchi mento de funcdes no somente diversificadas conforme a essas cate- gorias, mas ainda dentro de uma mesma categoria, de acordo com a defini¢ao individual de cada funcio e sua estilizacio em obediéncia s normas do grupo e as motivacdes de cada um dos seus membros para participagio nele. As espectativas do grupo, 0 grau de treina- mento ¢ de familiaridade do individuo com as normas de compor- tamento ali exigidas e incentivadas, as sancdes aplicadas mediante mm sistema particular de prestigio ou de censura social, a satisfa- cio de necessidades fundamentais do individuo ¢ sua influéncia sdbre a estilizacao de motivos para tais modos de comportamento, configuram as condutas de seus membros num sistema particular A inter-relagfio desses grapos de culto com os demais grupos que compdem a nossa sociedade, porém, ¢ a consequente participacto de seus membros na cultura na sociedade regionais (com o corres- pondente desempenho de outros papeis e a ocupagio de posicoes sociais simnlaneas) assemelha 2s suas condutas nio-rituais ou inde- pendentes das suas fungdes e posi¢des especificas nos grupos de culto as dos demais componentes da nossa sociedade. De qualquer modo, as formas de comportamento ritual que exibem os membros desses cultos devent ser vistas como normais, culturamente determi- nadas e socialmente sancionadas Edward Stainbrook, j@ citado aqui, realga normatidade do comportamento dos individuos afiliados 20 candomblé bahiano nos seguintes termos “As observacdes sobre a psicodinfimica da organiza- do candomblé foram detalhadas em outro trabalho. 35) Gardner Murphy —— cit, pags. 165-79. 36) S. Stansfeld Sargent: “Conceptions of Role and Ego in Contem- porary Psychology” em Social Psychology at the Crossroads, ed. John H. Rohrer e Muzafer Sherif, Harper Bros., New York, 1951, pag. 361. 48. Anais da ITt Reunidio Brasileira de Antropolosia Aqui parece-me util fixar que os complexos estilos de conduta institucionalizades no Candomblé podem ser usados por diferentes individuos para a satisfagio perid- dica e recorrente de varias necessidades, de maneira va- riavel. Entretanto, quaisquer que sojam essas necessida- des, tanto conscientes quanto inconscientes, que o indi- vidno esteja a salisfazer através sua condula no Can- domblé, deve ele estar com suficiente controle sobre o wiismo @ as condutas regressivas, bem coro sobre a capacidade de testar a realidade para que seja aceito por esse relativamente rigido e ritualistic grupo de aio. Dai que nenhuma pessoa abertamente esquizofré- nica seja capaz de iludir 0 perfodo de observacio pré- vio & sua indugio no culto. Do mesmo modo, os indivi- duos que utilizam condutas dissociativas do tipo histéri- co de modo idiasincratico, diferente da experiéncin dis- socialiva induzida durante as certméntas (possessio] sio excluidos do grupo. A iniciacge nos grupes de Candom- blé, portanto, se acompanha por uma extensa verifica- eGo, para excluitos, dos casos psicopatolégicos” (37) Aquela qualidade inerente & natureza humana que é 0 poder de manipular simbolos, ou de “funcionar psicologicamente num nivel conceitualmente simbélico” (38) e que permite a0 homem distin- guir-se dos demais animais como criador e transmissor de cultura, também Ihe permite aproveitar-se da interac3o social para formar © seu eu, ow Seja aquela “constelacio de atitudes” de que nos fala Sherif, “O funcionamento do eu” — diz ele — “nao aparece como uma eapacidade inala do homem a semelhanga da sua eapacidade para 6 pensamento conceitual, a per= cepeio, o julgamento, e outras funcoes psicoldgicas, A constelagio de atitudes do adulto humano que designs mos como eu é uma formacio genética. A erianca re- cém-nascida & biologicamente integrada — mas nao tem eu. E seu eu nio se formaria & medida em que ela se desenvolve se mio fossem dois fatos. Primeiro, seu fun- cionamento psicolégico, e sé 0 dela, pode se fazer num nivel conceifual simbélico permitindo-Ihe apreender as relagdes reeiprocas com outras criaturas humanas e fazer uso efelivo da quantidade de meios, conceitos e nor- mas que ela eventualmente encontra. Os animais e os idiotas, portanto nao manifestam nenhuma formacio de cu. Segundo, o homem assim eqnipado com esta possi- bilidade (de funcionar psicologicamente num nivel con- ceilual simbélico), se desenvolve num mundo naturat regulado por leis e pelas relagdes sociais e seus produ- fos, que Ihe impoem a necessidade de adaptar-se a elas 37) Edward Stainbrook — cit. pig. 334 38) Muzafer Sherif: — Social Psychology. Harper Bros, New York, 1948, pig. 252, René Ribeiro — Possessio, problema de etno-psicologia 49 fe de regular sua conduta de acordo com elas. Se nao fossem essas restrigdes, resistencias e recompensas da natureza ¢ especialmente do mundo social estabelecido ‘em volta dele — com seus varios materiais e produtos tecnoldgicos, suas instituigdes, seus instrumentos acumu- lados, conceitos e normas -— 0 individuo humano nunca teria uma consistente ¢ continua formagao do eu. B por isso que as criangas criadas isoladas das sociedades humanas no tém eu” (39). Ora, essas “restrigdes”, “recompensas” e “resisténcias” impos- tas pelo mundo social, de que nos fala Sherif estio representadas pelas normas e sangdes sociais que como vimos anteriormente sio impostas ao individuo através fungdes especificas (roles), previstas em todos os grupos sociais e padronizadas diferentemente por cada sociedade de acordo com a sua cultura. Dai a importancia da cul- tura e da sociedade t4o acentuada pelos psicélogos modernos, sobre a formagdo do eu de cada individuo que delas participa Acontece que 0 eu, como o demonstraram Sherif e Cantril, nao “deve ser olhado como uma entidade fixa, rigida e imuta- vel” (40) antes, podendo alterar-se consideravelmente por efeito de tensdes e pressées ou influéncias outras. Essas forcas alteradoras do eu podem resultar do “impacto de situagdes concretas de inten- sidade varidvel ou ter suas raizes no organismo fisico do individuo ¢ provirem mesmo de lensdes motivacionais instintivas ou de distir- bios orginicos” (41). Sherif e Cantril demonstraram a. satisfagio ue 0 eu pode desligar-se do corpo como no caso das prostitutas cujos depoimentos pessoais registam; ou dissolver-se temporariamente como no caso de artistas criadores que se “perdem no seu trabalho”, ou sob a influéncia do alcool e de outras drogas; ou alterar-se sob 0 impacto de privagées fisicas extremas ou da anoxemia; ou anular-se quando do colapso sibito de tddas as normas sociais como se observou na Alemanha durante a ultima guerra; ou regredir, disso- ciar-se ¢ ré-estruturar-se em situacdes de catastrofe como a depres- io posterior & primeira guerra mundial ou o internamento num campo de concentracio nazista, ou de experiéncia traumatica de combate; ou alterar-se profundamente nos casos de afegdes mentais funcionais ou organicas (42). Gardner Murphy discutindo o pro- blema da dissociagdo assinala que “todos os individuos possuem de algum modo e alguns mais do que outros, a capacidade de se disso- ciarem, a capacidade de reagirem em dois niveis, de se conduzirem em dois sentidos nao relacionados nem integrados entre si” (43) Ele também aduz provas de que a dissociacio é nfo somente um fendmeno normal como pode ser produzida experimentalmente (44) 39) Idem — cit. pags. 252-53, 40) Muzafer Sherif e Hadley Cantril: The Psychology of Ego-Invol- vemenis. John Wiley Sons, New York, 1949, pag. 386. 41) Idem — loc. ¢ 42) Idem — cit. pags. 387 e seguintes. 43) Gardner Murphy — cit. pag. 325. 44) Idem — cit. pags. 326, 435, 449. 50 Anais da II Reunifio Brasileira de Antropologia, e realca na sua discussio dos casos de personalidade miltipla o importante papel ai desempenhado pelas motivacdes do individuo na génese do fendmeno. Para ele, nesses casos, “a chave mestra da maioria desses fendmenos nos é dada pelas impulsdes que levam a pessoa dissociavel a necessitar de um sistema de eus em vez de um inico ew responsavel” (45). * A consideracao desses aspectos do problema foi que levou-nos a estudar experimentalmente a possesséo tentando aprofundar os mecanismos intimos desse estado de dissociacio entre os membros dos grupos de culto afro-brasileiro do Recife, através 0 emprego de uma técnica projetiva e com metodologia especial, detalhada e jus- tifieada em outro trabalho (46). Parece-nos suficiente dizer aqui que submetemos um grande mimero desses individuos ao teste de Rorschach para analise da personalidade, quer em vigilia, quer em estado de possessio e em alguns deles, quatro anos apés os dois pri- meiros testes, novamente em vigilia. O fundamento tedrico desta experiéncia esté, portanto, em considerd-la um papel ou funcdo esti- lizada que o individuo é chamado a desempenhar por sua participa- cio integracio nos grupos de culto afro-brasileiro, comportando um estado de dissociacdéo do eu de grau vario porém socialmente induzido e culturalmente sancionado. As. condutas estilizadas que caracterizam esse estado sio naturalmente motivadas como o é todo o comportamento humano, resultando da incorpora¢io ao sis- tema motivacional dos individuos que entram em possessio dos incentivos. que Ihes fornece 0 seu grupo para que desempenhem a fungio de “possessos”; do proprio exercicio dessa funcio e do seu efeito de canalizacéo, de satisfacao de necessidades e libertacao de tensdes individuais. A situacao do teste em vigilia configura-se com as fungées que 0 individuo habitualmente desempenha como mem- bro desses grupos de culto ¢ da sociedade larga, enquanto durante a Possessio suas condutas sio ditadas pelo seu papel especifico de divindade — a natureza projetiva do teste permitindo ainda numa ¢ noutra ocasiées verificar o grau de interiorizacio das normas e valo- res cullurais e 0 jogo das motivacdes, necessidades e tendéncias den- tro da sua configuragio pessoal de tendéncias a agir ou perso- nalidade. Os protocolos de quatro individuos do mesmo sexo serio resu- midos a seguir, Trés dessas mulheres tinham possessées habituais, enquanto uma quarta nunca apresentou tal estado, apesar de se ter submetido a todos os rituais de iniciagao. Sua familiaridade e grau de envolvimento com o culto também era virio, assim permitindo- hos apreciar diversas dimensdes do problema que nos propuzemos estudar. 45) Idem —. cit. pig. 449, 46) René Ribeiro: —“O Teste de Rorschach no Estudo da Acultu- racio e da Possessio Fetichista dos Negros do Brasil”. Bol. do Instituto Joagnim Nabuco de Pesquisas Sociais, Vol. 1 (1952) pags. 44-50; “A Tentative Appraisal of Psychological Mechanisms in Spirit Possession” (a publicar) Hené Ribeiro — Possessiio, problema de etno-psteolozia Bt MARIA JOSE é uma preta de 48 anos, lavadeira, de aparéneia cara marcada por bexigas, amaziada com o terceiro homem da sua vida, alfabetizada e com bom nivel de conhecimentos gerais ‘Aos 19 anos entrou nesta religiio em seguida a uma consulla sobre sua satide, embora tenha relutado algum tempo por motives econd- micas, tendo finalmente acedido, convencida pelos argumentos alicia- dores da esposa do sacerdote. Desde a infancia que residindo nas vizinhangas de uma casa de culto havia se familiarizado com o xango. Por sua inteligéncia e fidelidade ao culto terminou como yaba responsivel pela cozinha. & “filha de santo” de Oshun e de Abaluwaye. £ extremamente dedicada a Oshun de quem diz: “Coi- tada de mim se nfo fosse meu ori! Tudo quanto ela traz & cabeca eu fago, nem que seja para minha desgraga”. Sua Oshun é Oshun- menina, durante as possessdes comportando-se a observada como uma crianga, Abaluwaye, que segundo ela protege-a muito, induz porém possessdes to fortes que ullimamente ela teve de pedir ao seu pai de santo para “suspender sua descida”, visto como, sofrendo de xortite nio podia fisicamente suportar o esforco. Ela diz que ele é “muito forte, muito exigente e eastigador” enquanto sua Oshun é “muito branda, alegre, ameninada” Dados da histéria de vida de Maria José indicam que sua geni- tora exerceu até morrer a poucos anos, uma influéncia extremamente dominadora sobre ela. Seu casamento foi feito depois de fugida, porque a mie se opds tenazmente e terminou sendo dissolvido a conselho dela. Diz que a mae era “atémica” e educou-a “no cacete”, enquanto 0 pai cra muito brando e inteiramente dominado pela mulher, Uma das razdes porque deixou 0 marido foi este se opor a todos os seus desejos e tiranizi-la, impedindo-a de sair de casa e ir a festas, coisa de que muito gostava quando solteira. Voltou para a casa da mae tendo se amaziado uma primeira vez com um homem que “era feito meu pai”, membro do seu grupo de culto, com quem eu até seu falecimento. Voltou entio para a casa da mie, tendo tomado um segundo amasio recentemente, mais jovem do que ela e dranco, Quando menina foi brutalmente queimada com um ticio por uma mulher agregada da casa de sta me, sem que o fato provocas- se grande reacio dos pais. Queixa-se destes de modo irracional relatando um ineidente confuso em que teve um grande choque emocional ao ver no necrotério o cadaver de um homem assassina- do, porque os pais nao seguiram nunca a recomendacio de um médico presente que aconselhou-os a poupar-Ihe choques. No pri meiro Rorschach ela mostrou-se muito insegura, porém cooperati- va, mas durante o inquérito, sob a pressio do examinador para Ioca- lizar uma resposta da mancha V, entrou em possessio espontinea, sett santo dizendo ao examinador que 0 “cavalo” estava muito can- sado, queria ir para casa e estava com muito medo de “nao passar no exame”. Tranquilizada, 0 “santo” retirou-se também espontanea- mente. o inquérito sendo levado 20 fim sem incidentes. No segun- do teste, feito em possessio um més depois, a divindade depois do Periodo de associacio inqueriu se a observada teria passado no exame. Durante a possessio o santo brincava e comportava-se como uma crianca, 0 sacerdote presente tratando-a respeltosamente, mas ili 52. Anais da iy Reunite Brasileira de Anteopologia nos mesmas termos. Fez profecias, relatou um problema de convi- vencia do “cavalo” obtendo a cooperacio do sacerdote para resol- vé-lo ¢ transmitiu um recado do outro santo solicitando certos saeti- Helos. O terceiro Roschach foi feito quatro anos e sete meses apés © primeiro, Maria José, quando solicitada inquerindo se era obrig da a faz6-lo, embora soubesse e Ihe tivesse sido dito de todas as vezes que a experiéneia s6 era realizada com a cooperacio espontinea dos observados. As conclusées da interpretacio dos Rorschach e dos dados da sua historia de vida apontam que esta personalidade sofreu fortes inibigdes afetivas provavelmente provenientes de rigorosa educagio infantil e continuada frustag’o. Seu principal mecanismo de com- pensagho parece ser uma aderéncia obsessiva a crencas e priiticas religiosas com recurso a uma fantasia eseapiista e regressiva. A inhi- digo efetiva tem sido manta pelas regras e disciplina do cult € mostra elaramente seu efeito adverso sobre 0 eu que no tercciro teste apresenta tendéncias regressivas © desintegrativas ainda mais acentuadas do que nos dois anteriores, como também sore v fax- cionamento da inteligéncia cujo rendimento é claramente interior. Sua atilude de submissio durante a experiéneia e sua possessito espontanea quando em situagto de tensdo se explicam peto seu tipo habitual de reagio (passividade, escapismo) e também pelas tendén- cias dissociativas acentuadas nesta personalldade. Sua possessao por Abaluwaye parece reviver as figuras coercitivas de saa vida: mie marido, Oshun, de outro lado, através 0 ecaréter mesmo das suas Possessoes realiza seus desejos de regressiio A infancia e de dep: déncia da mae. O culto nio parece vir tendo wita influéncia bené- fica sobre esta personalidade, antes acentuando seu tipo infantil de regressio © a dependéncia sobre um tipo de fantasia também regres- iva e desligada do sentido de realidade. Finalmente stas jo tém nenhum papel compensador ou libertador de suas for- tes inibigdes emovionais. MARIA 6 também preta, com 30 anos de idade, cosinheira, de apartneia atrativa, vitiva, com uma filha de 8 anos. 8 de instrugio rudimentar, vivaz e despachata, mas de “génio forte” e exirena- mente reservada em assuntos pessoais, 20 ponto de nao ter sido pos sivel tomar-the a histéria de vida. Entrou para 9 culto aos quinze anos, levada por sua genitora que era afiliada a um desses grupos. Teve um matriménio relativamente ajustado embora 0 marido gos- tasse de ter aventuras, Ela exercia, porém, suficiente controle sobre ele 20 ponto de certa vez té-to tirado da casa de uma amante tra- ¢ Oshun. £ extremamente suscelivel de entrar em possessio, numa mesma noite podendo ser “pegada” por esses e As vezes por Orishala, Algumas dessas possessdes duram horas, Maria andande pela casa de culto, ajudando na cosinha e fazendo outros trabathos rituais “como se nao tivesse nada”. Nao apresenta porém a condicio deno- René Ribcire — Possessio, problema de etno-psicologia 88 minada de ere (47). Ao mesmo tempo suas possessdes sio extre- mamente violentas, especialmente aquelas induzidas pelo “dono do ort”, Ogun, que frequentemente pune-a fazendo ferir-se, botar as maos em ‘gua fervendo, bater com a cabeca na parede etc. Oshun, porém, é 0 santo de quem ela gosta mais nao somente por serem suas possessées nio punitivas, como porque esta santa, “é voliivel e sape- ca”. Orishala também Ihe aplica punigdes deixando-a apés as pos- sessdes toda entrevada “que é preciso muito peditério para fazer 0 santo solté-la”. Seu pai de santo informa que a principal razio das punicdr as desobe as regras do culto e principalmente porque cla desafia os seus santos quando esti mal satisfeita com eles. Ogun principalmente é causa de muito sofrimento porque nio a deixa ter nenhum encontro amoroso. Toda vez que ela combina um encontro ele faz que ela venha para a casa de cullo, induz-lhe possessio € $6 “se retira” quando ja passou a hora. Diz o santo, con- tinua o sacerdote, que “o tinico homem que ela tem de ter é ele € mais ninguem”. Outras vezes o santo denuncia seus planos de aven- turas sexuais durante as possesses o que a irrita sobremodo e faz “rogar pragas a ele”, dai resultando novas e mais fortes punigdes pelo santo. Sua atitude por ocasido do primeiro teste foi de reserva e cau- tela, mas sem negativismo. A possessio obtida para o segundo teste foi violenta como sempre, a observada levando muito tempo antes de poder manuzear manchas. Por ocasido do encerramento desta sessio, que realizou-se quinze dias apés o primeiro teste, Ogun anunciou que 0 “cavalo” necessitava de um amassi (infusio de plan- tas magicas para fortificar a cabeca e periodicamente necessaria para que © fiel suporte as possessdes sem esgotar-se) e¢ que iria ausentar-se por longo tempo. As conclusdes dos dois testes a que foi esta observada submeti- da sio as seguintes: esta personalidade que apresenta um enf quecimento do ex ¢ imaturidade emocional sofre presentemente forte repressio afetiva que a desorganiza numa diregao dissociativa acen- tuada, do tipo esquisofrénico. A area de conflito parece ser 0 con- trole dos impulsos sexuais que no sfo adequadamente canalizados, um complexo de inferioridade também parecendo se estabelecer em virtude de sua incapacidade de lidar adequadamente com eles. A facilidade com que ela entra em possessio por um numero de divin- dades e 0 carater auto-punitivo da maioria dessas possessdes pode ser explicado por sua defeituosa integragao da personalidade e por sua imaturidade emocional, seu eu nao sendo suficientemente forte Para suportar a pressao do conflito entre seus impulsos sexuais ¢ as regras de moralidade rigida que ela interiorizou. Por outro lado, deve ser notado que a possessio é para esta personalidade uma oca- sif0 para intensa libertagio emocional e atua provavelmente como diversio dos impulsos auto-punitivos que sem essa oportunidade levariam-na & desintegragio do eu e tentativas de suicidio, A sua 47) Melville J, Herskovi “The Contribution of Afroameriean Studies to Africanist Research”. Am. Anthropologist vol. 50, (1948) pag. 9. ae ot Anais da TI" Rewnilo Brasileira de Antropologia preferéncia por Oshun, porque esta divindade é “voliivel e sapeca projeta consideravel luz sobre suas frustragdes, enquanto os dados acima resumidos da sua historia pessoal sobre a nalureza das su: possessdes por Ogun e Orishala — principalmente seu ressentimento pela interferéncia do primeiro em sua vida sexual — ajudam a compreender a psico-dindmica de sua conduta religiosa. As praticas do culto nao parecem ter um efeito adverso sobre esta personalidade, antes oferecendo-Ihe um meio de escape para sua impulsividade repri- mida, além de desvid-la de exercer sobre 0 ew uma acho punitiva lestonat. EUGENIA & uma preta de 28 anos de idade, costureira, fami- liarizada com o culto desde a infancia, embora nenhum membro de sua familia pertencesse a ele, Mas sempre viveu nas visinhangas desses grupos ¢ apreciava assistir as ceriménias piblicas. Tendo se educado em semi-internato de freiras, tornou-se boa catélica, devota da Virgem da Conceicdo, de cujo altar tomava conta. Entretanto, nunca perdia ocasiio de assistir as festas do Xango. A indugio no culto sucedeu muito tempo depois de ter acompanhado uma amiga que pertencia & seita e a convidara a assistir os sacrificios que iria oferecer. Voltou & mesma casa de culto para pedir uma coi sobre ataques de enxaqueca de que sofria. © jogo divinatério revelou que seu santo, Orishala, desejava uma “obrigacio” e seu ingresso no cullo, Nao obedeceu as recomendagdes ¢ passou a frequentar outr casa, evitando porém de se envolver muito com o culto. Mesmo assim, diz ela ter se conservado uma boa catélica, prestando reveri cia aN. S. da Conceicéo e confessando-se frequentemente. Mesmo depois de uma possessio expontinea durante uma ceriménia publica e de ter “lavado a cabeca” e dado “obrigacio” para se livrar da enxaqueca (0 que deu resultada, diz ela), Eugenia permaneceu em duvida religiosa e temerosa de"estar pecando. Deixava de Ir a0 culto por algum tempo e passava a frequentar com muita assiduidade a igreja eatélica, para no fim de algum tempo voltar ao Xangd. Por do primeiro teste de Rorschach ela ainda permanecia em grande incerteza ideolégica. Achava que os “orix” nfo tinham inter- feréncia na vida dos figis nem a pessoa depois de entrar no culto nunca mais podia sair, como diziam, acreditaido que todos os bene- ficios dessa religiio decorriam diretamente de Deus. Mas ndo fal- tava com suas “obrigagdes”. Sua primeira possessio foi descrita com muita riqueza de detalhes. Com seis meses de frequéncia regular a0 culto ela ficava nas noites de toque tio excitada que chegava na casa de eulto antes de tempo e saia de casa sem jantar. Gostava imenso da musica, das dangas ¢ apreciava a habilidade dos tocado- Fes, mas achava que a possessio era uma questio da pessoa se “de xar dominar”. Uma vez, quando a ceriménia ja ia quase ao fim © cantayam para seu santo, Orishala, sentiu uma agonia na boca do estémago e penson que era fome, dizendo ao pai de santo que iria para casa. Ele mandou-a esperar dizendo-the que dai a pouco teriam um munguzé para comer. Ficou, mas seu mal estar comecou a aunientar, as maos ficaram frias, comegou a suar, as pernas fracas, 0 folego faltando. Conheceu que iria “entrar no santo” ¢ fez tudo Para resistir, mas sentiu-se fraca e tonta, os tambores soando como Jiro — Possessio, problema de etno-psicologia 85 René se estivessem muito longe, seus bragos fora de contréle. Num ultimo esforgo tentou arrimar-se a uma coluna proxima mas ja era tarde porque “perdeu o sentido”. Quando voltou a si estava no pegi enso- pada de suor, “o pixaim naquela altura”, moida de cansago. Ficou muito encabulada de ter “caido no santo” e de ter de enfrentar os comentarios das outras colegas que mangaram dela por ter “se entre- gado”. Quiz ficar o resto da noite no santudério mas o pai de ter- reiro nao consentiu, saindo ela na carreira para ir para casa. Outras possessdes sucederam-lhe, ela teve as contas lavadas, mas nunca se submeteu & iniciago por causa das despesas. Assim mesmo, quando entrevistada antes do primeiro teste, ainda mantinha que nao devia hhaver nada de sobrenatural, a possessao devendo ser interpretada como “alguma coisa nos nervos da pessoa”. Além de Orishala ela ainda tem duas outras divindades: Yemanja e Shango, este ultimo, como santo “de simpatia”, apenas induz possessio para “brinear no cavalo” nao exigindo oferendas nem interferindo na vida do fiel. ‘Apesar disso fica surpreendida com as profecias © as curas que seu santo fez por intermédio dela, Quando do primeiro teste Bugénia estava em conflilo amoroso. Tendo se apaixonado por um dos toca- dores de tambor, enfrentava a oposi¢ao de sua genitora ¢ a do pai de santo que aconselhavam-na a romper a ligacao porque o mesmo “nfo era para ela”, sendo dado a amantes e sustentando varias mulheres com filhos dele. Mas nfo podia mais recuar, decidindo- se mesmo a casar com ele por ter ficado gravida. Seu matriménio aurou apenas trés anos, 0 marido continuando na mesma vida e querendo mesmo que ela se conformasse com suas irregularidades de conduta. Terminou deixando a casa e dois filhos, indo embora para $. Paulo. No principio ainda mandava algum dinheiro, mas depois que as dividas que deixou foram pagas, nunca mais man- dou nada. Ela passou uma grande crise ¢ foi assistida pelo pai de santo e demais fiéis do culto, ultimamente tendo afinal conseguido uma situacdo econdmica de relativo equilibrio. Nao quer mais vér © marido até ficar perfeitamente bem de finangas para provar-lhe que sézinha pode passar e educar e manter seus dois filhos. Nos ‘iltimos tempos suas possessdes tém rareado um pouco, mas suas con- viecdes se reforcaram consideravelmente, tendo ela obtido uma reconciliacio entre as crencas catélicas e africanas sob a forma dos conhecidos sincretismos. perde nenhuma ceriménia do culto embora continui sua devocio para com N. S. da Concei¢io No primeiro teste as tendéncias a rejei¢io das manchas cram muito acentuadas, mas conseguimos que cla fizesse toda a prova, Sua cooperaco no inquérito tendo sido satisfatoria. O segundo teste foi feito quarenta e um dias apés o primeiro, 0 santo recusando- se a baixar apesar das repetidas invocagdes e uso do shere para Shango. Orishala também foi invocado sem resultado até que 0 babalorisha pediu que saissemos do santuirio e no fim de pouco tempo nos chamava novamente, Eugénia estando em franca posses- sio por Shango. A demora na possessio foi explicada como resul- tado de ter Eugénia imediatamente antes do teste dito: “Vio chamar aquele apresentado mentiroso defronte de um homem de ciéncia € vai ser sé mentiras” — o que é bem revelador de uma aittude. ii 56 Anais da IIe Reuniéo Brasileira de Antropologia 0 terceiro teste foi feito quatro anos € nove meses depois, na mesma casa de cullo, com cooperacio normal. As conclusdes da interpretacao dos testes sfo as seguintes. No primeiro teste a obscrvada defendeu-se alivamente da prova pro- curando mascarar a yerdadeira face de sua personalidade. Nao obs- tante, as caractevisticas de uma personalidade obsessivo-compul- siva estéo ai reveladas. QO teste em possessao revela claramente suas inibicdes afetivas, imaturidade emocional ¢ a verdadeira face de sua personalidade com muita clareza. Quatro anos apés, o teste confirma o carater obsessivo-compulsivo desta personalidade, as percepgdes duplicando as do teste em possessio com uma fidelidade digna de nota. Embora a observada mostre todos os indicios de ter seu problema sexual amortecido, 0 teste contudo, indica nao ter conseguido ainda resolvé-lo. Parece-nos interessante assinalar que de acordo com sua histéria de vida ela também aquietou suas incer- tezas religiosas, as possesses tendo sido estilizadas e espacadas 20 mesmo tempo em que a tempestade emocional passava. O ajus tamento dessa personalidade foi obtido através 0 apoio que a partic Pacio € a afiliacio a um grupo de culto Ihe forneceram, seu forte eu se opondo a recorréncia excessiva das experiéncias de dissocia- cio que agora respondem muito mais as expectativas do grupo e a inducao social do que a pressao de necessidades emocionais intensas. 0 carater de sua primeira experiéncia de possessio e sua inducio compulsiva a participar ativamente do culto, apesar de seu conflito de ideologias, parece-nos corresponder adequadamente 20 seu tipo de personalidade como mostrado pelos testes. CLAUDINA é uma preta de mais de 60 anos, analfabeta, que trabalhava como doméstica, hoje vivendo da ajuda de parentes e dos proventos de sua posicio num grupo de cullo, inclusive das praticas de curandeirismo. Familiarizou-se com 0 culto desde crian- ¢a, gostando de frequentar as ceriménias apenas para dancar, visto como tdda a sua mocidade foi absolutamente livre, com intensa vida sexual _e de diversées. Embora seja membro do seu atual grupo de culto a pouco tempo, Claudina ao chegar, logo se impds ¢ tornou-se yaba, responsivel pela cosinha, e a pessoa “mais enten- dida” no preparo das oferendas sacrificiais. & que pouco apés fre- quentar essa casa ela revelou sua ligagéo com o sacerdote mais res- peitado por sua ortodoxia nesta cidade e que havia falecido a alguns anos. Conta Claudina que chegando ao Recife, ja conhecedora do culto, passou a frequentar a casa desse sacerdote, acompanhando-o Ra sua ascensio, envolveu-se progressivamente com o culto até que tornou-se apelebi ou concubina cerimonial dele, conseguindo mesmo grande ascendéncia sobre as demais concubinas ao ponto de diri- mir seus conflitos. Este sacerdote incentivou-a a se submeter aos rituais de iniciagio em outra casa mas ela nunca conseguiu entrar em possessio durante as ceriménias de iniciagio, tendo mesmo apre- sentado uma dor de cabeca tao forte que “quase fica doida”. Ni fora a intervengio de certo babalorisha, e ela teria “perdido o juizo”, diz-nos, atribuindo 0 incidente a possi irregularidades rituais durante a sua iniciacio, ou entio a possivel interferéneia com seu Reué Hibei.e — Losseasdo, problema de cte-psieotogia 37 “dono do ori”, Ogun, da parie de Shango que sendo um dos seus sams de “simpatia”, imterieriu com a possessio, mas nao foi capaz de induzi-la embora Ogun tenha ficado em consequéncia da tuta incapaz também de tomar conta do * Jizagdu engenhosa. Hoje elu se sente aliviada porque estando velha nio seria capac de suporiar as possessdes de Ogun que sio sempre muito fortes ¢ exgoiain o “cavalo”, Além disso, diz ela, pode dis pensar 2 possessio porque através dos sonhos ela “sabe se as coisas vio dar cerio” © também porque “sabe os meios de viver e de evitar os perigos” (uma alusio indireta xo seu demdnio das praticas magicas ¢ do seu conhecimento das regras do culto). Seu tnico teste foi realizado na casa de culto, como para as demais opserva- das, Claudina mostrando grande resisténcia em aceder aos desejos do investigador. Entretanto, 9 teste foi feito segundo a técnica usual, durante 0 inquérito a observada mostrando-se mais coo- perativa avalo” — 0 que é uma raciona- As conclusdes do teste sio as seguintes: a observada mostra um bom grau de aulo-aceitucio, nio confia em ninguem nem revela seus sentimentos mais intimos. Seu ew é bem estruturado, seu senso de realidade desempenhando um papel equilibrador nesta perso- nalidade. Ela costuma reprimir moderadamente suas emocdes (pro- vavelmenie também seus impulsos sexuais) mas ndo parece estar em nenhuma situagio conflitiva. Sua posic¢io ¢ sua fungao no culto estado perfeitamente bem definidas. Ela nfo sente nenhuma neces- sidade da experiéncia expressiva e libertadora da possessio tendo encontrado através a interpretagio dos sonhos, dominio da magia protetora (@ provavelmente também ofensiva) e outros instrumentos fornccidos pelos sistemas divinatérios, a filosofia do culto e as tée- nicas de ajustamento sancionadas no grupo de culto, os meios ade- quados de lidar com suas tensées internas e suas necessidades. Sua falta de experiéncia de possessio e a nao existéncia de conflito nesta personalidade, além disso, parecem responder pela auséncia de qualquer tendénci« dissociativa nesta personalidade. Um primeiro ponto a ussinalar na discussie dos casos acima rela- tados é€ 0 da normalidade do funcionamento social dessas personali- des, embora um teste da sensibilidade do Rorsehach tenha reve- Jado em algumas delas falla de integracio e de equilibrio adequa- dos a personalidades perfeitamente ajustadas. Todas essas pessoas, Porém, desempenhavam seus papeis na sociedade larga e nos grupos de eculto de modo adequado, sendo julgadas perfeitamente normais Por seus companheiros de religiio e principalmente pelos compo- nentes dos demais grupos sociais a que elas pertencem. Além disso ha um aspecto behavioristico em todos os testes dessas fiéis do culto fro-brasileiro — sua extrema cautela e discrecao, refletida nos altos tempos de reacio e de primeira resposta, bem como na formu- lacio das respostas As provas em vigilia, embora 0 conteado sim- Délico seja perfeitamente identificdvel — que aponta o grau de con- formacio e a interiorizacio de um padrio (o de se manterem em Segredo as informagées esotéricas) caracteristico dessa religiio. Esta a 58 Ansis da TI Reunifo Brasileira de Antropotogia norma do culto, portanto, mesmo quando da aplicagao de um teste projetivo & rigorosamente obedecida por seus fidis, so se relaxando gem que seja totalmente abandonada, quando do estado de possessio. Uma outra verificagao que decorreu da experiéncia, especial- mente quando analizadas as respostas individuais de nossas obser- vadas a cada uma das manchas do ieste, é a da selelividade de suas percepgdes, seietividade que evidentemente decorre de sua fami- tiavidade com o culto e de suas motivagées particulares. Partes das Manchas de Rorschach ou téda uma mancha eram estruturadas ¢ interpretadas de acordo com as necessidades de cada individuo, ou dle seus motives, ou com a organizagio particular de cada uma das personalidades submetidas a experiéneia. O conteido de suas res- postas, de outro lado, refletia suas experiéncias com 0 culto, tanto quanto o seu grau de familiaridade e de interiorizagao das normas e crencas dessa religiio. O professor Irving A. Hallowell, da Uni versidade de Pennsylvania, documentou a influéncia das crengas tradicionais e também dos determinantes pessoais na estruturagio de situagdes ambiguas pelos indios Ojibwa (48). Ele concluin que “além de permitir ao homem adaptar-se a0 mundo dos objetos © dos falos materiais, como acontece com os outros animais, a percepsio em nossa espécie permite ao homem ajustar-se As abstragdes cultu- rais como se estas psicologicamente fossem tio reais quanto os obje- tos do mundo natural” adiantando que a percepeio desempenha sua fungao social por ser “um dos meios psicoldgicos através dos qui a erenca em imagens e conceitos objetificados como partes de uma espécie cultural de realidade. consubstancia-se na experiéncia dos individuos” (49). Entes miiolégicos, por exemplo, aparecem no protocolo de Claudina a partir da terceira mancha: D11 (os dois bonecos vistos com tanta frequéncia) € identificado como Eshu, enquanto a mancha TV é também o mesmo deus, “porém de outro sistema”; D1 da mancha VII (cabeca humana com pente ou penacho) & Shango, por causa daquele enfeite na cabeca, ou Olofin, uma divin- dade reverenciada sob a forma de um feto conservado; enquanto na mancha VITT, varios detalhes identificados como objetos do culto apontaram-lhe s6 poder se tratar de Yemanja. As outras observa- das também exibiram o mesmo processo, Maria, por exemplo, por ser filha de Ogun, 0 deus do ferro, identificando objetos desse metal em t6das as manchas Essus verifieagdes abrem margem A exploragio de dois pro- blemas em que se torna dia a dia mais estreita a correlacio da antro- pologia com a psicologia, quais sejam, 0 da psicologia do aprendizado © da percepedo Finalmente, as motivagdes de nossas observadas para su 48) A. Irving Hallowell: — “Cultural Factors in the Structurali- zation of Pereeption” em Social Psychology at the Cross- roads, ed, John H. Rohrer e Muzafer Sherif, Harper Bros. New York, 1951, pags. 178 € seguintes 49) Idem — cit. pig. 184. René Ribeiro — Possesséo, problema de etno-psicologia 59 esperiéncias religiosas, especialmente a fungio ou papel de “posses sas”, merecem comentario. Claros sinais de regressio ¢ dissociagao habitual foram identifieados em Maria José, suas experiéncias infan- lis ce posteriores parecendo-nos ter modelado sua personalidade de tal modo que a possessio se apresenta para ela como a ocasiiio ideal para a satisfagio de sua necessidade de regressio 4 infaneia, Esta personalidade temerosa de ameaca (50), além disso, encontrou na estrutura do grupo de culto e em seu rigido sistema hierarquico a desejada garantia de protecdo ao preencher uma posicio fixa e bem definida, ¢ ter uma funcdo ou papel também da mesma ordem. Ja a liberlacao emocional e 0 carater auto-punitivo das possessdes de Maria sugerem que a possessio no seu caso desempenha a impor- tante funcio de evitar dano ao eu por desviar e canalizar sua agres- sividade, assim agindo como um mecanismo diversionista e miti- gante do seu intole1 conflito sexual, A susceptibilidade desta observada & possessio correlaciona-se com seu tipo de estrutura pes- soal e com a natureza dos mecanismos de defesa de que ela langa mi Eugénia, de outro lado, a menos envolvida com o culto, mas as yollas com um conflito ideolégico e um problema sexual, defen- deu-se do primeiro teste com os artificios caracteristicos do seu tipo de personalidade (obsessivo-compulsivo) mas teve de renunciar a eles, embora com certa relutdncia, revelando-se a descoberto quando teve de assumir 0 seu papel habitual de “possessa”. Condiciona- mentos € canalizaces, 0 efeito de suas anteriores experiéncias de participacio no grupo de cullo, de obediéneia as normas do culto e de estilizagio de sua funcio, (portanto, de suas condutas em tal situacio), reforcadas por possivel imposicio do sacerdote, devem provavelmente ter determinado um maior envolvimento do eu na situagio de possessio, fazendo-a assim revelar-se em seu verdadeiro ‘ou habitual aspecto. Parece-nos também importante chamar a aten- so para o papel de apoio dos fiéis em dificuldades exercido pelo grupo de culto, como sucedeu em seu caso, e do reflexo da partici- Pacio no grupo como meio de reajustamento do fiel em dificuldades econdmicas ou de outra ordem. Quanto ao ultimo caso apresentado, sua alta posicao na hierarquia do culto, sua antiga fungio de con- cubina cerimonial do sacerdote mais famoso e respeitado no Recife € 0 prestigio que por isso ela desfruta ainda hoje, bem como seu tipo de organizacio pessoal — todos esses elementos parecem-nos res- Ponder & falta de motivagio de Claudina para as experiéncias de pos- Sessio. Deve-se notar com relacio ao seu caso que os dignatarios do culto raramente entram em possessio, visto como o prestigio ue desfrutam em suas posigdes, ou a capacidade de manipulagio © controle da magia, 0 conhecimento dos sistemas divinatérios e a Possibilidade de usi-los a todo momento em seu beneficio préprio, bem como um adequado conhecimento de todas as regras do culto, 50) Karen Horney: — The Neurotic Personality of our Time. W.W. Norton, New York, 1937. 60 Anais da II* Reunifio Brastlotra de Antropologia constituem outros tantos mei sidades psicolégicas essenci riéncias de dissociagao. s de obterem satisfagio de suas neces- is que dispensam © recurso as expe- A etno-psicologia é assim eapaz, no nosso entender e na nossa experiéncia, de projetar alguma luz sobre um problema reconheci- damenie complexo como 0 da possessio e de abrir muitos outros horizontes para novas pesquisas sobre o homem e a cultura. Uma iiltima observacdo e esta para que nos acautelemos contra 0 excesso de oiimismo, cabe aqui. E sobre a frequéncia das generalizagdes quanto ao papel da moral e da religifio em proporcionarem tudo quanto 0 individuo deseja. Na verdade, conforme Gardner Murphy bem acentua, “é da esséncia da civil 0 provocar um verdadeiro conflito de desejos; a integragao, no sentido ingénuo de permitir a realizacio de todos os desejos, é uma quimera” (51). 51) Gardner Murphy — cit. pags. 326-27 | i | | | Problemas da Aculturagdo no Brasil (RESUMO) Egon Schaden Os fendmenos de aculturacdo, a fusio cultural e a formaci das culiuras marginais ocupam lugar de relévo entre os problemas da antropologia moderna, ndo apenas pelo eventual interésse pratico dos resultados da pesquisa no terreno administrative, mas ainda, e sobretudo, por se tratar dos exemplos mais ilustrativos para a andlise cientifica da dinamica das culturas, tanto no que respeita as foreas de conservagao ¢ resisténcia cultural, quanto a transferéncia e con- seqiiente reesiruluragdo € constiluicao de sistemas de padroes ¢ valo- res correspondentes a novas situagdes, pela integracio de elementos novos, quer originais, quer de proveniéneia estranha ¢ recebidos em situagdes de contacto. Estudo dessa natureza nio se confunde, é evidente, com o de nenhuma outra eiéneia. Por préximo que 9 objeto como tal possa situar-se dos temas de investigagao histérica ou mesmo sociolégica, JA nao se the nega, hoje em dia, carater antropolégico na mais genui- ha acepgio do termo, Isto pela perspectiva propria com que a antro- pologia cultural encara aqueles processos como, alias, toda realidade cultural — e que se caracteriza por focalizi-los como e enquanto manifestagdes préprias do equipamento integrative e adaptative de agrupamentos humanos tomados como unidades étnicas, isto ¢, bio- culturais. Nio vai longe o tempo em que se notava relutincia em reco- nhecer os processos de aculturagio como setor de investigacio antro- pologica prdpriamente dita. Ainda ha pouco mais de dois decénios, em assembleia anual da American Anthropological Association, levan- tou-se a questio de saber se era ou nfo cabivel publiearem-se nas Pfiginas da revista oficial da entidade trabalhos sobre assuntos dessa natureza. Ora, a extraordinaria riqueza de estudos relativos & acul- turacio realizados nestes wllimos vinte anos em todas as partes do mundo por antropélogos de reconhecida competéncia, vieram de- monstrar de modo cabal a inconsisténcia de quaisquer teorias que Pudessem ser invecadas para dar apoio aqueles escripulos. E a0 frisar a riqueza nio me refiro apenas ao mimero e 20 vulto das pes- auisas levadas a efeito, como particularmente A fecundidade em Pontos de vista e em perspectivas com que vieram contribuir para 4 compreensio estrutural e funcional das culturas em geral, e, dessa -Maneira, para a obtenc’o duma visdo tedrica mais justa da natu- ‘Teza humana. 69 Anais da 1+ Reunifo Brasileira de Antropolozia As questées nucleares da antropologla antiga, levantadas ¢ for- muladas por um evolucionismo dogmatico e no raro aprioristico, com a preocupacio, por vezes encoberta, de se garantirem A antro- pologia cultural nascente foros de ciéncia pelo recurso barato, mas ineficiente, de transferir para o seu campo e aplicar ao seu objeto teorias do dominio das ciéncias naturais, de status j4 tradicional e no contestado por ninguém, deixaram de constituir centros de inte- résse a partir do momento em que se evidenciou a sua esterilidade com relac&o a0 objetivo final de téda aritropologia, que é, repitamo- Jo, a explicacio cientifiea da natureza humana. Se a anilise dos fenémenos de aculturacdo merece a atengfo que se Ihe tem dispen- sado, ndo sera porque os seus resultados se mostraram valiosos com referéncia Aquela preocupacdo fundamental? Em contacto mais ou menos prolongado, grupos humanos de tradicao cultural diferente, e nfo raro também de filiagio racial diversa, sao atingidos nas camadas mais profundas de seu ser, revelando, pelas inevitaveis ou quase-inevitaveis situagdes de conflito cultural e pela maneira de res- tabelecerem 0 equilibrio e a integragio dos padrées e valores que Thes devem reger a vida em comunidade, as funcdes da cultura na existéncia dos povos. Destarte, pois, 0 desenvolvimento da untro- pologia, pela seqiiéncia histérica das teorias explicativas e diretri zes metodolégicas que foram surgindo, para a seguir serem abando- nadas, levou a conferir aos estudos de aculturacéo a importancia que hoje se Ihes reconhece e atribui sem restrigio alguma, Trata-se pois, evidentemente, de um setor da temitica antro- polégica em que a seara dos trabalhadores da ciéncia se revela cada vez mais promissora. E nao sera facil encontrar no Brasil dois antropélogos que estejam em desacdrdo quanto as condicses pri giadas que a situacao étnica nacional proporciona sos cientistas interessados no estudo dos problemas de aculturacdo e de fusio de Poves € ragas, como, por outro Jado, niio parece haver quem deixe de lamentar 0 desenvolvimento pouco satisfatério dessa ordem de pesquisas em nosso meio. Sem duvida, esta nota pessimista, temperando o otimismo di verifleagio anterior, tem t6da razio de ser, embora possa também levar ao extremo de nfo se reconhecerem em seus justos termos os trabalhos ja realizados no setor em apreco, como, ainda, desencora- jar a quem, a esta altura, se proponha 9 audacia de esbocar um quadro sindtico, evidentemente provisério e sujcito a correcdes futu- ras. dos fendmenos aculturativas que se processem no cenario brasileiro. Ora, 0 men esforco, se bem que nio se desenvolva no sentido de compor éste quadro, nao tendo, pois, a pretensio de dar uma ideia da multiplicidade de aspectos que éle revela ao observador atento, visa. em todo caso, através de dois ou trés exemplos a pér em relevo algumas das facetas particularmente significativas e, por isso mes- mo, merecedoras de atencao mais detida. Magnifico quadro de con- junto das étnias ¢ culturas do Brasil ja 0 tracou Manuel Diégues Jinior em pequena publicacio oficial do Ministério de Educacio, Jangada ha poucos anos, nao havendo, ‘por conseguinte, necessidade Sehaden ‘oblemas de Aculturagilo no Brasil de aqui se retomar a tarefa. Trabalho complementar ao mencionado apresenton o mesmo autor a 1* Reunido Brasileira de Antropo- logia, realizada no Rio de Janeiro, em novembro de 1953. Intitulads “Estudos de relagdes de cultura no Brasil”, constitui, por enquanio, a melhor sintese que a éste respeito se tentou realizar, Quanto a mim, desejo aqui apenas assinalar alguns aspectos, especialmente com referéneia, de um lado, as populagdes aborigenes na época historica da formacio da nacionalidade e nos dias que correm, e, do outro, a alguns grupos de imigrantes — alemaes ¢ japoneses — no Brasil Meridional. Tratar de outros elementos alienigenas, inclusive do africano, nao seria possivel nos quadros de pequena conferéncia. No que respeita ao africano, alias, e a seu extraordinario papel na formacdo étnica do Brasil, nao viria, é claro, 0 estudioso sulino com a pretensio de falar a um auditério da Bahia, onde the cabe apenas ouvir e aprender a ligdo dos mestres da terra * Aspecto esseneial do Brasil contemporineo, sabemo-lo todos, é ‘a riqueza de contrastes. De um lado, 0 conforto © os males da civili- zagio, cidades cosmopolitas, um ritmo intenso de producio econ mica, de trabalho intelectual e de criagio artistica. Do outro, em esireita associagao &s vezes com os elementos modernos, 0 sabor do exotic, 0 pitoresco do tradicional, as remimiseéncias do passado hist6rico, Mas dia a dia, em ritmo crescente, éste Brasil antigo e gennino vai cedendo lugar a fisionomia uniforme plasmada pela civi- lizaeao ocidental. Do Brasil auténtico e original, que se vai redu- indo cada vez mais, faz parte o primitivo habitante da terra. Como em tantos outros paises, também aqui o aborigene, dizimado em consegiiéneia do contacto com 0 colonizador europeu, foi vitima de lutes de exterminio, da eseravidiio, de enfermidades, mas sobretudo de sua incapacidade de substituir as primitivas formas de vida e assim adaptar-se as novas condigdes. Hoje em dia é preciso viajar até 0 longinquo sertao para se encontrar alguma tribo que ainda nfo tenha sofrido as influéncias, na maioria perniciosas, da civilizagio. © estudioso que encare a seqiiéncia dos fendmenos de acultu- acio dos aborigenes pelo espago de quatro séculos e meio, desde a chegada dos deseobridores até os dias de hoje, verifica desde logo hotavel diferenca entre as fases sucessivas dos processos de desin- tegracdo ou absorcdo das culturas indigenas em nossa histéria. # evidente que papel do silvicola na formagio do Brasil teve de Varlar necessiriamente com a mudanga das condigdes em yue se ten desenrolado a competicio cultural, Nos primérdios da colénia, 0 indio levava sobre 0 europeu 2 vantagem de ser portador de cultu- ras de ha milénios ajustadas ao ambiente natural brasileiro. Por sua vez, o$ poriugueses, por longo tempo menos numerosos do que os Indios e, ademais, incapazes de transplantar sem mais nem menos Para o solo colonial a sua tradicional forma de vida, especialmente NO tocante ao equipamento adaptativo, dispunham, entretanto, no sistema integrativo de sua cultura, de recursos de dominacdo que KE sarantiriam a possibilidade de perpetuar, através da sociedade 64 Anais da 1I* Reunifo Brasileira de Antropologia e da cultura hibrida que se vinham constituindo, a lingua e muitos valores centrais da tradigao lusitana. Embora nao fdsse uniforme, por certo, nas diferentes ‘reas do extenso territério colonial, a com- binagio de elementos da terra com os de origem estranha, o resul- tado foi tal que em toda parte se salvaguardaria 0 cardter fundamen- talmente Iusiada da cultura e da sociedade emergentes. Nunea é demais insistir em que a formacao da cultura hibrida luso-indigena veio processar-se concomitantemente com a constituicao da popula gio mameluea, logo no inicio da era colonial, havendo, por isso mesmo, desde 0 principio um substrato humano préprie, capaz de absorver, em escala crescente, elementos étnicos quer de provenién- cia portuguesa, quer indigena. A proporeio déstes iiltimos na socie- dade brasileira a principio talvez fosse maior do que a dos advenas, mas haveria de modificar-se paulatinamente a favor do contingente europeu & medida em que éste firmaria 0 seu poderio econdmico & politico no cenArio da colénia. Para uma compreensio aniropolégica do Brasil atual cumpre nao perder de vista esses falos fundamentas de épocas historicas, mas é necessario, por outro lado, definir xos poucos tambem as nume: rosas variantes regionais, decorrentes de uma multiplicidade de situa- ges no periodo colonial. % uma tarefa que por bastante tempo continuard reclamando a dedicacio de nosses cstudiosos. O que se pode esbocar por enquanio nada mais é do que a perspectiva geral segundo a gual se nos afigura a nos nodternos 0 processo de fusiio sécio-cultural luso-amerindia dos primérdios da uacionalida- de. % um processo que levou, é certo, a0 desaparecimento de tribos e mais tribos esmagadas pelo rdlo compressor aa colonizacao, mas que permitiu, nao obstante, que o indio contribuisse com 0 seu qui- nhao de sangue e de cultura para a constituicio do nosso povo e das nossas formas de vida ou subculturas regionats. Diversa 6 a pers- pectiva segundo a qual nos aparecem os indigenas brasileiros da atualidade, remanescentes pouco numerosos em posi¢io de defesa, ou antes, de retrocesso, O seu estudo se torna cada vez mais urgente, tanto por motivos de ordem cientifica, de vez que as tribos se extin- gtiem rapidamente, quanto por motivos priticos, de administracio ow filantrépicos, se € que a antropologia moderna, evitando encer- rar-se em torre de marfim, d4 preferéncia, na escolha de seus temas, Aqueles em que a ciéncia possa transcender a si mesma e avancar pelo campo de acio humana a dentro. & uma posicio que hoje todos ou quase todos reconhecemos como a mais sensata e sadia, mas que também com referéneia aos estudos indigenistas do Brasil se ha de compreender como resultante de um processo histérico E um desenvolvimento aue se inicia com os relatos de missio- narios, cronistas e viajantes sbre as tribos indigenas da América Portuguésa, relatos que, embora assistematicos, constituem por vezes valiosas fontes de informacio, gracas as quais se tornon mais facil a investigago etnolégica das culturas amerindias brasileiras no decorrer dos iitimos 150 anos. Desde a viagem do Principe Maxi- miliano de Wied-Neuwled até os nossos dias vio-se entio corrigindo e precisando progressivamente os conhecimentos cientificos sobre a multiplicidade cultural aborigene, para afinal, nestes tiltimos decé- yon Schaden — Problemax de Aculturacéo no Brasil 65 nios, merecerem o interésse dos espectalistas também os grupos Pifigenas mais ou menos “acaboclados”, cuja cultura perdeu a sua ade pelos freqiientes contactos ou pelo convivio com popu- iginalid a ilizado laces sertanejas ou quaisquer representantes do mundo ‘Algumas pesquisas realizadas nos ultimos dez ou quinze anos por antropélogos interessados neste setor nos pdem em condigées de entrever umas tantas linhas fundamentais désses processos de transformacio. Autores como Wagley e Galva, Baldus, Darcy Ribei- ro, Watson e outros, embrenhando-se pelos sertdes, colheram, no convivio com tribos indigenas atingidas pelo impacto da civilizagao ocidental, quer diretamente, quer indiretamente através das culturas cabocias, informagées bastante pormenorizadas, a ponto de ja com- preendermos um pouco melhor os problemas teéricos ligados a des- tribalizacdo dos naturais e & maneira de retomarem seu equilibrio cultural através da passagem pela crise aculturativa. Em todos os setores culturais 0 contacto com os moradores civilizados acarreta transformagées profundas na vida dos indige- nas. A base dessas transformagoes se encontra, de um lado, 0 apa- recimento de novas necessidades em conseqiiéncia do contacto com um sistema cultural estranho e, do outro, a destruigio das primiti- vas condigdes de existéncia através da competicao ecolégica entre 0s aborigenes e os elementos invasores. Embora mais evidente na esfera econdmica, a mudanga atinge as vezes em cheio 0 micleo da vida religiosa, que, por sua vez, se pode organizar em foco de rea- ges de defesa cultural. A medida que se vao integrando no sistema de produgdo e comércio regional, os indigenas tem de desenvolver um senso econdmico bem diverso do que possuiam na cultura da tribo. E mesmo antes de chegarem a calcular o tempo, o trabalho quaisquer valores materiais em termos de dinheiro, a necessidade de manterem constante ou periddicamente relagdes econémicas com as populagées vizinhas Ihes perturba o ritmo da vida tradicional, afeta a realizacao das festas e cerimdnias religiosas e comega a desin- tegrar o primitivo sistema familial. A desorganizagio social liga- da a @sses fendmenos se torna mais manifesta A medida que se su- cedem as geracées, nao raro originando conflito aberto entre os velhos, de tendéncia tradicionalista, e os mogos, mais facilmente influenciados pelos padrdes e valores da sociedade mais ampla. De modo geral, o processo resulta em crescente individualizagao. A tribo, na medida em que sobrevive, passa entio a fazer parte inte: grante do sistema econdmico regional; em geral, porém, deixa de existir como unidade étnica, fundindo-se biolgica e culturalmente, €m breve espaco de tempo, com a populacdo sertaneja, Quanto Mais lento o ritmo dessa fusio, maiores parecem ser as probabili dades de se atenuar a crise oriunda do choque dos sistemas cullv- eos menor sera, por conseguinte, 0 niimero de persona Coan eetitieadas, No entanto, seria iuséria, a validade de um igido em tédas as situacdes; de caso em caso, hi nume- pe fatores especificos que devem ser tomados em consideracio trict tenha o intuito de interferir no desenrolar das relacoes 5 para torni-las menos dramiticas.

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