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HSM Management nº 13 – Março/Abril – 1999

A empresa viva
A elevada taxa de mortalidade corporativa pode ser
combatida com mudanças nas prioridades e a
incorporação de alguns traços comuns a organizações
centenárias. Por Arie de Geus
O que explica a diferença entre algumas companhias que existem há mais de 100 anos e a
média de vida das empresas que não supera 20 anos? Uma equipe da empresa Royal Dutch
Shell, que tinha entre seus integrantes o vice-presidente Arie de Geus, hoje da London
Business School e do MIT, encontrou respostas para a questão em um estudo. Muitas
empresas morrem jovens porque suas políticas e práticas enfatizam a produção de bens e
serviços, de acordo com esse estudo, esquecendo que são comunidades de pessoas que
fazem negócios para permanecer vivas. Em contraposição, as “empresas vivas”, que
funcionam como se fossem um rio segundo o autor, têm outras prioridades: valorizar as
pessoas, flexibilizar a direção e o controle, organizar-se para aprender e criar uma
comunidade. Além disso, elas compartilham algumas características, como conservadorismo
na gestão das finanças, sensibilidade ao ambiente externo, consciência de sua identidade e
tolerância a novas idéias. O estudo em que se baseia este artigo focalizou 30 organizações
na América do Norte, na Europa e no Japão com mais de 100 anos de idade, forte
identidade corporativa e destaque em seu setor de atividade. Entre elas, DuPont W.R.
Grace, Kodak, Mitsui, Sumitomo e Siemens. Ele é relatado integralmente no livro A Empresa
Viva, de Geus, publicado no Brasil no ano passado pela editora Campus.

No mundo das instituições, as empresas comerciais químicos, começou como mina de cobre na região
são membros recém-chegados. Elas existem há central da Suécia há mais de 700 anos. Exemplos
apenas 500 anos - uma minúscula fração de tempo no como esses sugerem que a longevidade natural de
curso da civilização humana. Nesse período, têm uma empresa poderia ser de dois ou três séculos, ou
desfrutado um enorme sucesso como produtoras de mais.
riqueza material. Foram responsáveis pela explosão As implicações dessas estatísticas são deprimentes. A
populacional mundial, fornecendo os produtos e diferença entre a longevidade de uma Sumitomo ou
serviços que tornaram possível uma vida civilizada. uma Stora e a vida efêmera da empresa comum
Quando analisadas à luz de seu potencial, no entanto, representa um potencial desperdiçado. As pessoas, as
muitas empresas comerciais ainda têm um longo comunidades e as economias são afetadas - e até
caminho por percorrer Elas estão em uma fase destruídas- pela morte prematura de empresas. A alta
primitiva de evolução; desenvolvem e exploram taxa de mortalidade empresarial não parece natural.
apenas uma pequena fração de seu potencial. Nenhuma espécie viva apresenta tal discrepância
Analisemos sua alta taxa de mortalidade. Em 1983, entre sua expectativa máxima de vida e a
cerca de um terço das 500 maiores empresas listadas longevidade média que alcança. E são poucas as
pela revista Fortune em 1970 havia sido adquirido ou instituições de outros tipos - igrejas, exércitos ou
desmembrado ou fundido com outras empresas. universidades - que apresentam o recorde terrível de
Como sabemos que muitas dessas mortes são mortalidade da empresa comercial.
prematuras? Porque temos provas de que as empresas
podem durar muito mais. A Sumitomo, do Japão, tem As empresas morrem jovens
origem em uma fundição de cobre aberta por Riemon
Por que tantas empresas morrem jovens? As provas
Soga em 1590. A empresa sueca Stora, atualmente
acumuladas indicam que as empresas fracassam
uma grande fabricante de papel, celulose e produtos
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porque suas políticas e práticas se baseiam indicações a respeito nas listas das 500 maiores
predominantemente no pensamento e na linguagem empresas da revista Fortune, e conseguimos
da economia. Em outras palavras, as empresas confirmar esses dados em registros públicos da
morrem porque seus executivos se concentram América do Norte, da Europa e do Japão.
exclusivamente na produção de bens e serviços e se Na maioria desses lugares, a lei exige que a abertura
esquecem de que sua organização é uma comunidade e o fechamento de firmas sejam registrados. Pelo
de seres humanos que trabalha em uma empresa - de estudo desses dados conseguimos obter estatísticas
qualquer tipo - para se manter viva. Os executivos se "populacionais" e três informações valiosas: índice
preocupam com terra, trabalho e capital e de empresas fundadas, índice de empresas encerradas
negligenciam o fato de que “trabalho” significa e a população total. Assim, pudemos calcular a
pessoas de verdade. expectativa média de vida das organizações, que, no
O que há de tão especial sobre as empresas Hemisfério Norte, era bem inferior a 20 anos.
duradouras? As que eu passei a chamar de “empresas Somente as grandes empresas que estudamos e
vivas” têm uma personalidade que lhes permite haviam começado a se expandir depois de
evoluir harmoniosamente. Elas sabem quem são, sobreviverem à infância - período em que a taxa de
entendem qual seu papel no mundo, valorizam novas mortalidade é extremamente alta - continuaram ativas
idéias e novas pessoas e administram o dinheiro de por outros 20 a 30 anos, em média.
uma maneira que lhes propicia controle sobre seu Aparentemente a empresa é uma espécie com uma
futuro. Resumindo, as empresas vivas produzem bens expectativa máxima de vida na casa das centenas de
e serviços para ganhar seu sustento exatamente como anos, mas com uma expectativa média de vida
nós fazemos por meio de nossos empregos. inferior a 50 anos. Se essa espécie fosse o Homo
Antes de discutir as características da empresa viva sapiens, poderíamos afirmar com toda certeza que
com mais profundidade são necessárias certas ainda estaria na era de Neanderthal - ainda não teria
informações históricas. Em 1983, um grupo da Shell realizado seu potencial.
do qual eu fazia parte decidiu aprender mais sobre a A segunda observação extraída do estudo da Shell é
longevidade empresarial estudando companhias mais que as empresas vivas são muito eficientes na "gestão
antigas que a nossa. Como naquela época a Shell já para a mudança", como dizemos hoje. A Stora,
tinha cerca de 100 anos, decidimos analisar empresas exemplo mais expressivo de nosso estudo,
que já existissem nos últimos 25 anos do século XIX, sobreviveu à Idade Média, à Reforma, às guerras do
fossem importantes em seu setor e ainda possuíssem século XVII, à Revolução Industrial e às duas
uma forte identidade corporativa. grandes guerras do século XX. Durante a maior parte
Nossa equipe descobriu 30 organizações na América de sua existência, dependeu de mensageiros,
do Norte, na Europa e no Japão que atendiam àqueles cavaleiros e navios para transmitir ou receber
critérios. As empresas tinham de 100 a 700 anos e 27 mensagens, em vez de usar telefones, aviões e redes
delas - como DuPont, W.R. Grace, Kodak, Mitsui, eletrônicas. O ramo de atividade da Stora mudou do
Sumitomo e Siemens- dispunham de excelente cobre para a exploração florestal, fundição de ferro,
documentação. energia hidrelétrica e finalmente papel, celulose e
produtos químicos. Ao longo do tempo, suas
Expectativa de vida: 20 anos tecnologias de produção passaram do vapor para a
combustão interna, depois para a eletricidade e para o
A primeira coisa que aprendemos foi que a vida microchip. E a Stora continua a se adaptar a um
média de uma organização é muito menor do que sua mundo em permanente mudança.
vida média potencial. Já tínhamos algumas

A Stora tem vida longa porque se adapta a um mundo


mutante. Passou dos cavalos para os aviões, da extração de
cobre para os químicos, do vapor para o microchip.

Os traços comuns das bem-sucedidas • Conservadorismo nas finanças


O que as empresas extraordinariamente bem- Essas empresas não arriscavam gratuitamente seu
sucedidas têm em comum? Nosso grupo descobriu capital. Entendiam o significado do dinheiro à moda
quatro traços de personalidade em comum que antiga e sabiam como era útil ter reservas em caixa.
poderiam explicar sua longevidade. Com dinheiro na mão, podiam agarrar oportunidades
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que seus concorrentes não conseguiam. Não Reconheciam que as novas firmas criadas não
precisavam convencer financistas externos sobre a precisavam estar inter-relacionadas com as
atratividade das oportunidades que desejavam existentes, ou seja, que a diversificação de atividades
explorar Essa reserva de caixa lhes permitia governar não precisava ter um controle centralizado. Desde o
seu crescimento e evolução. início, a W.R. Grace estimulou a experiência
autônoma. A empresa foi fundada em 1854 no Peru
• Sensibilidade ao ambiente externo por um imigrante irlandês e comercializava guano,
um fertilizante natural, antes de passar para os ramos
Independentemente de terem construído suas fortunas
de açúcar e estanho. Acabou fundando a Pan
com base no conhecimento (como as inovações
American Airways. Atualmente fabrica basicamente
tecnológicas da DuPont) ou em recursos naturais
produtos químicos, embora também seja uma das
(como o acesso da Hudson Bay Company às peles
grandes prestadoras de serviços de diálise nos EUA.
das florestas canadenses), as empresas vivas de nosso
Por definição, uma organização que sobrevive mais
estudo foram capazes de se adaptar às mudanças que
de um século atua em um mundo sobre o qual não
ocorriam no mundo à sua volta. No vaivém de
pode ter expectativas de controle. Nesse sentido, as
guerras, depressões, tecnologias e políticas, sempre
multinacionais são semelhantes às empresas longevas
primaram por manter os sensores ligados em tudo
de nosso estudo. Atuam em um mundo muito grande,
que estivesse acontecendo em torno. Em termos de
que abrange várias culturas, e é inerentemente menos
informações, às vezes dependiam de meios de
estável e mais difícil de influenciar do que um
transporte terrestre e marítimo que precisavam
ambiente nacional confinado. As multinacionais,
percorrer longas distâncias, e mesmo assim
como as empresas duradouras, precisam estar
conseguiam reagir de forma oportuna às condições
dispostas a mudar para ter sucesso.
então existentes. Eram competentes em
aprendizagem e adaptação.
Prioridades
• Consciência de sua identidade Esses quatro traços formam o caráter essencial das
empresas que vêm funcionando com sucesso por
A despeito da extensão de sua diversificação, os
centenas de anos. Dada essa personalidade básica,
funcionários dessas organizações se sentiam partes
quais as prioridades que seus executivos estabelecem
de um todo. Os casos estudados demonstram
para si e para seus subordinados?
repetidamente que a sensação de pertencer a uma
O executivo de uma empresa viva entende que dar
comunidade é essencial para a longevidade da
continuidade à sobrevivência da empresa significa
empresa. Os executivos das empresas vivas que
entregá-la a seu sucessor com, no mínimo, a mesma
estudamos eram, na maioria, provenientes da própria
saúde que tinha quando ele assumiu o cargo. Para
firma, e todos se consideravam servidores de um
isso, precisa deixar as pessoas crescerem dentro de
empreendimento duradouro. Sua maior prioridade
uma comunidade que se mantém coesa devido a
era, no mínimo, manter a instituição tão saudável
valores claramente definidos. É preciso, portanto,
quanto no momento em que assumiram o cargo.
colocar o compromisso com as pessoas antes dos
ativos, o respeito pela inovação antes da devoção às
• Tolerância a novas idéias políticas, a desordem da aprendizagem antes dos
As empresas longevas de nosso estudo toleravam procedimentos ordenados e a perpetuação da
atividades que ocorriam à margem: experiências e comunidade antes de todas as outras preocupações.
excentricidades que expandiam seus conhecimentos.

Valorizar as pessoas em vez dos ativos. Isso explica por


que todas as 27 empresas longevas mudaram
completamente de ramo de atividade pelo menos uma vez
• Valorizar as pessoas, não os ativos anos 20, era a maior acionista da General Motors e
hoje especializa-se em produtos químicos. A Mitsui,
Essa inversão das prioridades tradicionais de gestão é
com cerca de 300 anos, era uma loja de tecidos.
comprovada por uma descoberta surpreendente de
Transformou-se em banco, depois em mineradora e,
nosso estudo: cada uma das 27 organizações
no final do século XIX, entrou no setor de fabricação
longevas mudou completamente de ramo de ativida-
industrial.
de pelo menos uma vez. A DuPont, que tem cerca de
Essas histórias indicam que tais empresas estão
200 anos, começou como fabricante de pólvora. Nos
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dispostas a descartar os ativos para sobreviver Para que podar as roseiras dessa forma? Para ter as
elas, os ativos - e os lucros - são como oxigênio: maiores rosas do bairro no verão.
necessário para a vida mas não a finalidade da vida. Eu não costumo podar muito, porque essa é uma
A Stora explorava cobre para existir; não existia para estratégia de alto risco. Eu moro em um lugar na
estar no ramo de cobre. Essas empresas sabem que os montanha onde minhas rosas podem sofrer muito. As
ativos são apenas meios para ganhar seu sustento. geadas noturnas são comuns até meados da
Uma firma que segue um modelo diferente de gestão primavera e os cervos, que adoram os botões, vivem
descarta as pessoas para salvar sua fábrica e seus livremente. Se eu podar muito, se houver geada e se
equipamentos, considerados a essência de sua os cervos estiverem famintos, posso chegar ao verão
existência. sem nenhuma rosa. Portanto, eu deixo de cinco a sete
ramos em cada pé, e de cinco a sete brotos em cada
• Afrouxar a direção e o controle ramo. Assim, a roseira pode dividir seus recursos
entre muitos brotos. Eu nunca tive as maiores rosas
Se a saúde a longo prazo da empresa e a
da vizinhança, mas não passo um verão sem rosas no
sobrevivência por sucessivas gerações exigem uma
jardim.
disposição para mudar de ramo de atividade, os
Algo mais acontece ao podar da minha maneira por
executivos precisam levar em conta as opiniões e
vários anos seguidos: surpresas. Em dois ou três
experiências de outras pessoas. A organização
anos, alguns dos ramos novos crescem muito mais
precisa dar aos indivíduos um espaço para o
fortes e começam a produzir brotos, e alguns dos
desenvolvimento de idéias e certa liberdade em
ramos antigos param de produzir rosas. O que
relação ao controle, à direção e à punição por
podemos fazer? Remover os caules antigos e estimu-
fracassos. Em outras palavras, é preciso colocar em
lar os novos. Uma política tolerante de poda renova
prática o princípio da tolerância, assumindo riscos
gradualmente o nosso portfólio de rosas.
com as pessoas e procurando novas idéias em novos
A metáfora do cultivo de rosas também ajuda a
lugares. Talvez a melhor maneira de ilustrar essa
resolver um dos dilemas atuais da gestão de
idéia seja a metáfora do cultivo de rosas.
empresas: como diversificar sem "dar sopa" para o
Toda primavera os jardineiros precisam decidir como
desastre. Uma política de tolerância permite que a
podar as roseiras. Podar muito significa deixar cada
rosa e o meio ambiente se integrem continuamente
roseira com três ramos, escolhidos entre os mais
sem colocar em risco a capacidade de crescimento da
fortes, e cada um deles com três brotos. Essa técnica
roseira.
força a planta a canalizar todos os seus recursos para
um número relativamente pequeno de brotos. E por

É exatamente quando a empresa está totalmente


organizada que as circunstâncias externas podem
mudar. Ela precisa se organizar para isso.
• Organizar-se para aprender mercados mudam, as taxas de juros flutuam, as
preferências dos consumidores se alteram e a
Há ocasiões em que o know-how, o portfólio de
empresa precisa entrar em uma nova fase de vida.
produtos e as relações trabalhistas de uma
Para permanecer sintonizada com o mundo exterior,
organização estão em harmonia com o ambiente
ela precisa ser capaz de alterar sua estratégia de
externo. As situações são conhecidas, a empresa está
marketing, seu portfólio de produtos, sua organização
bem estruturada e os funcionários estão treinados e
e o local e a maneira de produzir bens ou serviços.
preparados. Nesses períodos, os executivos não
Uma vez adaptada ao novo ambiente, a organização
precisam desenvolver e implementar novas idéias.
deixa de ser o que era; ela evolui. Essa é a essência
Sua tarefa é destinar recursos para promover o
do aprendizado.
crescimento e o desenvolvimento, canalizando o
Como uma organização - diferentemente de uma
capital e as pessoas para aquelas áreas da organização
pessoa - aprende? Os pássaros podem ajudar a
que estejam mais bem posicionadas para receber os
responder a essa pergunta. Analisemos o trabalho de
benefícios da situação presente dos negócios. Essas
Allan Wilson, professor já falecido de bioquímica e
áreas se tornam, então, maiores, mais sólidas e mais
química molecular da University of California de
poderosas.
Berkeley, nos EUA. Segundo a hipótese de Wilson,
Mas é exatamente quando a empresa está totalmente
uma espécie inteira pode melhorar sua capacidade de
organizada que as circunstâncias externas podem
explorar as oportunidades do ambiente. São
mudar. Novas tecnologias entram em cena, os
necessárias três condições. Primeira, os membros da
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espécie precisam ter e usar a capacidade de se concorrência interespécies? Lembremos as condições


movimentar e precisam se deslocar em bandos em necessárias apontadas por Wilson para que o
vez de permanecer sozinhos em territórios isolados. aprendizado ocorra em uma população: um grande
Segunda, alguns deles precisam ter potencial para número de indivíduos com mobilidade, alguns deles
inventar novos comportamentos - novas habilidades. com capacidade para inovar e um sistema social para
Terceira, a espécie precisa ter um processo propagar a inovação. Os tordos-vermelhos não
estabelecido para transmitir a habilidade de um tinham esse tipo de sistema social. Obviamente, os
indivíduo para toda a comunidade, não tordos cantam, são coloridos e têm mobilidade, mas
geneticamente, mas por meio da comunicação direta. são pássaros fundamentalmente territoriais. Quatro
Segundo Wilson, a presença dessas três condições ou cinco tordos moram em meu jardim, e cada um
acelera o aprendizado na espécie como um todo, tem seu pequeno território. Eles se comunicam muito
aumentando sua capacidade de se adaptar rapida- entre si, mas em geral só para dizer aos outros: "Fora
mente a mudanças profundas no ambiente. do meu território!" Os chapins também adoram meu
Para testar sua hipótese, Wilson recorreu a um caso jardim. Vivem em pares durante a primavera e no
bem documentado sobre o comportamento dos meio do verão começam a voar em bandos de oito,
chapins e dos tordos-vermelhos na Grã-Bretanha. No dez e 12. Eles voam de jardim para jardim, brincam e
fim do século XIX, as garrafas de leite que os se alimentam.
leiteiros deixavam na porta das casas não tinham Os pássaros que se congregam aprendem mais
tampa. A nata chegava até a boca da garrafa. Dois rapidamente. O mesmo acontece com as organiza-
pássaros de jardim muito comuns na Grã-Bretanha, o ções que estimulam seus funcionários a se congregar.
chapim e o tordo vermelho, começaram a comer a Em qualquer organização com centenas de pessoas
nata. certamente existem algumas suficientemente curiosas
Nos anos 30, depois de os passarinhos saborearem a para abrir caminho para novas descobertas, como os
nata por cerca de 50 anos, os britânicos passaram a chapins que descobriram como furar a tampa do leite.
fechar as garrafas de leite com uma tampa de Todavia, ter algumas pessoas inovadoras não garante
alumínio. O que aconteceu? No início dos anos 50, a o aprendizado institucional. A organização precisa
população total estimada de chapins do Reino Unido, estimular essas pessoas a interagir com as outras. Os
que chegava a um milhão da Escócia à Cornualha, skunk works (bolsões de espaço organizacional reser-
havia aprendido a furar as tampas de alumínio. Os vados para grupos de pessoas que trabalham sem a
tordos jamais adquiriram essa habilidade. interferência do restante da organização) são um
Por que os chapins conseguiram uma vantagem na exemplo desse fenômeno.

Os pássaros que se congregam aprendem mais


rapidamente. O mesmo ocorre com as empresas que
estimulam seu pessoal a se congrega, pois uns puxam
os outros.
Os programas de desenvolvimento gerencial também intervalos".
são uma excelente oportunidade para que as pessoas
se congreguem. A Shell, por exemplo, gasta cerca de • Criar uma comunidade
US$ 2.400 por funcionário todos os anos em
Os executivos precisam decidir como posicionar o
treinamentos que os ajudam a progredir em seus
elemento humano em sua empresa. Podem optar por
campos de atividade, mudar para outras áreas e
produzir riqueza para um pequeno círculo de
desenvolver novas habilidades. Mais significativo
dirigentes e investidores, ou desenvolver uma
ainda, a grande maioria desses treinamentos é feita
organização que seja uma comunidade. Os que
em grupo. É muito importante para equipes formadas
querem construir uma organização que consiga
por indivíduos completamente diferentes passar
sobreviver por muitas gerações colocam o
juntas por treinamentos periódicos intensivos. Esse
desenvolvimento dos funcionários acima de qualquer
tipo de experiência ajuda a disseminar o
outra consideração e atribuem prioridade a questões
conhecimento na organização e reúne pessoas
do tipo "como devemos nos preparar para garantir a
oriundas de ambientes culturais diferentes e de
continuidade de geração para geração".
diversas áreas profissionais e acadêmicas. E comum
Nas organizações em que apenas alguns recebem os
os participantes dos cursos comentarem: "Não foi
benefícios acumulados, todos os demais são
tanto o que aprendi nas sessões formais, o importante
estranhos, não membros, De acordo com o contrato
foi o que aprendi com os colegas durante os
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implícito firmado com a empresa, esses estranhos vulnerabilidade. As poças de água não sobrevivem ao
trocam seu tempo e experiência por dinheiro. Como aquecimento. Quando o sol aparece e a temperatura
demonstram as inúmeras evidências colhidas pelas sobe, a poça começa a evaporar. Até mesmo as gotas
ciências do comportamento organizacional, esse tipo que permaneceram no meio da poça correm o risco
de contrato não inspira as pessoas a ser leais ou a se de se transformar em vapor.
sentir leais à organização ou a seus executivos. Elas Uma empresa cujo objetivo é a sobrevivência se
entendem que devem trabalhar tendo sempre em parece mais com um rio. Ao contrário da poça de
mente que, mais cedo ou mais tarde, sairão da água, o rio é um elemento permanente da paisagem.
empresa. Se chover, ele pode subir. Se fizer sol, pode baixar.
Em minha opinião, uma empresa cujo objetivo é Mas somente uma seca prolongada e grave fará o rio
produzir riqueza para alguns é como uma poça de desaparecer Da perspectiva dos pingos de água, o rio
água - uma série de pingos de chuva reunidos em é muito turbulento. Nenhum pingo permanece no
uma cavidade. As gotas permanecem no fundo. meio do rio por muito tempo. De um momento para
Quando chove, mais pingos se juntam à poça e seu outro, a água de outra parte do rio sofre uma
raio de influência se expande, encharcando o chão à mudança. Novos pingos substituem os antigos, e
volta. Mas os primeiros pingos permanecem no meio todos seguem a correnteza.
da cavidade. A estagnação pode levar à

Uma empresa cujo objetivo é produzir riqueza para


alguns é como uma poça d'água. Quando chove, se
expande. Quando o sol aparece, quase seca.

A vida do rio é muito mais duradoura que a vida dos significa "nós" e têm consciência dos valores
pingos de água. O rio é uma comunidade comuns. Eles sabem a resposta à pergunta
autoperpetuadora com garantias próprias de fundamental sobre identidade corporativa: "O que
continuidade e movimentação da água em seu leito. valorizamos?" Quem não conseguir conviver com os
Ao instituir regras de continuidade e movimentação valores da empresa não pode e não deve fazer parte
para seus funcionários, uma empresa pode imitar a dela. A sensação de fazer parte do todo une até seus
longevidade e a força do rio. mais diferentes integrantes.
A empresa viva é exatamente como um rio. Nesse A essência do contrato implícito na empresa viva é a
tipo de organização, os executivos consideram que a confiança mútua. Os profissionais sabem que, em
otimização do capital não passa de um complemento troca de seu esforço e compromisso, a organização os
necessário para a otimização das pessoas. Para ajudará a desenvolver seu potencial. O dinheiro não é
construir uma empresa rentável e duradoura, tomam considerado um motivador positivo em uma empresa
o cuidado de criar uma comunidade. Existem que funciona como um rio. Se o dinheiro é insufi-
processos que definem os membros, estabelecem os ciente, as pessoas ficam insatisfeitas. Entretanto,
valores comuns, recrutam as pessoas, desenvolvem aumentar a quantia de dinheiro acima do limite de
os funcionários, avaliam seu potencial individual, remuneração suficiente não as motivará a dar mais de
seguem as normas de um contrato humano e si. Para que isso aconteça, os membros precisam
estabelecem políticas para que os profissionais saber que a comunidade está interessada neles como
deixem a organização com dignidade. indivíduos, e eles precisam estar interessados no
destino da empresa. Entidades e pessoas precisam se
Confiança mútua preocupar mais umas com as outras.
Na empresa viva, os membros entendem o que

O dinheiro não é considerado um motivador positivo


em uma empresa viva. O essencial é a confiança
mútua, a preocupação com o outro
Parte dessa preocupação é garantir que os corretamente as coisas. Os novos funcionários
profissionais entrem e saiam da empresa entendendo precisam saber que são avaliados tanto com base em
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sua adequação aos valores e princípios da empresa externo invadir seus territórios. Na aldeia global, é
como por sua capacidade de atender às exigências cada vez mais difícil descobrir nichos ou se esconder
técnicas do cargo que vão ocupar Em uma empresa atrás de barreiras. Em resumo, as empresas que
viva, os indivíduos contratados sabem perfeitamente funcionam como maquinas de fazer dinheiro correm
que estão lá para desenvolver seu potencial. Isso não o risco de se tornar espécies em extinção que só
significa que têm um contrato de trabalho para toda a conseguem sobreviver em reservas protegidas.
vida. Quando não unem suas forças ou partilham os
valores da comunidade, não podem permanecer na Conhecimento e sucesso
empresa. Além disso, quando chegam a certa idade,
As empresas vivas que aprendem têm uma chance
devem se aposentar. A liderança nas empresas vivas
maior de sobreviver e evoluir em um mundo que não
é exatamente o oposto daquela ilustrada em uma
controlam. Elas fazem sentido principalmente porque
antiga charge que mostrava 12 diretores idosos
o sucesso hoje depende da mobilização do maior
concordando com a proposta do presidente de
nível possível de conhecimento. Os altos níveis de
aumentar em mais um ano a idade para
tolerância que existem em uma organização viva
aposentadoria.
criam espaço para mais inovação e mais aprendizado.
Muitos acionistas e altos executivos não estão
Criar esse espaço é vital para as empresas ricas em
interessados em construir uma comunidade de
conhecimento e pobres em ativos, como as firmas de
trabalho que se autoperpetue. Preferem que a
advocacia e de contabilidade, as administradoras de
empresa permaneça como uma máquina de fazer
cartão de crédito e as consultorias financeiras, cujo
dinheiro para o beneficio de um pequeno círculo. É
sucesso depende da qualidade da sua comunidade
uma preferência perfeitamente legitima, mas é
interna. Mas até mesmo aquele antigo tipo de
preciso ter consciência de que essa decisão tem
organização rica em ativos, como as empresas
conseqüências sérias.
petrolíferas e as montadoras, precisa embutir muito
Cada vez mais as empresas funcionam em um mundo
mais conhecimento em seus produtos e serviços hoje
que não controlam. As chances de que uma or-
do que há 20 anos.
ganização possa influenciar o mundo atual em seu
A empresa viva tem maior chance de durar mais «'e
beneficio são cada dia menores - como os bancos, as
reduzir o hiato entre as expectativas média e máxima
seguradoras - as empresas de telecomunicações e os
de vida da "espécie". Isso é importante, porque a
fabricantes de software estão descobrindo. Por quê?
morte de uma empresa não ocorre sem custos. Todos
Porque a concorrência global está forçando as
perdem: funcionários, fornecedores, empresas
empresas a sair de seus nichos regionais ou nacionais
contratadas, comunidades e acionistas.
e entrar em territórios menos conhecidos. Mesmo as
firmas que não se expandem acabam vendo o mundo

Saiba mais sobre Arie de Geus


Arie de Geus é professor da London Business School e um dos diretores do
centro de Aprendizado Organizacional da Sloan School of Management, escola de
administração do Massachusetts Institute of Technology (MIT), de Cambridge,
Illinois, EUA.
Geus entrou para o Royal Dutch Shell Group em 1951 e se aposentou em 1989
como vice-presidente. Durante pela sua passagem pela Shell, trabalhou nos Países
Baixos, na Turquia, na Bélgica, no Brasil e no Reino Unido. Também é diretor do
Nijenrode Learning Centre, nos Países Baixos (Holanda). Seu best seller The Living
Company foi publicado no Brasil em 1998 pela editora Campus, com o título A
Empresa Viva – Como as Organizações Podem Aprender a Prosperar e Se
Perpetuar.

© Traduzido e reproduzido com autorização da Harvard Business Review. Este artigo foi
originalmente publicado com o título The Living Company, pela Harvard Business
Review, em março-abril de 1997. Copyright 1997 do presidente e dos membros do Conselho
do Harvard College. Todos os direitos reservados.

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