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Aparece como referencial analitico apenas OS anOs 70, quando um ramo da psicologia social se autoqualificou de comunitaria, Assim fazendo, definiu in- tencionalidades e destinatérios para apresentarse como ciéncia comprometida com a realidade estudada, especial: mente com os excluidos da cidadania A descoberta da comunidade nao foi um processo especifico da psicologia social:Fez parte de um movimento mais amplo de avaliacao critica do papel social das ciéncias @, por conseguinte, do paradigma da neutralidade cientifi- a, desencadeado nos anos 60 e culminado nas décadas de 70 e 80, quando o conceito de comunidade invadiu, literalmente, 0 discurso das ciéncias humanas e sociais, especialmente as priticas na rea da saGide mental. Nao ha ditvidas de que.a introducao deste conceito no corpo teérico da psicologia social constituiu um aspecto epistemolégico importante, na medida que representou a opco por uma teoria critica que interpreta o mundo com a intengao de transforméo (Heller, 1984:289). Entretanto, 35, comunidade tornouse conceito capaz de abarcar qualquer perspectiva de pritica profissional, contanto que realizada fora de consult6rios e instituicbes, permitindo seu uso demagégico no discurso politico neoliberal, para designar ‘© compromisso com 0 povo e a unio do povo', ou ainda no discurso dos que se arvoram de inventores da sociedade ou defensores da pureza étnica e cultural Hoje, comunidade aparece como a utopia do final do século para enfrentar 0 processo de globalizacio, conside- rado o grande vildo da vida em comum e solidaria, mas uma utopia reacionéria, saudosista, que, em vez de orientar ages voltadas ao futuro, remete ao passado, como uma espécie de lamento. Alig, se prestarmos atengdo, notaremos que toda uto- pia propde modelos de comunidade como arquétipo de situagdo ideal, que teria ocorrido nos primérdios da huma- nidade e que o homem perdeu. Um lugar cujos habitantes inclinam-se ao bem, naturalmente, portanto, onde se atinge a perfeic3o e néo hé o que mudar. Inclusive, na era das descobertas, 0 “novo mundo” foi padrao do imaginario ut6pico, como o lugar no contaminado pela civilizacao, sendo as comunidades indigenas 0 seu icone. Essa idéia desencadeou iniciativas de construgao de comunidades de carater ut6pico socialista, tanto no Brasil como nos EUA. Devido a diversidade de significado, e ao uso demago- gico da palavra comunidade, cujo trailer foi acima apresen- tado, é preciso refletir sobre esse conceito, nas suas miiltiplas significacdes e esclarecer 0 enfoque adotado sob pena de cometer falhas e interpretagdes falsas, especial- mente, hoje, quando a maioria dos profissionais da sade e das ciéncias humanas dizem estar trabalhando nas € com as comunidades. 41. Umchefe de narcotrfca do Rio de Janeiro em entrevista recente referise 205 Troradiores de um favela desta cidade como a "minha comunidade” 36 1. A comunidade na historia do pensamento social ‘A. O debate entre comunidade e individualismo ou a utopia que remete ao passado Comunidade tem presenca intermitente na historia das idéias. Ela aparece e desaparece das reflexes sobre 0 homem e sociedade em consonancia as especificidades do contexto histdrico e esse movimento explicita a dimensio politica do conceito, abjetivado no confronto entre valores Coletivistas e valores individualistas. A cada avango do individualismo, vé-se o florescer de utopias comunitérias e vice-versa, como aponta Nisbet (1973), 20 afirmar que o movimento de hostilidade intelec- tual & comunidade e seu substrato ético ocorrido no llumi- niismo foi decorréncia de sua associacio ao sistema feudal. (Os filésofos da llustracdo estavam empenhados na destrui- ‘co dos grupos e associagdes surgidas na Idade Média, para combater os resquicios de dominacao e exploracao do homem resultante de interdependéncias basicas do feudalismo, Contra a idéia de sociedade fundada na comu- nidade, defendiam a idéia de sociedade fundada no con- trato entre homens livres (nao homens membros de corporagées ou camponeses) que se vinculam, racionak mente, em modos especificos e limitados de associagbes. Esse movimento anticomunitério, assentado no desejo de destruir a urdem feudal injusta, foi reforgado pelas duas, revoluges, francesa e industrial, e encontrou apoio tam- bém entre os que recusavam a idéia de contrato e defen- diam a doutrina do egoismo racional e, conseqiientemente, do racionalismo econémico. Para todos esses, comunidade era 0 inimigo do progresso que se vislumbrava no final do século XVIll, representando a persisténcia das tradigoes @ serem vencidas, pois impedia o desenvolvimento econdmi- co e a reforma administrativa. Enfim, todas as forgas sociais 7 criticas uniramse na tarefa gigantesca de eliminar os des- trocos comunais legados pela Idade Média, que penetrou no século XIX. No entanto, esse mesmo perfodo assistiu a emergéncia de uma reacZo intelectual, iniciada pelo pensamento con- servador, de recuperaco da comunidade como medelo de boa sociedade, ameacado pelo individualismo e pe'o racio~ ralismo, valores propagados pelo lluminismo. Dessa forma, comunidade tornousse 0 centro co deba- te da modernidade nascente. De um lado, condenada como conservadora e antagOnica ao progresso. D2 outro, defendida pelos que tinham horror a modernizacio, como. simbolo de tudo de bom e que o progresso destruiu. Mas, em ambas as perspectivas, comunidade aparece como utopia que remete ao passado, com significado reacionario, cujo protétipo é a familia, encontrando sua expressao simbélica na religio, nacao, raga, profissio e nas cruzadas. Sua delimitagéo pode ser local ou global, pois 0 que importa é a comunhao de objetivos, a condigio de conti- nuacdo no tempo, 0 engajamento moral, a coesdo € a coercao social. Com 0 tempo, esses valores extrapolaram 0 ambito do pensamento conservador e, cada um a seu modo, foram sendo apresentados no pensamento politico ¢ filos6fico € até mesmo religioso do século XIX, em oposico aos valo- res das cidades modernas, Segundo Nisbet (1973) a nostalgia da comunidade ‘comunitéria é 0 sentimento inerente ao pensamento social do século XIX. Na religido, apareceu no bojo do movimento contra a pastoral individualista e-a teologia racionalista do século XVII (idéias de Lutero e Calvino) acusadas de afastarem 0 homem do cardter comunitario e cooperativo tracicionais. Essa corrente de pensamento atingiu os tedlogos dos paises ‘ocidentais, provocando um verdadeiro renascimento dos temas litargicos e candnicos 0 qual subsidiou, posterior- mente, 0 reavivamento das comunidades eclesiais de base, como no Brasil, nos anos 70. _Na filosofia, a idéia de comunidade apateceu.sob-0s mais variados aspectos, mas sempre.como-fundamento do ataque ao facionalismo utlitério, a0 individualismo, a0 industrialismo do laissez-faire e ao igualitarismo da Revolu- ‘Gio Francesa. Na obra de Hegel (Filosofia do direito), um dos pensadores mais proeminentes do século XIX, cuja filosofia dialética serviu de base ao marxismo, o Estado é uma “Communitas communitatum” e nao a agregacao de individuos pelo contrato como propunha o lluminismo. Sua visio de sociedade € concéntrica, formada por circulos interligados de associagdes como familia, comunidade lo- cal, classe social e Igreja, cada qual auténoma nos limites de sua abrangéncia funcional, cada uma delas considerada, fonte de afirmacao do individuo e, todos eles em conjunto,, reconhecidos como elemento formativo do verdadeiro Estado (Nisbet, 1973:55). Mas, foi na sociologia, ciéncia emergente no inicio do século XIX, que comunidade elevou-se a categoria analitica central do pensamento social, e se estabeleceu a antitese de ‘comunidade e sociedade, como expressio do contraste entre valores comunitirios e nao comunitérios, respectivamente. B. O debate entre comunidade e sociedade (Gemeins- chaft und Gesellschaft) Esse debate foi expressado na sociologia alema por Tonnies (1944), através dos termos Gemeinschaft e Gesells chaft, no final do século XIX, que criou uma estrutura tipologica da idéia de comunidade, onde sistematizou a nocao de comunidade esbogada no inicio do referido século, tanto pelos conservadores como pelos revolucion’- 39 rios, recolocando-a como critério de oposi¢o eritre mo- demizagio e tradico, apesar de afirmar que comunidade faz parte da sociedade. Gemeinschaft est baseado em trés eixos: 0 sangue, 0 lugare o espirito ou o parentesco, a vizinhanga e aamizade, respectivamente, sendo 0 sangue o seu elemento constitu- tivo e 0 trabalho e a crenca comuns, a sua base de cons- truco. Todos os sentimentos nobres como 0 amor, a lealdade, ahonra, a amizade so emocbes de Gemeinschaft sendo que na Gesellschaft no ha nada de positivo do ponto de vista moral. Nela os homens nao. esto vinculados, mas divididos. Ela aparece na atividade aquisitiva e na ciéncia racional e sua base é 0 mercado, a troca e 0 dinheiro. Em resumo, para Tonnies, comunidade nao é uma varidvel ou um espaco, mas uma realidade e a causa para outros fendmenos (Nisbet, 1973). Tal idéia permeia as reflexes sociologicas desde seus fundadores até hoje; associada a diferentes fendmenos e objetivada em diferentes oposigdes. Weber, consiclerado 0 socidlogo da aco social, em suas reflexdes sobre as rela- ‘cBes sociais solidarias (1917), distinguiu dois tipos que, segundo ele, recordam a classificacao feita por Tonnies, a comunitaria e a associativa, tendo como critério de distin- ‘Gao 0 processo de racionalizacao. Ambas podem ser fecha- das ou abertas em direcdo ao exterior e se combinarem de diferentes formas nas relacdes entre os homens. Comuna lizacdo refere-se a relacao baseada no sentimento subjetivo do pertencer, estar implicado na existéncia do outro, como a familia e grupos unidos pela camaradagem, vizinhanga e fraternidade religiosa. A relacdo pode ser afetiva (piedade, amizade) ou erética e amorosa; enfim, baseada em qual quer espécie de fundamentos, emocional ou tradicional. Sociagao é uma relago cuja atividade se funda sobre um 40 compromisso de interesse motivado racionalmente (em valor ou finalidade) e resultante de vontade ou opcao racionais, mais que na identificacao afetiva. Um outro socidlogo que trouxe importante contribui- do a0 conceito de comunidade foi Simmel, considerado (0 Freud da sociedade, por seus estudos das relacdes incons- Gentes da organizacdo social. Ele também denunciou a objetivagao crescente da cultura modema e a conseqiiente impessoalidade das relacdes a ponto de anular a totalidade da subjetividade humana, Esse contexto favorece o surgi- mento de um tipo de comunidade, que ele denominou sociedade secreta, criada para separar o individuo alienado da sociedade impessoal, ¢ darshe sentimento de pertenci- mento, portanto, lugar de identidade de valores associados 8 comunidade, alertando, porém, que essa sociedade se- creta pode tornar-se um fator de dissociacdo, mais do que de socializacio, e, aos olhos do govemo e da sociedade, um inimigo (Wolff, 1950 e Simmel, 1894). Comunidade como fenémeno empirico No inicio do século XX, presenciase na sociologia uma exploso de estudos sobre comunidades, configurando-a de um lado como espago empirico de pesquisa em contra- posicdo as situacSes laboratoriais dos experimentos, e de outro de estudos microssociais em contraposicao as an ses estruturais. Comunidade tornou-se referencial de anélise que per mite olhar-a-sociedade do ponto de vista do vivido, sem cait no psicologismo reducionista e pesquisar segundo procedimentos, até entao préprios da antropologia nos seus estudos sobre “comunidades indigenas", como a ob- servacio participante ou empirica e estudos de caso”. 2. Ver resumo desses etudos em Horkhelmer @ Adomo, 1973:151-171 4 D. Comunidade como utopia que remete ao futuro Marx difere de forma significativa das implicages va- lorativas tradicionais que sustentam o contraste entre co- munidade e sociedade. Sua concepcao dialética mate- rialista da sociedade situa historicamente 0 debate comu- nidade e sociedade no capitalismo, isto é, no centro da luta de classes. A sociedade, na teoria marxista, ndo € harmo- riiosa, mas coniflitiva, sendo que o harmonioso e o conflito no si0 determinados pela presenca ou auséncia de valo- res comunitérios, mas por problemas nas relacdes de pro- ducao. O individualismo, inimigo das relagdes comu- nitérias, € fruto do “fetiche” da mercadoria, do trabalho alienado e produtor de mais valia. No entanto, Marx também se rendeu ao comunitaris- mo, enquanto ética da vida social digna e justa. Mas sua idéia de comunidade no se refere 8 volta ao passado perdido, ou a recuperacao dos valores comunitérios em nivel local ou nacional para superar as agruras do individua- smo. Ele se afasta de modelos baseados no tradicionalismo € no localismo, pois acredita na vasta associacdo de nacdes na comunidade transnacional e encontra na classe trabalha- dora a estrutura para a redencao ética da humanidade, como demonstra o apelo que fez no Manifesto do partido comunista (1983:45): “Proletariado de todos os paises, uni:vos’. Il, Comunidade no corpo tedrico da psicologia Nao se encontram referencias explicitas sobre comuni- dade nas obras de psicologia social, até os anos 70, quando foi introduzida no corpo teérico-metodolégico da psicolo- gia comunitiria, conforme dito anteriormente. Mesmo nas reflexées sobre 0 “que mantém o homem em sociedade” e sobre “formacao da consciéncia”; temas 4a centrais do debate entre os pioneiros da psicologia, a ‘comunidade s6 aparece muito raramente para referirse as instancias intermediérias entre 0 homem e a sociedade ou como sindnimo de sociedade, e com diferentes conotacbes valorativas. Como exemplo, podesse citar os estudos sobre psicologia dos povos realizados por Wundt em 1904 onde comunidade aparece como sindnimo de interacao coletiva. Segundo ele, a psicologia popular consiste nos produtos mentais criados por uma comunidade humana, que no se reduzem a consciéncia individual, pois pressupdem acdes reciprocas de muitos individuos. Esse produto da interacéo Coletiva mantém unidos os membros de uma nacao (Wundt, 1926 e Bard, 1983). Freud também aponta o cardter homogeneizador da comunidade, ressaltando, porém, a sua dimensdo negativa € injusta de considerar todos os homens iguais em desejos e necessidades. Segundo ele, a natureza humana dificil mente se dobra a qualquer espécie de comunidade social viver em comunidade é “trocar uma parte de felicidade pessoal por uma parte de seguranca, através de mecanis- mos que facilitam essa mA troca” (Freud, 1976). Nem mesmo na psicologia social, ramo de psicologia criada no inicio do século XX, com o intuito de analisar a relacio homemysociedade, 0 conceito de comunidade aparece como central. Em lugar dele, grupo” e intera¢ao social tornaram-se dominantes nos estudos sobre os fend menos coletivos, especialmente na psicologia social norte- 3. palava grupo & uma expressfo ocasonal um lugar vazio que, segundo © Contexto de cada ocasfo, se enche de diferentes snficados (Serve pa {efinie qualquer po de relacio reciproca ent malplicdade de indvidvos, {qualquer vinculo entre seres humanos" (Adorno e Horkhelrer, 1973:61). “Quando micha ideatiicagzo e 0 grupo se encontam reciprocamente &m uma correlagzo organizacional essential e estive, nZotemos als Grupos, mas comunidade” (Helle: 1987) 43 americana, voltada aos problemas sociais provocados pela imigrac3o e pela Il Guerra Mundial, com o objetivo de promover a integracdo de grupos e individuos a sociedade americana, E nesse corpo teérico da psicologia que 0 conceito de comunidade foi introduzido como categoria analitica, acompanhando um movimento mais geral da época. Na década de 50, comunidade penetrou com muita forca nas iéncias sociais, aps ter sido recuperada na cena politica no bojo de idéias liberaispopulistas e corporativistas, ins- crevendo-se nas estratégias de modemnizagio do pés-guer- ra, ctiadas para enfrentar a Guerra Fria (Wanderley, 1990). Portanto, comunidade entrou na psicologia no seio de um corpo te6rico orientado pelo condutivismo e pelo método experimental, com o objetivo de integrar indivi- duos e grupos a partir da tranformacao de atitudes, inspira- do nos estudos psicossociais sobre grupo’. A diferenca entre comunidade e grupo era dada pelo simbolismo do primeiro como denotativo de legitimidade da praxis psicos- social com associagGes tao variadas como estado, sindicato e movimentos revolucionarios. Inicialmente, comunidade foi introduzida na area clini- a, visando humanizar 0 atendimento ao doente mental € se espalhou, através das politicas desenvolvimentistas pro- pagadas por organismos internacionais como OFA, CEPAL, BID, ONU e Alianga para 0 Progresso, especialmente nos pafses da América Latina. A intencao era educativa e preventiva, Trabalhava-se em comunidades com o objetivo de desenvolver potencialidades individuais, grupais e cole- 4.£m 1945, Skinner publicaw uma obra de fegS0, na qualapresentou como vveria ‘a prtica uma comunidade planejada segundo a teenologia do comport mento ofientada pelos pressupostos condutvstas = Walden Two ~ uma fociedade do fur. 44 tivas, para integrar a populagio aos programas oficiais de modernizac3o e para prevenir doencas. Suas primeiras experiéncias praticas estiveram associadas, portanto, a edu- cacao popular, a medicina psiquiatrica comunitaria e sem- pre sob a protecao e orientacao do Estado. Sua tese socio- logica central era a crenca na modernizacdo cultural © econémica, como via de progresso, através de reformas de base na agricultura, indistria e nos valores e atitudes da populaga Comunidade era entendida como unidade consensual, sujeito nico e homogéneo, lugar de gerenciamento de conflito e de mudancas de atitude. Sua prética visava a unio de esforgos entre povo e autoridade governamental para melhorar as condic&es de vida de comunidades e, através delas, integrar a sociedade nacional, construindo a prosperidade do pats. E sua delimitacao era espacial/geo- grafica. Os psicélogos que trabalhavam em comunidades pas- saram a se inspirar nas teorias psicolégicas que mais con- templavam o social na anélise da subjetividade, tanto de tradi¢do psicanalitica quanto institucional e sociométrica. Os autores que mais se destacaram foram Kurt Lewin, Goffman, Reich, Moffart e Bleger e um pouco mais tarde Moscovici e pensadores da fenomenologia. Nesse periodo, 0 corpo teérico da psicologia comuni- téria apresentou avangos positives na medida em que comecou a superar a cisdo entre subjetividade e objetivi dade, mas nao alterou sua intencionalidade pratica que continuava voltada a integrago social mais que & exclusdo. A tomada de consciéncia da necessidade de rever criticamente a intencionalidade e o destinatario da teoria se consolidou apenas no final da década de 70, com o dominio da matriz marxista, quando a psicologia comuni- tiria se apresentou como drea de conhecimento cientifico 45 no elitista, a servico do povo, para superar a exploracdo.e a dominacao. O psicélogo, que na fase anterior se confundia com 0 educador social, com o assistente social e com o clinico fora do consult6rio, agora se tornou “militante” com o objetivo de promover a passagem da consciéncia de classe em sia consciéncia de classe para si, favorecendo a“toma- da de consciéncia” (expresso fundamental da psicologia comunitéria) da exploracao e da alienacao e a organizacao, da populacao em movimentos de resisténcia e de reivind- cacao. Nesse contexio, comunidade passou a ser entendida ‘como lugar que rene pares da classe trabalhadora, consi- derada o agente social capaz de realizar a intencionalidade pratica da teoria critica, sto 6, a negacdo da excluso no capitalismo mantida pela exploracao da mais-valia e pela alienagao do homem do produto de seu trabalho. ‘Apesar das diferencas essenciais, as duas vertentes se aproximaram na medida que incorporaram as caracteristi- ccas apresentadas nas reflexdes classicas, tanto filos6ficas quanto sociol6gicas sobre comunidade, quais sejam, aco, conjunta, rede de sociabilidade baseada na cooperacdo solidariedade, homogeneizacao de interesses em torno de necessidades coletivas, lugar de sentimentos nobres nao. individualistas como lealdade, amizade e honra, e espaco geografico-empirico de acdo e pesquisa. Por outro lado, ambas as concepgGes afastaram-se dos estudos classicos ‘20 concordarem que a comunidade & célula de sociedade, capaz de irradiar mudancas e nao erradicar mudancas. ‘Mudanca social 6 0 ponto que marca a profunda dife- renga entre essas duas vertentes da psicologia comunitéria, do ponto de vista epistemolégico, politico e ideoldgico. Na psicologia comunitaria norte-americana a concep¢ao de mudanga esté acoplada & modernizacao dos setores atra- sados e pobres, visando sua adaptacao ao capitalismo avancado e na psicologia comunitiria latino-americana, a mudanga concebida como transformacao de uma socie- dade exploradora e portanto como revolucao socialista ou cidada. Essa Giltima vertente promoveu grandes transformagées no corpo te6rico-metodoldgico da psicologia social e cola- borou com o avanco organizacional/politico da populacao, mas ndo conseguiu libertéla de mistificagdes do conceito € de sua reducao 20 “um. A homogeneizacao e imobilis- mo continuaram presentes nas reflexes sobre comunida- de, reapresentando-a como o lugar onde nao existe o mal, a injustica, como o parafso na terra e, portanto, estagnado. Hoje, a reflexdo sobre comunidade em psicologia en- contrase em situacdo privilegiada. A grande producao de pesquisas, relat6rios de praticas e reflexes tedricas, gestadas ‘nos anos 70 e 80, permite uma avaliacdo responsdvel, 8 luz das questdes éticas postas pela modernidade contemporanea @ até entdo preteridas pelo atrelamento dos estudos de comunidade 20 confronto exclusivo entre modemizacéo versus revolucao e integracao versus conflto, A sociedade assolada pelo processo de globalizacao, de um lado presencia a queda de todas as fronteiras tradi ionais que separavam homens e nagdes, cujo exemplo mais fantastico é a rede internet de informatica que acena com a comunidade virtual. Por outro, assiste atdnita & emergéncia de novas/velhas formas de diferenciagdo segregacao, o que coloca a alteridade e identidade como figuras proeminentes da vida social digna, obrigando os estudos de comunidade a retornarem a sua génese, para recuperar seu substrato ético-simbélico, como categoria de integraco, mas também de autonomia, que é definida por Heller de forma admiravel: “comunidade é sistema de relacdo que remete ao mais alto grau de desenvolvimento de generecidade” (Heller, 1987). a7 Segundo ela, o predicado comunitério contém valores especificos que permitem o amadurecimento e desenvolvi- ‘mento das potencialidades humanas nos espacos particulares do cotidiano, portanto, no antagonico A individualidade. Nessa concepgao, a comunidade rompe coma dicoto- mia cléssica entre coletividade e individualidade, ser hurna- no genérico e ser humano particular, apresentandose ‘como espaco privilegiado da passagem da universalidade ética humana a singularidade do gozo individual. Um mo- vimento de recriac¢do permanente da existéncia coletiva, fluir de experincias sociais vividas como realidade do eu e partilhadas intersubjetivamente, capaz de subsidiar for- mas coletivas de luta pela libertagao de cada um e pela igualdade de todos. Portanto, se comunidade contém individualidade, nio pode ser trabalhada como unidade consensual, sujeito Gnico. $6 a aco conjunta nao a caracteriza, ao contrario, a homogeneizacao pode negéla, pois ela deve oferecer um espaco total de atitudes particulares. Isso no significa abrir mao de idéias comuns, mas do corisenso fechado e conse- guido as custas da ditadura das necessidades (Heller:1992), incentivando 0 exercicio da comunicagao livre, onde todos Participam com igual poder e competéncia argumentativa no processo de ressignificacao da vida social. ‘Todos os membros de relacdo devem ter legitimidade para se fazer ouvir e a capacidade argumentativa para participar da constru¢ao do consenso democratico®, para que uns no se alienem no outro, considerado o dono do saber, lembrando que capacidade argumentativa nao é mera aquisi¢go de vocabulério e treino de ret6rica discur siva para convencer 0 outro. Ela é a capacidade de defender 5. Reflexes inspiradas nas dia de Habermas (1985 e 1987) e Carone (1994) 48 suas prOprias necessidades respeitando a dos outros, isto 6, habilidade de, através da linguagem, lidar com a realida- de do desejo préprio e do outro, construindo um nds. Portanto, é exercicio de sensacao e de reflexao, para que © sujeito sinta-se legitimado, enquanto membro do proces- so dialogico-democratico. (Os valores comunitérios devem ser interiorizados como projeto individual para se transformar em aco. Devem ser pensados e sentidos como necessidade. A expresso to cara a pratica comunitéria nos anos 70 - conscientizacao = deve ser ampliada para abarcar nao s6 a “tomada de consciéncia”, como também a“tomada da inconsciéncia, pois ninguém é motivado por interesses coletivos abstratos e nao se pode exigir que 0 homem abandone a esfera pessoal da busca da felicidade, pois bem-estar coletivo e prazer individual nao so dicot6micos e 0 consenso demo- cratico nao & conquistado necessariamente a custa do sacrificio pessoal. Marcuse, nos anos 60, jé destacava a dimenséo estéti- co-erética indispensavel a existéncia humana, criticando a paz do cemitério que caracterizava todo projeto utdpico ‘comunitirio, sob pena de se defender um modo de vida esmagador apesar de tranqiiilo, materialmente (1975). ‘Aqui cabe um alerta sobre o perigo de se priorizar esta dimensao em detrimento da politica econdmica, em um pais onde a maioria da populacao é excluida dos direitos sociais. Claro que urgem aces voltadas a garantia das condices de sobrevivencia com dignidade. O que se quer afirmar 6 que abrir mao da dimensao ético/estética é cair na préxis reducionista que considera o povo uma massa disforme, que responde em unissono aos apelos materiais, atribuindo apenas a burguesia as sutilezas psicol6gicas. 6. Expresso usada por Roi (1994). 49 IL, Consideracées finais A presente reflexdo no pretendeu apresentar comuni- dade como um conceito plenamente elaborado e fechado, © que significaria retirar 0 carater s6cio-politico e ut6pico que a caracteriza, transformando-a em conceito vazio abstrato. O que se quis ressaltar 6 que comunidade, mais do que uma categoria cientifico-analitica, é categoria orientadora da acdo e da reflexio e seu contetido é extremamente sensivel ao contexto social em que se insere, pois esti associada ao debate milenar sobre excluso social e ética do bem viver. Nisbet (1974:48) balizou de forma admirdvel todas as idéias até aqui apresentadas como fundamentais 3 comu- nidade: “Comunidade abrange todas as formas de relaciona- mento caracterizado por um grau elevado de intimidade pessoal, profundeza emocional, engajamento moral (..) € continuado no tempo. Ela encontra seu fundamento no homem visto em’sua totalidade e ndo neste ou naquele papel que possa desempenhar na ordem social. Sua forca psicol6gica deriva duma motivacdo profunda e realiza-se na fusdo das vontades individuais, o que seria impossivel numa unio que se fundasse na mera conveniéncia ou em elementos de racionalidade. A comunidade € a fusi0 do sentimento e do pensamento, da tradico e da ligacio intencional, da participacao e da volico". O elemento que Ihe da vida e movimento é a dialética da individualidade da coletividade. A relagio face a face e 0 espago geogratico nao séo fundamentais na configura¢ao da comunidade, mas sio sua base cotidiana de objetivacdo, conforme aponta Heller 50 (1987). “A generecidade humana - a humanidade realiza-se em forma concreta de vida, em célula de base" Nessa perspectiva, comunidade apresentase como di- menso temporal/espacial da cidadania, na era da globali- za¢o, portanto, espacos relacionais de objetivacao da Sociedade democratica (plural e igualitaria). A psicologia social a0 qualificarse de comunitéria, hoje, explicita 0 objetivo de colaborar coma criagio desses, espacos relacionais, que vinculam os individuos a terrt6rios fisicos ou simbélicos e a temporalidades partilhadas num mundo assolado pela ética do “levar vantagem em tudo” € do “6 dando que se recebe”. Esses espacos comunitérios se alimentam de fontes que langam a outras comunidades e buscam na interlocugao da fronteira o sentido mais profundo da dignidade humana. 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