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LIGOES DE DIREITO PENAL Era do seguinte teor 0 art. 38.° e § tinico do Cédigo Penal de 1886: «Dé-se @ acumulagao de crimes, quando o agente comete mais de tum crime na mesma ocasio, ou quando, tendo perpetrado um, co- mete outro antes de ter sido condenado pelo anterior, por sentengs passada em julgado.» § tinico — «Quando 0 mesmo facto ¢ previsto e punido em duas ou mais disposigbes legais, coma constituindo crimes diversos, nfo se dé acumulagao de crimes.» O corpo do artigo, praticamente, formula a distinglo entre o ins- tituto do concurso de crimes e a reincidéncia, (© § dinico tem muito maior alcance, porquanto exclui, nos seus efeitos, a aplicagio do sistema de punigto do concurso real quando (0 concurso seja concurso ideal, e aponta para a distriglo entre con- curso ideal de crimes ¢ concurso aparente. Por outro lado, ainda deixa subsistir a divida quanto @ perma- néncia de urna regra geral de unificagto jurfdica de varios crimes em ‘concurso ideal quando se trate de um concurso ideal de crimes ho- mogéneos. [Na verdade, a0 definir 0 concurso ideal, Levi Maria Jordio pres- supde «diferentes» violagdes da lei penal, o que pode suscitar a di- vida de saber se 0 concurso ideal se verifica quando 0 mesmo facto Viola por mais de uma vez x mesma dsposigfo legal. E esta divide podia igualmente surgir no Cédigo Penal de 1886, pois que, de igual modo, ao definir 0 concurso ideal no § tinico do art. 38. se refere a0 «mesmo facto previsto e punido em duas ou mais disposi- ‘qbes legais». Tomado 2 letra, 0 concurso ideal s6 abrangeria 0 con- ‘curso ideal heterogéneo, em que se verifica a violaglo de diferentes (e ndo da mesma) disposigdes legais. Nio foi essa a interpretaglo que demos* ao § nico do art. 38.°, pois que o dito pardgrafo unificava a pluralidade de violagdes em razio da unidade do facto, mas a questdo tem interesse para admitir 1 unificagto juridica de crimes, a0 lado da unificagto juridica dos crimes conexos, que 0 art. 43.° do projecto de Levi Maria Jordi0 previa. * Dis. Pen, Port, WH, 0° 306 © segs., pis. 199-202. 524 ‘THORIA DO CRIME ‘Tem agora interesse levantar, nfo o problema da interpretago do ‘Codigo Penal de 1886, mas o problema da homogencidade dos cri- ‘mes cometidos em concurso ideal ou real no novo Cédigo Penal, como adiante se did, 204. © concurso de crimes e 0 concurso de penas Importa distinguir 0 concurso de crimes e 0 concurso de penas. Do ponta de vista legislativo, aliés, a disting#o € clara, pois que 0 concurso de crimes consta do art. 30.° que pertence 20 Titulo 1 (Do Facto) e 0 concurso de penas vem regulado no Titulo HIT (Das Penas), no seu Capftulo II, arts. 78.° ¢ 79.°; de idéntico modo pro- cedia 0 Cédigo Penal de 1886 (art. 38.° ¢ § Unico, e art. 102.°). Lo- gicamente, poderd tratar-se agora somente do concurso de crimes deixando 0 concurso de penas para lugar correspondente a0 que the confere a lei; foi essa a orientaglo seguida em Direito Penal Portu- ‘gués — II, Nao obstante, tratando-se de nova legislago que altera Profundamente o direito anterior, poderia ser wtil, para a sua inter- Pretaglo, ndo cindir as duas matérias, para obter um mais seguro entendimento do regime legal; ¢, contudo, faremos essa tist0, se~ guindo 0 Cédigo, pois que nfo se mostra aconselhével 0 estudo do concurso de penas sem obter nodes precisas sobre o sistema das penas. No concurso de crimes, costumam distinguir-se 0 concurso real, © concurso ideal ¢ © concurso aparente de crimes. © concurso aparente de crimes constitui uma delimitago negati- va do préprio concurso; é aparente porque, efectivamente, nio hé concurso de crimes ¢ é, em geral, tratado como concurso de nor- ‘mas, no qual s¢ fundamenta a exclusio de qualquer espécie de con- curso de crimes. Quedam assim duas formas de concurso de crimes: 0 concurso eal e © concurso ideal, consoante a unidade ou pluralidade de cri ‘mes corresporida a uma pluralidade de factos qualificdveis como cri- ‘mes ou a0 mesmo facto qualificével como crime por normas incri- minadoras que concorram sume sua qualificagio plirima, As legislag6es ¢ a doutrina dividem-se quanto ao tratamento uni- tério ow diverso do concurso real € do concurso ideal. 525 LICOES DE DIREITO PENAL, Em todo 0 caso, predomina largamente a opinigo de que 0 con. curso ideal no € nunca um concurso aparente, isto é a phirima qualificagto do mesmo facto como crime acarreta consequéncias na determinagao da pena aplicdvel diversas das que tém lugar no con- curso aparente que é um s6 crime, A questo primordial passa a ser a de saber se as consequéncias juridicas do concurso ideal deverto ser idénticas &s do concurso real, jé que, e sempre, a penalidade do concurso de crimes implica na sua formacto, de certo modo, um concurso de penas. Efectivamente, se 0 crime Gnico tem como consequéncia a aplicas fo da penalidade que a norma incriminadore estabelece, no con+ curso ideal de crimes hd que tomar em consideragdo a pluralidade ddas penas previstas nas normas incriminadoras aplicaveis. E, assim, quer quanto ao concurso real, quer quanto ao concurso ideal, se podem seguir ou o sistema de absorgao de todos as penas pela penalidade mais grave, embora agravada, ou um sistema de’ cximulo juridico das penas, baseado na formagio de uma inica pe- nalidade pela combinagio nesta de clementos provindo das diversas penalidades aplicveis; ou ainda se tomam em atengo as penas efec- tivamente aplicéveis a cada crime concorrente, somando-as em um. cémulo material de penas, ou criando uma pena total, que consiste em um cimulo juridico, fixado legislativamente, dessas penas. E evidente que os diversos critérios, quanto a0 concurso de pe- nas, ho-de reflectir a apreciagdo legislativa sobre a maior ow menor gravidade das espécies de concursa de crimes. © Cédigo Penal anterior considerava menos grave 0 concurso ideal em relagdo ao concurso real: 0 actual Cédigo equipara-os teiramente, e por isso ¢ 0 mesmo o regime jurfdico do concurso de penas, A diferente gravidade da pluralidade de crimes surge, entio, no confronto entre as penalidades do concurso de crimes (real ou ideal) © a reincidéncia, ¢ ainda entre 0 concurso de crimes e 0 crime conti- nuado ou quaisquer modalidades de unificagto juridica de crimes, sendo sempre de ponderar a justificagao racional da maior ou me- nor gravidade de cada um destes institutos jurfdicos. A dificuldade para obter solugdes que ndo sejam contradit6rias enorme, ainda agravada pelas implicagoes que problemas de ordem 526 ‘TEORIA DO CRIME pritica, sobretudo processual, tém tido sempre e continuam a ter na regulamentagio dos referidos institutos. 205. Concurso de normas (concurso aparente de crimes) © ne 1 do art. 30° do Cédigo Penal, em definigio demasiada- mente tecnicizada, considera equivalentes 0 concurso real ¢ 0 con- ‘curso ideal ou, ainda mais incisivamente, desdenha a propria separa- ‘glo entre as duas formas de concurso numa definigo que a ambas abrange. Haver concurso de crimes se um s6 facto ou varios factos forem qualificéveis como crimes por diferentes normas incriminadoras (Concurso heterogéneo) ou se um ou varios factos forem qualifica- dos plurimamente como crimes pela mesma norma incriminadora (Concurso homogéneo). ‘Antes de analisar o texto legal, quanto ao seu contetido, importa fazer a sua delimitagao negativa, A esséncia do concurso esté na pluralidade de violagdes da lei penal, ou pluralidade de qualificagdes pela lei do facto ou factos cometidos pelo agente. E por isso se re- vela fundamental comprovar a pluralidade de quatificagbes pela lei penal. E esse é um problema que tem sido tratado pela doutrina como concurso de normas. ‘A nomenclatura nesta matéria € algo equivoca, como a sua colo- cagto sistemdtica € discutivel. ‘A locuglo concurto de normas vern designando, em direito penal, © problems da limitagdo da aplicabilidade de uma norma que scja consequéncia da aplicabilidade de outra norma ao mesmo objecto. Nao € uma questo de interpretagto. As normas integram-se num sistema — subordinando-se umas s outras, sobrepondo-se, limi lando-se reciprocamente. Antes de proceder & aplicaclo da Ici, hi que determinar a norma ou normas aplicéveis a0 caso concreto. E esta determinacio nao se faz. apenas em fungdo do tempo, do lugar ou das pessoas, mas também do proprio objecto das normas, relati- vamente 2 situago de facto que a norma prevé, na medida em que Sobre a mesma situagao de facto possa convergir outra norma, sar LIGOES DE DIREITO PENAL © concurso de normas no 6, também, uma questio privativa do direito penal, pois que pertence a teoria geral do Direito: © termo que 0 designa € equivoco quando se atente na matéria que abrange, mas, porque a terminologia é a geralmente adoptada, conturbar-se- ia o seu entendimento sugerindo outra. (© concurso pode verificar-se entre normas incriminadoras ou en- tre normas que prevéem diversas causas de justificagao ou de excul- ayo, entre circunstancias acidentais, agravantes ou atenuantes, Mas foi sobretudo gizado e tem 0 seu mais importante campo de aplicagao, em direito penal, no concurso de normas incriminadoras, ©, por isso, na matéria respeitante & unidade ou pluralidade de cri- mes. Contudo, a teoria interessa a todo 0 direito porque diz respeito & aplicabilidade das normas aos casos concretos, pois que no seu sen- tido mais completo abrange a convergéncia de normas juridicas so- ‘bre uma situacdo de facto ¢ procura dar a solugao sobre a aplicabili- dade das normas convergentes, quer no sentido de exclusto de aplicabilidade de uma das normas, quer no sentido de aplicabilidade conjunta das normas convergentes. E, assim, a convergtncia de normas sobre 0 mesmo objecto pode ser real ou aparente consoante se conclua pela aplicabilidade con- junta das normas convergentes, ou por uma aparente convergéncia, de modo que uma norma delimite 0 campo de aplicagao da outra norma. A expressio convergéncia de normas é de maior ambito do que a de concurso de normas, embora sejam em geral tomadas no mesmo sentido; 6 que a convergéncia de normas pode referir-se a nornas antitéticas — ¢ € entio verdadeiramente um conflito de normas —, ou a normas com aptidao para produzir efeitos da mesma natureza relativamente & mesma situagio de facto € que, por isso, no con- vergem em conflito, € antes concorrem sobre 0 mesmo facto. E somente esta hip6tese de convergéncia de normas na espécie de concurso de normas em sentido proprio que interessa a delimitagio do concurso de crimes. Este concurso de normas, enquanto consi derado em abstracto, pode conduzir a duas solugOes diferentes: ou 2 aplicabitidade simultinea das normas em concurso & mesma rea dade de facto (concurso real de normas); ou a exclusto da aplicabi 528 lidade de uma norma por outra norma concorrente, que prevalece sobre a primeira (concurso aparente de normas, a que corresponde © concurso aparente de crimes), © ne 1 do art, 30.° s6 de maneira indirecta, adverbialmente ex- Pressa, indica a exclusio da pluralidaade de crimes no caso de con- curso de normas (ou «tipos de crime»), Essa indicagto consta da primeira parte do citado n.° 1, que se refere ao concurso heterogé- nieo de crimes, isto é, & violagto de diferentes normas incriminado- ras, quando exige que essa viola¢do plirima se tenha «efectivamen- te» verificado. Nao contém o Cédigo Penal quaisquer directrizes sobre a inapli cabilidade de uma das normas convergentes sobre a mesma realida- de de facto ¢ sobre a aplicabilidade de outra norma convergente que sobre a primeira prevalece ¢ a exclui. Remete para a doutrina a dis- cussio ¢ apresentaco dos critérios necessérios, tanto mais necessé- ios quanto maior é a diversidade de efeitos. E se, no dominio do Cédigo de 1852 ¢ do Cédigo anterior, o concurso aparente de cri Imes estava préximo do concurso ideal, quanto aos efeitos, é inteira- mente diversa a situago perante o Cédigo Penal de 1982, que equi- Para os concursos real e ideal. Seguindo a doutrina mais comum’, 0 concurso de normas (con- ccurso aparente de crimes) verificar-se-4 quando entre as normas Concorrentes haja uma relagio de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpeéo. Em todos estes casos, terd lugar a prevaléncia de uma norma in- criminadora sobre outra formal e aparentemente aplicével, e que, or isso, € exclufda pela primeira, Para que tal acontega, ¢ preciso que a matéria de facto seja total- mente valorada pelas duas normas convergentes, e de modo que seja incompativel a valoragao conjunta de ambas as normas, prevalecen- do uma s6 qualificagio com exclusto da outra: sobre a matéria de facto abrangida por ambas as normas s6 poder recair uma qualifi- ‘ago juridico-penal, uma incriminagio, a incriminagio da norma prevalente, Em Di. Pen. Port, 1, vin 72 segs. 529 LLIGOES DE DIRETTO PENAL Esta situago tem lugar em trés hip6teses, a que correspondem os critérios de definiga0 de prevaléncia de normas, que se designam por especialidade, subsidiariedade ¢ consumpcdo. 8) No primeiro caso, hé uma relagio de especialidade entre as normas convergentes: toda a matéria de facto subsumfvel & norma especial cabe inteiramente no Ambito mais vasto da norma geral, re- Jativamente & qual a primeira € norma especial, Graficamente ¢ para melhor compreensio, os campos de aplica- c4o da norma geral e da norma especial correspondem a duas cir- cunferéncias concéntricas das quais a menor representa 0 campo de aplicagio da norma especial, inteiramente compreendido no campo de aplicagao da norma geral (figura n.° 1), Figura a As regras gerais de interpretagio das leis, constantes do Cédigo Civil, regulam expressamente os efeitos da relagio de especialidade entre normas: a norma especial prevalece sobre a norma geral © afasta inteiramente 1 aplicagio desta. A lei especial derrota a lei ge- ral 5) O crédito de subsidiariedade corresponde aqueles casos em que 0 campo de aplicagdo de cada uma das normas concorrentes in- terfere com 0 campo de aplicagéo de outra norma de tal modo que pode verificar-se a aplicagio formal de ambas as normas a alguns factos que cabem, conjuntamente, no ambito das normas concor- rentes. Graficamente, pode representar-se a subsidiariedade com a figura (n2 2) de duas circunferéncias secantes. 530 TORIA DO CRIME Figura n° 2 Quando, por exemplo, alguém cometer o crime de roubo, wtili- zando violéncia contra uma pessoa (Cédigo Penal, art. 306.*), a vio- léncia, que constitui 0 modo de realizagio do roubo, pode em si mesma constituir umn crime de ofensas corporais; estas so, a0 mes- ‘mo tempo, elemento essencial do facto ilfcito no crime de roubo incriminacio em si mesma como crime contra a integridade fisica, ‘Uma das normas integra 0 facto comum a ambas como modo de execugdo do roubo; € a outra pune-o autonomamente como ofensas ‘corporais. Nilo se trata de uma relagio de especialidade entre as normas, ‘mas de uma relagao de interfer8ncia, Todavia jé se verifica uma rela- sH0 de especialidade reciproca na aplicago a0 caso concreto. Quer dizer, as duas normas incriminadoras n4o podem, no caso concreto, ser aplicadas conjuntamente, Porque isso equivaleria a violar 0 principio do non bis in idem, de natureza substantiva: equi- valeria a uma dupla valoragio da mesma realidade de facto, ora co- mo elemento essencial do crime de roubo, ora como crime de rou- bo, ora como crime de ofensas corporais. Ora, se valoragio como meio utilizado de execuco do crime de roubo esgotar, no caso con- creto, a sua apreciagllo jurfdica, haverd somente um crime de roubo; € Se exceder a violencia a que deve atender-se No caso concreto, co- mo meio de realizaclo do crime de roubo, haverd um crime de rou- ‘bo e um crime de ofensas corporais, unificado por forga do n.° 4 do art, 306.° Se a violéncia revestir a forma de homicidio, j4 se verifica- 4 um concurso de crimes, porque, excedendo-se os limites da lencia prevista como meio (violento) de execugdo do crime de rou- bo, 0 art, 306.” nfo unifica juridicamente os dois crimes. critério de subsidiariedade 6, assim, ainda uma forma de espe- cialidade. Como especialidade recfproca 0 considera parte da dou- 531 LiIGOES DE DIREITO PENAL trina, A relagto de especialidade entre normas respeita a interpreta- glo das leis. Mas pode considerar-se nfo abstractamente ¢ na interpretaco das leis, mas concretamente quanto & aplicabitidade das normas a um caso concreto. E este 0 sentido mais profundo de subsidiariedade; constitui uma relagto de especialidade recfproca s6 verificdvel na aplicago das leis a0 caso concreto. Deste modo, é um mesmo prinefpio que determina a rarto de ser ¢ fundamento de exclusto de uma norma, mediante 0 reconheci- mento da prevaléncia de outra. E 0 critério de especialidade o crité- rio decisivo, quer na relacionago das normas entre si, na «interpre- tagto» da lei, quer na prevaléncia de uma norma sobre outra, quando haja interferéncia de normas, mas que s6 é verificével pe- Tante 0 caso concreto, na «aplicagio» das normas, ©) © critério de consumpyao teré a sua aplicagdo quando as nor- ‘mas concorrentes tenham, quanto a realidade de facto que incrimi- nam, campo de aplicagdo inteiramente diverso. So, quanto a0 res- Pectivo campo de aplicagio, normas que se encontram emt relagio de total independéncia, Pode figurar-se 0 campo de aplicaglo das normas concorrentes com duas circunferéncias que se nfo tocam (figura n° 3). Tal como no critério de subsidiariedade, 0 afastamento da aplica- bilidade da norma consumpta s6 pode averiguar-se em concreto; no respeita 4 interpretaglo, mas & aplicagto das normas no caso conereto. A consumpeao verifica-se, fundamentalmente, nos casos que @ doutrina qualificou de antefacto, ou pés-facto, ou facto concomi tante, no puniveis. Os facto anterior, concomitante ou posterior ode, por forga da lei, ser integrado no facto a que se reposta, como Figura n° 532 THORIA DO CRIME ‘modalidade de um seu elemento constitutivo, ou como circunstin- cia acidental, modificativa da penalidade. Assim sucede quanto 20s actos preparatérios, que a prética de factos ulteriores do iter crimi- nis — execugio ou consumagio — leva a que sejam por estes con- sumptos, ou factos posteriores, de aproveitamento do produto do crime, como a destruicdo, venda ou consumo dos objectos furtados pelo agente do furto, visto que # perda do objecto do furto j4 foi considerada como dano juridico no proprio furto; € 0 mesmo suce- de com actos concomitantes, quais sejam a danificagio do vestuério em caso de ferimentos sangrentos ou de perfuraco por arma branca, ou de fogo. ‘A plirima incriminagdo corresponderd ainda & violago do prinei- pio do non bis in idem. E, essencialmente, a consumpgao vem também a enquadrar-se no princfpio da especialidade, entendido num sentido mais amplo. Se a considerarmos em sentido estrito, a especialidade concerne & inter- Pretaglo das normas em abstracto; ¢ se, no critério de subsidiarie- dade, se trata de verificar a especialidade na aplicabilidade das nor- mas no caso concreto, no critério que se denomina como consumpglo trata-se de verificar ainda a especialidade duma norma relativamente a outra num caso concreto, mas essa especialidade s6 se infere duma relagio de hierarquia, que assenta na absorgto do in- teresse juridico tutelado por uma norma pelo interesse jurfdico tute- lado por outra norma, quando # violagdo deste interesse, em boa hermengutica e em consondncia com o espirito das leis, abrange no seu conteddo 0 desvalor da violago do interesse tutelado pela outra norma. ‘Termindmos a delimitagdo negativa do concurso de crimes, que 0 1. I do art. 30.° aponta, a0 exigir a «efectivar violagio de vérias normas incriminadoras para que subsista 0 concurso. Nao hé, pois concurso de crimes quando se verifique um concur- so (aparente) de normas. E 0s critérios para definigo do concurso de normas ou se buscam logo no momento da interpretaglo das rnormas (especialidade) e, por conseguinte, em abstracto, ou se bus- ‘cam, com referéncia 40 caso concreto, no momento da aplicagto das ormas, ¢ tanto podem ter lugar quando as normas sto interferentes 533, LIGOES DE DIREITO PENAL (critério de subsidiariedade) — verificando qual é a norma que pre- valece, como especial, no caso concreto —, como quando sfo inde- pendentes (critério de consumpgio), se os factos materialmente au- ténomos infringem interesses jurfdicos penalmente tutelados cuja tutela jé se inclui na tutela omnicompreeensiva da outra norma con- corrente. 206. Concurso de crimes (concurso real e concurso ideals concurso heterogéneo e concurso homogéneo) On? 1 do art, 30.° ndo atentz na unidade ou pluralidade de fac- tos (condutas) para definir 0 concurso de crimes. Quer seja um fac- to ou vérios factos que infrigem plirimas vezes normas incrimina- doras, hé concurso de crimes. Ou, dito singelamente, hé concurso de crimes desde que 0 agente cometa mais do que um crime, quer mediante 0 mesmo facto, quer mediante vérios factos. ‘Com a definicdo legal, obnubila-se a distingo entre concurso real € concurso ideal, como desnecesséria ou irrelevante, Pelo contrério, 0 n.° 1 do art, 30.° alude expressamente & distin- edo entre concurs homogéneo e concurso heterogéneo de crimes, quando, na sua primeira parte, refere a pluralidade de tipos de cri- me efectivamente cometidos, isto 6 a perpetragdo de crimes de di- versa espécie (concurso heterogéneo) e, na sua segunda parte, refere 4 pluralidade de vezes que € cometida uma pluralidade de crimes da mesma espécie («0 mesmo tipo de crime), isto & o concurso ho- mogéneo de crimes. A distingao entre concurso real e concurso ideal, entre concurso homogéneo e concurso heterogéneo, entre concurso de crimes € reincidéncia, entre concurso de crimes ¢ crime continuado e entre cconcurso de crimes conexos ¢ unificaglo da pluratidade de crimes em um 6 crime, constitui um problema dogmético extremamente complicado, em todas as hipsteses, porque os conceitos juridicos apontaclos se extremam entre si em razAo das diferentes consequén- cias juridicas que se thes seguem, ou se pretende que Ihes sigam, (Os esforgos da dogmitica propendem para marcar a delimitagio dos diferentes conceitos a que 0 direito positivo atribui consequén- cias jurfdicas diversas. 534 De lege ferenda, de um ponto de vista de politica criminal, pro- cura-se dar a razao ou o fundamento da justificagao ou nao justifi- cagdo de diferentes consequéncias juridicas das diversas categorias indicadas. Por isso também, a maioria das legislagbes se ocupa do concurso de crimes a propésito da aplicagio das penas. Independentemente da diversidade das consequéncias penais, as diversas espécies ou for- ‘mas de concurso assinaladas constituiriam somente uma enunciagto descritiva, Assim o entendeu 0 Cédigo Penal de 1982, quanto & distingto entre concurso real e ideal, mas sem cabal justificagfo, por isso que a distingdo ressurge nos arts. 78.° € 79.°, quanto a algumas conse- quéncias juridicas, pelo menos de cardcter processual, se nfo tam- bém de carécter substantiva (arts. 79.°, 83.° ¢ 84.°). Importa assinafar que € precisamente na equiparacto ou diversa valia das formas ou espécies de concurso que assenta a sua distin- so. E para esclarecimento se referem de seguida, com a distingt0 entre concurso real ¢ ideal ¢ entre concurso homogénco ¢ hetcrogé- reo, as consequéncias que, em direito comparado ou na evolugo da legislagdo patria, thes tém sido atribufdas. a) Equiparagdo do concurso real e do concurto ideal ‘A equiparagio das suas formas de concurso aparece, nas legisla- ges, sob duas formas opostas. Ou 0 concurso — quer real, quer ideal — implica sempre aplicagio de pena correspondiente ao crime mais grave, ou, nas duas formas de concurso, as penas de cada cri- me devem somar-se ou cumular-se materialmente. ‘A primeira alternativa foi seguida, por exemplo, pelo Cédigo Pe- nal frances e dele passou para o Codigo penal portugues de 1852; a segunda alternativa foi seguida pelos Cédigos Penais brasileiros de 1830 ¢ 1890, A unificagto juridica de varios crimes é utilizada, quando se siga a primeira orientagio, como meio de agravar a res- Ponsabilidade penal que caberia ao concurso de crimes ¢ € utilizada ara o fim oposto — ¢ de minorizar a responsabilidade penal, no confronto com 0 concurso de crimes, quando @ este caiba um ci- mulo material de penas. 535 LIGOES DE DIRETTO PENAL, 'b) Equiparagdo do concurso heterogéneo e do concurso homogé- neo de crimes On." 1 do art. 30.* alude a0 concurso homogéneo e heterogéneo quando contrapbe a pluralidade ou niimero de «tipos de crime» co- ‘metidos (1.* parte do n° 1), isto é, a qualificacto, do facto ou factos cometidos, como crimes «por duas ou mais disposigbes legais» (co- ‘mo se expressava 0 Cédigo Penal de 1886), & pluralidade de viola- ges do «mesmo tipo de crime» (2.* parte do n.° 1 do art. 30.9), isto 6, a violagto plirima da norma incriminadora. A distingdo entre concurso homogéneo ¢ heterogéneo surge no Codigo Penal de 1886, particularmente referida a0 concurso ideal; ‘no concurso ideal, hé um concurso efectivo de normas incriminado- ras sobre 0 mesmo facto € 0 § tnico do art. 38.° daquele Cédigo parecia excluir do pr6prio concurso ideal a pluralidade de violacoes, elo mesmo facto, de idéntica norma incriminadora. ‘© Codigo Penal brasileiro de 1940 adoptou o sistema do ciimulo ‘material (art. $1.°, § 1, 2.* parte) para 0 concurso real e para 0 con- curso ideal heterogéneo, equiparando assim © concurso ideal hete- Togéneo a0 concurso real. Mas jé 0 Cédigo Penal brasileiro de 1969 desfaz essa equiparagto, precisamente porque engloba, na mesma ogo de concurso, o.concurso real ¢ ideal; é 0 seguinte 0 texto do art. 65.° do citado Cédigo Penal brasileiro: «Quando o agente, me- diante uma s6 ou mais de uma acgdo ou omissio, pratica dois ou mais crimes, idénticos ou ndo |...}». Vem assim a doutrina sobre 0 Concurso de crimes a ser a mesma nos Cédigos Penais brasileiro de 1969 € portugués, embora distinta quanto a0 concurs de penas. A razio da distingio ou nto distingdo entre concurso homogéneo € heterogéneo, como entre concurso real ¢ ideal, assenta no diferen- te ou igual desvalor jurfdico que se entenda dever atribuir-se-Ihes. ‘Quando o concurso ideal homogéneo seja exclufdo do ambito do concurso ideal ou do concurso real de crimes, haverd um crime dini- co, embora com pluralidade de eventos jurfdicos da mesma espécie. A distingto interessa sobretudo quando a penalidade do concurso ideal seja nitidamente superior & mera agravacZo do crime nico. Nos termos do n." 1 do art. 30.°, a0 definir 0 concurso, a lei pro- Curou suprir todas as distingdes como initeis, procedendo & equipa- 536 ‘TEORIA DO CRIME raglo do seu significado e consequéncias juridicas, Relativamente 0 ‘concurso heterogéneo ¢ homogénco, procedeu a essa equiparagio explicitamente, porque descreve 0 primeiro na primeira parte do ne 1, € descreve 0 segundo na segunda parte do mesmo n.” 1, com idénticos efeitos. Relativamente a0 concurso real ¢ concurso ideal, ‘Xo julgou necessério fazer-Ihes referéncia auténoma, com palavras iguais ou similares as que usou 0 Cédigo Penal brasileiro — «Me- diante uma s6 ou mais de uma acgio ou omissio [...]» —, mas esto ‘essas modalidades implicitas no seu contexto. 207. A vontade culpdvel nos crimes em concurso (Os crimes em concurso, na {6rmula legislativa, consistem na rea- lizagao de varios tipos legais, f6rmula que, mais claramente, corres- ponde & violagSo phirima por um s6 ou vérios factos de diferentes ormas incriminadoras ou da mesma norma incriminadora. (© crime € um facto humano, tipicamente ilicito e culpavel. ‘© mesmo facto pode simultaneamente realizar um ou mais «tipos de crime». Mas 0 «tipo de crime» realizado abarca 0 conteddo glo- bal da norma incriminadora, isto €, 0 tipo legal, objectivo e subjec- tivo. ‘Nao basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em varias disposiges legais 0 evento juridico de cada uma. E indispensdvel que relativamente a cada cfime concorrente se verifique vontade culpdvel. E preciso que cada crime seja dotoso ou culposo, ¢ como tal puntvel. ‘A questo coloca-se ou foi colocada historicamente, quanto a0 concurso ideal. Assim como a acgdo exterior pode ser uma s6, pode também a intengao ou negligencia ser uma s6? ‘A diivida foi suscitada no passado e teve por exemplo 0 Codigo Penal braileiro de 1940, segundo o qual, consoante a intensio fosse uma s6 ou houvesse desfgnios aut6nomos, 0 concurso ideal teria como consequéncia a aplicagao no grau méximo da pena do crime mais grave, no primeiro caso, aplicando-se ciimulo material de pe- nas no segundo caso. A discussto recafa, assim, sobre a autonomia das decisdes da von- tade, 937

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