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DIREITOS HUMANOS: ENTRE A VIOLENCIA ESTRUTURAL E A VIOLENCIA PENAL (1) Alessandro Baratta Da Universidade de Saarland, Saarbriicken-Alemanha. Tradugio de ‘Ana Lucia Sabadell Da Universidade de Saarland — Alemanha. 1. DIREITOS HUMANOS E NECESSIDADES REAIS Quando falamos em Direitos Hu- manos, utilizamos um conceito com- plexo, integrado por dois elementos: homem e direito. Estes elementos esto vinculados entre si, mediante uma relagéo de complementaridade e de oposicéo. Complementaridade no sentido dd que pertence ao ho- mem enquanto tal segundo o direito, ‘oposigéo no sentido em que 0 direito no reconhece ao homem o que Ihe pertence enquanto tal. Esta relagao se deve ao fato de que na historia de nossa cultura, homem e direito séo definidos a partir de um ponto de vista ideal, com uma remissdo re- cfproca. A idéia de homem € definida em relagéo com a esfera de liberdade (entendida como autonomia) ¢ com. Os recursos que na hist6ria dos or- denamentos politicos séo reconhe- cidos como direitos dos individuos e dos grupos. A idéia do direito, ou seja, do direito justo ou da justiga é definida em relagdo as liberdades e aos recursos que devem ser reconhe- cidos as pessoas € aos grupos para que eles possam satisfazer suas ne- cessidades. Nesta situagao de tensdo, © conceito de direitos humanos in- dica nao s6 possivel divergéncia en- tre o direito que € e o que deveria ser, mas também entre o direito que € (as normas vigentes) e os fatos. No primeiro caso nos referimos as injustigas do direito e precisamente a 1. Traduglo da revistio alemé (1993) do original espanhol. Fasc. de Ciénc. Penais. Porto Alegre, v.6, n.2, p.44-61, abt/mai/jun, 1993 determinadas normas que fazem parte da ordem jurfdica cxistentc; no segundo caso, as ilegalidades dos fatos que violam normas do orde- namento. E necessério fazer aqui uma distingAo: estes fatos podem ser “normativos”, em particular agdes ¢ decisées de 6rgaos competentes pre- vistas nas regras de produgéo do ordenamento como fontes de nor- mas. Pense-se, por exemplo, nas de- cisdes do legislador, dos jutzes ¢ dos Orgios do governo ¢ da adminis- tragdo pfiblica: no é raro que estas decisdes e as normas que elas pro- duzem no respectivo nfvel do or- denamento contrastem com normas de grau superior do ordenamento nacional ou normas do ordenamento supranacional; que decisdes judiciais ¢ administrativas violem normas de leis que tutelem direitos fundamen- tais, que decisdes do legislador nao respeitem normas constitucionais; que decisdes judiciais de qualquer nivel do ordenamento nacional vio- lem normas de direito supranacional que tutelam direitos humanos (2). Quando nao se trata de direitos normativos, as ilegalidades referem- se a comportamentos, situagdes ¢ relagées sociais que violam normas positivas do ordenamento nacional e/ou internacional, que tutelam ou reconhecem direitos humanos, A di- ferenga entre tutelar e reconhecer € mais uma diferenga de grau do que de qualidade; refere-se a diversa na- tureza e intensidade das conseqiién- cias juridicas (sang6es) previstas nos distintos ordenamentos para os casos de violagio de normas, e dos ins- trumentos legais postos a disposi¢ao dos interessados (pessoas, grupos ou Estados) para convalidar frente aos 6rgios de controle jurisdicional ou politico as pretensdes legitimas, no caso de violagées de dircitos hu- manos. Por sua vez, a presenga de normas que prevéem sangdes ¢ conferem a faculdade de recursos e, por outro lado, a eficdcia destas normas e a existéncia de estruturas adequadas para impedir ou sancionar a violagdo de direitos humanos e responder as exigéncias das vitimas de tais vio- lagées sfo aspectos integrantes da tensao fundamental entre ser e dever ser que acompanha a histéria dos direitos humanos. Trata-se, por um lado, da tenséo entre a esfera dos fatos, ¢ por outro, entre a esfera das normas, sejam estas de direito po- sitivo ou normas de justiga, Como j4 vimos anteriormente, a idéia de homem remete a realidade do direito e, por outro lado, a idéia do direito remete 4 realidade con- creta das pessoas, dos grupos hu- manos ¢ dos povos, ¢ € precisamente 2. Situando 0 caso brasileiro, pode-se consultar: Caco Barcellos, Rota 66. A histéria da policia que ‘mata, Sao Paulo, 1992. Este autor nos indica uma série de casos em que a Justica Militar da Policia Militar de Sao Paulo, absolve policiais que sistematicamente se utilizam de violéncia contra civis. Tais sentencas representam um atentado gravissimo aos direitos humanos porque sustentam e legitimam a prética de uma violéncia policial sem limites. por isso que hé na hist6ria dos di- reitos humanos uma discordancia continua entre normas ¢ fatos. Este é o valor “contrafatico” que possuem as normas, que so vilidas ¢ as quais se pode apelar, precisamente porque os fatos as violam, sejam elas normas de direito ou de justica. Nao obs- tante, h4 simultaneamente uma con- tinua sobreposi¢ao da realidade do homem em relag4o as normas. Ba realidade que produz a idéiae ngo vice-versa. Se a hist6ria dos direitos humanos houvesse sido so- mente a hist6ria de uma idéia, cla teria se limitado a encher as biblio- tecas de folhas escritas ou impressas € nao encher de violéncia e sangue 0 caminho dos povos, como ocorreu € ainda ocorre na atualidade. Ao mencionar a realidade do ho- mem refiro-me as pessoas, aos gru- pos humanos € aos povos na sua concreta existéncia dentro de deter- minadas relagdes sociais de produ- gao. O ser humano, quando con- siderado dentro de uma determinada fase do desenvolvimento da socie- dade, é um “portador” de neces- sidades reais. Partindo de um ponto de vista hist6rico-social, 0 conceito das necessidades reais corresponde a uma visdo dinamica do homem e de suas capacidades. Cada pessoa, cada grupo, cada sociedade possui capacidades espe- cificas para desenvolver sua propria existéncia, para expressar-se, para dar sentido @ vida e as coisas. A historia da interagéo produtiva entre os homens ¢ entre o homem e a natureza influencia, obviamente, o desenvolvimento destas capacidades individuais. A medida em que cresce a capacidade social de produgdo material ¢ cultural ¢ com ela o grau de satisfagao das necessidades, cres- ce também a capacidade dos indi- viduos e dos grupos. As necessidades se tornam mais imprescindiveis, mais diferenciadas. O desenvolvimento da capacidade social de produg4o corresponde também ao desenvolvimento das necessidades e das possibilidades de satisfazé-las. A esta satisfagao cor- responde o ulterior desenvolvimento das capacidades dos individuos, dos grupos e dos povos. Assim sendo, podemos definir as necessidades reais como as potencialidades de existéncia e qualidade de vida das pessoas, dos grupos e dos povos que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento da capaci- dade de produg4o material ¢ cultural numa formagao econémico-social. 2. VIOLENCIA COMO REPRESSAO DAS NECESSIDADES REAIS E DOS DIREITOS HUMANOS Os direitos humanos constituem a Pprojegéo normativa, em termos do dever ser, das potencialidades su- pracitadas, ou seja, das necessidades reais. Neste sentido, 0 contetido nor- mativo dos direitos humanos, enten- dido numa concepgao hist6rico-so- cial, sobrepde-se as suas transcrigdes nos termos do direito nacional e das convengées internacionais, assim como a idéia de justiga sempre ul- trapassa as suas realizagdes dentro do direito ¢ indica o caminho a realizagéo da idéia do homem, ou seja, do principio da dignidade hu- mana. A hist6ria dos povos e da sociedade apresenta-se como a his- t6ria dos continuos obsticulos en- contrados neste caminho, a histéria da continua violagéo dos direitos humanos, isto é, da permanente ten- tativa de se reprimir as necessidades reais das pessoas, dos grupos huma- nos e dos povos. O socidlogo John Galtung refere- se a discrepfncia entre as condigaes potenciais da vida e as condigdes atuais (3). As primeiras sdo aquelas que seriam possfveis para a maioria dos individuos na medida do desen- volvimento da capacidade social de produgao. As segundas se devem ao desperdicio e a represséo destas potencialidades. Uma concepgao si- milar pode ser encontrada na obra de Marx. Ao desenvolvimento das for- ¢as produtivas na sociedade cor- responde, como escrevem Marx e Engels em Deutsche Ideologie (4), uma “maneira humana” de satisfagao das necessidades; mas esta mancira humana é obstrufda pela tentativa permanente de se impor uma “ma- neira desumana”, ou seja, aquela na qual a satisfagao das necessidades de uns produz-se a custa da satisfagao das necessidades dos outros. Em contextos teéricos e com lin- guagens distintas, Marx e Galtung expressam um mesmo conceito. Para Marx, a discrepAncia entre condig6es potenciais ¢ atuais de vida depende da contradigao existente entre o grau de desenvolvimento alcangado pelas forcas produtivas ¢ as relagdes de propriedade e poder dominantes na sociedade. As relagdes injustas de propriedade e poder impedem a “maneira humana” de satisfazer as necessidades. Igualmente, para Gal- tung a discrepancia entre situagdes atuais e potenciais de satisfagao das necessidades € efeito da injustica social. Neste sentido, segundo Galtung “injustiga social” € sindnimo de “vio- léncia estrutural”. Se usamos esta definigéo podemos sustentar que a violéncia estrutural é a repressao das necessidades reais ¢ portanto dos direitos humanos no seu contetdo hist6rico-social. A violéncia estrutu- ral € uma das formas de violéncia; ¢ a forma geral da violéncia em cujo contexto costuma originar-se, direta ou indiretamente, todas as outras formas de violéncia. Podemos dis- tiguir estas outras formas, segundo o agente, em “violéncia individual’, quando o agente € um individuo; “violéncia de grupo”, quando o agente € um grupo social, que por sua vez se serve de individuos par- 3. Cf. Johann Galtung, Strukturelle Gewal. Beitrige 2ur Friedensforschung, Hamburg, 1977. 4. Marx Engels Werke. Band 3, Berlin, 1958. p. 417 € ss. 47 ticulares: pertence a este tipo de violéncia aquela realizada por gru- pos paramilitares. Além disso, po- demos também falar em “violéncia institucional”, quando o agente € um 6rgio do Estado, um governo, o exército ou a policia. A violéncia institucional pode ter formas legais, ou seja, de acordo com as leis vigen- tes num Estado ou, como acontece em muitos casos, ilegais. A esta forma de violéncia insti- tucional pertencem o terrorismo de Estado e as distintas formas de di- tadura e de repressdo militar. Por fim, podemos falar de “violéncia internacional”, quando o agente é a administragéo de um Estado, que se dirige com determinadas agies através de 6rgaos préprios ou de agentes mantidos por aquela, contra © governo e 0 povo de outro Estado. Pertencem a este tipo de violéncia os crimes internacionais, como o mer- cenarismo, a sabotagem econdmica etc. Outras possiveis distingdes com telagao ao conceito de violéncia se relacionam as formas com as quais esta € praticada (violéncia direta e indireta, fisica, moral etc.) e aos sujeitos contra quem se pratica (minorias étnicas, membros de mo- vimentos politicos ¢ sindicais, grupos marginais, operdrios, trabalhadores rurais, mulheres, criancas, homos- sexuais etc.). Em qualquer de suas formas, a violéncia € sempre repressio de necessidades e, portanto, violagéo ou suspensdo de direitos humanos. As 48 declaragées modernas de direitos e as constituigdes fazem uma ampla distingéo entre diversas categorias de direitos humanos, mas nao con- sidero que esta seja a ocasiao opor- tuna para me deter no exame destas categorias, Limitarei-me simples- mente a destacar uma possivel clas- sificagéo que deriva da definicéo extralegal de direitos humanos que Propus aqui em termos de neces- sidades reais. Definindo as necessidades reais em termos de esferas de autonomia ¢ recursos, podemos classificar dois grupos fundamentais de direitos humanos, que por sua vez podem ser posteriormente diferenciados. Per- tencem ao primeiro grupo 0 direito a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal, a liberdade de opiniao, de expressdo, de religido, e também os direitos politicos. Ao segundo grupo pertencem os denominados direitos econdmico-sociais, dentre eles 0 di- reito ao trabalho, a educagao etc. Outras distingSes levam em consi- deragao as necessidades especificas dos sujeitos. Neste caso distinguem- se os direitos das pessoas, dos grupos, como por exemplo no caso das minorias étnicas e os direitos dos povos, entre eles o direito a auto- determinagio e 0 direito ao desen- volvimento. Frente a uma fenomenologia glo- bal da violéncia, comprendida como Tepressio das necessidades reais e dos direitos humanos, apresentam-se na perspectiva da criminologia crf- tica quatro categorias de conside- ragdes que tém relagdo com o papel do direito penal ¢ as alternativas a este. A primeira consideragao refere-se aos limites do sistema de justica criminal como reagdo a violéncia € defesa dos direitos humanos; a se- gunda refere-se ao sistema punitivo como sistema de violéncia insti- tucional; a terceira, ao controle so- cial alternativo da violéncia ¢, a quarta, a concepgao da violénciae da defesa dos direitos humanos no con- texto dos conflitos sociais (5). 3, “CONSTRUCAO” E CONTROLE DO PROBLEMA DA VIOLENCIA NO SISTEMA DE JUSTIGA CRIMINAL 3.1, A maneira como € percebida a violéncia no sistema do dircito penal, ou seja, a forma como esta é “construfda” como problema social, € parcial. De todas as formas de violéncia anteriormente menciona- das, somente alguns tipos de vio- léncia individual séo levadas em consideragdo no sistema de justiga criminal. A violéncia de grupo e a violéncia institucional séo consi- deradas apenas em relagdo a agoes de pessoas individuais ¢ ndo no con- texto do contflito social que elas ex- pressam. A violéncia estrutural e, em sua maior parte, a violéncia inter- nacional é excluida do horizonte do conceito de crime. Por isto, a partir do ponto de vista das previsdes le- gais, a violéncia criminal € somente uma infima parte da violéncia na sociedade e no mundo. 3.2. O modo como o sistema de justiga criminal intervém sobre este limitado setor da violéncia “cons- trufdo” através do conceito de cri- minalidade é estruturalmente sele- tivo. Esta € uma caracteristica de todos os sistemas penais. H4 uma enorme disparidade entre o namero de situagdes em que o sistema € chamado a intervir e aquelas em que este tem possibilidades de intervir e efetivamente intervém. O sistema de justiga penal est4 integralmente de- dicado a administrar uma reduzi- dissima porcentagem das infragées, seguramente inferior a 10%. Esta seletividade depende da prépria es- trutura do sistema, isto é, da dis- crepancia entre os programas de agao previstos nas leis penais e as possibilidades reais de intervengdo do sistema. A imunidade (6), ¢ nao a criminalizagdo, é a regra no modo de funcionamento deste sistema. Imunidade ¢ criminalizagéo séo realizadas geralmente pelos sistemas punitivos segundo a l6gica das desi- gualdades nas relagdes de pro- 5. Com respeito aos trés primeiros pontos, limitarci-me a dar algumas indicagdes referentes a alguns dos resultados obtidos no meu trabalho de pesquisa dentro da criminologia critica e que podem servir como bibliografia complementar. 6. Cf. Louck Hulsman, Critical Criminology and the concept of crime, in Contemporary crises, 1986. p.63-80, ess. priedade e de poder. A sociologia jurfdico-penal e a experiéncia coti- diana demonstram que o sistema direciona sua agdo principalmente as infragées praticadas pelo segmento mais fragil e marginal da populagdo; que os grupos poderosos na so- ciedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das prOprias agdes criminais. A imunidade dos crimes mais graves € cada vez mais elevada a medida em que cresce a violéncia estrutural ¢ a prepoténcia das mi- norias privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das necessidades dos de- mais ¢ reprimir com violéncia fisica as exigéncias de progresso ¢ justica, assim Como as pessoas, os grupos sociais e movimentos que sio seus intérpretes. 3.3. Ainda que a altissima por- centagem de imunidade imposta ao funcionamento da justiga penal por sua pr6pria estrutura fosse repartida com uma légica oposta aquela descrita, se a intervengdo do sistema punitivo pudesse ser concentrada nas infragdes mais graves, sua res- posta a violéncia permaneceria, de todo modo, inadequada para defen- der os mais fracos da prepoténcia dos mais fortes. A resposta penal 6, sobretudo, uma resposta “simbélica” e nao “instrumental” (7). Ou seja, real € eficaz. Isto depende do pr6- prio modo com que sao elaborados Os programas de acdo do sistema, isto 6, as figuras do delito ¢ as normas processuais. A respeito disto, gos- taria de ressaltar quatro aspectos que considero importantes: a) O controle penal intervém so- bre os efeitos e nao sobre as causas da violéncia, isto 6, sobre deter- minados comportamentos através dos quais se manifestam os conflitos, e nao sobre os conflitos propria- mente ditos. b) O controle penal intervém so- bre pessoas e nao situagdes. A pessoa 6 considerada pelo direito penal como uma varidvel independente e ndo como uma variével dependente das situagées. c) O controle penal intervém de maneira reativa e ndo preventiva. Com isto quero dizer que ele in- tervém quando as conseqiiéncias das infragdes j4 se produziram, mas néo efetivamente para evité-las, Qual- quer progresso que se possa realizar com relagdo a ampliagdo dos direitos das vitimas, que tendem a ser os 7. Cf. Winfred Hassemer, Symbolisches Strafrecht und Rechtsgiterschutz, in: Zeitschrift fiir Strafrecht, 1989, p. 553-559; Alessandro Baratta, Jenseits der Strafe. Rechtsgiiterschutz in der Risikogeselischaft. Zur Neubewertung der Funktionen des Strafrechts, Manuskrit in druck fir die Festschrift zum 70. Geburtstag von Arthur Kaufmann, C. F. Miiller Juristischer Verlag, Heidelberg, 1993. (Manuscrito publicado em comemoragio do 70° aniversério de Arthur Kaufmann). sujeitos mais lesados nas situagdes conflitivas nas quais intervém o sis- tema de justica penal, nao altera o fato de que o referido sistema s6 passa a atuar quando as pessoas jé se transformaram em vitimas, As con- seqiiéncias da violéncia ndo podem ser eliminadas efetivamente, apenas simbolicamente. Por esta razao, 0 sistema de justica punitivo se apre- senta como uma forma institucional ¢ Titual de vinganga. Tal como a vin- ganga ele intervém com a pena, em forma de violéncias para compensar simbolicamente um ato de violéncia jé realizado. d) Finalmente, o resultado da in- tervengdo do sistema de justiga cri- minal (a sentenga e sua execugao) nao € imediatamente posterior a prdtica do delito. H4 um atraso no Pprocesso de intervengao penal. Nao obstante, no momento do jufzo se considera 0 acusado como o mesmo individuo do momento da realizagdo do delito; mas sabemos que isto uma ficgao, a ficgao da identidade do sujeito, que ndo corresponde a rea- lidade. Por todos estes aspectos suscinta- mente destacados, a resposta penal apresenta-se como uma resposta simbélica. A pretensdo de que ela possa cumprir uma funcdo instru- mental de defesa social ¢ de efetivo 8 Cf. Alessandro Baratta, ob. cit, 1993. 9. Cf, Bmile Durkeim, Les régles controle da criminalidade na qual se baseiam as teorias da pena, como a da prevengéo geral ¢ a da prevencdo especial deve, através de pesquisas empfricas (8), considerar-se como. falsa ou ndo verificadas. Nao sa- bemos assim, se a amega penal ou a sangao de alguns infratores pode efetivamente representar uma con- tramotivagao para outros infratores potenciais. Em geral, sabemos que as intervengdes penais estigmatizantes (como a priséo) produzem efeitos contrérios 4 denominada ressocia- lizagéo do condenado. Mesmo num hipotético sistema de justica criminal que funcione de acordo com os princfpios constitucionais do Estado de Dircito ¢ os princfpios do direito penal liberal, a pena nao pode repre- sentar uma defesa adequada dos di- reitos humanos em relagéo a vio- léncia. Nao é possivel afirmar, por- tanto, um efeito relevante da pena na diminuigdo das infragSes 4 norma. A sangdo penal teria assim, quando muito, um papel de reafirmagio da validade da norma, nao obstante sua violagao. As teorias sociolégicas da pena que colocaram esta fungo simbélica como centro de atengao, como a de Durkeim (9) ¢ a atual teoria deno- minada prevengao-integragao (10), reconhecem implicita ou explicita- mente que as penas ndo cumprem as cde la méthode sociologique, Paris, 1968, p. 65. ss. 10, Ct. Alenandro Baran, Integration Privention Eine vientiscte NeubegrOndung der taf, Journal, 1984, p. 132-148 (complementariamente também pode-se consultar a a ibioprane indicada pelo autor neste texto). fungées de eliminar os delitos ou que ndo € necess4rio que se cumpram, Durkeim inclusive considerava que os delitos so “funcionais” dentro de certos limites para a realizagao da funcdo simbélica da pena: se nao houvesse infragdes, nao se confir- mariam as normas ¢ os valores vigen- tes através da reagdo social contra elas (11). 4. O SISTEMA DE PUNICAO COMO SISTEMA DE VIOLENCIA INSTITUCIONAL Sustentar 0 argumento de que a pena ndo pode cumprir uma fungéo instrumental relevante, mas apenas uma fungdo simb6lica, significa ne- gar a realizacdo das fungbes “‘iteis” declaradas pelos sistemas penais, precisamente a de defender os bens juridicos, reprimir a criminalidade, condicionando a atitude dos infra- tores reais ou potenciais ou neu- tralizando aos primeiros (infratores reais). Nao obstante, isto nao significa que em lugar das fung6es instrumen- tais declaradas, o sistema de justiga penal ndo produza efeitos reais ¢ nao cumpra fungdes latentes, nao de- claradas. Estes efeitos e fungées in- cidem negativamente na existéncia 11. Cf, Emile Durkeim, ob. cit., p. 65 ¢ ss. dos individuos e na sociedade, e contribuem para reproduzir as re- lagdes desiguais de propriedade ¢ poder (12). Deste ponto de vista, a pena apresenta-se como violéncia institucional que cumpre a fungio de um instrumento de reprodugio da violénca estrutural. 4.1, A pena é uma violéncia ins- titucional; ela € a repressio das necessidades reais. A suspensdo dos correspondentes direitos humanos em relagéo as pessoas consideradas responsdveis penalmente € justi- ficada dentro da teoria tradicional do ius puniendi pelas fungdes ins- trumentais e simbélicas que a pena deve cumprir © com a infragdo realizada pelo sujeito declarado res- ponsdvel. Nao obstante, sabemos smuito bem que tais fungées no se realizam, nao sao “fiteis”, e que tal suspensdo de direitos, num elevado némero de casos, d4-se com im- putados a espera de julgamento; que na maioria dos sistemas punitivos, 0 indiciado cumpre uma pena extra- legal ou de outro modo antecipada desde a sua primeira relagéo com a polfcia; igualmente, deve-se destacar que isto ocorre geralmente com os acusados oriundos dos grupos so- ciais mais vulner4veis e margina- 12. Sobre este tema, veja-se: Alessandro Baratta, Criminologia critica e critica del diritto penale, Bologna, 1982, capitals XII e XIV; edo mesmo autor, Soziale Probleme und Konstruktion der Kriminalitat, in: Krimi jologisches Journal, 1986, p. 200-218; Gerlinda Smaus, Das Strafrecht und die Kriminalidt in der Allaagsyprache der deusch en Bevélkerung, Opladen, 1985 (complemen- tariamente também pode-se consultar a bibliografia indicada pela autora nesta obra), veja-se também da mesma autora: Liimage du droit penal et la reproduction idéologique des classes sociales, in: Deviance et Societé, Gent. vol. 6, n. 4, p. 353-373. 52 lizados da populagio, que sfio os clientes fixos do sistema de justica criminal. 4.2. A violéncia da pena tem sido estudada sobretudo em relagéo a priséo. Mesmo a prisdo que estivesse de acordo com os padrées minimos determinados pelos acordos inter- nacionais para tutelar os interesses do condenado, ou seja, a prisao que, como todos sabemos, praticamente nao existe, também produziria uma situagao de privagéo e sofrimento que se estende além da pessoa do preso, atingindo o seu ambiente so- cial mais préximo. Mas a prisdo nao é somente uma violéncia institucional, ela também € um local de concentragao extrema de outras formas de violéncia: violéncia entre individuos e violéncia de grupo. Recordemos que Foucault em seu livro Vigiar e punir ja havia insistido no fato de que as garantias do direito reconhecidas pelo direito penal liberal, em geral nao passam pela porta da prisdo, uma zona franca de arbitrio contra os detentos (13). Nao obstante os progressos realizados pelas legislagdes penitenciérias mais moderna, esta situagdo, de fato, nao sé modificou substancialmente na maioria dos Estados. O arbftrio e a violéncia na prisio tendem a au- mentar a niveis cada vez mais extre- mos (14), com o aumento, na so- ciedade externa, da violéncia estru- tural e com a suspensio de fato ou de direito das regras da democracia. 4.3. O estudo das fungées latentes da prisio e, em geral, da justica penal, bem como as anilises his- t6ricas dos sistemas de punicdo, mostram as relagdes que subsistem entre tal estudo € a reprodugéo do Status quo nas relagées sociais, Desde seu inicio, a instituigéo carceréria modema, nas formas em que ela ainda ndo se distinguia das casas de trabalho ou dos asilos para pobres marginais, tem sido sempre uma instituigéo de disciplina dos grupos marginalizados na sociedade. Tam- bém hoje, a maior parte da po- pulagéo penitenciéria € recrutada entre os setores mais vulnerdveis © marginalizados da populagio. Para a maioria dos seus clientes, a marginalizagdo carceréria 6 uma forma “secundéria” de marginaliza- go que segue a marginalizagio “priméria” causada, sobretudo, por uma colocagao marginal no mercado. de trabalho. A estas fungées materiais de re- producdo, de institucionalizagao da desigualdade social, acrescentam-se fungées simbélicas nao menos im- portantes. A selegio de uma pe- quena populagéo recrutada so- 13. Cf. Michel Foucault, Uberwachen und Strafen, Prankfurt/M. 1977, p. 316 ¢ ss. (O autor utiliza a verso alemé da referida obra). 14. Veja como exemplo o massacre de 111 pessoas presos ocorrido no dia 2 de outubro de 1992 na Casa de Detengfio de Sto Paulo. Com isto, comprova-se uma vez mais que a priséo é um lugar destacado de violacio dos direitos humanos. 53 bretudo entre as camadas mais bai- xas da sociedade e dentro de um nimero maior de infratores distri- ‘bufdos em todas as classes sociais, condiciona um estereotipo de cri- minoso que atua tanto no sentido comum como nas proprias instancias do sistema de justica penal com dois efeitos principais de legitimagdo: em primeiro lugar, a legitimagéo da propria forma seletiva de atuar do sistema, j4 que o estereotipo de criminoso corresponde sobretudo as caracteristicas dos individuos que pertencem as classes mais baixas ¢ marginais. Em segundo lugar, uma legitimacdo das relagdes sociais de desigualdade e da situagdo de des- vantagem dos grupos sociais que se situam nos niveis mais baixos da escala social, porque precisamente nestes grupos se encontrariam as tendéncias para realizar aces penal- mente relevantes. Em geral, a ima- gem da criminalidade promovida pela prisdo ¢ a percepgao dela como uma ameaca a sociedade, devido 4 atitude de pessoas ¢ nao a existéncia de conflitos sociais, produz um des- vio da atengdo do piblico, dirigida principalmente ao “perigo da cri- minalidade”, ou as chamadas “clas- ses perigosas”, ao invés de dirigir-se a violéncia estrutural. Neste sentido, a violéncia criminal adquire na aten- ga do piblico a dimensio que de- veria corresponder A violéncia es- trutural, ¢ em parte contribui a oculté-la ¢ manté-la. Sobretudo em momentos de crises dos governos € da democracia, o “perigo da cri- minalidade” utilizado nas campa- nhas de “Lei e Ordem”, converte-se num instrumento de produgdo de consenso das maiorias silenciosas frente as relagdes de poder existentes (15). Trata-se de uma tentativa — particularmente perversa — de le- gitimar a injustiga nas relag6es so- ciais (a represso violenta da exi- géncia de justiga), 0 uso ptiblico da doutrina da “seguranca nacional” e da pena legal e extralegal como guer- ra ao “inimigo interno” (16). 44. Observando o sistema penal como efetivamente é e funciona, e nado como deveria ser, sobre a base das normas legais e constitucionais, podemos dizer que na maior parte 15, Cf. Alessandro Baratta, Soziale Probleme und Konstruktion der Kriminalitit, ob. cit., p. 200-218. ja-se, por exemplo 0 caso brasileiro, em que se pode visualizar claramente a presenca da ideologia da seguranca nacional, ainda que sob pardmetros diversos do periodo da ditadura militar, como um dos elementos primordiais na orientacéo da politica criminal deste pais na atualidade, A reproducéo da imagem do criminoso como o grande inimigo interno tem sido alimentada constantemente pela maioria dos Srgios oficiais, es contribui para produzir tristes espetéiculos como o ocorrido na Casa de Detengéo de So Saulo, onde em meia hora mais de uma centena de presos foram executados, obviamente ilegalmente, por policiais militares, enquanto ‘que parte da opinido piblica ndo somente entendia como correta a agio do governo estadual, como pedia o fusilamento dos demais presos. dos casos este atua nfo como um sistema de protegéo de direitos humanos, mas como um sistema de violagéo destes. Estudos e controles realizados por instituigdes e comis- s6es de direitos humanos nacionais internacionais colocaram em evi- déncia as graves violagdes ocorridas em decorréncia do funcionamento da justiga criminal, em relagéo a quase todas as normas de protecio dos direitos humanos na legislagéo local e em convengoes internacionais (17). Trata-se de sérias ilegalidades come- tidas por parte dos érg4os de polfcia no processo penal e na execugiio das penas. Nao sao poucos os casos de violagées de leis e regulamentos nacionais frente a principios de di- reito penal liberal nacional ¢ inter- nacional. Um exemplo desta legis- lacdo ¢ préxis punitiva fundamental- mente desviada de principios ele- mentares de direito penal do Estado de direito nos apresenta a legislacao especial antiterrorista em alguns paises da Europa ocidental nos anos setenta € mais atualmente também pode-se mencionar a conhecida “ley de seguridad ciudadana” da Espanha, que se constitui numa verdadeira violagaéo dos direitos e garantias constitucionais dos cidadios. No caso latinoamericano sempre se po- de recordar as legislagdes antiter- roristas que se aplicam em pajses como Peru e Colémbia. Também em paises democréticos regidos pelas tegras do Estado de Direito, o fun- cionamento dos érgaos da justiga criminal 4 margem da legalidade é freqiiente. Mas a transgressao da lei, da constituigao e dos direitos huma- nos por parte da fungéo punitiva constitui a norma no caso de so- ciedades nas quais as regras do jogo democratico foram suspendidas seja de fato ou de direito, e em situagdes de profundas desigualdades sociais nas quais os grupos dominantes exer- cem, através das instituigdes do Es- tado ou juntamente com elas, uma agao de repressao voltada a susten- taco violenta de seus privilégios. 4.5. Nestes casos, a degeneracéo dos sistemas de justica criminal pode atingir um quadro de extrema gra- vidade diante do qual é mais rea- Iistico falar de um sistema penal extralegal, de penas extrajudiciais do que falar de delitos e de nao apli- cagéo das normas que regulam o sistema penal legal. Se a obra dos grupos armados de repressao, de grupos paramilitares ou dos cha- mados “de autodefesa” é tolerada pelos 6rgios do Estado ou inclusive admitida por algumas normas excep- cionais; se intimidages, torturas, desaparigbes forgadas fazem parte de um plano determinado das oligar- quias no poder com o apoio direto ou indireto do exército e dos governan- 17. Neste sentido, um exemplo de pesquisa empirica realizada nesta regio a respeito do sistema de justica criminal na América Latina pode ser encontrada em Eugtnio Rail Zaffaroni, Derechos ‘humanos y sitemas penales en America Latina, Buenos Aires, 1985, tes ¢ se h4 uma impunidade garan- tida pelos 6rgéos do Estado que deveriam punir tais comportamen- tos, entdo nos encontramos frente a um fenémeno que podemos estudar como 0 exercicio arbitrario da vio- Iéncia penal de grupos ou da vio- Iéncia institucional para a manu- tengo da violéncia estrutural e a repressdo das pessoas € movimentos que tentam reduzi-la. 5. DIREITOS HUMANOS ENTRE VIOLENCIA INSTITUCIONAL E VIOLENCIA ESTRUTURAL Pelo que vimos até agora, conclui- se que os direitos humanos nfo po- dem encontrar no direito penal uma Protegio adequada, que ao con- trério, muitas violagdes destes di- reitos apresentam-se no interior da fungao punitiva legal ou extralegal. A criminologia critica toma conscién- cia desta dupla dimensao da vio- léncia que ameaca os direitos hu- manos: a violéncia penal ¢ a violéncia estrutural. 5.1. A teoria do dircito penal minimo (18) representa uma propos- ta de politica criminal alternativa na perspectiva da criminologia critica. Trata-se, sobretudo, de um pro- grama de contengéo da violéncia punitiva através do direito baseado na mais rigorosa afirmagio das garantias juridicas préprias do Es- tado de Direito e dos direitos hu- manos de todos os cidaddos, em particular das vitimas, processados e condenados pelo sistema de justiga penal. Seu programa consiste numa ampla e rigorosa politica de des- criminalizagéo e, numa perspectiva final, na superagao do atual sistema de justiga penal e sua substituigao por formas mais adequadas, diferen- ciadas ¢ justas de defesa dos direitos humanos frente violéncia. 5.2. A intervengao do sistema de justiga penal sobre os conflitos é, sobretudo, uma intervengao simbé- lica que nao pode representar uma solugao efetiva destes. Entretanto, isso ndo quer dizer que, em certas circunstncias, a fungdo simbélica exercida através de um uso correto e rigoroso da justiga penal ndo possa representar um momento de acdo civil politica para a defesa ¢ rea- firmagao dos direitos humanos; por exemplo, depois que se tenham con- sumado na impunidade formas de violagio generalizada e constante. Dois exemplos ndo muito recentes mas atuais se deram nos movimentos pela reforma das normas referentes & violéncia sexual que se concreti- zaram, em grande parte, devido a forga dos movimentos feministas de 18. Cf. Alessandro Baratta, Prinzipien des minimalen Strafrechts. Eine Theorie der Menschrechte als Schutzobjekte und Grenze des Strafrechts, in: Forschung in den 80 Jahren. Projektberichte aus der Bundesrepublik Deutschland. Hrsg. von G. Kaiser, H. Kury, H. J. Albrecht, Freiburg i. Br. 1988, p. 513-542. certos paises ¢ no grande movimento popular que sustentou, imediata- mente ap6s a reinstauracdo da de- mocracia na Argentina, os processos contra os generais responsdveis pelas violagdes dos direitos humanos du- rante a ditadura, Também a exi- géncia civil democratica visando eli- minar a impunidade dos parami- litares e pistoleiros em certos paises nos quais eles estao na ordem do dia pode representar uma propaganda legitima para a fungao simbélica da pena, um elemento de uma acio dirigida ao reestabelecimento da le- galidade e da paz. Contudo existem exemplos atuais em sentido contrério que fazem sen- tir os limites ¢ também os gravissimos custos sociais que esto relacionados com as tentativas de utilizagao do sistema penal para 0 controle de Situagdes de irrefredvel “negativi- dade social” (19); pense-se por um lado na proibicdo penal de certas drogas, que acrescentou aos graves problemas de t6éxico-dependéncia outros novos ¢ nao menos graves, jA que criou a oportunidade para o desenvolvimento de um colossal mer- cado ilegal a nivel mundial, do qual se alimentam grupos poderosos ca- pazes de condicionar em certos paf- ses as agdes do governo e de com- petir com o poder e a autoridade dos Orgios legitimos do Estado (20). Por outro lado, pode-se citar o exemplo da intervengéo penal no campo da ecologia que parece tra- duzir-se paradoxalmente numa situa- ao de menor € nao de maior defesa ecolégica (21). De fato, a intervengao penal neste campo 6 substancial ou formalmente acess6ria 4s normas € as decis6es administrativas. Ou seja, isto pressupde que os comportamen- tos lesivos ao ambiente devem ser irregulares desde o ponto de vista da disciplina administrativa para po- derem ser objeto de sangdes penais. Mas sabemos também que a grande maioria dos prejuizos ecolégicos nao provém de comportamentos irre- gulares desde o ponto de vista das normas administrativas e penais, mas sim de comportamentos regulares que fazem parte de um sistema de produgao e de exploragiio dos recur- sos naturais, que se desenvolve inde- pendentemente das necessidades reais dos produtores e de todos os individuos. Portanto, tal como no campo da droga, também no da eco- logia a intervengdo do sistema penal 19. Nota do tradutor: O autor desenvolve o conceito de “negatividade social” dentro da sua teoria critica ao sistema penal. Neste sentido o autor entende serem socialmente negativos aqueles comportamentos que contrastam com as necessidades ¢ intcresses importantes dos individuos € da comunidade, tomando por base critérios de valoragao eonsiderados validos. Para um melhor exame neste conceit, remeto-me a: Baratta, A. Criminologia critica e critica del dirito penale, Bologna, 1982, capftulos VII e XV, respectivamente p. 83 € ss. € p. 199 ¢ ss. 20. Cf. Alessandro Baratta, Rationale Drogenpolitik? Die soziologischen Dimensionen eines strafrechtlichen Verbots, in: Kriminologisches Journal, 1990, p. 2-25. a. Veja-se Winfred Hassemer em: Winfred Hassemer und Volker Meinberg Kontrovers, Um- weltschutz durch Strafrecht, in: Neve Kriminalpolitik, 1, 1989, p. 46-49, produz uma concentracgao da aten- Gao e dos recursos em politicas de controle que nao tem por objeto as situagdes em que realmente surgem os problemas que se pretende resol- ver, contribuindo por fim para di- minuir e nao para aumentar a defesa dos direitos humanos. 6. CONTROLE ALTERNATIVO DA VIOLENCIA E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS A criminologia critica tem-se de- dicado a anélise das contradigées ¢ limites do sistema da justia criminal. Seu proprio fundamento epistemo- l6gico est4 ligado ao reconhecimento de que a criminalidade nao é uma qualidade natural dos sujeitos ¢ dos comportamentos, mas sim uma qua- lidade atribufda a estes através dos processos de definigdo. Isto nao sig- nifica, entretanto, que ela nao se depare com a exigéncia de serem postas em pratica estratégias de con- trole social mais justas e eficazes frente ao “referente material” (22) daquelas definigdes, quando este exista; ou seja, frente a todas aquelas situagdes de “negatividade social”, previstas ou no pelas normas pe- nais, que representam repressao de necessidades reais e violagdes de direitos humanos (23). Trata-se de contribuir para o proceso através do qual a maioria dos membros de uma sociedade organiza defesas piblicas eficazes diante da violéncia de mi- norias prepotentes ¢ da negatividade social. Este controle social alterna- tivo deverd ter caracteristicas opos- tas aquelas préprias do sistema da justiga criminal, de tal forma a evitar a injustiga © a ineficdcia que carac- terizam as intervengdes deste sis- tema. 6.1, Deve ser um controle basea- do numa estratégia global que leve em consideragao toda a fenome- nologia da violéncia e nao apenas uma pequena parte dela; natural- mente, globalidade nao significa ho- mogeneidade dos instrumentos usa- dos pelo controle, mas sim uma di- ferenciagéo adequada deles, inclu- sive dentro de uma estratégia geral. 6.2. Deve fundamentar-se nos principios de igualdade e legalidade, evitando estrategicamente a discri- minagao dos mais fracos e a im- punidade dos mais fortes. Como ga- rantia das pessoas a ele submetidas, deve funcionar segundo regras gerais que coibam arbitrariedades e for- magao de posigées de poder decor- rentes de uma excessiva discricio- nariedade da intervengdo. Também na defesa dos direitos humanos, de- ve-se respeité-los até onde seja pos- sivel, uma vez que um certo nivel de 22, Para uma tentativa de definir epistemologicamente tal conceito, cf. G. Baratta, Forma giuridica € contenuto sociale: labelling approach, in: Dei detiai e delle pene, II, 1984, p. 241-269. 23, Alessandro Baratta, Die kritische Kriminologie und ihre Funktion in der kriminatpolitik, in: logisch Bibliographie, 1985, p. 38-51. 58 lesdo € inerente a aplicagéo de uma sangao. 6.3. Deve ser um controle eficaz ¢ real, nao simbélico. Isto implica, pelo menos, em quatro conseqiténcias: 6.3.1. Dirige-se as causas ¢ nao somente as manifestagdes dos con- flitos e da violéncia; 6.3.2. Tem por objeto as situagdes € nao somente os comportamentos dos atores implicados nelas. 63.3. Sem negar meios de com- pensacao e€ restituigao para as viti- mas, quando estes sejam possfveis e necessdrios, o controle social alter- nativo da violéncia deve ser, sobre- tudo, consistente com o contexto da agressao. Isto corresponde a um “princfpio geral de prevengao”, do qual deriva, dentre outros, o prin- cfpio da prevaléncia fundamental da fungdo de “policia” do Estado com respeito a fungao punitiva. 6.3.4. Deve considerar o infrator na sua identidade atual. 7. CONFLITOS SOCIAIS E NEGATIVIDADE SOCIAL Afirmei anteriormente que todas as formas de violéncia em geral se relacionam, direta ou indiretamente, com a violéncia estrutural. Ainda que fosse impossivel excluir situagdes particulares de violéncia que nao tenham relagéo com ela, pode-se sustentar que a violéncia estrutural é a forma geral de violéncia. A apli- cagéo do principio geral de pre- vengao significa também, e primeira- mente, uma estratégia de contengéo da violéncia baseada no controle da sua forma geral. Isto significa uma estratégia de justiga social. Mas a Prevengao da violéncia estrutural 6, a0 mesmo tempo, parte do conflito social e da agao politica no seu interior. 7.1. Uma caracteristica geral da construcao dos conflitos no interior das categorias do pensamento penal € criminol6gico tradicional ¢ a sua “despolitizagao” em termos de uma suposta ciéncia do comportamento individual e de uma técnica de res- posta a ele. Os sujeitos e os compor- tamentos a controlar sao os “cri- minosos” e os “crimes”; as técnicas de resposta séo a pena, como dis- suasdo ou tratamento, e a “politica criminal” de maneira geral. Diante desta visdo tradicional e restrita, a criminologia critica apresenta-se co- mo uma critica da criminologia. Ela demonstra que os comportamentos definidos como criminais nfo séo “distintos” dos outros, que na pro- dugdo dos conflitos e da violéncia estrutural s6 ocasionalmente inter- vém os fatores definidos socialmente como criminais ou, como tais, pas- siveis de definigao no ambito das leis penais. Por isto a criminologia tra- dicional — a penologia e a politica criminal — sao geralmente discursos inadequados para uma politica de controle social cficaz dos conflitos da violéncia. Trata-se, antes de mais 59 flitivas sua dimensao politica dentro de uma anilise realista dos conflitos sociais. Problemas “criminolégicos” de grandes dimensdes como corrup- Go, criminalidade organizada, cri- minalidade econémica, graves des- vios praticados por érgaos estatais, terrorismo e atividades de grupos de exterminio e paramilitares sio pro- blemas politicos que nao podem ser enfrentados quando confiados a “técnicos” (ou, pelo menos, somente. a estes). So problemas relacionados com a atividade dos érgios de repre- sentagao politica e com os cidadios, partidos politicos, sindicatos e movi- mentos sociais, em fungdo de sua participagdo politica; problemas que s4o objeto da luta das classes in- feriores para liberar-se da opresséo das classes dominantes, da luta pela justiga social e pela democracia. O principio geral da prevengao cor- responde entdo a estratégia do con- trole democratico da violéncia. Isto significa que os portadores das ne- cessidades reais, de direitos huma- nos, unem-se para uma articulagéo auténoma de suas préprias neces- sidades ¢ direitos e para a criagdo de instrumentos piblicos que atuem efetivamente a seu favor. O principio da “autonomia de articulagio das necessidades e dos direitos” realiza- se através de uma comunicagao livre do poder entre os portadores ¢ Pressupée a construgéo e manuten- 40 da democracia representativa e participativa. Ou seja, pressupde que 0 exercicio dos poderes pablicos ¢ a atividade dos 6rgaos do Estado nao sejam expressdes de um poder alienado da vontade popular e dos interesses gerais, Neste sentido, a luta por um sistema penal mais justo e por um sistema de defesa dos direitos humanos melhor que 0 atual sistema de justiga criminal € um dos Ambitos da luta pela democracia e pela justia social. 712. Falar de interesses gerais no significa nio estar atento a existéncia de conflitos de interesses na so- ciedade, de grupos sociais contra- postos ou concorrentes; nao significa negar a existéncia de um conflito social fundamental entre classes in- feriores e classes dominantes, entre as maiorias que possuem a forca de trabalho e as minorias que detém a propriedade ¢ o poder. A hist6ria dos direitos humanos é também a hist6ria deste conflito social, a his- téria da violéncia que cotidiana- mente procura reprimi-los. A afir- magio dos direitos humanos através da democracia €, ao mesmo tempo, a via para a superagao da violéncia. Creio que para contribuir para o processo de superagio desta vio- léncia € necessdrio uma ago intelec- tual, civil e politica que nas suas premissas teéricas deve evitar cair em dois erros contrapostos: o rela- tivismo e o dogmatismo. Para es- capar do relativismo pode-se utilizar o “principio da universalizagao dos interesses”; pode-se resolver, ao me- nos em parte, o contraste hist6rico entre interesses de grupos em con- flitos procurando identificar os inter- esses potencialmente mais gerais, ou seja, aqueles que correspondem a um avango nas relag6es sociais, que per- mitam um modo mais humano de satisfagao das necessidades. Para superar o dogmatismo € ne- cess4rio abandonar a idéia de que os interesses generaliz4veis sejam ex- pressados numa determinada fase da vida de uma sociedade somente por um grupo social, somente por um sujeito hist6rico. Na hist6ria da li- beragio h4 um espaco para uma pluralidade de sujeitos. O respeito ao pluralismo na luta contra a violéncia € 0 pressuposto para que esta luta ndo atinja, como freqilentemente acontece, falsas metas ¢ instaurem- se, em lugar dos velhos dominios, outros novos; em lugar de velhos gtupos privilegiados, novos que se autoproclamam com violéncia sobre todos os demais como 0 “verdadeiro sujeito histérico”. 7.3. Quando 0 conflito social atin- gir nfveis extremos de violéncia, o principio da universalizagao dos in- teresses pode permitir a definigéo de objetivos intermedifrios. Neste sen- tido, pode-se falar em “pacificagéo dos conflitos”, quero dizer, de um chamamento dos diversos sujeitos envolvidos para o estabelecimento de um acordo que permita transformar a luta armada em luta politica, com regras consensuais asseguradas. Dentro do marco da contradigéo fundamental entre trabalho e capital h4 uma multiplicidade de conflitos dependentes ¢ independentes; atuam uma pluralidade de pessoas, grupos e movimentos que se situam e se des- locam, cada vez mais, em novos Ambitos, que nado podem ser simples- mente reduzidos 4 contraposigéo fundamental; esta adquire, simulta- neamente, contefidos especificos em diferentes 4reas. Os Ambitos do con- flito séo muitos, porque as percep- goes dos atores envolvidos sao he- terogéneas e mutantes. A logica da histéria € mais rica do que qualquer esquema légico. Dentro do conflito geral para manter ou modificar as formas de satisfagio das necessi- dades, ou seja, as relagées sociais de produgo e distribuico, € possfvel que haja a formagao de aliangas parciais de interesses ¢ de projetos entre grupos posicionados em fren- tes politicas diversas, aliangas ba- seadas na necessidade da paz e da ordem civilizada que podem ser, num determinado momento, a necessida- de mais generaliz4vel, por ser com- partida pela maior parte dos mem- bros de uma sociedade. 61

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