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Fim da Linha

Do sol poente surge uma besta roncando em fervor, quente, bufando na estrada
de terra. Vem erguendo poeira pelo caminho vazio, como um véu, uma cortina de
fumaça que encobre parte da vista.
O Camaro vermelho fala com uma voz rouca, diz que tudo por onde ele passa,
passa a pertencer à ele. Essas terras, até onde seus olhos conseguirem enxergar e onde
não podem alcançar. Mas o Camaro é apenas um carro, uma máquina. O comando na
verdade é meu. As mangas da camisa mal dobradas, o coturno já sujo e o jeans
amassado.
O reflexo nos meus óculos escuros já estão avermelhados. O espectro no céu já
denota outras cores. Estou cansado. Paro o carro em frente à linha do horizonte. Aquela
linha, ela não me pertence. Abro a porta e me escoro no ainda quente capô. Retiro os
óculos. Meus olhos ardem da longa viagem até aquele ponto. O clima está muito seco,
nenhuma brisa, nenhum movimento nas árvores próximas da estrada.
Piscando meus olhos, me perco naquela vista que conseguia enquadrar o sol e
um nada que ocupava tanto espaço. Um vulto surge ao longe, caminhando em minha
direção. À medida que se aproxima vejo que é uma mulher. Cabelos longos, morena,
vestida de preto. Ela chega mais perto e para distante uns dez metros de onde estou.
Como em um faroeste ela me olha sem desvios. Eu não estou armado. Nunca estive.
Ela. Não sei. O quê queria aquela mulher comigo?
Ela volta a caminhar, sem pressa. Um vento surpreende e esvoaça o cabelo dela
e me refresca daquele calor, ainda que por um instante apenas. Ela me alcança e para na
minha frente. É linda. Como se fosse a mulher dos meus sonhos. Ela é o meu sonho. Ela
encosta-se no capô do Camaro ao meu lado sem dizer uma palavra.
Abro minha boca para soltar da jaula todas as palavras amansadas pelo tempo.
Como um chicote ela recolhe todas elas pondo o dedo nos meus lábios.
- Você só fala quando eu deixar.
O quê falar depois disso. Entorto um pouco a boca mostrando que não gostei
muito da atitude.
- Você sabe onde está?
Eu respondo rasteiro:
- Sei sim. Perdido.
- Na verdade, você não está perdido, você está justamente onde deveria estar.
- E seria onde mais especificamente?
- Comigo.
Meus olhos movimentam-se lentamente em direção ao olhar dela. Ela retorna
olhando em minha direção. Ela acena rapidamente com a cabeça como se me desse
permissão para falar. Então pergunto:
- E quem é você?
- Eu sou o Fim.
Ela responde as perguntas arrastando com as respostas outras questões. Eu sei
que tudo é de propósito.
- O Fim?
- É. Tudo tem seu fim. Para alguns ele é parecido, idêntico até. Para outros ele
é diferente. Mas a verdade é que para cada um o Fim tem algo específico. Eu sou o seu.
- Mas o que isso significa?
- Significa que você tem que se decidir. Se você vai continuar sendo essa
máquina vermelha ou será quem você realmente é. Isso é a única coisa que te impede de
chegar e tomar posse daquela linha lá longe onde o sol vai se repousando.
- Depende de mim ?
- É sim. Sempre foi. Você não está me reconhecendo?
- Como assim? Você não é meu Fim?
- Sou, mas você entende porque eu sou dessa forma?
Ela desliza sutilmente a mão sobre o capô do carro até sobrepor à minha.
- Eu sou ela, mais velha. A distância não te impediu de pensar nela, não foi? O
tempo não é o vilão dessa história. Você é. Você é o vilão, o herói e todo o resto nela.
Você controla. E se eu sou assim é porque mesmo depois de todas as tentativas, você
nunca conseguiu entendê-la. Não foi?
Eu não sabia o que dizer. Sentia o motor esfriando e a temperatura também ia
abaixando.
- Você era alguém e se transformou. Por ela. Mas esse nunca foi o objetivo.
Depois desses anos rodando pelo país tentando se lembrar quem você realmente é, a
resposta nunca saiu do lugar. É preciso se lembrar para seguir em frente, deixar ir.
- Mas como?
- Olhe para mim e encontre suas respostas.
Eu mergulho. Tão fundo que a pressão quase me esmaga. Mas ali tudo é tão
transparente. Eu consigo enxergar agora o porquê de tudo. Eu precisava adentrar esse
mundo desconhecido dos olhos dela para descobrir.
- Agora você entende? Você fez sempre fez tudo certo, porém no momento
errado. Você sabe o que fazer agora?
- Sei sim.
Minha mão percorre o corpo dela até chegar no rosto. Acaricio a pele dela e a
beijo fechando os meus olhos à medida que ela fecha os dela. O motor esquenta
novamente.
Entro no carro e dou meia volta. Pelo retrovisor vejo o vulto se distanciando e
ao longe o sol desaparece no horizonte. A poeira da estrada apaga agora tudo por onde
passo, toda a minha história até eu voltar ao ponto em que a vi pela primeira vez. Eu não
tenho mais medo porque sei como é meu Fim. Ela.

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