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A Prática Interdisciplinar

Ecleide Cunico Furlanetto∗

Aos educadores, coloca-se, atualmente, uma questão fundamental, buscar novos sentidos
para as práticas pedagógicas, levando em conta as profundas mudanças pelas quais a
sociedade está passando. Todos somos unânimes ao afirmar que o espaço escolar necessita
gestar novas formas de se organizar no que se refere a tempo, espaço, agrupamentos
sociais, atividades pedagógicas e novas tecnologias.
Durante algum tempo, nos detivemos na queixa, projetando nossas dificuldades de
movimento nas políticas públicas, no tipo de crianças que recebíamos, nas organizações
sociais, mas, pouco a pouco, fomos percebendo que poderíamos sair disso e ocupar o
espaço da reflexão que favorece o surgimento de novas possibilidades. As Práticas
Interdisciplinares têm início nesses campos, ancoradas na ousadia de alguns educadores que
não se conformam em repetir e copiar, mas que procuram construir ambientes de
aprendizagem sintonizados com as novas exigências culturais e que sistematicamente
pesquisam sua prática, para dela extrair princípios e pressupostos que servirão de suportes
para práticas futuras.
Para nos aproximarmos do sentido da Interdisciplinaridade, recorrerei ao conceito de
fronteira (Saiz, 1998). Acredito que a recuperação desse conceito nos permite percorrer um
caminho metafórico que favorecerá a descoberta de múltiplos sentidos p a
Interdisciplinaridade. Que e uma fronteira? Ao observarmos um mapa, podemos perceber
que ela constitui uma linha divisória que delimita o fim de um espaço e o início de outro.
No entanto, es mesma linha, ao promover a separação favorece também o surgimento da
identidade. Tomemos como exemplo um lago, o que nos permite identificá-lo? Ao procurar
responder essa questão, descobriremos a importância das margens que, ao limitarem as
águas, estarão também propiciando o reconhecimento do lago. Assim, como o lago é
definido por suas margens, os indivíduos e o conhecimento organizado em disciplinas
também o são. As margens que os fazem únicos, diversos e separados dos outros. Voltando
nosso olhar aos mapas, comparando os atuais com os de outras épocas históricas, veremos
que as fronteiras não são fixas, estão sempre em movimento, sendo constantemente
alargadas, estreitadas e transformadas. Apresentam-se como construções plenas de
provisoridade. Olhando novamente os mapas, podemos constatar, também, que os
territórios não são fragmentos separados, mas estão intimamente ligados, constituem partes
profundamente relacionadas ao todo.
Caso ampliemos, ainda mais, o conceito de fronteira e ao invés de vermos somente como
uma linha divisória, olharmos para ela como se apresenta na realidade, veremos que essa
linha divisória se concretiza de diversas formas, embora isso seja muitas vezes
imperceptível ao nosso olhar. Ao redor de cada fronteira, surge uma região que podemos


“ECLEIDE CUNICO FURLANETTO - Mestre em Psicologia da Educação pela PUC-SP, Doutora em
Educação (Supervisão e Currículo) pela PUC-SP. Professora do Programa de Mestrado em Educação da
UNICID. Pesquisadora na área de interdisciplinaridade. Texto, entre outros, publicado na coletânea “A
academia vai à escola”.
denominar de fronteiriça, na qual o eu convive com o outro. Descobrimos que ao mesmo
tempo que a fronteira promove a separação, possibilita a interseção. Segundo Saiz, é nas
regiões fronteiriças que surge a inovação, a fertilidade e a transgressão. Essas regiões, onde
os contornos estão e não estão delimitados, transformam-se em terrenos férteis para o
aparecimento do diálogo, da ousadia e também da parceria. A fronteira passa, dessa
forma, a possuir uma multiplicidade de sentidos. Ao mesmo tempo que limita, possibilita a
flexibilidade, liga ao todo, confere identidade, e transforma-se numa região de separação e
de encontro.
A Interdisciplinaridade, a meu ver, surge como esse conhecimento que se produz nas
regiões em que as fronteiras se encontram e criam espaços de interseção, onde o eu e o
outro, sem abrir mão de suas características e de sua diversidade, abrem-se disponíveis à
troca e à transformação. Qualquer Prática Interdisciplinar acontece a partir dessa postura de
expansão de campos e de abertura de fronteiras. É necessário enfatizar, no entanto, que a
Interdisciplinaridade não implica somente criar espaços de encontros e de interseções entre
as áreas do conhecimento, mas constitui uma postura interdisciplinar que permite esse
movimento de aproximação e transformação que vai além das disciplinas.
As pesquisas à respeito da Interdisciplinaridade que vimos e acompanhamos, nos informam
que as práticas interdisciplinares evocam, não só a abertura das fronteiras externas, mas
principalmente das fronteiras internas dos indivíduos. Observamos que elas surgem quando
existe disponibilidade para uma revisão das matrizes pedagógicas (Furlanetto. 1997) que
cada professor possui, matrizes construídas não somente a partir de modelos e de vivências
diversas de aprendizagem, reconhecidas, alargadas e transformadas para que novas
possibilidades de ação sejam percebidas. Ao descobrir sua plasticidade, o educador torna-se
mais disponível para tornar mais plástico seu fazer.
Para facilitar esse movimento, a Interdisciplinaridade tem salientado a importância da
revista ao vivido e ao conhecido. Quando entramos em contato com nosso Processo de
Individuação, vamos descobrindo nossas matrizes, marcas, dobras e ambigüidades.
Percebemos que somos a síntese do que vivemos e das experiências de aprendizagens que
fizemos. Esse resgate da trajetória tem sido fundamental no processo de formação de
pesquisadores interdisciplinares, bem como no processo de formação contínua de
professores. Através dele, os indivíduos se reconhecem, ressignificam suas histórias e
descobrem os caminhos que pretendem seguir.
Além das fronteiras internas, faz-se necessária também uma abertura das fronteiras externas
do indivíduo que se traduzem na possibilidade da inter- relação. Alguns pressupostos da
Interdisciplinaridade já são muito conhecidos entre nós educadores. Entre eles,
reciprocidade, troca, espera, humildade e parceria. Todos eles apontam para a possibilidade
de abrir fronteiras e criar zonas de interseção com o outro. As pesquisas também têm nos
mostrado que as práticas interdisciplinares tendem a acontecer em espaços nos quais esses
pressupostos estão presentes. Para compreender um pouco mais esse movimento de
encontro, vamos resgatar o Mito de Eco e Narciso (Byington, 1996). Narciso era aquele
personagem da Mitologia Grega, profundamente centrado em si mesmo, fascinado pela sua
beleza, incapaz de perceber e de se encantar com o outro. Enquanto Eco, a ninfa
apaixonada por Narciso, era centrada no outro, incapaz de pronunciar suas próprias
palavras, somente de repetir as que ouvia. Penetrando na simbologia desse mito podemos
perceber que Eco e Narciso são dois pólos que se complementam. Eles nos mostram duas
possibilidades de relação. A primeira é o movimento de ficar centrado em si mesmo, em
suas verdades e ir ao encontro do outro somente para convencer e ensinar O segundo, é de
uma excessiva abertura para o outro, esquecendo-se de suas próprias palavras.
Para que aconteça uma troca verdadeira, é necessário que aqueles que se encontram
envolvidos numa relação, possam circular entre esses dois pólos ora se colocando
“narcisando”, ora escutando “ecoando”. Somente quando isso ocorre é que se pode
estabelecer uma relação criativa em que existe aprendizagem.
Além desse tipo de encontro, percebemos que as práticas interdisciplinares acontecem
quando existe uma abertura e uma flexibilização nas fronteiras das disciplinas. Isso tem
acontecido, nos espaços escolares, quando as disciplinas e os professores, por elas
responsáveis, se percebem não como totalidades, mas como partes interagindo no todo.
Essa postura tem favorecido a superação da fragmentação do conhecimento visto como
módulos estanques separados uns dos outros. Para que esse movimento possa acontecer nas
escolas, temos observado que é fundamental o encontro entre os professores,
principalmente para o planejamento e a execução de projetos. É no fazer junto que vão
surgindo as possibilidades de articulação de práticas e o aparecimento de trabalhos
interdisciplinares.
Aqui também temos percebido a importância do 1 resgate do vivido, agora não só apenas
das vivências individuais, mas da trajetória da própria escola. (Furlanetto. 1998). Fazer esse
resgate coletivamente, ocasiona a todos os membros da equipe pedagógica a possibilidade
de perceber o todo e de se sentir parte da construção do Projeto Pedagógico da Escola.
As práticas interdisciplinares têm também favorecido a abertura das próprias fronteiras da
escola, criando zonas de interseção com a comunidade e com a realidade. Os muros
fechados são substituídos por membranas que, embora contendo substâncias permitem sua
passagem. Temos visto muitos projetos acontecerem, envolvendo pais e comunidade
permitindo ao aluno perceber a importância do conhecimento para resolver questões e
problemas do cotidiano.
Como podemos ver, a Interdisciplinaridade tem se constituído como forma de ação
comprometidas com a ousadia, com a busca de novas possibilidades, mas que não
descartam o velho o vivido, pois nele estão contidas as sementes de sabedoria que nos
permitem avançar. Essas práticas, ao serem compreendidas e analisadas com rigor e
responsabilidade, vão fornecendo princípios e pressupostos flexíveis que permitem
enriquecer as ações futuras.
Uma das características das Práticas Interdisciplinares têm sido a originalidade.
Percebemos que elas surgem profundamente articuladas ao contexto nas quais foram
gestadas, possuem as marcas de seus autores e vêm ao encontro das necessidades de uma
determinada comunidade pedagógica. Isso faz com que elas sejam únicas, tornando-se tão
difícil dar uma receita de como fazer. Podemos, no entanto, fornecer alguns princípios e
pressupostos que, quando presentes, tendem a favorecer o aparecimento de práticas
interdisciplinares.
Todo esse movimento de flexibilização e de criação de zonas de interseção na escola
estimula um dos encontros mais importantes: o do aluno com o conhecimento. Percebemos
que, muitas vezes, as práticas disciplinares, estanques, repetitivas e fragmentadas têm a
propensão de provocar nos alunos uma atitude de fechamento para o conhecimento. O que
observamos, é que quando existe na escola todo esse movimento, de flexibilização e de
abertura, que descrevemos anteriormente, os alunos também se abrem para o conhecimento,
para as relações com os professores e com os colegas, e passam a desenvolver uma postura
interdisciplinar.

Revista do Congresso de Educação Continuada “PÓLO 7”

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