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Urticária

Peça em 3 ATOS
de
Veronica Diaz

Personagens:

Fernão
Clébio
Rosa
Formiga
Tonho
Geninho
Zinha

Obs:
− Menção honrosa no 6º. Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos de
Carvalho (2006), da Prefeitura de Porto Alegre
− Leitura pública em 2007 na Casa da Gávea com Gisele Fróes, Marcello Escorel e
outros
− Publicada em 2008 pela Prefeitura de Porto Alegre.
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1º ATO

Casa de Ramiro. Sala de uma casa rústica do interior. Portas que dão para dois
quartos, janelas, saída para a cozinha. Uma mesa e 3 cadeiras.

Cena 1 - Noite de sábado. Sala iluminada por um lampião que está sobre a mesa. No
centro, Rosa e Tonho abraçados. No chão, uma faca.

Rosa Larga ! Cê tá louco, doidou de vez. Sai daqui !


Tonho Mas ele ía matar a senhora !
Rosa Que matar, o quê. Quantas vezes cê já não viu ?
Tonho Ele pegou a faca.
Rosa Mentira, foi ocê que pegou.
Tonho Eu vi ele batendo com a senhora na parede, achei que...eu só queria...
Rosa Prá quê que tinha que se meter ? Estragou tudo. Inferno.
Tonho Eu defendi a senhora.
Rosa E quem pediu ? Quem ? Parece que bebe. É outro. Animal.
Tonho Pára. (pausa)
Rosa Pega a faca lá. Vamo lavar, né ?
Tonho pega a faca, lhe entrega.
Rosa Ê, sangue ruim.
Tonho O dele.
Rosa E o teu vem da onde, cê pensa ? Tonto.
Rosa sai para a cozinha, Tonho acende uma lamparina, leva para o fundo, onde se vê o
corpo de um homem. O rapaz revira os trajes do defunto. Rosa volta.
Rosa O que é que tá mexendo aí ? Pára. Já chega !
Tonho O dinheiro. A gente vai precisar...aqui ! (contando) Tão pouco.
Rosa O diabo gastou na bebida. Toda vez é isso. Era...
Tonho Mas só isso ? Tá faltando, diacho !
Rosa Então deve ser que perdeu no jogo. Vai ver por isso é que tava mais arretado.
Tonho E agora ?
Rosa Ué, agora tem que enterrar, fazer o quê ?
Tonho Tô falando do dinheiro.
Rosa Ah...isso a gente vê depois. Vai, pega daí, vamos.
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Começam a arrastar o corpo. De repente ela pára.


Rosa Péra um pouco... e o sapato ?
Tonho Não tá aí, já procurei.
Rosa A gente vai enterrar o sapato ?
Tonho Ué, e não?
Rosa É que eu pensei...Tá novo, daqui a pouco serve n’ocê.
Tonho É... mas não tá errado não, enterrar faltando parte ?
Rosa Ooou, o pior cê já fez, desnaturado. Agora vai ser tonto de deixar o sapato?
Tonho É, né ? Vai andar mais, não, né ? (Riem)
Tiram os sapatos do defunto, arrastam o corpo para fora de cena. Luz cai em
resistência.

Cena 2 – Manhã de domingo. Tonho sentado à mesa, Rosa servindo o café.

Tonho Eita, que esse café hoje tá bom demais. Senhora caprichou !
Rosa É ? Sei lá.
Tonho Parece que encorpou, tá mais cheiroso.
Rosa É...vai ver. Vai que até o café ficou melhor. (Riem) Sabe uma coisa, Tonho ?
Acho que cê podia ver se as roupa dele te serve. Precisando, eu aperto.
Tonho É, né ? Tem umas camisa...
Rosa Mais ? (serve o café)
Tonho Nem foi tão ruim assim.
Rosa É o quê ?
Tonho O de ontem. Não pensei de ser assim, fácil. Só a coisa do dinheiro é que não.
Rosa Que o quê ? Tá dizendo que cê já tinha estudado ?
Tonho Do jeito que ele era... a gente sempre pensa... a senhora... cê nunca pensou ?
Rosa Ah, pensar é uma coisa...Outra coisa é tomar de mão.
Tonho Agora tá bom, não tá ? Só nós dois. E esse café ! (pausa) Negócio do
dinheiro, será que ele gastou tudo mesmo, não será que escondeu algum ?
Rosa Nada. Já chegou torto e sem nada. Por isso é que começou.
Tonho Diacho. Eu vou é assuntar com o Zé Dantonio, quem sabe.
Rosa Ô Tonho, cê sabe um dia é o que que eu queria ?
Tonho É...ainda tem a história da herança...
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Rosa Ih, bobeira, inventice, tivesse alguma jóia um dia, cê acha que... Tssq. Ah !
Ó, cê sabe o quê que eu queria mesmo ? Era ir prá cidade.
Tonho Ah, eu não. Tudo espremido, prá quê ?
Rosa Nada. Lá tem tudo.
Tonho Aqui tem o que precisa.
Rosa Lá tem tudo mais. Não quer, não, dia desses a gente passear na cidade ?
Tonho Só de passeio, ainda vai.
Rosa Então, a gente podia ir lá.
Tonho Agora ?
Rosa Ué, tem hora prá quê ?
Tonho Ah, não, agora não. Sabe o que eu queria, mesmo ?
Rosa É o quê ?
Tonho Era ir pro norte, de vaquejada.
Rosa E cê lá sabe de gado ?
Tonho Aprendo, ué.
Rosa Ah, então isso é depois.
Tonho Então.
Rosa Ô, Tonho, mas cê estudou mesmo, foi ? (pausa) E tinha era de ser ontem por
causa de quê ?
Tonho Ah, porque... Ih, deixa ! É só que ele tava mais arretado, só isso. Deu no
sangue.
Rosa É nada. Cê estudou, sim. E é que ontem era o pagamento. Só queria o
dinheiro, pode falar. (ri) E nem isso. (Sai com o bule e as xícaras)

Cena 3 – Almoço de domingo. Rosa vai saindo arrumada, levando uma marmita. Tonho
brinca com a faca.

Tonho Onde cê vai ?


Rosa Ah, cê tá aí. Eu vou...ai, olha eu ! Ía no casarão, levar a marmita do teu pai.
Não me acostumei. Ô, diacho.
Tonho E toda arrumada assim por causa de quê ?
Rosa Nem sei. Tá vendo ? Com isso de ontem a cabeça ficou ruim. Ainda não tô
pensando direito.
Ele cheira em volta dela, desconfiado.
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Rosa Melhor eu ver o almoço. (Sai com a marmita, volta com lenço na cabeça e
avental) Ô, Tonho, eu vou te falar uma coisa. Eu acho que ocê foi é muito
corajoso. Eu tinha coragem de me deixar matar, mas não tinha coragem de
matar uma pessoa.
Tonho É, tem que ser homem.
Rosa Como é que foi, hein, Tonho ?
Tonho Ué, ocê não viu ?
Rosa Eu vi. Eu tô perguntando é onde foi que cê aprendeu isso, da faca...porque
não é qualquer um, não é também assim, de qualquer jeito.
Tonho Ah, aprendi com o Zé Dantonio. Tava ensinando matar porco, lá no ranchão,
daí eu perguntei... ou foi ele que falou, não lembro: “mas gente não é igual
que porco, né ? ”
Rosa Tem uns que é, né, Tonho ?
Tonho Modo de matar, né não. De porco, melhor aqui na frente, por baixo... mas de
gente, melhor de lado, aqui assim, na veia. “Nulugar”, que chama.
Rosa Cê estudou foi bem, né, Tonho ? Credo, aquele sangue esguichando. Nem
galinha eu posso !
Tonho Esse almoço, sai ou não sai ?
Rosa Ah, que cabeça. Já, já. (Começa a servir. Silêncio) Ô, Tonho, tava
pensando... Por quê que a gente não vai s’embora prá cidade ?
Tonho Fazer o quê lá ?
Rosa Ué, morar. Pelo menos tem gente.
Tonho Gente. Prá quê que eu quero gente ? Tá sempre querendo história, sempre
atrás de festa.
Rosa Não fala assim.
Tonho É, sim. Eu falo. De jeito nenhum, aqui tá bom.
Rosa Mas lá tem o teu tio, pode ajudar.
Tonho Meu tio, sei. Pensa que não ?
Rosa Ele pode arranjar um emprego pr’ocê.
Tonho Ele é da polícia !
Rosa E que é que tem ?
Tonho Cê doidou ? Esqueceu o que aconteceu ? É não, é que só quer bailinho, só
quer eu sei o quê. Sirigaita.
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Rosa (pega a faca, aponta prá ele) Ocê pára com isso. Não quer ir prá cidade, vai
ter que ir lá no casarão, no lugar do teu pai. Vai lá, dá comida pros cachorros,
capina o jardim, varre o quintal. De dia ocê apaga a luz, de noite cê acende.
Se aparecer alguém se metendo a besta, ocê bota prá correr, que cê já é
homem crescido.
Tonho (pausa) Senhora leva a marmita prá mim ?
Rosa o encara, tira os pratos da mesa, sai.

Cena 4 – Noite. Lampião sobre a mesa, Rosa sentada num canto, mais afastada.

Tonho Tá uma lua até bonita hoje. Lua de seresta. (pausa) Essa hora é que é bom...
Rosa É bom. Noite quieta.
Tonho Essa hora o pai já tava ralhando da lenha...
Rosa É. Mas aquieta, vai agora ficar maldando.
Tonho Só tô falando.
Rosa Não fala. Já fez, acabou.
Tonho Cê nem gostava dele !
Rosa E ocê, sabe o quê ? (pausa) Essa hora era prá eu estar...
Tonho Morta enterrada, em vez dele.
Rosa Nada.
Tonho Então é o quê ?
Rosa Nada, é só que eu não sei o que é dormir sozinha, só isso.
Tonho Ocê não tá sozinha. Tô aqui.
Rosa Ê, ocê é diferente.
Tonho Sou homem crescido.
Rosa É, tô vendo. (pausa) Tá bom, vou deitar que amanhã é dia...
Tonho Vou com ocê.
Rosa Ê, ê. Vai aonde ?
Tonho Vou dormir ali.
Rosa Êh ! vai nada, que besteira é essa ?
Tonho Ué, vou. Vou pro casarão, por que é que não vou...
Rosa Ocê vai é já pro teu quarto.
Tonho O meu quarto agora é esse.
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Rosa Olha aqui, moleque, não tem discussão. Fui eu que te pari, ocê me obedece
ou tá tudo errado. (sai e bate a porta)
Tonho (chuta a porta) Moleque, não, eu sou é homem. E eu não vou pro casarão. E
também não vou nada prá cidade, tá ouvindo ?
Rosa (aparece abrindo a porta) Ocê é homem feito, ocê faz o que quiser.
Tonho E ocê ?
Rosa Eu vou é dormir. (bate a porta)

Cena 5 – Madrugada de segunda. Barulho de marteladas. Rosa entra de camisola com


uma lamparina, Tonho está pregando tábuas nas janelas.

Rosa O que cê tá fazendo ? Doidou de vez ? O que é isso ?


Tonho Se eu tenho que ir pro casarão, ocê fica aqui.
Rosa Cê ficou doido, vai me trancar aqui, é isso ?
Tonho Isso é prá quem tá passando não se fazer de besta.
Rosa Cê é besta ocê, aqui ninguém não passa nunca. Pára.
Tonho Vou parar quando acabar.
Rosa Mas ocê não vai acabar com isso é nunca, olha bem. (vai desfazendo o
trabalho dele)
Tonho Ocê não faz isso, tira a mão daí. (ele a segura)
Rosa Me larga, Tonho, sai, solta.
Tonho Fica quieta ou eu vou...
Rosa Vai o quê ? Cê não acha que eu vou ficar presa aqui dentro, mas nem morta !
Entram no embate físico, ele a empurra, ela grita, sai para a cozinha. Ele retoma as
marteladas.
Tonho E eu sou besta, largar gaiola aberta ?
Vem da cozinha barulheira de murros numa porta.
Tonho Já tranquei !
Rosa Filha da puta.
Tonho Ei, que bate e volta. Não tô falando ? Quando eu que falo, não: é uma santa
criatura !
Rosa Ocê me respeita, ocê cala essa boca !
Tonho Ó, e não adianta nem procurar a faca, que eu não sou tonto.
Rosa Ah, eu quebro tudo, eu vou arrebentar.
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Tonho Melhor não. Vai cozinhar como ?


Silêncio, só as marteladas continuam. Depois de um tempo, Rosa entra.
Rosa Ói, cê quer saber ? Chega. Não vou lugar nenhum, mesmo.
Tonho É ? Cansou, foi ?
Rosa Não vou deixar minha casa, minhas coisa. Fazer o quê na cidade ?
Tonho Falei.
Rosa Aqui pelo menos tem o dinheiro do casarão.
Tonho Então.
Rosa Se não fizer besteira até o fim do mês.
Tonho Eu não sou tonto.
Rosa (pausa) Aqui: marmita, vai fazer como ?
Tonho Ué...
Rosa Eu aqui presa não levo pr’ocê.
Tonho Eu venho buscar.
Rosa Ah, vem. Acontece qualquer coisinha lá, cê passa o resto da vida pagando.
Tonho Então eu levo agora.
Rosa E come frio ?
Tonho Esquento lá.
Rosa Todos modo preciso da faca. Cozinhar, como ? De corte é só essa.
Tonho (pausa) A besteira, hein ?
Rosa Mais que a tua ?
Tonho Acabou, traz a faca de volta. (Ele lhe entrega a faca).
Ela sai. Barulho de panelas na cozinha, ele retoma as marteladas. Som de amolação de
faca. Logo depois ela volta com a marmita e a faca. Coloca a marmita na mesa.
Rosa Acabei.
Tonho Eu ainda não.
Ela lhe enfia a faca no pescoço.
Rosa Acabou, sim. Animal. Sangue ruim, que nem o pai.
Tonho (caindo) Ai ! Mãe ! Ocê vai embora. Eu sabia. Sempre.
Rosa Sabe nada. Fez tudo errado. Queria o quê ? Tonto. Então cê acha por quê que
ele tava tão arretado? E eu não fiz ele me entregar o dinheiro ? Ah, isso cê
não viu, que cê chegou depois. Ih, tanta coisa que cê não sabe...
Tonho Mãe. Mãe ! Eu tô morrendo, mãe, tô indo embora... (morre)
Rosa Precisava de matar ? Por causa de quê ? Besteirada !
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Rosa então percebe que ele morreu. Tira o dinheiro de dentro da marmita, guarda no
bolso. Depois vai até ele, lhe faz um carinho na testa.
Rosa Vida perdida. Pensar que eu é que criei. Diacho. Eu que fiz, eu desfiz...
Nunca pensei. (Sai, traz os sapatos do pai e os calça nele) Mas também...
Um mundão por aí, tanta gente, ficar se enterrando aqui. (pausa) Ih ! Ói eu
perdendo a hora, deixa eu ir !
Luz vai caindo enquanto ela sai arrastando o corpo.

Cena 6 – Um policial rondando a casa. Chega Rosa apressada, toda arrumada,


carregando uma boneca de pano e alguns pertences em um amarrado. Abraça o
policial, chora.

Fernão Ô Rosinha ! Mas cê demorou demais, meu amor. Combinado era ontem, tô
aqui desde cedo...
Rosa Nem fala, quase que eu nem consigo vim.
Fernão Ei, mas tá chorando ? Que foi ? Que é que aconteceu ?
Rosa Nada, é... Foi diferente, muito diferente do que eu pensei.
Fernão Por quê ? O Ramiro te viu fugindo ?
Rosa Nada, ele nem...
Fernão Ocês brigaram ?
Rosa Nada. Ele tava era dormindo. O menino, que não queria desgrudar de mim.
Menino agarrado, esse.
Fernão Muito mimado.
Rosa Pois é, errei. Mas já aprendi. (Para si) Já enterrei.
Fernão E ele ficou lá, não quis vir ?
Rosa Não. Ficou.
Fernão Ficou fazendo o quê ?
Rosa Ah, sei lá... mexendo na terra. Tá lá... tá em paz.
Fernão Bom. Mas agora cê tá livre, né ?
Rosa Ói, tô. Agora ele num agarra mais. Agora ninguém me prende.
Fernão Só eu, né, Rosa ?
Rosa Ah, é... é que ocê é da polícia ! (Riem)
Fernão (vendo a boneca) E isso ? Ela vai também ? (sorri)
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Rosa (guardando a boneca no amarrado) Ah, é lembrança. Foi da minha mãe, só


o que ficou.
Fernão Ocê meu tesourinho ! É chegar na cidade, vou cuidar dos papéis, das
alianças....
Rosa Ah... isso a gente vê depois. Sabe uma coisa, Fernão ? (Dá o braço a ele)
Acho bom a gente ir caminhando.
Eles saem enquanto a luz cai em resistência.

fim do 1º ATO
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2º ATO

Casa de Clébio, mais humilde que a do 1º Ato. Duas redes desarmadas em cantos
opostos. Uma mesa, um banco longo, 2 banquetas. Um fogão a lenha e utensílios de
cozinha no fundo.

Cena 1 – Tarde. Zinha limpando e debulhando milho na mesa.

Formiga (na entrada) Tarde. Seu Clébio ?


Zinha (pausa. Encara-o longamente) Foi ver umas coisa lá embaixo, já volta.
(pausa) Tá frio aí não ?
Formiga (sopra entre as mãos, esfregando-as) É...
Zinha (pausa) Não vai entrar ?
Formiga É... Licença. (tira o chapéu, entra. Eles se olham, ela volta ao trabalho)
Zinha Quer água ? (aponta com a cabeça para um cântaro sobre a mesa)
Ele não se move. Depois de um tempo, ela levanta, enche um copo, oferece, ele bebe.
Formiga Agradecido. (pausa) Ocê cresceu.
Zinha Foi ? (pega o copo de volta)
Formiga Parece que encorpou. Tá mais...
Zinha Esse bigode que é novo, né ?
Formiga Coisa do Zé Dantonio.
Zinha É...(ri) Diferente.
Formiga Diz que é bom mudar um pouco a cara.
Zinha Às vezes... (pausa) Por causa de quê ?
Formiga Ah, uns rolo aí.
Zinha Andou brigando.
Formiga Besteira.
Zinha Ô, Formiga... fala de verdade... ocê já matou alguém ?
Formiga Seu Clébio tá demorando, né ?
Zinha Podia era não voltar mais.
Formiga Não fala assim.
Zinha Cê não sabe, tá falando.
Formiga Nada, sei nada. (pausa) Ocê ficava sozinha...
Zinha Então ? (Eles se olham) Vou fazer um café.
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Formiga (pega o braço dela) Ocê querendo...


Zinha Cê faz ?
Clébio (entrando) Faz o quê, hein, Formiga ? (rindo) Danada, aquela potranca quase
que me derruba...
Zinha Ía fazer um café.
Clébio E não foi ainda por causa de quê ? (ela vai para o fogão, ao fundo) Êia, tá
uma festa, ocês dois, hein ?
Formiga (para Clébio) Pensei de deixar prá outro dia.
Clébio Cê é besta, outro dia eu posso não estar mais aqui. (para ela, rindo) Ô, dona
Zinha, o que cê fez com ele, hein ? Parece que medrou. (baixo, para ele)
Aqui: não tô pagando ? Vai tomar do meu café e resolver o assunto é hoje.
(para ela) Ô, lesma lerda, prá hoje, tá escutando ?
Zinha (volta com o bule. Olha para Clébio, depois para Formiga) Pressa tem. Só
que água ferve é no tempo dela.
Clébio Êi, novidade. Estudou, foi ? (ri) Agora chispa que é conversa de homem.
(Ela deixa o bule e sai) Então o Zé manda me prender e agora não quer me
receber.
Formiga Foi ele não, Seu Clébio.
Clébio Papou tudo sozinho e agora fica se escondendo. É ou não é ?
Formiga Nada. É, quer dizer... Só se ele conseguiu foi antes...
Clébio Mas tem o quê ? Dois, três meses, já era prá ter acertado ! Tá de tocaia...
Formiga (pausa) E se não tinha nada ?
Clébio Como que não ? Ía sumir, uma herança daquelas ? Pensa bem, é que nem a
fazenda do Zé.
Formiga É... muito chão.
Clébio Então. Mesmo tanto de ouro. Que os homens ganhava terra, e as mulher,
parte de dinheiro, jóia, essas coisa. A mãe que deixou prá ela.
Formiga A vó.
Clébio Seja. Diacho. Nalgum lugar tem que estar.
Formiga Então. O Zé diz... escutei falar... não podia de estar aqui ?
Clébio Esse tempo todo, cê acha que eu não... ? (pausa) Mas então ele acha que
eu... que eu que fiquei com o dinheiro da herança ? E tô aqui de besta, só se
for.
Formiga Tô falando nada.
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Clébio Pois olha aqui: volta lá e fala prá aquele...


Formiga Sou de recado, não, Seu Clébio, vai me desculpar.
Clébio Diacho. (pausa) Aqui... o que é que fizeram com a Celeste, onde foi que... ?
Formiga (pausa) Foi no rio.
Clébio Então acabou. Mas combinado era só um susto, precisava de matar ?
Formiga Seu Clébio, levantou uma poeira ! Disse que tinha alguém na polícia, e coisa
e tal.
Clébio Burrice ! Agora nunca que a gente vai achar jóia nenhumas. (pausa) Isso, se
o Zé não ficou com tudo sozinho.
Formiga Ficou, nada, tá arretado que só. (pausa) A... a dona Zinha...
Clébio Ocê gostou dela, não foi ?
Formiga Pode ser.
Clébio Então não vi ?
Formiga Pode ser d’ela saber.
Clébio Do quê ? Do... Ah, não... e não ía me contar ? Cê é besta ?
Formiga Sou, não senhor. Pode ser d’ela saber. E nem saber. (pausa. Encara-o, pega
o chapéu)
Clébio Ãhn... Nnnão. Hummm... É... Aqui, dinheiro tô em falta, ocê pega aí uns dois
cacho de banana e leva.
Formiga Combinado não foi isso.
Clébio Mas é o que tem. Não quer, não leva, diacho.
Formiga o encara e sai.

Cena 2 – Manhã. Clébio na banqueta prepara o fumo. Zinha entra com uma boneca de
pano debaixo do braço, vai para o fogão. Derruba utensílios, faz barulho.

Zinha Acabou o leite ?


Clébio Toma café.
Zinha Toma ocê.
Clébio Êia, mas é o quê, hein ?
Zinha É nada, é o quê ?
Clébio Acordou arretada, foi ?
Zinha Não dormi, né ?
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Clébio Não começa. (aproximando-se) Ó, trouxe aipim lá, tem que fazer a massa.
Zinha Ai, sai prá lá, ocê tá com um cheiro...
Clébio (cheira as próprias mãos) É o quê ?
Zinha Sei lá, tá fedendo.
Clébio Eu ?
Zinha Ocê. Parece porco....
Clébio É terra, mexi na terra.
Zinha A Jamanta, cheiro dela ! Ai, cê fica longe ! (afasta-se)
Clébio (pausa) Ô, Zinha, tava pensando... A gente podia era fazer uma cozinha, de
verdade, hein ? Prá cá, ó. (pausa) Então ?
Zinha (pausa) Prá quê ?
Clébio Ué, arrumar as coisa, não é cê que fala ? As panela, a comida na despensa...
Zinha Besteira.
Clébio Vou fazer. No verão eu faço.
Zinha Faz, ora.
Clébio E sabe o quê ? Umas galinha. Não é bom ? (aproximando-se)
Zinha É ? E vai por é aonde ?
Clébio (aproxima-se mais) Ah, aí eu faço cercado, poleiro, vou fazendo...
Zinha E a minha vaquinha leiteira ?
Clébio Então. Com dinheiro... (pausa) Ô, Zinha... cê não lembra alguma vez dela
falar... ela nunca falou um dia de te dar pulseira, colar, brinco...?
Zinha Quem ? A mãe ?
Clébio Então ?
Zinha A história da vó bisa, ocê tá falando? Êia, ocê acha... (ri)
Clébio Ué, não podia, d’ela ter falado pr’ocê ?
Zinha Falou o quê. Que !...tem dinheiro nenhum. (ri) Então cê acha... eu com uma
jóia ? Ih, já tinha era trocado tudo pela vaquinha.
Clébio É ? Tonta. E depois ? Ía fazer como ?
Zinha Depois eu ía me embora. Prá nunca mais.
Clébio Vai. Tá esperando ?
Zinha (pausa) Sabe é quê, o mais que eu queria, mesmo ?
Clébio Depois da vaca ou depois de ir embora?
Zinha (pausa) Eu queria era de encontrar a mãe. De verdade.
Clébio Diacho de carrapato, outra vez ! Não começa, larga disso.
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Zinha Mas cê sabe, não sabe ?


Clébio Sei nada, não enche.
Zinha Mentira. Não contou direito, até hoje não contou.
Clébio Nem ocê o que aconteceu com o Geninho.
Zinha Contei dez vezes, cem. Já disse que não foi eu.
Clébio Ah, cala a boca, sua besta !
Zinha Besta ocê.
Clébio Inferno. (levanta-se, sai)
Zinha (baixo) E lava a sua bosta, seu porco.

Cena 3 – À tarde. Zinha à mesa, amassando aipim. Clébio entra arrumado, encosta
atrás dela.

Zinha Cheiroso...Vai na cidade ?


Clébio Minha menininha... gosta ?
Zinha Moça. Sou moça.
Clébio Então. (pausa) Gosta ?
Pausa. Zinha mostra as mãos sujas de goma.
Clébio É o quê ?
Zinha Tô de goma, não tá vendo ?
Clébio Vai banhar, anda.
Zinha Tá frio lá fora.
Clébio Quê, deixa de bestice.
Zinha Ah... Tô ocupada.
Clébio Aí cê acaba depois.
Zinha Não.
Clébio Não o quê ?
Zinha Não quero.
Clébio Tô perguntando nada.
Zinha (pausa) Que dia que o Formiga vem aqui ?
Clébio Vem não, por quê ? Anda, vai logo.
Zinha Depois. Vou acabar.
Clébio Vai parar é agora. (pausa. Ela continua trabalhando) É um, é dois...
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Zinha É... é que eu não posso.


Clébio Deixa de bestice, anda. (ele a puxa)
Zinha Pára ! Tô com dor de barriga.
Clébio Nada, isso passa. (pausa) Vou contar até três. É um...
Zinha Um dia ocê vai ver.
Clébio É, que nem o Geninho, né ?
Zinha Pára, já disse que não fui eu.
Clébio Então vai, menininha, anda logo. (ele a empurra)
Zinha (esquivando-se) Me deixa. (para si) Deixa estar...
Lentamente ela arruma as coisas sobre a mesa, pega a faca sem que ele veja. Sai. Logo
se ouve um grito dela, abafado.
Clébio É o quê ?
Zinha (entra fingindo choro) Não te falei ? O sangue que veio.
Clébio Outra vez ?
Zinha Aqui, ó. (aproxima do rosto dele uma das mãos sangrando)
Clébio (afasta-se, assustado) Ai, tira isso daqui, nojenta. Ê, sangue ruim ! (ela
avança, ele foge, pega o chapéu e sai)
Zinha (ri) Medroso ! (tira a faca escondida na roupa, limpa-a, chupa o dedo
ferido, faz nele um curativo com um pedaço de pano).

Cena 4 – Fim de tarde, verão. Zinha está de casaco, com alguns curativos nos dedos,
comendo desarvoradamente.

Clébio (entra muito suado, com um saco carregado) Tó, tem umas manga aí. Tem
que chupar é logo, tá caindo de dar dó.
Zinha Manga. Manga. Cadê as galinha que cê ía arrumar ? A cozinha, a despensa ?
Clébio Ei, o que é que deu ? Ainda vou, dia desse eu vou.
Zinha Nada, vai nada.
Clébio Ôu, mas já tá comendo ? Não esperou por quê ?
Zinha Fome, ué.
Clébio Agora tá que come !
Zinha Mas que é, tá regulando ?
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Clébio Tô. Dinheiro não é teu, né ? (para si) Maldita herança encravada. A gente é
rico, vai ver tá sentado num monte de jóia, e só tem manga... Manga com
farinha. (de repente pára, ataca e destrói o banco, procurando inutilmente)
Inferno. (repara o casaco dela) Êia, mas ocê tá doente ou é o quê ? Agora
inventou de sentir frio ? Ô louco !
Zinha Me deixa ! O frio é meu.
Clébio (olha prá ela um tempo) O que é que é, hein, Zinha ? Virou poço sem fundo,
é ? Chega ! (tira-lhe o prato)
Zinha Tô com fome !
Clébio Mas tá uma porca, cê tá pior que a Jamanta, pode parar !
Zinha Pára, não tô.
Clébio Não cabe mais nem nas roupa, tudo estourando.
Zinha (levanta, tenta pegar o prato de volta) Larga ! Me dá !
Clébio Que, chega ! (de repente ele pára) Mas ocê tá... Zinha, ocê tá buchuda ? Tá
prenha ?
Zinha Eu ? Eu, não.
Clébio Deixa ver. Tá, sim.
Zinha Ô louco, eu nada.
Clébio O que é que cê andou fazendo, hein ? (bate nela) Sirigaita duma figa,
vagabunda!
Zinha Eu, nada, não fiz nada, juro.
Clébio Então, não, sua vaca dadeira.
Zinha Pára, cê tá doido. Ai !
Clébio O afilhado do Zé Dantonio... foi ele, não foi ?
Zinha Quem, o Formiga ?
Clébio Então não vi ?
Zinha Foi o quê ?
Clébio O dia que ele veio aqui ?
Zinha Ih, tem tempo...
Clébio Filha da puta.
Zinha É... não voltou mais.
Clébio É, foi ?
Zinha Ê, ocê que chamou, cê é besta ?
Clébio Besta, eu. Então foi quem ? Fala, estúpida !
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Zinha Ué, quem o quê ? Aqui ninguém não vem nunca!... (rindo) Ê, ê... ciumou,
foi?
Clébio Cê é tonta. Eu. (pausa) Buchuda tá ocê.
Zinha É ? (pausa. Ela se olha) Por quê ?
Clébio Não tô vendo ?
Zinha Ué, então...
Clébio (movendo-se sem parar) Então nada. Tá olhando o quê ?
Zinha Ué.
Clébio Tá doida. Cala essa boca.
Zinha Eu não sou louca ! (para si) É, sim, tem mãe, tem pai, tem filhote... (pega a
boneca) Se for menina vai chamar Dalgisa. Ou então Rosimeri. Se for
menino pode chamar Antonio... (começa a niná-la cantando baixinho)
Clébio (para si) Tá errado. Tá errado. (pausa. Para ela) Quanto tempo que cê não tá
de regra ?
Zinha Tem tempo. É, não, sei lá, tem mês, acho. Ah, não lembro.
Clébio Não lembra... Nem um mês. Como é que agora tá assim, toda prenha, hein ?
E já tá de muito, tem é tempo, isso. (sacode-a, bate nela) Vagabunda !
Zinha (chorando) Pára ! Eu não fiz nada, juro.
Clébio (repara nos curativos, desfaz um deles) E isso aqui ? É o quê ?
Zinha A faca, que cortou.
Clébio Mentirosa ! Filha da puta ! (bate nela)
Zinha Pára, tá doendo ! Ai ! Pára. Eu fico boazinha, prometo. Eu deixo. Pára, pai.
Clébio (empurra-a para um canto) E eu não sou teu pai ! Vagabunda que nem a
mãe. (pega o chapéu) Tem filho de qualquer um, é vaca do brejo, mesmo.
(sai)
Anoitece. Ela arma sua rede, pega a boneca e a nina. Dorme. Clébio entra meio
bêbado. Zinha acorda, mas finge dormir. Ele se aproxima dela, acaricia sua barriga
sem tocá-la. Depois arma sua rede e dorme.

Cena 5 – Na manhã seguinte, Zinha à mesa catando feijão.

Formiga (entrando) Dia.


Zinha Ué... Madrugou, foi ? O que é que é, deu formiga na cama ? (ri)
Formiga Foi ocê que chamou ou Seu Clébio ?
19

Zinha Eu não foi.


Formiga Ah... sei. (pausa. Baixo, segurando seu braço) Cê não quer mais ?
Zinha (afastando-se) Ué. Cê não voltou... agora... (toca a barriga)
Formiga (pausa) Tá quente, né ?
Zinha Quer água ? (Ele não se move) Quer café ? (aponta com a cabeça o bule
sobre a mesa)
Ele a olha. Ela serve um copo com café, oferece, ele fica olhando para ela.
Formiga Agradecido. Ocê tá... tá diferente...
Zinha É?
Formiga (devolve o copo sem beber) Tá frio !
Zinha Vou esquentar.
Formiga Ocê parece... (olha seu corpo)
Clébio (entrando) Tá crescendo, né ? Encorpou, virou mulher forte ! Ô, Zinha, serve
um café aqui pro seu Formiga, vai.
Zinha Já vou esquentar.
Clébio Logo, Zinha, que o compadre veio de longe só prá te ver.
Zinha Eu ? Ora...
Formiga Senhor que chamou.
Clébio Mas ele veio. E cedo. Saiu cedo lá do matão só prá te ver.
Zinha Foi ?
Formiga Senhor queria falar comigo ?
Ela se afasta com o bule.
Clébio É. Mas não é serviço, não. (pausa) É que eu tô pensando... a coisa lá com o
Zé tá encrespada, um disse-que-disse, hora dessa eu posso não estar mais
aqui.
Formiga Aí depende.
Clébio Todo caso. O assunto é resolver dessa menina: deixar arrumado. Não pode é
dela ficar sozinha. Qualquer coisa, amanhã, que a gente nunca sabe...
Formiga Sei...
Clébio Então. Moça direita, limpa. Lava, costura, cozinha, faz tudo na casa. Faz
tudo.
Formiga Sei...
Clébio Ainda ajuda na roça... E todos modos tem parte da herança, né ?
Zinha (aproxima-se com o bule de café) É quem ?
20

Silêncio. Ela coloca o bule na mesa


Clébio Então ?
Zinha Ó o café.
Formiga (pausa) Seu Clébio, eu sou muito agradecido, mas...
Clébio Vai fazer essa desfeita ? Ocê não vai tomar o café ?
Formiga O senhor não leva a mal, não...
Clébio Vai tomar do meu café e vai pensar direito.
Formiga É que eu pensei que era serviço.
Clébio E é. Como se fosse.
Zinha É qual que é o serviço ?
Clébio Ocê cala essa boca.
Formiga Ô, Seu Clébio, o senhor vai me desculpar, mas esse eu não faço, não.
Clébio Mas é desfeita, agora ? É serviço !
Formiga É não... serviço meu só é pagando.
Clébio Ah, tem graça, eu pagar !
Zinha Ô, Formiga, tá esfriando.
Formiga Ô, Zinha, cê vai me desculpar... (para Clébio) Seu Clébio, desfeita é minha,
não. Café requentado... nem pagando. Licença (sai)
Clébio Filha duma puta.
Zinha Ué ! O que é que deu ? Mal agradecido.
Clébio Ô, sua tonta, mas cê é besta, mesmo, ou é o quê ? Pamonha ! Quem que quer
ocê desse jeito, estourando a barriga de todo mundo ver ? (pausa. Ela chora)
É, vai chorando ! Faz o que quer, agora eu que tenho que arrumar.
Zinha Mas eu não fiz nada !
Clébio Não. E o Geninho, hein ?
Zinha Não foi eu, já disse !
Clébio Igual que a mãe: doida de varrer !
Zinha Pára ! Eu não sou louca.
Clébio Não. Não demora vai dizer que a culpa é minha.
Zinha Ocê tá dizendo.
Clébio Que o quê ?
Zinha Ocê.
Clébio Foi o quê !
Zinha Ué, e não ? Então foi quem ?
21

Clébio Cala essa boca ou mato ocê.


Zinha Então não. Corno é quem quer.
Clébio Filha da puta !
Brigam, ele lhe acerta um soco na barriga, ela cai.
Zinha Ai, o meu filho. Aqui, tá sangrando. Eu vou morrer... Seu covarde, matou
meu filhinho.
Clébio (pega a boneca, grita com ela) Não tem filho nenhum, não tem, cala a boca !
Zinha Não calo, não calo, vou gritar de todo mundo saber, animal ! Assassino.
Matou... (ele arranca pernas e braços da boneca, pega o chapéu) Pára, pára!
Espera... (ele sai). Espera que ainda eu mato ocê ! (desmaia).

Cena 6 – Um outro dia, de manhã. Zinha está costurando a boneca.

Zinha Ocê vai ficar boa, filhinha. Vou cuidar d’ocê. Minha mãe que falava assim...
(imitando) “Um dia vou te dar uma boneca...” E não foi ? Demorou, mas
ganhei. Linda !
Clébio (entrando) Ocê arruma suas coisa, s’embora.
Zinha Depois. Vou acabar.
Clébio Arruma logo, tudo. E é agora.
Zinha Tô ocupada.
Clébio Vai parar é agora. (pausa. Ela continua trabalhando) Tá surda ou é o quê ? É
um, é dois...
Zinha É prá quê ?
Clébio Ocê agora vai morar do outro lado. Acerto meu. Embora, anda.
Zinha Não quero.
Clébio Tô perguntando nada.
Zinha Não vou.
Clébio Ô, se vai ! E logo, que ele deu mais do que...
Zinha Ele quem ?
Clébio Junta aí tuas coisa, tudo.
Ele a empurra, ela começa a recolher as coisas lentamente.
Zinha Eu não quero nunca ficar longe d’ocê, pai. (pausa)
Ela pega a boneca, fala por trás dela. Ele não pára de se mover.
22

Zinha Ocê não quer mais brincar comigo ? (Silêncio. Ela tira a boneca da frente,
chora) Prá onde ? Por quê ? Eu vou é prá onde ?
Clébio (desviando o olhar) Ramiro, que é o nome dele. Primo do Zé Dantonio. Ocê
faz tudo o que ele manda. Ele agora é que é ... ele que é... ele que te manda.
Zinha Não quero.
Clébio Não tem que querer. (para si) Não tem que querer. (para ela) S’imbora.
Zinha Péra. (volta-se de costas para ele)
Clébio É o quê que tá faltando ?
Zinha (vira-se sensualmente, aproxima-se mostrando o corpo) Deixa eu ficar com
ocê, pai.
Clébio Zinha, cê tá fazendo...?
Zinha Deixa, pai... eu fico boazinha...
Clébio (aproxima-se até quase tocá-la. Depois reage) Ele já pagou, já... ele tá...
Vamos, Zinha, ele tá esperando.
Silêncio. Eles se olham. Ela fecha as roupas.
Zinha Ele pagou, foi ?
Clébio Ãh... não... ele... acertou umas conta aí prá mim.
Zinha E foi quanto que ele pagou, hein ?
Clébio Eu não... eu não queria...
Zinha Cem ? Duzentos ? Fala, pai, quanto ?
Clébio Quatrocentos.
Zinha Quatrocentos ! Dá prá comprar a vaca leiteira !
Clébio Dá não.
Zinha Ué, e dá, como não dá ?
Clébio Tava devendo, sobrou quase nada. É que eu pensei... ah, sei lá, tava jogando,
aí... escutei... acharam, alguém lá do Zé diz que viu pedra brilhando, broche
enterrado ali, perto do ranchão. Formiga tava lá, ele tá de prova... A herança,
pensei, as jóia da Celeste, só pode ser, ó o meu tesouro aí ! Aí fui, sorte vem,
jogando e subindo e soltando a pipa, dididi, dádádá... foi, foi... diacho.
Quando vi, desgraça. Nada, miçanga de criança, escondeu e esqueceu. E a
pinga. É, foi isso. Chega. Então, não dá. Vaca nenhuma.
Zinha (pausa. Então ela avança repentina e violentamente sobre ele) Cachorro
filha da puta, jumento idiota ! Cê é um estúpido. Animal, imbecil. Eu mato,
um dia cê me paga, ocê vai ver.
23

Clébio (segurando seus braços) É, vou ver, vou ver o que o Geninho viu. Pára,
deixa de ser louca !
Zinha (gritando enlouquecida) Não fui eu ! E eu não sou louca ! (chora) Não sou...
Clébio Sorte foi de encontrar quem pagou, ô louco ! Agora cala essa boca. Pega
seus tudo e vamos s’embora.
Silêncio. Ela vai recolhendo as coisas, por último, pega a boneca.
Clébio (arranca a boneca dela, joga num canto) Deixa isso aí. Não precisa.
Zinha (fica um instante paralisada. Depois, lentamente olha a boneca, olha para
ele) Tava pensando: e se acontecer... se acontecer d’ele ser bom prá mim?
Clébio Bom pr’ocê.
Zinha (lentamente, enquanto Clébio fica paralisado) Mas e se acontecer, pai... e se
acontecer de eu gostar ? (pausa) E se eu gostar desse tal de Ramiro, hein ?
(pausa) E se eu gostar desse Ramiro, mas se eu gostar dele mais do que
d’ocê ? (pausa) Não pode ser ? Não pode ? (pausa. Ri) S’embora, pai !
Embora logo, pai! (cai na gargalhada)

Cena 7 - Luz na passagem de tempo. Clébio entra transtornado, arruma seus pertences
em um amarrado, bebe um copo de água. Pega a garrucha escondida, carrega-a, sai.
Logo ouve-se um grito rouco, um baque.

Zinha (entra correndo, as roupas rasgadas e marcas de agressão pelo corpo) Pai,
pai ! Cadê ocê ? (Silêncio, depois alguns passos) Pai ! Ocê foge, pai,
desaparece! O Ramiro tá doido...
Formiga (entra, limpando-se) Tarde, Zinha. Dona Rosinha. É... Chegou tarde.
Zinha Ocê, Formiga ?
Formiga Não, eu não ! Tá pensando ? Eu tentei...Vim avisar Seu Clébio. Mas foi
tarde. Ainda vi sair correndo.
Zinha Quem foi ?
Formiga Ué, gente do Ramiro. Diz que levou gato por lebre.
Zinha Por causa do tal tesouro, que era tudo miçanga ?
Formiga (encarando-a) É. Não. Quase.
Zinha Sei...(chega na porta, se assusta, volta) Nunca pensei. (chora)
Formiga Cê não gostava dele !
24

Zinha E ocê, sabe o quê ? (pausa) Foi que jeito ?


Formiga Que diferença ? (pausa) Foi de faca.
Zinha Faca... Tem que ter coragem.
Formiga (pausa) Ele te machucou ?
Zinha Quem ? O Ramiro ? Não... não quis saber... ficou foi louco...(pausa) E
agora?
Formiga Vou fazer o buraco perto das mangueira. Melhor de cavar, na sombra. (sai)
Zinha (olha a casa, vê a boneca num canto, pega-a no colo) Vem, Dalgisa. Agora a
gente descansa. (pausa) Vai, pai. Quem sabe ? Vai que ocê acha a mãe por
lá ? (pausa) Vai, vai ter com o Geninho, pergunta prá ele se foi eu. Sangue
ruim. (Pega água do cântaro, vai até a porta) Já tá bom assim.
Formiga (entrando, com uma pá.) E agora ?
Eles se olham. Ela lhe dá o copo dágua, ele entrega a pá e bebe.
Zinha Cê pode ir.
Formiga (aproximando-se) Ocê vai ficar sozinha ?
Zinha (encarando-o, pega o copo de volta) Tô com o Ramiro, esqueceu ?
Formiga Mas foi ele que mandou !
Zinha Que diferença ? (pausa) Só que ele que manda. E depois...
Formiga (aproximando-se) Vem comigo, Rosinha. A gente podia...
Zinha Tarde. Agora é tarde. (joga a pá num canto) Vai, Formiga, vai achar outro
buraco pr’ocê. (Ele pega o chapéu, sai) Do teu tamanho... (Ri. Volta-se, fala
com a boneca) Depois, não combina, Rosa com Formiga. Já viu ? (Ri. Nina
a boneca cantando enquanto a luz cai em resistência).

fim do 2º ATO
25

3º ATO

Mesmo cenário do 2º ATO (Casa de Clébio), mas com quatro redes desarmadas, duas
em cada lateral.

Cena 1 – Tarde. No centro, Geninho e Zinha estão abraçados. Ela chora.

Geninho Não chora, Zinha.


Zinha Foi todo mundo embora.
Geninho Eu tô aqui.
Zinha Como é que vai ser ?
Geninho Depois vou lá na cadeia falar com ele.
Zinha Vai que ocê é preso também.
Geninho Por causa de quê ? Eu não fiz nada.
Zinha Ué, o pai também não.
Geninho Não sabe, tá falando.
Zinha Êia ! Ocê, sabe o quê ?
Geninho Sei lá, mas a gente viu...
Zinha Viu foi de sempre, eles brigaram. Pronto, o que é que tem ?
Geninho Tem que ela não voltou.
Zinha Ela volta. Sempre volta.
Geninho Zinha, já tem por aí uma semana, deixa de ser tonta.
Zinha Tonta ocê. Se ela foi na cidade, como daquela vez ?
Geninho Nem levou roupa, só uma cesta. Depois, é diferente.
Zinha Diferente. Por causa de quê ?
Geninho Ah, que ela tinha ido no hospital. Por isso.
Zinha Então ? Não pode ser ? Tanto que ele deu nela...
Geninho É, ele pode até ter matado, não pode ?
Zinha Mas a gente viu ela sair.
Geninho É, e ele atrás.
Zinha Então.
Geninho Então o quê ?
Zinha É... (pausa) Mas não foi ele, falou que não !
26

Geninho A polícia que levou, ué.


Zinha Pára. E ninguém não matou nada.
Geninho Tá. Então tá. (pausa) Tô com fome.
Juntos (eles se olham) Mata um home e come. (riem)
Anoitece. Zinha põe pratos e comida na mesa
Formiga (entrando, tira o chapéu. Está sem bigode) Noite.
Geninho Êia, isso é hora ?
Zinha (para Geninho) Ôou. (para Formiga) Boa hora. Quer comer ?
Formiga Agradecido. O Zé Dantonio que mandou.
Geninho Ah, mandou ? Então foi ele que mandou ?
Formiga Saber d’ocês, se tá faltando alguma coisa...
Geninho (encarando-o) Não, tá sobrando.
Zinha (para Geninho) Ôu ! Não fala assim. (para Formiga) O Formiga veio de
longe, né ? Quer água ? Café ?
Formiga faz um gesto recusando.
Geninho Tá. (Para Formiga) Então pergunta pro Zé Dantonio cadê a minha mãe.
Zinha Ué, e ele sabe ?
Geninho Não é ele que sabe tudo aqui de Urticária? Tá faltando é achar minha mãe,
só isso.
Zinha E soltar o pai, né ?
Formiga Aqui, sou de recado, não. Zé Dantonio falou assim: Seu Clébio preso,
Formiga toma conta.
Zinha Então ocê vai ficar aqui ? Bom, vou arrumar... (vai pegando uma rede)
Geninho Vai arrumar nada (arranca a rede da sua mão). Ocê pára com isso !
Zinha E ele vai dormir aonde ?
Geninho Eu sei lá. Aqui é que não.
Zinha Por quê é que não ?
Geninho Porque eu não quero.
Zinha Mas eu quero.
Geninho Ocê deixa de assanho...
Zinha Cê não me manda.
Geninho Não ? Quer ver ? (ele avança, ela grita, eles se atracam) E cala essa boca.
Formiga (entrando no meio) Parou todos dois !
Geninho (pega uma faca sobre a mesa) Parou. Quem manda sou eu.
27

Zinha Então vai mandar sozinho.


Ela se afasta de Geninho, indo em direção a Formiga, mas logo Geninho avança por
trás e lhe abaixa a saia até embaixo. Ela dá um grito, ele ri. Todos param. Ela olha
para Formiga, que vira o rosto. Silêncio. Ela se veste lentamente.
Zinha (para Geninho) Estúpido.
Geninho (pausa. Para Formiga ) E ocê...escuta bem: o dia que formiga tomar conta
da minha casa, é que eu morri. Chispa, tá esperando o quê ?
Formiga Tem nada não, Zinha. Eu volto. (sai)
Noite. Geninho prepara sua rede, Zinha pega a que ficou no chão, pendura na parede
oposta.
Geninho Agora pode até escolher, né ?
Silêncio. Geninho vai para a rede próxima à dela. Ela se afasta, volta para a rede na
outra parede. Ele desiste. Ficam em paredes opostas.
Geninho Amanhã ver se eu vou lá falar com o pai. (pausa) O que ele acha do Formiga
por aqui. (pausa) Comida tava boa, acho até que cê cozinha melhor que a
mãe.
Silêncio. Ele dorme. Ela levanta, pega a faca, esconde na roupa, volta para a rede.
Logo depois ele fica de pé, fala dormindo com uma mão estendida para alguém e a
outra protegendo os genitais. Ela assiste perplexa.
Geninho Não, não faz isso, não... Foi sem querer...
Zinha Geninho !
Geninho Ela é minha irmã !
Zinha Ei, sshhh. É o quê ?
Geninho Não, não corta, não ! Por favor ! Por favor !
Zinha Geninho !
Geninho Nunca mais... Bom, tá bom.
Sonâmbulo, ele se deita novamente. Com a faca na mão, ela contorna a rede onde o
irmão dorme. Depois ela volta para sua rede.

Cena 2 – Manhã do dia seguinte. Zinha à mesa catando feijão.

Formiga (entrando) Dia.


Zinha Formiga ! Entra, meu irmão saiu.
Formiga Eu vi.
28

Zinha Foi lá no pai.


Formiga Sei.
Zinha Se não voltar hoje, eu que vou lá. Fica preso tudo junto.
Formiga (ri) Carece não. Ele volta.
Zinha E o pai ?
Formiga Também. Daqui a pouco volta.
Zinha Cê sabe ?
Formiga Ué, se ele não fez nada... (pausa) Ô, Zinha... cê tava, ocê viu hora que a
polícia levou ele ?
Zinha Uai, ontem, tava eu mais o Geninho. Por quê ?
Formiga Não sabe se ele deixou... é... uma ordem, alguma coisa prá fazer... ? Que é
prá ajudar...
Zinha Só falou que não foi ele.
Formiga Sei. Outra coisa: Zé Dantonio quer saber... ocê não sabe se tem um lugar que
ele guardava um dinheiro ? Que é prá poder soltar ele mais logo... ele ou tua
mãe...
Zinha Tem não. Dinheiro nada, que a briga deles mais era por causa disso. (pausa)
E a minha mãe ?
Formiga O que é que tem ?
Zinha Tá na cidade ?
Formiga Não. Quer dizer, não sei. Prá onde que ela foi...
Zinha Eu queria ir prá lá.
Formiga Tá louca ?
Zinha De querer ir na cidade ? Por quê ?
Formiga Ah, não... É que... Muita gente... (pausa) Mas cê querendo...
Zinha Me leva lá, Formiga ?
Formiga Só se for de vez.
Zinha Morar, cê tá falando ?
Formiga É. A gente podia...
Zinha Eu quero.
Formiga Quer ? Quer mesmo ?
Zinha Quando eu crescer.
Formiga Ah...
Zinha Também eu vou querer ter um filhinho. Ou dois. Ou três.
29

Formiga É muito.
Zinha Não é, nada. Menino, chama Antonio. Se for menina, vai ser...
Formiga Rosimeri.
Zinha Dalgisa. Rosimeri ? Tá bom, então três. Resolvido. (pausa) E o Geninho?
Formiga O que é que tem ?
Zinha Não vai deixar.
Formiga Aí essa parte resolvo eu.
Geninho (entrando) Bonito, só eu cuidar da vida, ocê já tá de sem-vergonheira.
Zinha Geninho ! Ué, mas chegou cedo ! Já foi e já voltou ?
Geninho E ocê, quem mandou cê entrar ?
Zinha (pausa) Foi eu.
Formiga Ocê não toca nela.
Geninho É minha irmã, toco quanto eu quiser.
Zinha (mostrando a faca) Toca, nada.
Geninho Zinha ! Larga isso, anda.
Zinha Fica longe. A gente vai prá cidade, atrás da mãe.
Geninho E quem que disse que ela tá lá ?
Zinha Ué...
Geninho E quem que disse que ela tá viva ?
Zinha Tá louco ? Ninguém ía matar a mãe. (para Formiga) Por causa de quê ?
Formiga Ué, e eu que sei ?
Geninho Não, né ? Mas eu sei.
Zinha É ? Onde que ela tá ?
Geninho Abaixa essa faca. (ela obedece) Fui no pai, não. Fui no Zé Dantonio.
Assuntar.
Zinha Ele sabe da mãe ?
Geninho Deve de saber, né, Formiga ?
Formiga Ocê que tá falando.
Geninho Tô. Que depois da briga a mãe foi direto lá.
Formiga Quem que falou ?
Zinha Mas ela foi até lá caminhando ? De noite ? E sozinha ?
Geninho Quem falou não interessa.
Zinha Uia que é longe, demais! E ainda periga de cair no rio.
Geninho Cala a boca, Zinha.
30

Zinha O que é que ela foi fazer lá ?


Geninho Diz que foi pegar o baú com as coisa dela.
Formiga Foi levantar poeira.
Zinha Mas isso tá lá desde... Ela sempre que queria de volta.
Geninho Desde antes de casar, que ela morou lá. Mas o Zé nunca que devolveu.
Formiga Então é que ela foi morar na cidade. Se levou o baú...
Geninho Quem diz que levou ? Que o Zé, parece, queria as jóias na troca do baú.
Formiga Jóias ?
Zinha As jóias da vó bisa.
Geninho Que vó bisa, cê é tonta ! Se tinha alguma coisa, foi primeiro da bisa. Depois
é que passou prá vó.
Formiga E depois, passou prá quem ?
Geninho Êia, tem jóia nenhuma, tudo mentira inventada.
Formiga Ocê não disse que era o baú no lugar das jóias ?
Geninho Alguém lá que falou, mas ninguém não viu nunca, em lugar nenhum.
Zinha O pai e a mãe vivia brigando causa disso...
Geninho Zinha !
Zinha É, sim. Ele dizia que ela tava escondendo.
Formiga Ah, é ? E ela, dizia o quê ?
Zinha Ué, que não, que então ele casou errado.
Geninho Zinha !
Zinha Que o Zé que tinha empurrado dela casar, que se ela tinha uma jóia alguma,
largava dele já e já prá cidade.
Geninho Nada, tonto que foi o pai se pensou, que era tudo inventice. Mas que ela tava
era cismada duns acertos lá.
Formiga Vai ver acertou e foi prá cidade, mesmo.
Zinha Então vamos lá procurar.
Geninho Zinha, o pai é que foi na polícia primeiro, cê esqueceu ? Polícia procurou,
não achou. Diz que a mãe sumiu.
Zinha É... depois veio e levou o pai.
Formiga Então pergunta o seu pai o que é que ele fez com ela.
Geninho Escuta aqui, Formiga, não pedi palpite. Agora fala: ocê viu ou não viu minha
mãe lá no Zé ?
Formiga Virou polícia, foi ?
31

Geninho (avançando) Eu perguntei se ocê viu ela lá.


Zinha Ele não sabe.
Formiga Vai ver ela cansou d’ocês e sumiu com outro.
Geninho (apertando-o contra a parede) Filha duma puta, engole essa língua, animal.
Tu que nem mãe tem.
Formiga Povo é que fala. Sei nada, não.
Zinha Pára, Geninho, tá machucando.
Geninho (apertando mais, Formiga quase sem ar) E depois, hora que a mãe saiu de
lá? Foi com quem ? Fala, diacho !
Zinha (com a faca, chorando) Larga ele, Geninho, pára com isso.
Geninho olha prá ela, faz um movimento para tirar-lhe a faca e nisso Formiga foge.
Geninho (guardando a faca) Mas cê é tonta, mesmo. Não vê que cheira esquisito ?
Zinha O Formiga ? Por quê ? O que é que ele fez ?
Geninho Aí eu não sei. Mas vou saber.
Zinha Ocê quer ser Zé Dantonio, de saber tudo.
Geninho Ô Zinha, tô com fome.
Zinha Mata um home e come.
Geninho Vai fazer comida, não ?
Zinha A fome é tua.
Geninho Mas cê é besta ou é o quê ?
Zinha Sou nada.
Geninho (puxa o cabelo dela) Ocê larga de ser tonta, anda, vai fazer o almoço logo.
Zinha Ai ! Pára. Estúpido. (pausa) Dá a faca.
Geninho Dou nada.
Zinha Então, não. Que jeito ? Cozinhar como ?
Geninho (pausa) Traz aí as coisa que eu corto pr’ocê.
Zinha Ai é ?
Geninho É.
Zinha Quer saber, acho até bom.
Geninho Então. Vai lá pegar.
Ela vai ao fundo, traz cebolas, aipim, carne seca, etc. Sentam-se à mesa.
Zinha (rindo) Se o pai sabe, ocê cozinhando em vez de mexer na terra... Já
pensou ?
Geninho O pai tá preso. (ele vai cortando pedaços de aipim)
32

Zinha Não !
Geninho Que não ?
Zinha A casca primeiro.
Geninho Que diferença ?
Zinha Cê não sabe é nada. Dá aqui, vou mostrar. (pega a faca, descasca)
Geninho É, até que cê aprendeu, ensinei foi bem (riem, brincam).
Zinha Então, ô, sabe tudo, fica com a cebola, tó. (passa-lhe as cebolas) Fininha,
hein ? (passa-lhe a faca. Continua os afazeres, espreitando-o)
Geninho Amanhã vou lá no pai.
Zinha Sei.
Geninho Tá cheirando esquisito.
Zinha É cebola. (vendo que ele parou) Ôu, cê não ía ajudar ?
Geninho Vou saber isso do baú, dos acertos... (começa a chorar ao cortar cebola)
Zinha (rindo) Ocê tá chorando, Geninho ?
Geninho Diacho !
Zinha Ué... Não diz que homem não chora ?
Geninho Pára !
Zinha Se o pai sabe...
Geninho Eu vou melar é tudo.
Zinha Quê ? Por causa da cebola ? (ri)
Geninho (chorando de verdade) Da mãe, Zinha, por causa da mãe ! Ela não volta, não
volta, nunca mais !
Zinha Pára. Ela volta ! Não fala assim. (começando a chorar também)
Geninho Vou saber quem foi, eu vou matar o animal.
Zinha E vai preso também ? Vai me deixar sozinha ?
Geninho Maldita, vida. Inferno, isso de ter que morrer.
Zinha Não fala ! Morreu não, ninguém não matou nada !
Eles se abraçam, choram, se acariciam.
Zinha Vamos comer, vem.
Eles quase se beijam.
Formiga (entrando, surpreende os dois) Ôoou ! Quê que é isso ?
Geninho Diacho ! Tá aqui por quê ?
Formiga Vim acabar a conversa.
Zinha Ai, não vai brigar de novo, cês dois.
33

Geninho (levantando-se) Então, foi buscar coragem ?


Zinha (segurando Geninho) Cê porvoca.
Formiga Deixa, Zinha. Coragem dele é só de bater em mulher.
Geninho Deve de ser por isso que ocê fugiu.
Formiga Então tô querendo mais. Vamos, levanta daí.
Zinha A gente vai é comer.
Geninho (livra-se de Zinha, avança para Formiga). Alguém que vai comer é formiga.
Zinha Pára, cês dois.
Geninho (agarra-o pela camisa) Agora responde, covarde, cadê a minha mãe?
Formiga (livra-se violentamente) Sei dela, não.
Geninho Sou besta. Desgraçado, ocê.
Formiga Tá louco, a D. Celeste ? Eu ía fazer mal prá mãe d’ocês ? Hein, Zinha ?
Nunca.
Geninho Então fala: o que é que o Zé fez com ela ?
Formiga Eu que sei ? Pergunta prá ele. Vai lá, uai. Cadê a coragem ?
Geninho Cala a boca, filha duma puta.
Geninho avança, eles lutam. Fisicamente superior, Formiga mais se defende e o afasta.
Zinha Pára, pára de brigar !
Formiga Tá louco, ocê. Não era prima dele ?
Geninho Então, era ! Viu ? Matou, matou, sim. Ele matou a mãe !
Zinha É quem ?
Formiga Cê é besta ? Ía de matar bem a prima ?
Zinha A mãe ? O Zé ?
Formiga Vai lá, pergunta ! Pergunta o Zé Dantonio se não matou a prima. Ou então
vai na polícia, diz que o Zé doidou, que a D. Celeste...
Geninho Cala a boca ! Pára !
Geninho avança com mais raiva, os dois se atracam.
Zinha Pára, solta. (corre, pega a faca) Pára ocês dois, pára ! (tenta afastar um e
outro, não consegue, sai chorando com a faca na mão)
Quando Geninho percebe que ela saiu, empurra Formiga violentamente.
Geninho Zinha ! (para Formiga) Ó o que cê fez, animal. (já na porta) A conversa não
acabou. Vai esperando. (para fora) Zinha !
Formiga (segurando-o) Mas vai acabar aqui e é já.
Geninho (livra-se com dificuldade) Zinha ! Zinha ! (sai correndo)
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Formiga revira a casa procurando, inutilmente. Depois se arruma, bebe água, belisca
um pedaço de carne. Sai lentamente.

Cena 3 – Tarde. Zinha volta chorando, desnorteada.

Zinha Mãe ! Mãe ! Eu não queria... O Geninho... Mãe, foi sem querer. Eu não... O
que é que vai ser ? Volta, mãe. Tô sozinha. Tô com medo... Não foi eu, não
foi. Caiu, mãe. Ele que veio prá cima, a gente... é muito fundo, ali.
Formiga (entrando, com um grande corte no braço) Zinha ! O Geninho. Viu que cê
fez com ele ?
Zinha Não fiz nada.
Formiga Afogou, Zinha. Ocê empurrou ele no rio.
Zinha Eu, nada. Não foi culpa minha !
Formiga Mas foi. Ele não ía cair sozinho.
Zinha Pára ! Não fui eu.
Formiga Eu vi cê empurrando.
Zinha Mentira. Viu nada.
Formiga Empurrou ou não empurrou ?
Zinha Foi sem querer.
Formiga Ocê que matou ele, Zinha.
Zinha Não matei. Ele caiu. Caiu.
Formiga Caiu, afogou. Não ía matar ? Foi com a faca por causa de quê ? (ele mostra a
faca, coloca do seu lado)
Zinha Sai ! Vai embora, some daqui. Me deixa ! (aos poucos se acalma. Ao pegar
a faca, vê que está suja. Estranha, mas depois vai terminar de preparar a
comida)

Cena 4 – Manhã do dia seguinte. Zinha varrendo.

Formiga (entra apressado com um amarrado de roupas e um curativo no braço) Dia.


Zinha Tô varrendo.
Formiga Tô vendo. (pausa. Tira do amarrado a boneca de pano)
Zinha Que é isso ?
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Formiga É tua.
Zinha Que linda !
Formiga Parece com ocê.
Zinha É ? Vai chamar Dalgisa.
Formiga Eu que guardei pr’ocê. (pausa) É... tua mãe que mandou.
Zinha Ela voltou ? Onde que ela tá ?
Formiga É... não, ela tá... lá na cidade.
Zinha E não vem ?
Formiga (desviando o olhar) Não. E também não quer ninguém procurando. Não quer
saber.
Zinha Nem eu ?
Formiga Ocê, então... ela ficou sabendo.
Zinha De ontem ? Do Geninho ?
Formiga Então.
Zinha (começa a chorar) Mas foi sem querer !
Formiga Chora, não, Zinha.
Zinha Não foi culpa minha.
Formiga Tá. Mas não chora.
Zinha Choro ! Cê não tem mãe ?
Formiga Mãe ? Tenho não. (pausa) Tamanduá matou.
Eles se olham, riem.
Zinha Mentira.
Formiga Mentira. Pr’ocê rir.
Zinha (pausa) Quem que contou prá ela ?
Formiga (pausa) Zé Dantonio. Mandou recado.
Zinha Ele sabia que ela tava lá... (pausa) A Dalgisa, onde que ela tava ?
Formiga Tua mãe que levou.
Zinha Prá cidade ?
Formiga Não, ela caiu, só achei depois... É, quer dizer, não, é... ãhn... ah, ela tava lá
no Zé. Não tem umas coisa lá, da D. Celeste, de quando solteira ?
Zinha No tal baú ?
Formiga Então. Aí o Zé... Ela que falou pro Zé te entregar. Foi, foi isso. (pausa) Tem
outra coisa: teu pai.
Zinha O que é que tem ?
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Formiga Vão soltar.


Zinha É ? Quando ?
Formiga Logo. Por causa do Geninho, que é prá cuidar d’ocê.
Zinha Então ele já sabe ?
Formiga É.
Zinha Zé Dantonio que contou. (Ele confirma com a cabeça. Ela vê o curativo no
braço dele) Que foi isso, machucou ?
Formiga Não. É... sem querer.
Zinha (pausa) De faca ?
Formiga Não. Arame... A cerca lá, do matão.
Zinha Ah...
Formiga (pausa) Ô, Zinha, tem um serviço... eu vou aí prá fora um pouco... É... Eu
voltando, depois, ocê vai comigo prá cidade ?
Zinha (pausa) O Geninho... ele morreu de afogado, mesmo ?
Formiga Ué, do que que havia de ser ?
Zinha Ocê viu ele afogando ?
Formiga Então não ?
Zinha E não ajudou ?
Formiga Que jeito ? É fundo ! (Silêncio. Eles se olham, desviam o olhar, ela volta a
varrer) Ocê tá dizendo...?
Zinha Falei nada.
Formiga (pausa) Então bom. Já vou.
Zinha (pausa) Vai. A gente vai acabar de arrumar.
Formiga (pausa) Agora ocê fica sozinha... mas só até Seu Clébio chegar.
Zinha A gente vai esperar o pai. Eu mais a Dalgisa. Ocê pode ir.
Eles se olham, ele sai. Ela brinca com a boneca.
Zinha A mãe bem disse: (imitando) “Um dia ocê vai ganhar uma boneca. Quando
for a hora...” Vem, filhinha, vem que eu vou cuidar d’ocê.
Rosa (entrando pela lateral, por fora da casa) Só um instantinho, Fernão. Aqui foi
que eu morei.
Zinha (olhando pela janela) É a mamãe ! Ela voltou, ela voltou !
Rosa Olha, tem uma menina ali, na minha casa !
Fernão (entrando, não enxerga a menina) Abandonada tem tempo !
Zinha Mãe ! Olha, mamãe, tô cuidando dela. (mostra a boneca, acena)
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A luz sobre Zinha vai se reduzindo até ela deixar de ser visível.
Rosa Tá acenando prá mim. Com uma boneca igual que a minha !
Fernão (rindo) Êia, essa casa ficou com assombração...
Rosa Pára. Eu não sou louca.
Fernão É, não, ocê é linda, Rosinha (dá-lhe um beijo). Agora vamos, que tá ficando
tarde. É longe. (vai saindo)
Rosa É. Chega de Urticária. (De dentro do seu amarrado tira uma outra boneca
igual à de Zinha. Fala baixinho com ela, coloca-a frente à casa) Ê, Dalgisa,
penou foi bem, né,? Agora ocê fica aqui. Ocê descansa. (cai algo de dentro
da boneca) Ué! Que é isso ? (rindo) Tá fazendo xixi, Dalgisa ? (vê as jóias)
Minha, nossa ! É...é ouro ! As jóias da vó bisa...o tempo todo aí... e só agora!
Fernão (de fora) Ó nossa hora, Rosa.
Rosa (esconde rapidamente as jóias) Hein ?
Fernão (entrando) Então, meu tesourinho ? Vamos !
Rosa Ãhn... Eu ?
Fernão Ora... Quem mais ? (Riem)
Ele oferece o braço, ela aceita. Saem com luz caindo em resistência, um foco na
boneca.

fim do 3º ATO

FIM

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