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Urticaria
Urticaria
Urticária
Peça em 3 ATOS
de
Veronica Diaz
Personagens:
Fernão
Clébio
Rosa
Formiga
Tonho
Geninho
Zinha
Obs:
− Menção honrosa no 6º. Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos de
Carvalho (2006), da Prefeitura de Porto Alegre
− Leitura pública em 2007 na Casa da Gávea com Gisele Fróes, Marcello Escorel e
outros
− Publicada em 2008 pela Prefeitura de Porto Alegre.
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1º ATO
Casa de Ramiro. Sala de uma casa rústica do interior. Portas que dão para dois
quartos, janelas, saída para a cozinha. Uma mesa e 3 cadeiras.
Cena 1 - Noite de sábado. Sala iluminada por um lampião que está sobre a mesa. No
centro, Rosa e Tonho abraçados. No chão, uma faca.
Tonho Eita, que esse café hoje tá bom demais. Senhora caprichou !
Rosa É ? Sei lá.
Tonho Parece que encorpou, tá mais cheiroso.
Rosa É...vai ver. Vai que até o café ficou melhor. (Riem) Sabe uma coisa, Tonho ?
Acho que cê podia ver se as roupa dele te serve. Precisando, eu aperto.
Tonho É, né ? Tem umas camisa...
Rosa Mais ? (serve o café)
Tonho Nem foi tão ruim assim.
Rosa É o quê ?
Tonho O de ontem. Não pensei de ser assim, fácil. Só a coisa do dinheiro é que não.
Rosa Que o quê ? Tá dizendo que cê já tinha estudado ?
Tonho Do jeito que ele era... a gente sempre pensa... a senhora... cê nunca pensou ?
Rosa Ah, pensar é uma coisa...Outra coisa é tomar de mão.
Tonho Agora tá bom, não tá ? Só nós dois. E esse café ! (pausa) Negócio do
dinheiro, será que ele gastou tudo mesmo, não será que escondeu algum ?
Rosa Nada. Já chegou torto e sem nada. Por isso é que começou.
Tonho Diacho. Eu vou é assuntar com o Zé Dantonio, quem sabe.
Rosa Ô Tonho, cê sabe um dia é o que que eu queria ?
Tonho É...ainda tem a história da herança...
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Rosa Ih, bobeira, inventice, tivesse alguma jóia um dia, cê acha que... Tssq. Ah !
Ó, cê sabe o quê que eu queria mesmo ? Era ir prá cidade.
Tonho Ah, eu não. Tudo espremido, prá quê ?
Rosa Nada. Lá tem tudo.
Tonho Aqui tem o que precisa.
Rosa Lá tem tudo mais. Não quer, não, dia desses a gente passear na cidade ?
Tonho Só de passeio, ainda vai.
Rosa Então, a gente podia ir lá.
Tonho Agora ?
Rosa Ué, tem hora prá quê ?
Tonho Ah, não, agora não. Sabe o que eu queria, mesmo ?
Rosa É o quê ?
Tonho Era ir pro norte, de vaquejada.
Rosa E cê lá sabe de gado ?
Tonho Aprendo, ué.
Rosa Ah, então isso é depois.
Tonho Então.
Rosa Ô, Tonho, mas cê estudou mesmo, foi ? (pausa) E tinha era de ser ontem por
causa de quê ?
Tonho Ah, porque... Ih, deixa ! É só que ele tava mais arretado, só isso. Deu no
sangue.
Rosa É nada. Cê estudou, sim. E é que ontem era o pagamento. Só queria o
dinheiro, pode falar. (ri) E nem isso. (Sai com o bule e as xícaras)
Cena 3 – Almoço de domingo. Rosa vai saindo arrumada, levando uma marmita. Tonho
brinca com a faca.
Rosa Melhor eu ver o almoço. (Sai com a marmita, volta com lenço na cabeça e
avental) Ô, Tonho, eu vou te falar uma coisa. Eu acho que ocê foi é muito
corajoso. Eu tinha coragem de me deixar matar, mas não tinha coragem de
matar uma pessoa.
Tonho É, tem que ser homem.
Rosa Como é que foi, hein, Tonho ?
Tonho Ué, ocê não viu ?
Rosa Eu vi. Eu tô perguntando é onde foi que cê aprendeu isso, da faca...porque
não é qualquer um, não é também assim, de qualquer jeito.
Tonho Ah, aprendi com o Zé Dantonio. Tava ensinando matar porco, lá no ranchão,
daí eu perguntei... ou foi ele que falou, não lembro: “mas gente não é igual
que porco, né ? ”
Rosa Tem uns que é, né, Tonho ?
Tonho Modo de matar, né não. De porco, melhor aqui na frente, por baixo... mas de
gente, melhor de lado, aqui assim, na veia. “Nulugar”, que chama.
Rosa Cê estudou foi bem, né, Tonho ? Credo, aquele sangue esguichando. Nem
galinha eu posso !
Tonho Esse almoço, sai ou não sai ?
Rosa Ah, que cabeça. Já, já. (Começa a servir. Silêncio) Ô, Tonho, tava
pensando... Por quê que a gente não vai s’embora prá cidade ?
Tonho Fazer o quê lá ?
Rosa Ué, morar. Pelo menos tem gente.
Tonho Gente. Prá quê que eu quero gente ? Tá sempre querendo história, sempre
atrás de festa.
Rosa Não fala assim.
Tonho É, sim. Eu falo. De jeito nenhum, aqui tá bom.
Rosa Mas lá tem o teu tio, pode ajudar.
Tonho Meu tio, sei. Pensa que não ?
Rosa Ele pode arranjar um emprego pr’ocê.
Tonho Ele é da polícia !
Rosa E que é que tem ?
Tonho Cê doidou ? Esqueceu o que aconteceu ? É não, é que só quer bailinho, só
quer eu sei o quê. Sirigaita.
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Rosa (pega a faca, aponta prá ele) Ocê pára com isso. Não quer ir prá cidade, vai
ter que ir lá no casarão, no lugar do teu pai. Vai lá, dá comida pros cachorros,
capina o jardim, varre o quintal. De dia ocê apaga a luz, de noite cê acende.
Se aparecer alguém se metendo a besta, ocê bota prá correr, que cê já é
homem crescido.
Tonho (pausa) Senhora leva a marmita prá mim ?
Rosa o encara, tira os pratos da mesa, sai.
Cena 4 – Noite. Lampião sobre a mesa, Rosa sentada num canto, mais afastada.
Tonho Tá uma lua até bonita hoje. Lua de seresta. (pausa) Essa hora é que é bom...
Rosa É bom. Noite quieta.
Tonho Essa hora o pai já tava ralhando da lenha...
Rosa É. Mas aquieta, vai agora ficar maldando.
Tonho Só tô falando.
Rosa Não fala. Já fez, acabou.
Tonho Cê nem gostava dele !
Rosa E ocê, sabe o quê ? (pausa) Essa hora era prá eu estar...
Tonho Morta enterrada, em vez dele.
Rosa Nada.
Tonho Então é o quê ?
Rosa Nada, é só que eu não sei o que é dormir sozinha, só isso.
Tonho Ocê não tá sozinha. Tô aqui.
Rosa Ê, ocê é diferente.
Tonho Sou homem crescido.
Rosa É, tô vendo. (pausa) Tá bom, vou deitar que amanhã é dia...
Tonho Vou com ocê.
Rosa Ê, ê. Vai aonde ?
Tonho Vou dormir ali.
Rosa Êh ! vai nada, que besteira é essa ?
Tonho Ué, vou. Vou pro casarão, por que é que não vou...
Rosa Ocê vai é já pro teu quarto.
Tonho O meu quarto agora é esse.
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Rosa Olha aqui, moleque, não tem discussão. Fui eu que te pari, ocê me obedece
ou tá tudo errado. (sai e bate a porta)
Tonho (chuta a porta) Moleque, não, eu sou é homem. E eu não vou pro casarão. E
também não vou nada prá cidade, tá ouvindo ?
Rosa (aparece abrindo a porta) Ocê é homem feito, ocê faz o que quiser.
Tonho E ocê ?
Rosa Eu vou é dormir. (bate a porta)
Rosa então percebe que ele morreu. Tira o dinheiro de dentro da marmita, guarda no
bolso. Depois vai até ele, lhe faz um carinho na testa.
Rosa Vida perdida. Pensar que eu é que criei. Diacho. Eu que fiz, eu desfiz...
Nunca pensei. (Sai, traz os sapatos do pai e os calça nele) Mas também...
Um mundão por aí, tanta gente, ficar se enterrando aqui. (pausa) Ih ! Ói eu
perdendo a hora, deixa eu ir !
Luz vai caindo enquanto ela sai arrastando o corpo.
Fernão Ô Rosinha ! Mas cê demorou demais, meu amor. Combinado era ontem, tô
aqui desde cedo...
Rosa Nem fala, quase que eu nem consigo vim.
Fernão Ei, mas tá chorando ? Que foi ? Que é que aconteceu ?
Rosa Nada, é... Foi diferente, muito diferente do que eu pensei.
Fernão Por quê ? O Ramiro te viu fugindo ?
Rosa Nada, ele nem...
Fernão Ocês brigaram ?
Rosa Nada. Ele tava era dormindo. O menino, que não queria desgrudar de mim.
Menino agarrado, esse.
Fernão Muito mimado.
Rosa Pois é, errei. Mas já aprendi. (Para si) Já enterrei.
Fernão E ele ficou lá, não quis vir ?
Rosa Não. Ficou.
Fernão Ficou fazendo o quê ?
Rosa Ah, sei lá... mexendo na terra. Tá lá... tá em paz.
Fernão Bom. Mas agora cê tá livre, né ?
Rosa Ói, tô. Agora ele num agarra mais. Agora ninguém me prende.
Fernão Só eu, né, Rosa ?
Rosa Ah, é... é que ocê é da polícia ! (Riem)
Fernão (vendo a boneca) E isso ? Ela vai também ? (sorri)
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fim do 1º ATO
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2º ATO
Casa de Clébio, mais humilde que a do 1º Ato. Duas redes desarmadas em cantos
opostos. Uma mesa, um banco longo, 2 banquetas. Um fogão a lenha e utensílios de
cozinha no fundo.
Cena 2 – Manhã. Clébio na banqueta prepara o fumo. Zinha entra com uma boneca de
pano debaixo do braço, vai para o fogão. Derruba utensílios, faz barulho.
Clébio Não começa. (aproximando-se) Ó, trouxe aipim lá, tem que fazer a massa.
Zinha Ai, sai prá lá, ocê tá com um cheiro...
Clébio (cheira as próprias mãos) É o quê ?
Zinha Sei lá, tá fedendo.
Clébio Eu ?
Zinha Ocê. Parece porco....
Clébio É terra, mexi na terra.
Zinha A Jamanta, cheiro dela ! Ai, cê fica longe ! (afasta-se)
Clébio (pausa) Ô, Zinha, tava pensando... A gente podia era fazer uma cozinha, de
verdade, hein ? Prá cá, ó. (pausa) Então ?
Zinha (pausa) Prá quê ?
Clébio Ué, arrumar as coisa, não é cê que fala ? As panela, a comida na despensa...
Zinha Besteira.
Clébio Vou fazer. No verão eu faço.
Zinha Faz, ora.
Clébio E sabe o quê ? Umas galinha. Não é bom ? (aproximando-se)
Zinha É ? E vai por é aonde ?
Clébio (aproxima-se mais) Ah, aí eu faço cercado, poleiro, vou fazendo...
Zinha E a minha vaquinha leiteira ?
Clébio Então. Com dinheiro... (pausa) Ô, Zinha... cê não lembra alguma vez dela
falar... ela nunca falou um dia de te dar pulseira, colar, brinco...?
Zinha Quem ? A mãe ?
Clébio Então ?
Zinha A história da vó bisa, ocê tá falando? Êia, ocê acha... (ri)
Clébio Ué, não podia, d’ela ter falado pr’ocê ?
Zinha Falou o quê. Que !...tem dinheiro nenhum. (ri) Então cê acha... eu com uma
jóia ? Ih, já tinha era trocado tudo pela vaquinha.
Clébio É ? Tonta. E depois ? Ía fazer como ?
Zinha Depois eu ía me embora. Prá nunca mais.
Clébio Vai. Tá esperando ?
Zinha (pausa) Sabe é quê, o mais que eu queria, mesmo ?
Clébio Depois da vaca ou depois de ir embora?
Zinha (pausa) Eu queria era de encontrar a mãe. De verdade.
Clébio Diacho de carrapato, outra vez ! Não começa, larga disso.
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Cena 3 – À tarde. Zinha à mesa, amassando aipim. Clébio entra arrumado, encosta
atrás dela.
Cena 4 – Fim de tarde, verão. Zinha está de casaco, com alguns curativos nos dedos,
comendo desarvoradamente.
Clébio (entra muito suado, com um saco carregado) Tó, tem umas manga aí. Tem
que chupar é logo, tá caindo de dar dó.
Zinha Manga. Manga. Cadê as galinha que cê ía arrumar ? A cozinha, a despensa ?
Clébio Ei, o que é que deu ? Ainda vou, dia desse eu vou.
Zinha Nada, vai nada.
Clébio Ôu, mas já tá comendo ? Não esperou por quê ?
Zinha Fome, ué.
Clébio Agora tá que come !
Zinha Mas que é, tá regulando ?
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Clébio Tô. Dinheiro não é teu, né ? (para si) Maldita herança encravada. A gente é
rico, vai ver tá sentado num monte de jóia, e só tem manga... Manga com
farinha. (de repente pára, ataca e destrói o banco, procurando inutilmente)
Inferno. (repara o casaco dela) Êia, mas ocê tá doente ou é o quê ? Agora
inventou de sentir frio ? Ô louco !
Zinha Me deixa ! O frio é meu.
Clébio (olha prá ela um tempo) O que é que é, hein, Zinha ? Virou poço sem fundo,
é ? Chega ! (tira-lhe o prato)
Zinha Tô com fome !
Clébio Mas tá uma porca, cê tá pior que a Jamanta, pode parar !
Zinha Pára, não tô.
Clébio Não cabe mais nem nas roupa, tudo estourando.
Zinha (levanta, tenta pegar o prato de volta) Larga ! Me dá !
Clébio Que, chega ! (de repente ele pára) Mas ocê tá... Zinha, ocê tá buchuda ? Tá
prenha ?
Zinha Eu ? Eu, não.
Clébio Deixa ver. Tá, sim.
Zinha Ô louco, eu nada.
Clébio O que é que cê andou fazendo, hein ? (bate nela) Sirigaita duma figa,
vagabunda!
Zinha Eu, nada, não fiz nada, juro.
Clébio Então, não, sua vaca dadeira.
Zinha Pára, cê tá doido. Ai !
Clébio O afilhado do Zé Dantonio... foi ele, não foi ?
Zinha Quem, o Formiga ?
Clébio Então não vi ?
Zinha Foi o quê ?
Clébio O dia que ele veio aqui ?
Zinha Ih, tem tempo...
Clébio Filha da puta.
Zinha É... não voltou mais.
Clébio É, foi ?
Zinha Ê, ocê que chamou, cê é besta ?
Clébio Besta, eu. Então foi quem ? Fala, estúpida !
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Zinha Ué, quem o quê ? Aqui ninguém não vem nunca!... (rindo) Ê, ê... ciumou,
foi?
Clébio Cê é tonta. Eu. (pausa) Buchuda tá ocê.
Zinha É ? (pausa. Ela se olha) Por quê ?
Clébio Não tô vendo ?
Zinha Ué, então...
Clébio (movendo-se sem parar) Então nada. Tá olhando o quê ?
Zinha Ué.
Clébio Tá doida. Cala essa boca.
Zinha Eu não sou louca ! (para si) É, sim, tem mãe, tem pai, tem filhote... (pega a
boneca) Se for menina vai chamar Dalgisa. Ou então Rosimeri. Se for
menino pode chamar Antonio... (começa a niná-la cantando baixinho)
Clébio (para si) Tá errado. Tá errado. (pausa. Para ela) Quanto tempo que cê não tá
de regra ?
Zinha Tem tempo. É, não, sei lá, tem mês, acho. Ah, não lembro.
Clébio Não lembra... Nem um mês. Como é que agora tá assim, toda prenha, hein ?
E já tá de muito, tem é tempo, isso. (sacode-a, bate nela) Vagabunda !
Zinha (chorando) Pára ! Eu não fiz nada, juro.
Clébio (repara nos curativos, desfaz um deles) E isso aqui ? É o quê ?
Zinha A faca, que cortou.
Clébio Mentirosa ! Filha da puta ! (bate nela)
Zinha Pára, tá doendo ! Ai ! Pára. Eu fico boazinha, prometo. Eu deixo. Pára, pai.
Clébio (empurra-a para um canto) E eu não sou teu pai ! Vagabunda que nem a
mãe. (pega o chapéu) Tem filho de qualquer um, é vaca do brejo, mesmo.
(sai)
Anoitece. Ela arma sua rede, pega a boneca e a nina. Dorme. Clébio entra meio
bêbado. Zinha acorda, mas finge dormir. Ele se aproxima dela, acaricia sua barriga
sem tocá-la. Depois arma sua rede e dorme.
Zinha Ocê vai ficar boa, filhinha. Vou cuidar d’ocê. Minha mãe que falava assim...
(imitando) “Um dia vou te dar uma boneca...” E não foi ? Demorou, mas
ganhei. Linda !
Clébio (entrando) Ocê arruma suas coisa, s’embora.
Zinha Depois. Vou acabar.
Clébio Arruma logo, tudo. E é agora.
Zinha Tô ocupada.
Clébio Vai parar é agora. (pausa. Ela continua trabalhando) Tá surda ou é o quê ? É
um, é dois...
Zinha É prá quê ?
Clébio Ocê agora vai morar do outro lado. Acerto meu. Embora, anda.
Zinha Não quero.
Clébio Tô perguntando nada.
Zinha Não vou.
Clébio Ô, se vai ! E logo, que ele deu mais do que...
Zinha Ele quem ?
Clébio Junta aí tuas coisa, tudo.
Ele a empurra, ela começa a recolher as coisas lentamente.
Zinha Eu não quero nunca ficar longe d’ocê, pai. (pausa)
Ela pega a boneca, fala por trás dela. Ele não pára de se mover.
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Zinha Ocê não quer mais brincar comigo ? (Silêncio. Ela tira a boneca da frente,
chora) Prá onde ? Por quê ? Eu vou é prá onde ?
Clébio (desviando o olhar) Ramiro, que é o nome dele. Primo do Zé Dantonio. Ocê
faz tudo o que ele manda. Ele agora é que é ... ele que é... ele que te manda.
Zinha Não quero.
Clébio Não tem que querer. (para si) Não tem que querer. (para ela) S’imbora.
Zinha Péra. (volta-se de costas para ele)
Clébio É o quê que tá faltando ?
Zinha (vira-se sensualmente, aproxima-se mostrando o corpo) Deixa eu ficar com
ocê, pai.
Clébio Zinha, cê tá fazendo...?
Zinha Deixa, pai... eu fico boazinha...
Clébio (aproxima-se até quase tocá-la. Depois reage) Ele já pagou, já... ele tá...
Vamos, Zinha, ele tá esperando.
Silêncio. Eles se olham. Ela fecha as roupas.
Zinha Ele pagou, foi ?
Clébio Ãh... não... ele... acertou umas conta aí prá mim.
Zinha E foi quanto que ele pagou, hein ?
Clébio Eu não... eu não queria...
Zinha Cem ? Duzentos ? Fala, pai, quanto ?
Clébio Quatrocentos.
Zinha Quatrocentos ! Dá prá comprar a vaca leiteira !
Clébio Dá não.
Zinha Ué, e dá, como não dá ?
Clébio Tava devendo, sobrou quase nada. É que eu pensei... ah, sei lá, tava jogando,
aí... escutei... acharam, alguém lá do Zé diz que viu pedra brilhando, broche
enterrado ali, perto do ranchão. Formiga tava lá, ele tá de prova... A herança,
pensei, as jóia da Celeste, só pode ser, ó o meu tesouro aí ! Aí fui, sorte vem,
jogando e subindo e soltando a pipa, dididi, dádádá... foi, foi... diacho.
Quando vi, desgraça. Nada, miçanga de criança, escondeu e esqueceu. E a
pinga. É, foi isso. Chega. Então, não dá. Vaca nenhuma.
Zinha (pausa. Então ela avança repentina e violentamente sobre ele) Cachorro
filha da puta, jumento idiota ! Cê é um estúpido. Animal, imbecil. Eu mato,
um dia cê me paga, ocê vai ver.
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Clébio (segurando seus braços) É, vou ver, vou ver o que o Geninho viu. Pára,
deixa de ser louca !
Zinha (gritando enlouquecida) Não fui eu ! E eu não sou louca ! (chora) Não sou...
Clébio Sorte foi de encontrar quem pagou, ô louco ! Agora cala essa boca. Pega
seus tudo e vamos s’embora.
Silêncio. Ela vai recolhendo as coisas, por último, pega a boneca.
Clébio (arranca a boneca dela, joga num canto) Deixa isso aí. Não precisa.
Zinha (fica um instante paralisada. Depois, lentamente olha a boneca, olha para
ele) Tava pensando: e se acontecer... se acontecer d’ele ser bom prá mim?
Clébio Bom pr’ocê.
Zinha (lentamente, enquanto Clébio fica paralisado) Mas e se acontecer, pai... e se
acontecer de eu gostar ? (pausa) E se eu gostar desse tal de Ramiro, hein ?
(pausa) E se eu gostar desse Ramiro, mas se eu gostar dele mais do que
d’ocê ? (pausa) Não pode ser ? Não pode ? (pausa. Ri) S’embora, pai !
Embora logo, pai! (cai na gargalhada)
Cena 7 - Luz na passagem de tempo. Clébio entra transtornado, arruma seus pertences
em um amarrado, bebe um copo de água. Pega a garrucha escondida, carrega-a, sai.
Logo ouve-se um grito rouco, um baque.
Zinha (entra correndo, as roupas rasgadas e marcas de agressão pelo corpo) Pai,
pai ! Cadê ocê ? (Silêncio, depois alguns passos) Pai ! Ocê foge, pai,
desaparece! O Ramiro tá doido...
Formiga (entra, limpando-se) Tarde, Zinha. Dona Rosinha. É... Chegou tarde.
Zinha Ocê, Formiga ?
Formiga Não, eu não ! Tá pensando ? Eu tentei...Vim avisar Seu Clébio. Mas foi
tarde. Ainda vi sair correndo.
Zinha Quem foi ?
Formiga Ué, gente do Ramiro. Diz que levou gato por lebre.
Zinha Por causa do tal tesouro, que era tudo miçanga ?
Formiga (encarando-a) É. Não. Quase.
Zinha Sei...(chega na porta, se assusta, volta) Nunca pensei. (chora)
Formiga Cê não gostava dele !
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fim do 2º ATO
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3º ATO
Mesmo cenário do 2º ATO (Casa de Clébio), mas com quatro redes desarmadas, duas
em cada lateral.
Formiga É muito.
Zinha Não é, nada. Menino, chama Antonio. Se for menina, vai ser...
Formiga Rosimeri.
Zinha Dalgisa. Rosimeri ? Tá bom, então três. Resolvido. (pausa) E o Geninho?
Formiga O que é que tem ?
Zinha Não vai deixar.
Formiga Aí essa parte resolvo eu.
Geninho (entrando) Bonito, só eu cuidar da vida, ocê já tá de sem-vergonheira.
Zinha Geninho ! Ué, mas chegou cedo ! Já foi e já voltou ?
Geninho E ocê, quem mandou cê entrar ?
Zinha (pausa) Foi eu.
Formiga Ocê não toca nela.
Geninho É minha irmã, toco quanto eu quiser.
Zinha (mostrando a faca) Toca, nada.
Geninho Zinha ! Larga isso, anda.
Zinha Fica longe. A gente vai prá cidade, atrás da mãe.
Geninho E quem que disse que ela tá lá ?
Zinha Ué...
Geninho E quem que disse que ela tá viva ?
Zinha Tá louco ? Ninguém ía matar a mãe. (para Formiga) Por causa de quê ?
Formiga Ué, e eu que sei ?
Geninho Não, né ? Mas eu sei.
Zinha É ? Onde que ela tá ?
Geninho Abaixa essa faca. (ela obedece) Fui no pai, não. Fui no Zé Dantonio.
Assuntar.
Zinha Ele sabe da mãe ?
Geninho Deve de saber, né, Formiga ?
Formiga Ocê que tá falando.
Geninho Tô. Que depois da briga a mãe foi direto lá.
Formiga Quem que falou ?
Zinha Mas ela foi até lá caminhando ? De noite ? E sozinha ?
Geninho Quem falou não interessa.
Zinha Uia que é longe, demais! E ainda periga de cair no rio.
Geninho Cala a boca, Zinha.
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Zinha Não !
Geninho Que não ?
Zinha A casca primeiro.
Geninho Que diferença ?
Zinha Cê não sabe é nada. Dá aqui, vou mostrar. (pega a faca, descasca)
Geninho É, até que cê aprendeu, ensinei foi bem (riem, brincam).
Zinha Então, ô, sabe tudo, fica com a cebola, tó. (passa-lhe as cebolas) Fininha,
hein ? (passa-lhe a faca. Continua os afazeres, espreitando-o)
Geninho Amanhã vou lá no pai.
Zinha Sei.
Geninho Tá cheirando esquisito.
Zinha É cebola. (vendo que ele parou) Ôu, cê não ía ajudar ?
Geninho Vou saber isso do baú, dos acertos... (começa a chorar ao cortar cebola)
Zinha (rindo) Ocê tá chorando, Geninho ?
Geninho Diacho !
Zinha Ué... Não diz que homem não chora ?
Geninho Pára !
Zinha Se o pai sabe...
Geninho Eu vou melar é tudo.
Zinha Quê ? Por causa da cebola ? (ri)
Geninho (chorando de verdade) Da mãe, Zinha, por causa da mãe ! Ela não volta, não
volta, nunca mais !
Zinha Pára. Ela volta ! Não fala assim. (começando a chorar também)
Geninho Vou saber quem foi, eu vou matar o animal.
Zinha E vai preso também ? Vai me deixar sozinha ?
Geninho Maldita, vida. Inferno, isso de ter que morrer.
Zinha Não fala ! Morreu não, ninguém não matou nada !
Eles se abraçam, choram, se acariciam.
Zinha Vamos comer, vem.
Eles quase se beijam.
Formiga (entrando, surpreende os dois) Ôoou ! Quê que é isso ?
Geninho Diacho ! Tá aqui por quê ?
Formiga Vim acabar a conversa.
Zinha Ai, não vai brigar de novo, cês dois.
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Formiga revira a casa procurando, inutilmente. Depois se arruma, bebe água, belisca
um pedaço de carne. Sai lentamente.
Zinha Mãe ! Mãe ! Eu não queria... O Geninho... Mãe, foi sem querer. Eu não... O
que é que vai ser ? Volta, mãe. Tô sozinha. Tô com medo... Não foi eu, não
foi. Caiu, mãe. Ele que veio prá cima, a gente... é muito fundo, ali.
Formiga (entrando, com um grande corte no braço) Zinha ! O Geninho. Viu que cê
fez com ele ?
Zinha Não fiz nada.
Formiga Afogou, Zinha. Ocê empurrou ele no rio.
Zinha Eu, nada. Não foi culpa minha !
Formiga Mas foi. Ele não ía cair sozinho.
Zinha Pára ! Não fui eu.
Formiga Eu vi cê empurrando.
Zinha Mentira. Viu nada.
Formiga Empurrou ou não empurrou ?
Zinha Foi sem querer.
Formiga Ocê que matou ele, Zinha.
Zinha Não matei. Ele caiu. Caiu.
Formiga Caiu, afogou. Não ía matar ? Foi com a faca por causa de quê ? (ele mostra a
faca, coloca do seu lado)
Zinha Sai ! Vai embora, some daqui. Me deixa ! (aos poucos se acalma. Ao pegar
a faca, vê que está suja. Estranha, mas depois vai terminar de preparar a
comida)
Formiga É tua.
Zinha Que linda !
Formiga Parece com ocê.
Zinha É ? Vai chamar Dalgisa.
Formiga Eu que guardei pr’ocê. (pausa) É... tua mãe que mandou.
Zinha Ela voltou ? Onde que ela tá ?
Formiga É... não, ela tá... lá na cidade.
Zinha E não vem ?
Formiga (desviando o olhar) Não. E também não quer ninguém procurando. Não quer
saber.
Zinha Nem eu ?
Formiga Ocê, então... ela ficou sabendo.
Zinha De ontem ? Do Geninho ?
Formiga Então.
Zinha (começa a chorar) Mas foi sem querer !
Formiga Chora, não, Zinha.
Zinha Não foi culpa minha.
Formiga Tá. Mas não chora.
Zinha Choro ! Cê não tem mãe ?
Formiga Mãe ? Tenho não. (pausa) Tamanduá matou.
Eles se olham, riem.
Zinha Mentira.
Formiga Mentira. Pr’ocê rir.
Zinha (pausa) Quem que contou prá ela ?
Formiga (pausa) Zé Dantonio. Mandou recado.
Zinha Ele sabia que ela tava lá... (pausa) A Dalgisa, onde que ela tava ?
Formiga Tua mãe que levou.
Zinha Prá cidade ?
Formiga Não, ela caiu, só achei depois... É, quer dizer, não, é... ãhn... ah, ela tava lá
no Zé. Não tem umas coisa lá, da D. Celeste, de quando solteira ?
Zinha No tal baú ?
Formiga Então. Aí o Zé... Ela que falou pro Zé te entregar. Foi, foi isso. (pausa) Tem
outra coisa: teu pai.
Zinha O que é que tem ?
36
A luz sobre Zinha vai se reduzindo até ela deixar de ser visível.
Rosa Tá acenando prá mim. Com uma boneca igual que a minha !
Fernão (rindo) Êia, essa casa ficou com assombração...
Rosa Pára. Eu não sou louca.
Fernão É, não, ocê é linda, Rosinha (dá-lhe um beijo). Agora vamos, que tá ficando
tarde. É longe. (vai saindo)
Rosa É. Chega de Urticária. (De dentro do seu amarrado tira uma outra boneca
igual à de Zinha. Fala baixinho com ela, coloca-a frente à casa) Ê, Dalgisa,
penou foi bem, né,? Agora ocê fica aqui. Ocê descansa. (cai algo de dentro
da boneca) Ué! Que é isso ? (rindo) Tá fazendo xixi, Dalgisa ? (vê as jóias)
Minha, nossa ! É...é ouro ! As jóias da vó bisa...o tempo todo aí... e só agora!
Fernão (de fora) Ó nossa hora, Rosa.
Rosa (esconde rapidamente as jóias) Hein ?
Fernão (entrando) Então, meu tesourinho ? Vamos !
Rosa Ãhn... Eu ?
Fernão Ora... Quem mais ? (Riem)
Ele oferece o braço, ela aceita. Saem com luz caindo em resistência, um foco na
boneca.
fim do 3º ATO
FIM