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Revista Chrônidas

Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História


Universidade Federal de Goiás
I S S N: 1 9 8 4 – 2 6 6 X

Agosto de 2008.
Ano I, Número 01.

Dossiê Temático:

“Escrita, narrativa e discurso


na constituição de processos históricos nas Américas”

Imagem de Capa: Alegoria da América, Johannes Stradanus (1575/1580).


Revista Chrônidas
AGOSTO DE 2008
Universidade Federal de Goiás

Reitor
Edward Madureira Brasil

Vice-Reitor
Benedito Ferreira Marques

Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia

Diretor
Fausto Miziara

Coordenadora do Departamento de História


Fabiana de Souza Fredrigo

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História


Eugênio Rezende de Carvalho

Revista Chrônidas

Editor Sênior
Marlon Salomon

Editores Juniores
Ivan Vieira Neto
Victor Creti Bruzadelli

Universidade Federal de Goiás


Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Departamento de História
Campus Samambaia – Goiânia – GO
CEP: 74001-970

RCA01N01.AGO2008
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História

Universidade Federal de Goiás


Expediente

Editores
Editor Sênior
Prof. Dr. Marlon Salomon

Editores Juniores
Ivan Vieira Neto
Victor Creti Bruzadelli

Editores Executivos

Idila de Roure Thaisy Sosnoski


Catarina Stacciarini Seraphin Carolina Soares Sousa
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Revista Chrônidas

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Contato: chronidas@revistachronidas.com.br
ISSN 1984-266X

Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás

Universidade Federal de Goiás


Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Goiânia, GO

Ano I, N. 01 / agosto de 2008


Sumário

Editorial

Revista Chrônidas: uma revista para todos


Ivan Vieira Neto, Victor Creti Bruzadelli & Carolina Soares Sousa................................6

Dossiê

Escrita, narrativa e discurso


na constituição de processos históricos nas Américas

Uma introdução aos múltiplos sentidos narrativos emprestados à renúncia: entre a


constituição de uma nova cena política e os limites de Simón Bolívar (1799-1830)
Fabiana de Souza
Fredrigo...........................................................................................................................10

Os olhos da nação: narrativa e dominação territorial na Colômbia


Dernival Venâncio Ramos
Júnior...............................................................................................................................34

Principialismo e políticas de saúde no Brasil contemporâneo: orientações da


Revista Bioética
Laura de Oliveira.............................................................................................................72

O assujeitamento do ser: a análise do discurso de John F. Kennedy e os norte-


americanos nos anos 60
Nayara Cristina Carneiro de Araújo................................................................................98

Artigos

Aspectos do bramanismo: reformulações e heranças do Período Védico


Iasminy de Paula Berquó...............................................................................................108

Thesaurus Pauperum: magia e sexualidade na obra médica de Pedro Hispano


Catarina Stacciarini Seraphin & Halynne Alves Goulart..............................................116

A escolástica médica medieval


Izabela Portes Bittencourt..............................................................................................128

O surgimento de Goiânia e o estabelecimento do Espiritismo Kardecista como uma


religiosidade moderna
Victor Creti Bruzadelli..................................................................................................136
Editorial

Revista Chrônidas: uma revista para todos

A criação de uma revista eletrônica dos estudantes de graduação e pós-


graduação em História da Universidade Federal de Goiás não é uma iniciativa inédita.
Outros estudantes já se empenharam nessa tarefa de reunir trabalhos oriundos das
pesquisas de graduandos e pós-graduandos antes de nós. Infelizmente essas iniciativas
resultaram em revistas hoje extintas, seja pela dificuldade encontrada em conseguir o
número necessário de artigos para as suas edições ou por outros tantos inúmeros
problemas encontrados ao longo do caminho, impedindo a continuidade do trabalho.
Portanto, faremos outra tentativa.
Apesar de todos os percalços que surgem diante de um projeto desta proporção,
acreditamos que o esforço se justifica se considerarmos o recente aumento na produção
acadêmica dos discentes de graduação e pós-graduação em História das principais
universidades brasileiras, tanto em quantidade quanto em qualidade. Por esta razão,
decidimos dar continuidade aos projetos de criação de uma revista aberta à publicação
do alunado: assim nasceu a Revista Chrônidas. Este nome, com origem greco-romana,
expressa a nossa preocupação com o ofício do historiador enquanto artífice da
construção do passado e da História, contudo, sem desviar-se dos problemas do presente
e de seu próprio tempo. Seguindo esta concepção, pretendemos disponibilizar mais um
veículo para a publicação acadêmica em História, um espaço democrático para todos os
autores, sejam eles alunos de graduação, pós-graduandos, profissionais da educação,
professores universitários ou pesquisadores independentes.
A primeira edição da Revista Chrônidas, resultado de nosso trabalho nos últimos
quatro meses, traz o dossiê Escrita, narrativa e discurso na constituição de processos
históricos nas Américas. Este se constitui pelo excelente artigo da Profa. Dra. Fabiana
de Souza Fredrigo, atual Chefe do Departamento de História da UFG, que analisa a
construção da memória e da História através da narrativa no epistolário de Simón
Bolívar no contexto das independências. O segundo artigo, assinado pelo Prof. Dr.
Dernival Venâncio Ramos Júnior, aborda as questões dos usos da narrativa na
constituição da dominação territorial na Colômbia. A mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História da UFG, Profa. Laura de Oliveira, examina o discurso da
Revista Bioética atentando-se à introdução dos ideais principialistas no Brasil. Por fim,

6
o artigo da graduanda Nayara Cristina Carneiro de Araújo traz uma análise dos
discursos de John F. Kennedy na construção dos Estados Unidos da década de 1960.
Além do dossiê, esta edição traz outros quatro artigos independentes, todos de
autoria de alunos da graduação em História da UFG. As heranças do bramanismo no
período védico da Índia Antiga são tratadas no artigo de Iasminy de Paula Berquó. As
teorias e práticas médicas recorrentes na Idade Média e sua utilização, sobretudo no
cotidiano feminino, são abordadas no artigo de autoria das estudantes Catarina
Stacciarini Seraphin e Halynne Alves Goulart e também no artigo assinado por Izabela
Portes Bittencourt. O último artigo desta edição traz a questão da modernização goiana,
sob uma ótica religiosa, a partir do Espiritismo Kardecista e seu estabelecimento na
nova capital do estado.
Apesar de todos os artigos publicados nesta primeira edição provirem de autores
ligados a instituições goianas, especialmente da Universidade Federal de Goiás, o
intento desta revista não é ser um periódico endógeno para publicação de artigos de
docentes e discentes da casa. Esperamos receber para as próximas edições artigos de
diversas partes do Brasil e também do exterior.
Finalmente, em nome de todo o Editorial Executivo da Revista Chrônidas,
agradecemos ao Departamento de História e ao Programa de Pós-Graduação em
História da UFG, nas pessoas dos docentes Profa. Dra. Fabiana de Souza Fredrigo e
Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho, por seu apoio incondicional ao projeto e
criação desta revista. Agradecemos também ao Prof. Dr. Marlon J. Salomon, que
contribuiu tanto com a idealização quanto com a concretização deste projeto.

Goiânia, 29 de agosto de 2008.

Ivan Vieira Neto


Victor Creti Bruzadelli
Carolina Soares Sousa
Editores da Revista Chrônidas

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Dossiê
“Escrita, narrativa e discurso
na constituição de processos históricos nas
Américas”
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
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UMA INTRODUÇÃO AOS MÚLTIPLOS SENTIDOS NARRATIVOS EMPRESTADOS À


RENÚNCIA: ENTRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA CENA POLÍTICA E OS LIMITES DE
SIMÓN BOLÍVAR (1799-1830)1

Profa. Dra. Fabiana de Souza Fredrigo


Professora Adjunta do Departamento de História
Universidade Federal de Goiás (UFG)
fabianafredrigo@yahoo.com.br

RESUMO: Produzido entre os anos de 1799 e 1830, o epistolário de Simón Bolívar permite
vincular a escrita de cartas, a memória e a historiografia. Entre as temáticas variadas e as
distintas estratégias narrativas, um dos discursos mais constantes no epistolário alude à renúncia
ao cargo político-administrativo. Este artigo apresenta os múltiplos sentidos narrativos
constitutivos do que denomino de memória da indispensabilidade. Após expor os elementos que
compõem a memória da indispensabilidade, os relacionarei aos limites do missivista em
compreender a conformação de uma nova cena histórica, a partir da ocorrência das
independências na América do Sul.

I.

Simón Bolívar 2 lidou com a sua correspondência de forma dedicada e


delicada porque esteve entre seus objetivos oferecer à posteridade um personagem: o
homem público irretocável, desprovido de vida privada. De imediato, a localização
desse desejo no epistolário, bem como das estratégias narrativas que tentavam executá-

1
Esse artigo é parte da Tese de Doutorado intitulada História e memória no epistolário de Simón Bolívar
(1799-1830), defendida em 2005, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual
Paulista (UNESP).
2
Simon Bolívar nasceu em Caracas, no dia 24 de julho de 1783. Filho de família poderosa e abastada, ele
perdeu pai e mãe bem cedo, respectivamente, aos três e nove anos. Em 1798, embarcou para a Espanha e
conheceu Maria Teresa Rodriguéz Del Toro, com quem se casou em 1802. De volta à Caracas, em 1803,
Bolívar sofreria outra perda, dessa vez, a da esposa em virtude da febre amarela. Foi quando decidiu
retornar à Espanha e iniciou uma série de viagens, conhecendo a Itália, a França e os Estados Unidos. Em
1810, tomou contato com Miranda, em Londres. Participou da primeira tentativa de independência da
Venezuela, em 1810. Dessa data até cerca de 1828, Bolívar dedicou-se ora às inúmeras batalhas pela
conquista da emancipação, ora às tentativas de montagem de uma estrutura de poder que viabilizasse um
governo criollo na América. Em 1828, sofreu um atentado, no qual não foi vitimado. No dia 30 de
dezembro de 1830, faleceu na Quinta de San Pedro de Alejandrino, próxima à Santa Marta. O espaço
geográfico no qual atuou compreendia os antigos vice-reinados da Nova Granada e Peru (este último
corresponde aos territórios atuais de Peru e Bolívia – à época a Bolívia era conhecida como Alto Peru). O
território da Nova Granada corresponde aos atuais países: Colômbia, Panamá, Venezuela e Equador.
(BELLOTTO; CORRÊA, 1983).

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lo, impôs uma relação cristalina entre a escrita de cartas, um projeto de memória e a
historiografia. 3
Numa fórmula antiga, a carta faz o ausente presente. Escrever cartas revela
o desejo de registrar acontecimentos, racional e afetivamente, para não esquecê-los, para
estabelecer uma memória de si e dos outros. Essa atividade irrompe no mundo particular
do indivíduo que escreve, mas, certamente, exige um grupo, posto que as memórias,
para serem imortalizadas, precisam ser partilhadas. Precisa-se do grupo porque é ele o
responsável por afiançar a memória individual. Com o efeito do esquecimento,
intrínseco ao ato de lembrar, e das mudanças plásticas e flexíveis do presente, o grupo
responsabiliza-se pela sustentação e pela partilha de uma memória. No caso de Simón
Bolívar, o grupo eleito para a prática da correspondência compunha-se dos militares que
o acompanharam nas campanhas bélicas e foram, igualmente, os políticos estreantes das
repúblicas sul-americanas, nascentes na primeira metade do século XIX.
A leitura das missivas permitiu lidar com distintos sentidos para a escrita,
entre eles: a revelação para si e/ou para os outros; a compreensão dos códigos do mundo
que rodeia o narrador; a tentativa de catarse por meio do texto; a “invenção” de si,
considerando-se o poder de prefiguração da escrita; o projeto de conhecimento e de
ação política; o projeto de memória. Entre as temáticas variadas e as distintas estratégias
narrativas, um dos discursos mais constantes no epistolário alude à renúncia política.
Este artigo apresenta os múltiplos sentidos narrativos constitutivos do que denomino de
memória da indispensabilidade 4. Após expor os elementos que compõem a memória da
indispensabilidade, os relacionarei aos limites do missivista em compreender a
conformação de uma nova cena histórica, a partir da ocorrência das independências na
América do Sul. A complexidade desses limites de compreensão do missivista permite
explicar o apego de Simón Bolívar ao ideal da liberdade e sua crença na guerra como a
única forma de rompimento com a Espanha. Permite, também, ir ao encontro das
mitificações memoriais sobre o lugar da América e de seus projetos, esses últimos, em
grande parte do tempo, questionados quanto à sua capacidade de fazer a América

3
O epistolário de Simón Bolívar conta com 2.815 cartas, divididas em sete tomos. A coletânea utilizada
foi organizada por Vicente Lecuna, o mesmo que cuidaria da restauração da Casa Natal do Libertador na
Venezuela e que se tornaria o guardião mais empedernido da documentação e da memória do Libertador.
Teve-se acesso à segunda edição das Cartas del Libertador, publicada entre os anos de 1964 e 1969.
4
Esse termo é de minha autoria e serviu ao propósito de explicar o discurso da renúncia, apresentando,
em conjunto, os outros elementos retóricos a ele associados – a morte, o ressentimento, a doença e a
solidão. Sua primeira aparição foi na referida tese de doutorado, defendida em 2005.

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ingressar na modernidade ocidental. Essas me parecem duas boas razões para expor os
limites do missivista, recompondo, a partir do projeto narrativo epistolar, as cenas do
processo de independência na América Hispânica.

II.

De imediato, é preciso alertar para o fato de que, ao referir-se à renúncia, o


missivista apontava para o desejo de renunciar, em primeiro lugar, ao cargo executivo.
Há visíveis diferenças entre renunciar ao cargo e renunciar à autoridade. Essa última
renúncia nunca seria a opção de Bolívar, mesmo porque ele acreditava que a sua
autoridade pairava acima de qualquer cargo. O cargo era apenas o instrumento capaz de
lhe facultar os meios para colocar em andamento a guerra:
De todos os modos, resolvi não mandar mais [do] que [no] o [âmbito] militar,
servirei enquanto dure a Colômbia ou a minha vida; mas nada mais que na
guerra. Desejo que o Congresso se ocupe muito particularmente de autorizar
ao vice-presidente da Colômbia para que tudo fique sob sua responsabilidade,
excetuando a parte militar e suas conexões das quais me encarregarei com
gosto. Se vocês querem que eu leve o nome de presidente, eu não quero ser
mais do que um general em chefe do exército da Colômbia, com faculdades
para pedir e conseguir homens e dinheiro, víveres, o sortido e a equipagem
completa para o exército, e [enfim, quero] as faculdades concedidas no teatro
de guerra. Terminada esta, poderão acabar as minhas faculdades e tudo mais
o que queiram me tirar, pois a minha intenção é governar o menos que seja
possível. Acrescento que a minha saúde está um descalabro, que começo a
sentir as fraquezas de uma velhice prematura; e que, por conseguinte, nada
pode me obrigar a levar por mais um longo tempo o timão, sempre combalido
pelas ondas de uma tempestade contínua. (Carta para Fernando Peñalver 5.
Guanare, 24/05/1821. Tomo III, R. 723, p. 67-69. Original.).

Conforme aponta a leitura da carta acima, a renúncia pôde ser associada a


muitos outros sentidos, como, por exemplo, a renúncia de si. Explorar o discurso
implicitamente associado à renúncia de si é o que permitirá acompanhar e compreender
a montagem do perfil de um homem público devotado ao seu povo e à sua pátria.
Segundo o missivista, foi o esforço dessa doação à pátria que o impediu de construir
laços afetivos profundos que pudessem lhe acalentar na velhice prematura. Dessa forma,
Bolívar antevia e anunciava a sua morte solitária, quando reforçava seu perfil de homem
público de moral ilibada. O homem público não tinha vida privada, esta se viu

5
Os dados biográficos de Fernando Peñalver indicam o seu apoio fiel ao projeto de Simón Bolívar, o que
explica o tom da carta. Nas cartas destinadas a Peñalver – assim como nas enviadas para o Marquês Del
Toro – grassava o tom muito pessoal, marcado pela relação de amizade e de lealdade. Atente-se para o
fato de que Bolívar muito pouco escrevia sobre a sua saúde. Comentar a respeito de sua saúde – e fazer
isso ainda em 1821 – não era algo comum, o que revela o diferencial concedido a Fernando Peñalver.

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despovoada de grandes afetos, dada a necessidade impositiva de dedicação exclusiva ao


futuro da América. O preço para ser admirado pela posteridade era a solidão. Por isso, a
justificativa de uma morte marcada pela solidão viria da renúncia de si e dos que o
amavam. O desejo de consumir seus afetos via-se barrado pelo pacto com o dever. Em
cartas para os amigos mais próximos, Bolívar permitia-se a queixa:

Meu querido Fernando, muito sinto não voar para te estreitar em meus braços
e participar de tuas dores, para diminuí-las, consolar-te com o que estivesse a
meu alcance; mas tu sabes que o homem social é um monstro da natureza,
que não escuta seus gritos e não obedece senão ao fantasma do dever.
Entretanto, eu não perco a esperança de sair logo desta tortura que
desnaturaliza os verdadeiros afetos e os bens únicos e positivos. Concluída
minha comissão no Sul, marcharei para Bogotá e dali para Caracas para ser
cidadão livre, e retirar de minha agoniada cabeça o enorme peso de
responsabilidade que gravita sobre ela (Carta para Fernando Del Toro.
Cuenca, 23/09/1822. Tomo III, R. 893, p. 295-297. Original.).

Assim mesmo, embora o trabalho e a entrega à pátria fossem considerados


deveres capazes de o tornarem cativo, seriam também os responsáveis pela
transformação de Simón Bolívar. Mais adiante, na mesma carta, Bolívar anuncia ao
amigo Fernando Del Toro como suas conquistas no exército libertador, a criação da
Grã-Colômbia e a expansão da luta pela independência nos territórios do Sul lhe deram
uma nova identidade, então, universal. Portador dessa nova identidade, ele não se
considerava apenas mais um caraquenho, pois era a representação de toda uma nação:
Tu me retrata a sorte de Caracas como é e deve ser. Tu pedes que eu volte
sem demora, porque Caracas tem privilégios sobre mim. Conheço mais do
que ninguém os direitos que o solo nativo tem sobre seus filhos; deves crer-
me, estou devorado constantemente pelas mais cruéis inquietudes quanto ao
que Caracas representa para mim. Um espírito profético me avisa da
proximidade de males remotos e incertos; eu os saboreio com a amargura de
um filho que vê destroçar o seio de sua própria mãe e a criatura de suas
entranhas. Pensa, depois dessa confissão sincera o que a previsão me exige e
me faz experimentar, mas ouve: eu pertenço agora à família da Colômbia e
não à família de Bolívar; já não sou de Caracas só, sou de toda a nação que
minha constância e meus companheiros têm formado, acreditando que para
manter a tranqüilidade desta desolada Venezuela devemos uni-la a Nova
Granada, que chega até estas afortunadas regiões. Eu imagino que a
Venezuela é nossa vanguarda, Cundinamarca nosso corpo de batalha e Quito
nossa reserva. A filosofia da guerra dita que a vanguarda sofra, mas que exija
reforços de outros corpos; que o centro auxilie a vanguarda com todo seu
poder, e que a reserva, cuidando de sua costa, deposite em si a saúde e as
esperanças do exército (Carta para Fernando Del Toro. Cuenca, 23/09/1822.
Tomo III, R. 893, p. 295-297. Original.).

Muitas são as possibilidades fornecidas pelo epistolário para a explicação da


solidão e do ressentimento, sempre delimitadas no interior da relação entre o homem

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público e o dever. Essas explicações pretendem complementar o perfil do missivista,


num sentido muito preciso: ele era indispensável ao seu povo e à sua pátria, por isso era
incansável quanto às exigências do trabalho. Não havia nenhum outro capaz de
substituí-lo. Certamente, Bolívar sabia de sua dispensabilidade, então, foi exatamente a
ciência de que outros poderiam ocupar seu lugar que lhe exigiu tecer a memória da
indispensabilidade. Foi o desejo de se destacar, no presente e no futuro, que lhe
possibilitou antever a necessidade de se colocar, individualmente, como o homem capaz
de empreender as transformações para a América. Em síntese, foi a ciência quanto à
finitude do poder e da vida aliada ao desejo de consagrar uma memória à história que
permitiram a Bolívar criar um personagem dedicado à posteridade, assim, “morto
seguiria vivo, ausente seguiria presente” (MADARIAGA, 1953). Numa carta
endereçada a Pedro Gual, Bolívar não só demonstrava o conhecimento de sua
importância histórica, como traçava as linhas para a memória a ser estabelecida:
Você me diz que a história dirá de mim coisas magníficas. Eu penso que não
dirá nada tão maior quanto o meu desprendimento do mando, minha
consagração absoluta às armas para salvar o governo e a pátria.
A história dirá: “Bolívar tomou o mando para libertar seus concidadãos, e
quando foram libertados os deixou para que se governassem por suas leis e
sua vontade”. Esta é a minha resposta, Gual; as outras razões você as verá na
minha carta ao vice-presidente (Carta para Pedro Gual. Maracaibo,
16/09/1821. Tomo III, R. 775, p. 127-128. Retirada de Blanco y Azpurua,
VIII, p. 86.).

Desprendimento do mando e consagração absoluta às armas para salvar a


pátria resumem a máxima recorrente na correspondência bolivariana. Da
indispensabilidade à pátria e também à história, retiram-se duas imagens: a do soldado
(na alusão à consagração absoluta às armas) e a do homem público (cuja característica
marcante seria o desapego ao mando das instituições republicanas). A historiografia
cuidaria de reforçar ambas as imagens. No que se refere ao “homem público”
irretocável, seus traços seriam confirmados pelo interesse dispensado exclusivamente ao
bem da nação, interesse que estaria liberado da mácula atribuída aos “políticos
profissionais”. Posteriormente, Bolívar não seria visto como um político, mas como um
gênio político. Tais constatações são diferenciadas: construir um político exige um
processo de aprendizagem, ao passo que um gênio político simplesmente nasce como
fruto da criação. Uma vez mais a historiografia optou por seguir as diretrizes deixadas
por Simón Bolívar (CARRERA-DAMAS, 1969). No epistolário, a grandiosidade do
estadista vem exatamente da renúncia ao cargo de presidente para salvar a pátria dos

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interesses escusos. A pedagogia republicana devia exalar da sua liderança, desde que
resguardada sua posição de comandante do exército patriótico:
Eu recebi sua apreciável carta, que me foi trazida pelo mensageiro Alvarez.
Por ela vejo, com muita satisfação, que o Senhor me crê necessário por lá
[Colômbia]. Há pânico e terror dos Senhores relação à república. Ela pode se
governar perfeitamente sem mim, desde que com um exército que a defenda
sob minhas ordens, quero dizer, sob as ordens de um cidadão qualquer que
deseje a liberdade. Eu quero supor, meu amigo, que, embora eu fosse
indispensável para fazer o que temos feito, essa não seria a razão para me
persuadir da minha necessidade para se fazer o que ainda falta. Um homem
pode levantar o peso de muitos quintais, nem por isso, outro não poderá
levantar o de algumas arrobas. Este é o caso presente, meu amigo, e é por
isso mesmo que estou disposto a dar exemplo de um grande republicanismo
para que esse mesmo ato sirva de preceito aos outros. Não convém que o
governo esteja nas mãos de um homem mais perigoso; não convém que a
opinião e a força estejam nas mesmas mãos e que toda força esteja
concentrada no governo; não convém que o chefe das armas administre a
justiça porque então o choque universal será contra este indivíduo; e uma vez
derrubado, será derrubado todo o governo. [...]
[...] Todo mundo sabe que tenho inimigos, muitos pensam que aspiro ao
poder absoluto; não será um golpe para a república que as inimizades e os
zelos, conspirando contra mim, derrubem o governo? Mandando no exército,
a Colômbia me terá sempre na reserva e o governo na vanguarda (Carta para
Dr. José María Castillo Rada. Maracaibo, 16/09/1821. Tomo III, R. 774, p.
125-126. Cópia).

Como é costume do missivista, o uso das metáforas para diferenciar os


homens dedicados ao trabalho de administrar a pátria, nesse caso o quintal e a arroba,
serve para colocá-lo em situação de comparação que, de modo propositadamente
desavisado, constata sua hierarquia superior. Como anuncia na carta, outro homem
poderia substituí-lo, mas conviveria com o peso da responsabilidade de alcançar o
inalcançável. A memória da indispensabilidade constrói-se, conforme sugerido, a partir
da ciência do general quanto à sua dispensabilidade. Na mesma carta, confirmam-se
algumas teses constantes no interior epistolário: 1) o general queria fazer entender sua
indispensabilidade na guerra, no campo de batalha; 2) ao renunciar o convite para
assumir ao cargo de presidente (o que não ocorre em virtude da insistência de seus
companheiros), Bolívar afirma seu republicanismo e coloca-se como um estadista,
distanciando-se do mísero desejo pelo poder absoluto; 3) ao afirmar sua
indispensabilidade no teatro da guerra, ao aludir à renúncia, sem efetivá-la, e, sobretudo,
ao sublinhar seu desejo de libertar sem administrar, o general amplia sua
indispensabilidade, sugerindo que a permanência de uma América livre dependia da
coalizão em torno de seu mando e do referendo de sua legitimidade.

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Os sentidos associados ao discurso da renúncia demonstram a pluralidade


narrativa delineada pelo próprio missivista. Por trás dessa pluralidade, há uma
engenharia e uma arquitetura que buscam sustentar um projeto de poder 6. Essas
engenharia e arquitetura exigem a atenção ao discurso da renúncia, posto que esse
discurso traduziu-se em um instrumento político de amplo alcance e de grande
competência. Nesse sentido, o importante é demonstrar como a sustentação desse
projeto dependeu da capacidade do missivista em estabelecer diretrizes que, de um lado,
o legitimavam e, do outro, lidavam com o medo de seus companheiros quanto à
realidade de sua renúncia.
O apelo à renúncia apareceu prematuramente no epistolário porque a sua
primeira função foi a de colaborar com a legitimidade da liderança de Simón Bolívar.
Afirmado e legitimado como líder, o passo seguinte era conservar o poder e, para tanto,
o discurso da renúncia passou a servir como uma ameaça capaz de trazer à tona, a
qualquer momento, o medo cultivado pelos companheiros de que o comandante das
tropas patrióticas renunciasse. Sabedor da liderança que despertava, Simón Bolívar fez
de sua escrita um meio para controlar, simultaneamente, o medo e o apoio de seus
companheiros. A escrita funcionava para o missivista como um termômetro, pois por
meio dela podia medir as expectativas, as esperanças e a confiança do grupo em torno
de sua liderança. Além disso, também apresentava ao grupo suas esperanças e indicava
as possibilidades de realização das mesmas, tendo em vista a comprovação constante de
sua capacidade empreendedora. Era essa busca por legitimidade que o fazia escrever,
logo depois de Angostura 7:

6
A partir dessa consideração, é oportuno tecer uma comparação. Pode-se dizer que o discurso da renúncia
foi para Bolívar o que o discurso da morte foi para Getúlio Vargas. Sobre esse último, Maria Celina D’
Araújo (2004), quando analisa as cartas-testamento deixadas pelo gaúcho, aponta a tessitura de um
discurso sobre a morte como uma resposta do presidente ao seu fracasso e à vitória dos inimigos. Por
meio de suas cartas-testamento, dos relatos em diários e de alguns manifestos, Getúlio Vargas foi, aos
poucos, construindo-se como “vítima do poder e redentor do povo”. O suicídio – muito antes anunciado –
lhe permitiu adentrar vitorioso para a história. As referências metafóricas à morte apareceram antes de
1954, pode-se encontrá-las nos anos de 1930, 1932 e 1945. Nesse sentido, pode-se equiparar os projetos
narrativos de Bolívar e de Vargas, posto que ambos deixaram o registro sobre si e sobre o porquê
mereciam ocupar os olhares da posteridade. Nos dois universos, há a utilização – seja da morte, seja da
renúncia – de artifícios retóricos como “instrumento de poder, um recurso político, uma maneira de
valorizar seus feitos e de construir uma imagem grandiosa para o futuro”. (D’ARAÚJO, 2004, p. 295).
7
Nome da cidade venezuelana que sediou o Congresso de Angostura em 1819, quando Bolívar conseguiu
aprovar a criação da Grã-Colômbia. Entre uma das peças políticas mais importantes de seus escritos,
apontadas pelos pesquisadores, está o discurso pronunciado por ocasião da instalação do Congresso.
Nesse documento, Bolívar defendeu a inaplicabilidade de uma Constituição Federal, apesar de admitir
que o federalismo florescia muito bem na América do Norte. Suas considerações objetivavam convencer
os legisladores da necessidade de adotar uma constituição que lidasse com “a idéia sólida de formar uma

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Farei outra confissão: a única causa, por assim dizer, que tem me animado a
propor a criação da Colômbia [Grã-Colômbia], tem sido a idéia de destruir
para sempre os motivos de ódio, de discordância e de dissolução. Se estes
aumentam, que horroroso desengano!
Desde que saí daqui para Caracas pela primeira vez, ia firmemente resoluto a
deixar o mando no mesmo dia em que libertasse a minha pátria: a guerra me
forçou a continuar no mando para combater com sucesso, ou pelo menos com
esperanças. Esta resolução cresce em mim progressivamente na razão do
tempo e dos sucessos e a cada dia se multiplica em progressão geométrica.
Muitas vezes tenho dito a alguns de meus amigos que eu me encontro em alto
mar procurando um porto para desembarcar. A paz será o meu porto, minha
glória, minha recompensa, minha esperança, minha dita e tudo o quanto é
precioso no mundo. Já proclamei uma vez à face da Venezuela: o primeiro
dia de paz será o último de meu mando: nada me fará mudar esta
determinação. Poderão se amontoar sobre a minha cabeça as tempestades do
céu, abrir aos meus pés todos os abismos, convidar-me à fama com um
templo último na posteridade; o Paraíso oferecer-me as suas delícias; mas eu,
mais forte que o inflexível Catão, ficarei inexorável como ele. Por fim direi:
se não me resta outro caminho que o da fuga, esse será o da minha salvação.
(Carta para Francisco de Paula Santander. El Rosario, 10/06/1820. Tomo II,
R. 591, p. 354-355. Original.).

No interior do projeto narrativo epistolar, o missivista confessava o desejo


de renunciar ao cargo no mesmo dia em que a liberdade da pátria fosse alcançada. A
continuidade da guerra e as dificuldades para empreender a libertação o faziam
permanecer frente ao cargo de comandante do exército patriótico e primeiro mandatário
da Grã-Colômbia. Nessa leitura, embora não pudesse efetivar a renúncia num presente
marcado pela guerra, esse expediente político permanece no horizonte de expectativa do
missivista. Recorrendo à renúncia em cada um dos momentos de dificuldades, Simón
Bolívar não deixava os companheiros esquecerem o fato de que a ausência de apoio
podia trazer a renúncia e, com ela, a abdicação de um projeto de poder. Estabeleceu-se
um jogo, no qual a renúncia tornara-se o meio para atingir a legitimidade plena. Se,
nesse caso, a renúncia funcionava como um blefe, o missivista devia assumir a
obrigatoriedade dos riscos de ser aceita. Assim, há que se considerar a renúncia também
como um desejo, talvez, um desejo que não lidasse com o presente do missivista, mas
que divisasse o futuro.
Nem sempre foi fácil separar as duas opções (a da obrigatoriedade e a do
desejo) na leitura das cartas, pois ambas eram componentes da narrativa. Ao considerar
a impossibilidade de escape da dubiedade desse discurso, foi preciso aceitar seriamente

república indivisível e centralizada” (BOLÍVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 121). Munido
dessas convicções, Bolívar defendeu um Senado hereditário e um executivo forte. Ao propor um
executivo forte, Simón Bolívar comparou as atribuições de um presidente da República às do rei na
monarquia britânica. O rei teria, no “modelo perfeito”, as mãos atadas pela vigilância do legislativo, mas,
ao mesmo tempo, a sua “inviolável e sagrada pessoa” seria fundamental para o equilíbrio político
(BOLÍVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 127).

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a pretensão do missivista em ser ambíguo. Tal ambigüidade era, concomitantemente,


uma proteção argumentativa e uma resultante da impossibilidade de onisciência do
missivista. A ambigüidade ronda todo o epistolário e faz com que o leitor da
correspondência depare-se com a dúvida e com os limites entre o dito e o não dito, entre
a ciência e a onisciência. Dessa forma, a conclusão não podia ser outra: emoldurar um
projeto de poder significava tanto usar a renúncia como um blefe quanto saber o
momento certo de renunciar, fosse essa uma decisão a ser tomada como uma prospecção
para o futuro ou como um fruto da necessidade diante da doença e da proximidade da
morte. Em um ou em outro caso, o discurso da renúncia não deixou de estar vinculado à
medição da legitimidade, o que levava ora ao inferno do ressentimento, ora ao paraíso
da aceitação de um republicanismo ímpar e pedagógico.
Sinteticamente, o discurso da renúncia possibilita explicitar o projeto de
poder do missivista e por esse motivo torna-se fundamental seu desvendamento. Esse
projeto de poder envolvia uma concepção de América e o traçado de ações responsáveis
para a viabilização da América pretendida, a que fosse livre e soberana num futuro
próximo. A viabilidade de um projeto de poder, no qual Bolívar era figura central,
dependia da participação de um grupo de apoio, por isso a necessidade de
convencimento e o transplante dessa necessidade à escrita. Ao escrever cartas, Simón
Bolívar apresentava suas ações e, ao justificá-las, demonstrava suas convicções, seu
idealismo e suas necessidades. Essa mescla aponta para o quanto é complexo expor o
missivista. Sobre essa complexidade, é oportuno traçar alguns comentários, pois eles
ajudarão a compreender como o ressentimento bolivariano se vinculará à memória da
indispensabilidade.

III.

À primeira vista, muito rapidamente, pode-se concluir que o caminho das


análises de Simón Bolívar sobre a América traça uma linha contínua que, ao invés de
ascendente, é descendente. Explica-se: uma primeira leitura do epistolário pode
encaminhar à percepção de que Bolívar, no que se referia às suas previsões sobre a
América, passou do entusiasmo e da convicção à amargura e ao desencanto. Embora
esse caminhar fosse acidentado, a historiografia o tomou e o qualificou a partir da curva
descendente (do entusiasmo à amargura), retirando-lhe as arestas controversas e

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acidentadas. Assim qualificada, essa apropriação contribuiu para que se assentassem


preconceitos em torno dos projetos (passados e futuros) para a América. Para essa
leitura, a “América seria ingovernável”, posto que os projetos políticos modernos,
associados à matriz liberal, não faziam mais do que “arar no mar”. É expressivo dessa
construção de sentido historiográfico o fato de que, depois da Carta da Jamaica (1815),
a chamada “carta profética”, os trechos de uma epístola escrita para o General Juan
Flores, após o assassinato de Sucre, tornaram-se um dos mais conhecidos e divulgados
escritos de Simón Bolívar. Essa carta foi insistentemente citada como referência do
estilo de escrita e dos pensamentos do general. A constante divulgação dessa missiva
não pode ser tomada como ato casual na medida em que seu conteúdo narrativo passou
a ocupar um lugar na memória política e social latino-americana. Os referidos trechos
são os que seguem:
Você sabe que eu governei 20 anos e deles não tenho retirado mais do que
poucos resultados certos: 1º. A América é ingovernável para nós. 2º. Aquele
que segue uma revolução ara no mar. 3º. A única coisa que se pode fazer na
América é emigrar. 4º. Este país cairá infalivelmente nas mãos de uma
multidão desenfreada, para depois passar para [as mãos de] tiranos quase
imperceptíveis, de todas as cores e raças. 5º. Devorados por todos os crimes e
extintos por todas as ferocidades, os europeus não se dignarão a nos
conquistar. 6º. Se for possível que uma parte do mundo volte ao caos
primitivo seria este o último período da América. (Carta para Juan J. Flores.
Barranquilla, 09/11/1830. Tomo VII, R. 2.781, p. 585-588. Retirada de
Boletim Histórico, n. 1, Fundação John Boulton.).

Não se quer negar a trajetória de Bolívar, pode-se mesmo afirmar que ele
oscilou do mais profundo entusiasmo ao mais desesperado desencanto. Sua crença na
premissa de que a liberdade, uma vez instaurada, liberaria forças capazes de construir
uma América soberana, feliz e ordenada, certamente, explica a oscilação desse homem
em pólos opostos. Ainda mais: sua crença na liberdade lhe permitiu ser o “Libertador” e
não o “Administrador” ou o “Ordenador”:
Se há reclamações que expõem sobre a legitimidade ou ilegitimidade da
reunião da Colômbia, cabe ao Congresso Geral resolver sobre esta grande e
odiosa matéria. Pelo que a mim toca, só faço votos ao céu para que a
América seja livre e eu me veja livre de mandar na Venezuela e na
Cundinamarca, para as quais tenho feito tudo o que tem estado ao meu
alcance, não para mandá-las, mas sim para constituí-las independentes. Se
estes dois povos querem viver separados, nada será mais conforme com o
ardente e vivo desejo de meu coração e se querem viver reunidos, nada mais
será conforme sua verdadeira ordem, sua felicidade futura e a glória de seus
filhos. (Nota à representação do general Santander protestando por ter sido
privado o Departamento da Cundinamarca de seu Tribunal de Justiça. Quartel
General de El Rosário, 20/06/1820. Tomo II, R. 595, p. 363-364. Retirada de
Acotaciones bolivarianas, p. 73, Fundação John Boulton.).

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O anterior é deveras significativo: o missivista afirmava que a sua pretensão


era a de constituir unidades independentes e não necessariamente governá-las ou,
melhor, em seu vocabulário, mandá-las. Analiticamente, libertar exige também o
patrocínio e a garantia da liberdade. Para tanto, Bolívar teria de libertar territórios e
impor-lhes uma ordem administrativa que ultrapassasse a exclusiva dependência de um
sítio militar. Esse segundo passo poderia assegurar a liberdade. Todavia, em meio à
guerra, não coube à alçada do missivista o governo das repúblicas. Bolívar insistiu em
reforçar seu perfil por meio da imagem do guerreiro exatamente porque se preocupava
em romper o laço com a Espanha:
Recebi com muito gosto a sua carta, que me trouxe o mensageiro Alvarez. O
Senhor conjura aos deuses para que me movam em direção à Cúcuta. A que
[propósito], quando tenho expedições importantes em minhas mãos, em
momentos preciosos e únicos? Eu conheço o que posso fazer, meu amigo e
sei onde sou útil; persuada-se de que não sirvo senão para guerrear, ou, pelo
menos, para andar com os soldados, impedindo que outros o conduzam pior
do que eu. Tudo mais é ilusão de meus amigos. Porque têm me visto dirigir
uma barca na tempestade, acreditam que eu sirvo para almirante de uma
esquadra. Somente em caso semelhante um simples piloto pode fazer melhor
que um almirante, e nem por isso há que mudarem os talentos e a condição de
ambos (Carta para Pedro Gual. Maracaibo, 16/09/1821. Tomo III, R. 775, p.
127-128. Retirada de Blanco y Azpurua, VIII, p. 86.).

Mais uma vez, a metáfora invertida: embora simples soldado, podia servir
em condição de almirante, desde que no meio de uma tempestade, ou seja, diante de
uma ocasião singular e dramática – exatamente como a que cercava de
descontentamento e intriga a criação da Grã-Colômbia. Passada a tempestade,
renunciaria ao posto, pois a humildade também é lição a ser retirada do bom
republicanismo. Seu mundo era o da guerra e, embora pensasse em alternativas políticas
para o ordenamento e a administração das repúblicas, não tomava essa tarefa como
sendo sua tarefa mais importante 8. A tarefa que se impunha era a de libertar a América,
tarefa vaga e imprecisa discursivamente, o que demonstra um limite de ação
compreensível do ator histórico. Limite que, consciente ou não, o missivista confessa e
justifica, particularmente, quando se apresenta como o guerreiro ou como o
“Libertador”. Para o leitor atento, é certo que Bolívar construiu-se a partir da crença
absoluta na liberdade, a ponto de assumi-la como um ideal demiurgo (PRADO, 1981).

8
Por um lado, é importante registrar que Bolívar foi o idealizador da primeira constituição da República
da Bolívia. Por outro, uma frase sua revela, mesmo no final da vida, o apego ao ideal da liberdade,
desprovido do desejo de assumir o cargo administrativo: “Meu único amor tem sido o da pátria, minha
única ambição, a sua liberdade” (Carta para Pedro Briceño Méndez. Bucaramanga, 13/04/1828. Tomo VI,
R. 2.044, p. 252. Original.).

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Essa crença, entre outras, colocou Simón Bolívar na fileira dos que acreditavam
encontrar na ruptura com a metrópole o melhor caminho. Ainda mais: foi pela crença na
capacidade transformadora da guerra e da instauração “mágica” da liberdade que, finda
a luta contra os espanhóis, Bolívar pressentiu a sua dispensabilidade.
Também é certo que, no momento em que Bolívar percebeu que a liberdade
não conseguiria resolver os problemas colocados à América, sendo esse ideal demiurgo
apenas o início da longa e lenta escalada, ele sentiu-se traído em suas convicções e em
seus afetos. Era o momento de pressagiar que a liberdade tinha se destituído do seu
poder transformador e, portanto, toda a vida dedicada à revolução e à pátria tornara-se
uma grande perda de tempo, restando, então, a lamentação por ter se deixado absorver
de tal modo por essa tarefa que, na verdade, lhe garantiu apenas a solidão. Assim,
apontar a linha decrescente entre encanto e desencanto, usando o epistolário bolivariano
como “fonte comprobatória da verdade”, sem apresentar o sentido narrativo que liga as
missivas, serve para reforçar a inviabilidade da América, assentando-se, desse modo,
uma memória comprometida com o “pecado original” (a conquista e a colonização) e
com a incapacidade de mudança das instituições políticas e sociais. O epistolário revela
muito mais do que o desencanto, pois permite compreender o caldo formativo do
desencanto, associado à experiência da guerra e da libertação. Como não perder a
convicção pelo grande projeto da independência frente aos clamores populares pelo
retorno ao status quo monárquico? Como desconsiderar a força dos realistas, em
especial depois da experiência no Peru? Embora Simón Bolívar tenha tomado a
liberdade como um ideal capaz de resolver todas as mazelas americanas, interessa é
assumir a complexidade deste debate e perguntar no que isso poderia ter sido diferente.
Para tanto, o discurso da renúncia torna-se peça-chave.
Visto esse tema de outro modo, a primeira afirmação que deve ser colocada
é: Bolívar tinha de tomar a liberdade como um ideal demiurgo. Em meio a tantas
transformações rápidas e de impacto como é característico das revoluções 9, esse general

9
Muito já se escreveu sobre o caráter revolucionário ou não das independências americanas. Os modelos
usados para a avaliação do caráter revolucionário de um movimento foram, no decorrer do século XIX, a
Revolução Francesa e, no decorrer do século XX, a Revolução Russa. Usados tais modelos, o caráter
revolucionário estaria ligado a processos de grande intensidade, com evidente ruptura. As revoluções
seriam explosões, em nada graduais ou perceptíveis em longo prazo, capazes de “derrubar um sistema” e
“implantar outro sistema completamente novo”. Dessa perspectiva, à revolução não caberia o
continuísmo. Essa avaliação foi revista por uma historiografia mais recente. Pese as continuidades,
Carrera-Damas (1964) afirma haver consenso entre os historiadores venezuelanos sobre o caráter
revolucionário do processo de independência. Também François-Xavier Guerra (2003) admite o caráter

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optou pela ruptura com a metrópole. E a ruptura com a metrópole significava deixar de
se reconhecer como até então os criollos se reconheciam – afinal, era em nome de sua
ascendência (a pureza de sangue) e de seus vínculos com a Coroa que os criollos
reafirmavam-se como um grupo perante os demais, posto que os “outros” não tinham
uma linhagem e, portanto, não eram dignos de partilhar dos privilégios em solo
americano.
Findo o processo de luta pela independência, as repúblicas recém-fundadas
precisariam construir para si uma identidade nacional que, por sua vez, deveria traduzir
os anseios e as expectativas populares e harmonizá-los com o projeto estatal
republicano, federalista e oligárquico. Em 1831, com a separação da Grã-Colômbia,
surgiriam as repúblicas da Venezuela, Colômbia e Equador, tendo como líderes
respectivamente José António Páez, Francisco de Paula Santander e Juan José Flores. A
situação econômica ou política dessas repúblicas não conheceu grande melhora com o
término das guerras de independência. Às guerras de independência sucederam-se
outras, tais como as guerras locais que associaram a política à instabilidade. Também, a
bancarrota fiscal, a ausência de crédito externo e as dificuldades de incorporação das
comunidades indígenas e de ex-escravos à vida da república foram problemas
cotidianos na segunda metade do século XIX 10.

revolucionário das independências na América, atrelando-as a uma transformação que definitivamente


impediria o retorno, tal e qual, à situação do Antigo Regime: a entrada do mundo espanhol e americano
na modernidade política. Para os representantes dessa revisão historiográfica, um processo revolucionário
abriga, sem dúvida, ruptura e continuidade, sendo que o definidor do grau de transformação
revolucionária é a irreversibilidade do processo. Colocada a questão em outros termos: a despeito de
algumas continuidades estruturais que dificultaram a vida administrativa e econômica das novas
repúblicas americanas, era-lhes impossível atuarem, após o processo de independência, como colônias,
imersas no pacto do Antigo Regime. Era inadmissível reacomodar-se, nos mesmos termos, à monarquia
hispânica.
10
Deas (2001) informa que, nos cinqüenta anos posteriores a 1830, tanto a Colômbia quanto o Equador
não conseguiram empréstimos significativos no exterior. Para o caso da Venezuela, na década de 1860,
Guzmán Blanco arriscou usar desse expediente. Geralmente, as administrações das repúblicas usavam o
crédito interno; agiotas permitiam empréstimos de curto prazo, mas com altos juros. Durante todo o
século XIX, as repúblicas conviveram com crises fiscais. A única receita em expansão era a que advinha
da tarifa alfandegária e, para citar um exemplo, na década de 1860, dois terços da receita da Colômbia
dependiam dessas tarifas. Politicamente, o cenário dos três países foi composto por guerras civis. Em
1835, a Venezuela sofreu com a revolta das reformas e com a tentativa de golpe de bolivaristas excluídos
do poder por Páez. Revoltas generalizadas ocorreram em 1846 e, na década de 1850, com a política
dominada pela família Monagas, a instabilidade culminou na Guerra Federal, entre os anos de 1859 e
1863. Na Nova Granada, em 1839, na região de Pasto, a insatisfação dos padres foi combustível para
declarações federalistas que também levaram à Guerra de los Supremos. Depois disso, guerras civis
assolaram a Colômbia em 1876-1877 e, novamente, em 1885. Assim, Venezuela e Colômbia começaram
e terminaram o século XIX com guerras civis. O Equador não escapou às intempéries políticas, revoltas
populares foram debeladas por Flores até a sua expulsão do Equador, ocorrida em 1835. De acordo com
Deas, embora a conjuntura seja parecida nesses territórios, há particularidades regionais: “Em toda a
região, as guerras tinham uma característica comum, mas isso não quer dizer que tenham sido

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Ao largo desses problemas, era o momento de se construir a identidade


nacional. Nesse mesmo período, as construções de memória lidariam com distintas
óticas. A própria explicação histórica em torno do significado da independência
agruparia interpretações divergentes no que se referia à continuidade ou
descontinuidade histórica. Para uma matriz, influenciada pela leitura do Abade de Pradt,
a independência fora resultante da chegada das colônias à sua vida adulta. Nessa
interpretação, considerava-se a época pré-colombiana, a conquista e a colonização como
frutos de um longo processo de maturação que desembocara na independência. Para
outra matriz, a independência fora um momento de descontinuidade, quando a antiga
nação resgatara a liberdade espoliada. Essa premissa supunha, também, identificar “a
nação moderna aos antigos Estados indígenas, o período colonial a uma época de
dominação estrangeira e a emancipação a uma desforra da Conquista” (GUERRA,
2003, p. 13). Essa segunda matriz, mesmo considerando as dificuldades de sua adoção,
foi a mais aceita entre a elite criolla, especialmente a que foi contemporânea e partícipe
das guerras pela emancipação. Essa adoção explica a presença de uma nova legenda
espanhola, que evocava a crueldade dos peninsulares, apoiava-se nas apologias de
homens como Bartolomé de Las Casas e aludia às referências, também míticas, de
Athaualpa e Tupac Amaru, por exemplo. Todos esses elementos encontram-se presentes
no epistolário bolivariano.
Em ambas as matrizes, o elemento indígena esteve presente. Tal evocação
mítica pretendia, simultaneamente, ora integrar o elemento indígena, ora edificar a
identidade criolla por meio de um passado realista e digno: a América tivera a sua
antiguidade clássica e essa esteve representada pelas civilizações pré-colombianas. No
interior desse esforço representacional, há que se considerar o conflito da elite criolla
que, às vésperas da independência, identificara-se com os espanhóis, posto que
reivindicara a pureza de sangue para comprovar sua ascendência peninsular e combatera
pela defesa da legitimidade de Fernando VII, quando da invasão napoleônica na
Espanha. Em síntese, a nova referência trazida pela independência era a da ruptura com

completamente iguais. Tendiam a coincidir – e foram mais exacerbadas quando isso acontecia – com os
períodos de dificuldade econômica, às vezes, identificáveis com crises na economia mundial, outras vezes
com conjeturas locais particularmente infelizes. As dificuldades econômicas diminuíam as receitas dos
governos e governos pobres tinham menos condição de satisfazer e entusiasmar seus partidários e de
enfrentar seus inimigos. A insatisfação endêmica das províncias tornou-se mais intensa à medida que a
pobreza dos governos restringia seus gastos às regiões mais próximas de sua sede.” (DEAS, 2001, p. 523-
525).

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os “trezentos anos de despotismo”. No interior dessa nova referência, as versões que,


numa conjuntura imediatamente posterior, tentavam explicar o nascimento da nação
americana esbarravam na dificuldade da elite em lidar com o seu passado, fosse ele o
indígena ou o colonial (GUERRA, 2003, p. 14).
A complexidade dessa recomposição continua: tomada a liberdade como um
ideal demiurgo, era mais fácil transformá-la em convicção capaz, também, de convencer
os interlocutores do general. Diante de tal quadro, crença, convicção e necessidade de
convencimento permitiram o nascimento de uma fórmula que, no entanto, não
imunizava os criollos dos conflitos inerentes à atuação e à experimentação política.
Diante das pelejas enfrentadas no cotidiano da guerra e da precária administração, seria
aceitável o fato de Bolívar pronunciar seu desolamento com a impossibilidade de que a
liberdade tudo transformasse. Não obstante, sua crença na liberdade não turvou suas
avaliações quanto às dificuldades em colocá-la em prática e, depois, em mantê-la. Ainda
em 1819, no discurso de Angostura, Bolívar escrevia:
A liberdade, diz Rousseau, é um alimento suculento, mas de difícil digestão.
Nossos débeis concidadãos deverão fortalecer seu espírito muito antes que
consigam digerir o saudável alimento da liberdade. Entorpecidos seus
membros pelos grilhões, debilitada sua vista pelas sombras das prisões e
aniquilados pelas pestes servis, serão capazes de marchar com passos firmes
em direção ao augusto templo da liberdade? Serão capazes de admirar de
perto seus esplêndidos raios e respirar sem opressão o ar puro que ali reina?
(BOLIVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 119.).

Sabedor das dificuldades de tornar o ideal da liberdade uma prática política


efetiva, Simón Bolívar, mais adiante, respondia às próprias dúvidas, expostas em trecho
posterior do mesmo discurso:
A natureza, em verdade, nos dota, ao nascermos, do desejo da liberdade; mas
seja a preguiça, seja a propensão inerente à humanidade, o certo é que esta
repousa tranqüila, embora atada com as travas que se lhe impõem. Ao
contemplá-la neste estado de prostituição, parece que temos razão para
acreditar que a maioria dos homens tem por verdadeira a humilhante máxima
de que custa mais manter o equilíbrio da liberdade do que suportar o peso da
tirania. Oxalá esta máxima, contrária à moral da natureza, fosse falsa! Oxalá
esta máxima não fosse sancionada pela indolência dos homens em relação
aos seus direitos mais sagrados!
Muitas nações antigas e modernas sacudiram a opressão, mas são raríssimas
as que têm sabido gozar de alguns preciosos momentos de liberdade; logo
recaíram em seus antigos vícios políticos, porque são os povos, antes que os
governos, os que arrastam atrás de si a tirania. O hábito da dominação os faz
insensíveis aos encantos da honra e da prosperidade nacional e olham com
indolência a glória de viver no movimento da liberdade, sob a tutela de leis
ditadas por sua própria vontade. Os fatos do universo proclamam esta
espantosa verdade (BOLIVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 119.).

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Enfim, Bolívar era um homem de elite confiante em sua capacidade de


liderança e no potencial transfigurador da educação. Seus conflitos – reveladores do
desencanto, da traição e do fastio – apenas reforçam que esse homem era partícipe de
um mundo em profunda transformação, daí as idas e vindas e os apelos dramáticos
sempre presentes em seu discurso 11. O deslocamento de Bolívar da crença no futuro
americano às previsões nada alentadoras para o futuro revela certa incompreensão desse
universo em transformação. Aliás, é fácil deduzir como a incompreensão decompôs-se
no ressentimento, pois revelar ou assumir a incompreensão seria, no caso de Bolívar, o
mesmo que abandonar o posto do homem das dificuldades. A adjetivação que o próprio
Bolívar havia concedido a si, a de homem das dificuldades, sem dúvida, suplantava e
justapunha as demais qualificações atribuídas a seus outros generais. Da mesma
maneira, tal qualificação passou às interpretações, assegurando a Bolívar o posto
máximo de herói das independências na América do Sul de colonização espanhola.
Compreendida a importância de tal adjetivação, pode-se inferir em que medida a
confissão de certa incompreensão da América bem como a impossibilidade de se manter
no comando das tropas republicanas – fosse pela doença, fosse pelo fastio, fosse pela
perda de legitimidade – podiam levar ao ressentimento. Admitida certa incompreensão
por parte do missivista, assim mesmo, é preciso considerar que há um limite, ditado pela
própria capacidade humana, para a compreensão de um processo transformador,
especialmente quando se está imerso nele.
Junto de uma avaliação do missivista, é primordial compreender como a
opção pela independência – especialmente porque tal opção foi encaminhada pela
ruptura e pela guerra – afetou o discurso da elite criolla, exigindo dela a reconstrução de
sua própria identidade. Se antes essa identidade viu-se forjada pelo reconhecimento da
conquista e da colonização, o que lhes permitia enquanto classe afirmar-se e diferenciar-
se de índios e mestiços, herdeiros de outra tradição, com a independência colocava-se a
exigência de rever a “aceitação positiva” tanto da conquista quanto da colonização.

11
A dramaticidade, os exageros e os apelos repetidos, certamente, tornaram-se armas discursivas.
Convencer era uma das funções da escrita da carta. A carta tem uma temporalidade própria, não devendo
ser analisada somente em relação a um contexto. O texto expressa, simultaneamente, o desejo daquele
que escreve – e está vinculado a um contexto externo à missiva – e o desejo daquela persona criada por
aquele que escreve – a persona que adquire vida no texto, mas que nem por isso é menos importante. De
qualquer maneira, a dramaticidade – representada por meio de seus elementos subjetivos, tais como a
angústia, o desencanto, a amargura, o ressentimento – também deve ser avaliada a partir de uma severa
crítica da fonte. Não é porque a escrita investe em elementos subjetivos que a carta representa a
“verdadeira confissão” do escritor.

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Durante o período colonial, muitos se posicionaram como críticos severos


do encaminhamento bélico e destrutivo da conquista e da exploração econômica da
metrópole. Todavia, a alusão a uma “aceitação positiva da conquista e da colonização”,
em especial no que se refere aos criollos, quer chamar a atenção para o fato de que
esses, enquanto grupo, sentiam-se herdeiros dos peninsulares, a despeito de algumas
restrições à sua atuação política e econômica no universo colonial. É certo que, em
termos representacionais, o panorama é bem mais elástico, sendo permitida, entre
outras, a identificação da elite criolla com o legado dos impérios pré-colombianos.
Enfim, trezentos anos de história inseriram a América no mundo de uma maneira
particular e a leitura dessa realidade, feita por seus contemporâneos, em alguma medida,
teve de assumir os códigos peninsulares, mesmo que, nesse processo, muitas tenham
sido as manifestações de resistência, fossem elas de cunho cultural – por meio das
assimilações híbridas, tais como a simbologia da Virgem de Guadalupe – fossem de
cunho político – por meio das rebeliões coloniais, nascidas particularmente entre as
comunidades indígenas.
Aceita a Independência como um processo causador de ruptura, é preciso
também encarar o trauma presente num processo de tamanha amplitude. Mais uma vez,
os atores históricos eram convocados para parturientes de um Novo Mundo. Se a
Conquista significou um divisor de águas e provocou grande choque e trauma, assim
também o seria a Independência. As alegorias do Antigo Regime, expressas na
simbologia associada à monarquia e ao catolicismo de matriz ibérica, demonstram,
simultaneamente, os graus de continuidade e de ruptura estabelecidos entre a Espanha e
a América. A partir dessas reflexões, é essencial registrar o desafio de decifrar os
códigos desse Novo Mundo. Se tal desafio torna-se uma tarefa complicada para os
historiadores, o que dizer então sobre os sentimentos e as avaliações provocadas
naqueles que vivenciaram esse processo e que não tinham como assimilá-lo em sua
amplitude? É fundamental perceber que para os atores históricos, contemporâneos ao
processo, a vivência multiplica a dramaticidade dos acontecimentos e dificulta a
apreensão e a compreensão das transformações.
Nesse sentido, o desencanto e o ressentimento bolivarianos podem ser
também avaliados como resultantes de sua ciência quanto à sua participação imperativa
para o nascimento de um Novo Mundo. Um Novo Mundo onde as antigas lealdades e
tradições não cabiam; um Novo Mundo onde o próprio Bolívar era, ao mesmo tempo,

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algoz e vítima das transformações; um Novo Mundo com o qual o general não interagia
tendo plena identificação. Essa contradição encontra-se presente em suas missivas e o
desejo de renunciar à presidência e servir como simples soldado, embora faça parte de
uma construção de memória que pretende edificar a imagem do homem público
consagrado por meio da guerra e do espírito de abnegação e sacrifício, da mesma forma,
aponta para a ciência de Simón Bolívar de sua incompreensão das transformações
impostas pelo nascimento desse Novo Mundo. Em algumas circunstâncias narrativas,
especialmente vinculadas à renúncia do cargo administrativo, caracterizar-se como
soldado era o mesmo que se excluir como magistrado – tal discurso podia ser explícito
ou não. Nesses momentos, o próprio missivista reconhecia a sua tradição: era ele o
homem da revolução, formado no tumulto e na anarquia. A dificuldade de Simón
Bolívar em lidar com os herdeiros do constitucionalismo – os homens da “república
filosófica”, como ele mesmo os denominara – demonstra seu conflito diário na tentativa
de perceber qual o sentido do Mundo Novo que a liberdade instaurara. A carta a seguir,
após a indicação de José Maria Del Castillo Rada para o governo da Colômbia, é
reveladora:
Assim, amigo, faça e desfaça o quanto lhe pareça melhor neste departamento,
que eu tenho organizado muito ligeiramente e com extrema repugnância,
porque você não pode imaginar nem pensar o desagrado que me causa tudo o
que tem relação com a parte administrativa da república, pois minha sorte já
estava fechada, eu não quero ser mais do que soldado, simples soldado se for
preciso, antes que Presidente. Tudo isto digo a você para que tenha entendido
minha absoluta abnegação ao governo, e que faça cargo dele, sem contar
comigo para nada.
[...]
Estou certo de que outro presidente corrigirá tudo o que não fui capaz de
corrigir durante o meu mandato, porque o novo presidente não estará
colocado no centro da revolução como eu estive, e trabalhará, por
conseguinte, com olhar próprio para a nova era que encontrará. Esta é outra
razão que tenho, além do mais, para querer sair da presidência, porque eu
jamais poderei tirar minhas linhas da esfera da revolução, ainda que esta
tenha fenecido ou esteja pronta para fenecer. É tão difícil, por outro lado, que
um chefe, criado em meio ao tumulto, à anarquia e ao ruído das armas, possa
governar com acerto uma república filosófica, decretada por um congresso.
Tal república não é para ser habitada por homens que se educaram em meio
aos furacões revolucionários. Estou persuadido que o Congresso percebeu a
exatidão dessas verdades e, por isso mesmo, não quer que eu governe pela
espada ou com pulso terrível, mas com uma pluma e tato delicado, porque
sem dúvida a marcha do tempo tudo deve submeter. (Carta para José María
Del Castillo Rada. Tocuyo, 16/08/1821. Tomo III, R. 753, p. 102-103.
Cópia.).

O escrito acima é um exemplo de missiva confessional, na qual Bolívar


expunha ao amigo a sua inadequação à “nova era”. Nessa carta, apresenta-se um

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elemento novo: o dilema bolivariano em conviver com o desafio de lidar com um novo
modo de fazer política. Para esses novos tempos, a cena pública esteve mapeada por
também novas legitimidade e sociabilidade, ambas perceptíveis pelos atores históricos
(GUERRA, 2003).
Para Bolívar, o dilema de como se colocar numa nascente e distinta cena
pública resolver-se-ia por meio de sua afirmação enquanto soldado. O anterior
permitiria que ele mantivesse sua autoridade e legitimidade bem como lhe possibilitaria
não ser testado em seu tato político, em particular quando os novos tempos exigiam
“embainhar a espada e testar a pluma, submetendo-as à marcha do tempo”. Assim
mesmo, a leitura atenta da carta anuncia a necessidade justificadora de Simón Bolívar:
implicitamente, o general indicava que seus limites formativos o impediam de fazer
mais pela pátria. Desse modo, a renúncia vinha associada a um homem público que
tinha se doado completamente e que continuaria doando-se, desde que lhe deixassem
seguir no posto de soldado. O ano da carta acima, como se pode observar, é 1821,
quando mal tinham começado os embates no Peru. Bolívar sabia que a guerra não
chegara ao fim e que a segurança da Colômbia e da Venezuela dependia dos resultados
no Peru. Em virtude disso, também sabia que renunciar ao posto de magistrado e
manter-se como o soldado mais importante da república não era, como pode parecer,
renunciar ao poder. Antes de tudo, era possibilitar a si mesmo a construção da figura do
herói salvador.
Como a carta anterior demonstra, apreender e lidar com o discurso da
renúncia era ampliar o leque para além do escrito exclusivo sobre a renúncia. Bolívar
nomeou a renúncia de várias maneiras e escreveu sobre ela até mesmo quando não
parecia ser esse o assunto principal. A riqueza do discurso da renúncia encontra-se
exatamente nos vários outros temas que a ele vêm associados. Se, à primeira vista, os
temas permitiam a impressão de que estavam imersos nas cartas ao acaso, sem indicar
necessariamente uma relação mais fértil com o discurso da renúncia, com o
conhecimento mais aprofundado do epistolário, tais temas vieram acrescentar
complexidade à análise, sugerindo uma investigação muito mais abrangente do que a
calculada no início. O discurso da renúncia permitiu conceber o que se denomina como
memória da indispensabilidade. Construída entre a ciência e a impossibilidade de
onisciência do missivista, essa memória tomava para si o cultivo do ressentimento que,
por sua vez, também incorporava elementos como o medo da solidão e da morte.

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Avaliado o ressentimento como parte integrante da construção de uma memória da


indispensabilidade, passou a importar a fonte do ressentimento do missivista e, ainda,
das condutas que esse ressentimento inspiraria. No caso, tanto a fonte do ressentimento
quanto a conduta por ele instigada podiam ser mapeados por meio do discurso epistolar,
sendo a renúncia o elo entre esses pólos.
Pierre Ansart (2001) alerta sobre a diversidade das formas de ressentimento,
o que leva à conveniência de se reportar a “ressentimentos”, adotando o plural. Em
seguida, apoiando-se em Nietzsche, ele aponta dois tipos de ressentimento: o primeiro,
o ressentimento dos fracos, dos dominados e dos padres ascéticos; e o segundo, o
ressentimento que nasce do ódio recalcado dos dominantes frente à revolta dos
dominados. Esse segundo ressentimento associa-se ao desprezo e ao desejo de
reencontrar a autoridade perdida para se vingar da humilhação (2001, p. 19). A partir da
definição proposta, enfoca-se a dinâmica do ressentimento: ele não é um sentimento que
se cultiva e se guarda em meio à inércia e à contemplação. Ao contrário, ele é um
sentimento que requer a ação, pois atua em nome do que se perdeu ou do que ainda se
quer ganhar. Considerando a relação de poder que se estabelece entre os indivíduos,
tanto dominantes quanto dominados estão sujeitos ao cultivo do ressentimento. Dessa
maneira, a memória deixa de ser a memória do ato de renunciar para se tornar a
memória da indispensabilidade, que, como sugerido, contém os apelos ao
ressentimento, à calúnia, à doença e à morte:

Tenho sacrificado minha saúde e fortuna para assegurar a liberdade e a


felicidade de minha pátria. Tenho feito por ela tudo o que pude, mas não
tenho conseguido contentá-la e fazê-la feliz. Tudo abandonei à sabedoria do
congresso, confiando que ele efetuaria o que não podia um indivíduo
conseguir. Com todo fervor peço ao céu que preserve a Colômbia da guerra
civil que tem manchado a história dos Estados da América do Sul. Se para
evitar esta o Congresso acreditasse indispensável e o povo desejasse
estabelecer uma Monarquia, eu não me rebelaria contra seus desejos: mas
tenha você bem presente o que lhe digo: a coroa jamais cingirá a cabeça de
Bolívar [grifo próprio]. Eu desejo descansar e conte você com que nenhuma
ação manchará a minha história, cuja consideração me enche de satisfação. A
posteridade me fará justiça, e esta esperança é o valor que possuo para a
minha felicidade. Minhas melhores intenções têm-se convertido nos mais
perversos motivos, e nos Estados Unidos onde eu esperava que me fizessem
justiça, tenho sido também caluniado. O que eu tenho feito para merecer este
tratamento? Rico desde o meu nascimento e cheio de comodidades, hoje em
dia não possuo mais do que a saúde alquebrada. Podiam meus inimigos
desejar mais? Mas fazer-me tão destituído é obra da minha vontade. Todos os
recursos e exércitos vitoriosos da Colômbia estiveram à minha disposição
individual e minha satisfação interior é por não ter lhes causado menor dano,
[esse] é meu maior consolo (Carta escrita para um destinatário desconhecido

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em Cartagena, datada de Bogotá, 1830. Tomo VII, R. 2.707, p. 475-476.


Fragmento retirado das anotações de Pérez e Soto.) 12.

Neste curto artigo, apenas apontei os elementos constitutivos da memória da


indispensabilidade, não desenvolvendo as possíveis relações entre as cartas, a biografia
e a literatura, que também afirmam a importância do discurso em torno da renúncia e
revelam novas possibilidades de tratamento do projeto narrativo epistolar 13. O objetivo
deste texto foi o de explicitar uma memória que, à primeira vista, parecia ser secundária,
acessória. Ao contrário da impressão inicial, a memória da indispensabilidade domina o
epistolário, aparecendo não apenas quando o missivista anuncia o tema do governo e da
liberdade, mas quando enceta explicações sobre as estratégias da guerra.
Além disso, a apresentação dos limites do missivista possibilita indagar
sobre o “lugar de memória” concedido à América e aos seus projetos políticos. Entre a
convicção e o desencanto, muitas dúvidas e adendos podem ser acrescentados, com o
objetivo de desbaratar a máxima que se esmera em afirmar que o final trágico deste
continente esteve previsto em tempos imemoriais. Ao ler o epistolário bolivariano, pude
apresentar “o Bolívar missivista”, que, pressionado pela impossibilidade de onisciência,
revelou, por meio de sua correspondência, os seus limites, os limites dos atores que o
cercavam e os limites das circunstâncias históricas em transformação, desconhecidas e
incontroláveis. Nesse universo complexo do epistolário, infere-se a ruptura profunda
provocada pela Independência, presente no discurso alusivo a um furacão
revolucionário e a uma inadequação e estranhamento da liderança aos novos tempos. A
despeito dos limites apresentados, e, de certa forma, em virtude deles mesmos, Bolívar
permanece na memória latino-americana não por ser o Libertador, como heróica e
romanticamente consagrou-se, mas pelas apropriações que o seu ideal de liberdade
permite. No momento em que o título de Libertador foi adotado pelos analistas, ele
passaria a ser ressignificado em conjunto com as interpretações sobre as atividades de

12
Nota de Lecuna sobre a carta: El Recopilador, de Bogotá, n. 3 de 17/09/1830. “Encontramos este
fragmento na coleção de cartas do Libertador organizadas pelo senhor Pérez y Soto com indicação do
jornal de onde foi retirado. Não nos consta sua autenticidade, mas está ajustado a fatos positivos.
Verificada a cópia por nosso distinto colega, senhor Dom Roberto Cortázar, secretário da Academia
Colombiana de História, de Bogotá, encontrou-se uma variante. Em vez da frase: ‘Minhas melhores têm-
se convertido’, no jornal diz: ‘Minhas melhores intenções têm-se construído’. ‘El Recopilador’ expressa:
‘Este fragmento é tomado do jornal Mercurio de Nova Iorque, 03/07/1830’.” (LECUNA, 1969, p. 476).
13
Essas relações são objeto de outro artigo a ser publicado, cujo título provisório é Correspondência,
literatura e biografia: a conformação da memória da indispensabilidade no epistolário bolivariano
(1799-1830).

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Simón Bolívar. Presente em manifestações que escapam ao enquadramento histórico e


historiográfico, Simón Bolívar torna-se o Libertador primeiro por suas ações e suas
palavras, tão valiosas como a espada; segundo pelo efeito inebriante que o ideal de
liberdade produz em meio à memória coletiva.
Por fim, resta sublinhar que a escrita de cartas serviu a um propósito muito
maior do que a comunicação cotidiana, necessária num cenário de guerra. Ela
representou a aposta na possibilidade de controlar o tempo, transformando o sujeito
missivista num indivíduo singular porque ele se mostrou capaz de significar sua própria
trajetória, fundindo-a com o destino da América liberta.

FONTES
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1964. Tomo I. 485 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1818-1820). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1964. Tomo II. 578 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1965. Tomo III. 559 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1966. Tomo IV. 568 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1826-jun.1827). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1967. Tomo V. 529 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (jul.1827-1828). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1968. Tomo VI. 606 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829-1830). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1969. Tomo VII. 649 p.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão
sensível. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 2001. p. 15-36.
BELLOTTO, Manuel Lello; CORRÊA, Ana Maria Martinez (Orgs.). Simon Bolívar:
política. São Paulo: Ática, 1983.
CARRERA-DAMAS, Gérman. Cuestiones de historiografia venezoelana. Venezuela:
Universidad Central de Caracas, 1964.
______. El culto a Bolívar: esbozo para um estúdio de la historia de las ideas em la
Venezuela. Caracas: Fundação do Instituto de Antropologia y História/ Universidad
Central de Venezuela, 1969.

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D’ARAÚJO, Maria Celina. Getúlio Vargas: cartas-testamento como testemunhos do


poder. In: GOMES, Ângela de Castro (Org). Escrita de si, escrita da História. Rio de
Janeiro: Editora da FGV, 2004.
DEAS, Malcom. A Venezuela, a Colômbia e o Equador: o primeiro meio século de
independência. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: da
independência a 1870. Tradução de Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP; Imprensa
Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001. Tomo III. p. 505-
539.
GUERRA, François-Xavier. Memórias em transformação. Revista Eletrônica da
ANPHLAC, n. 3, 2003. Tradução e adaptação de Jaime de Almeida. Disponível em:
<http://www.anphlac.hpg.ig.com.br/revista3.htm>. Acesso em: 10 out. 2004.
______. Modernidad y independências: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. 3.
ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
MADARIAGA, Salvador. Bolívar: fracaso y esperanza. México: Editorial Hermes,
1953. Tomo I.
______. Bolívar: victoria y desengano. México: Editorial Hermes, 1953. Tomo II.
PRADO, Maria Lígia. América Latina: tradição e crítica. Revista Brasileira de História,
São Paulo, n. 2, p. 167-174, set. 1981.

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OS OLHOS DA NAÇÃO:
NARRATIVA E DOMINAÇÃO TERRITORIAL NA COLÔMBIA

Prof. Dr. Dernival Venâncio Ramos Júnior


Professor da Rede Pública (SME-GO)
Professor Contratado da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
lexamajr@hotmail.com

Introdução.

... uno de los lugares más propicios para explorar los modos concretos
en que la Nación produce diferencia como resultado de su forma
particular de apropiar y de imaginar su territorio y sus sujetos, es su
relación con la periferia: con los ámbitos que se extienden más allá de
sus márgenes.
Margarita Serje, 2005.

A citação acima ajuda a compreender a relação que as nações latino-americanas


estabeleceram com suas fronteiras durante grande parte de sua história. Durante muito
tempo, a única relação que os centros nacionais, como Bogotá ou Buenos Aires
estabeleceram com estas regiões foi na e através da narrativa. Estudar estas narrativas,
assim, é de fundamental importância para compreender a imagem que a nação tem de si
mesma, e de seus “outros”.
Examino, neste artigo, algumas das narrativas que considero centrais na
estruturação da Colômbia como luta da civilização contra a barbárie. Essas obras são os
romances Manuela, de Eugenio Díaz Castro, de 1859, La vorágine de José Eustasio
Rivera, de 1924 e 4 años a bordo de mi mismo: diário de los 5 sentidos publicado por
Eduardo Zalamea Borda em 1934. Díaz Castro publicou, num primeiro momento, sua
obra na forma de folheto no jornal conservador El mosaico entre 1858 e 1859 e depois a
reuniu em livro. Zalamea Borda também publicou seu único romance em entregas no
jornal conservador La tarde, filial de El tiempo, entre maio e junho de 1930 1.

1
Adianto, porém, que não pretendo que essas obras representem toda a narrativa colombiana,
no período estudado. Alguém se lembrará de Maria de Jorge Isaccs, de Frutos de mi tierra de
Tomás Carrasquilha e Diana cazadora de Clímaco Soto Borba, De sobremesa de José
Asunción Silva, entre outras, e se alguém se lembrar terá razão. Pretendo, contudo, que a
imagem da nação vencedora na Colômbia é mais claramente perceptível nas narrativas
selecionadas.

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Considero as narrativas que escolhi aquelas que melhor podem ajudar a


compreender como se forma e se mantêm a idéia de nação hegemônica na Colômbia.
Elas dramatizam e exemplificam os modos como as elites colombianas pensavam – e
em certo sentido ainda pensam – a geografia do país. Ou melhor, como estas mesmas
elites criaram, no século XIX, uma cartografia imaginaria que hierarquiza as diversas
regiões de seu país (ver MÚNERA, 1998, 2005). Esse mapa simbólico divide o país
entre terras civilizadas e terras bárbaras. Nele, os Andes são o centro civilizado e suas
cidades, o núcleo irradiador da civilização para as demais regiões. O que se chamava e
ainda se chama “las tierras calientes” ou “las tierras ardientes” são marcadas como
terras bárbaras, selvagens e primitivas 2.
Manuela, La vorágine e 4 años a bordo de mí mismo são narrativas que ajudam
a criar um sentimento de pertencimento à nação ao reproduzir e atualizar o discurso
fundador da nacionalidade. Discurso esse que está relacionado com as ideais dos
naturalistas europeus e crioulos. As elites crioulas estavam, como mostra Mary Louise
Pratt (1999) naquele momento, em busca de um modo de imaginar as Américas que
possibilitasse que elas se tornassem independentes. Um discurso que se contrapusesse
ao discurso colonialista espanhol.
No momento em que as elites americanas tentavam criar um discurso
legitimador da independência da Espanha e de legitimar as suas pretensões nacionais – e
continentais – Humboldt, o principal dentre os viajantes europeus que passaram pelo
continente então, entrega-lhes uma monumental e estetizada descrição da natureza
americana. Nela, o naturalista germânico destacava a exuberância e as potencialidade
futuras da América do Sul. Nenhum obstáculo aparece, no discurso de Humboldt, à
intervenção capitalista européia e à formação das novas nações. Para ele, tudo estava
preparado, esperando que o homem europeu/criollo civilizasse e dominasse a
feminizada América. A América era: “um mundo cuja única história era aquela preste a
iniciar (...) o estado da natureza primal é trazido à cena como um estado relacionado à

2
Essa divisão tem várias versões. Uma delas tinha um pressuposto climático como a
designação “tierras calientes” mostra. A civilização está ligada a um fator climático e racial.
O frio andino e o euro-americano eram os exemplos de civilização. Os negros, os mestiços e
os indígenas “eram” bárbaros e inaptos à civilização. O que levou à repetida discussão da
necessidade de trazer da Europa uma raça “forte” que conseguisse des-bravar e civilizar as
“tierras calientes” e melhorar a “raça” nacional através da mestiçagem (Ver MARTÍNEZ,
2001).

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perspectiva de intervenção transformadora por parte da Europa” (PRATT, 1999, p.221 e


223, 224).
As elites hispano-americanas que estavam prensando e, alguns, lutando pela
independência encontraram na obra de Humboldt, assim, uma formulação utópica e
pacífica, onde a “barbárie” hispânica daria passo sem obstáculos aos progressos que
viriam do mundo norte-europeu, principalmente Inglaterra (PRATT, 1999). O
naturalista fornece, contudo, aos intelectuais narradores latino-americanos, além de uma
justificativa ideológica para as independências, um novo discurso ou um modo de
fabulação maestro: o científico (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2000). Humboldt afirma
as qualidades e o futuro promissor que espera pela América, como se sabe, através do
discurso que dispunha naquele momento – e que continua dispondo hoje – de uma das
maiores autoridades simbólicas entre as elites intelectuais do mundo ocidental, a
ciência. A partir de Humboldt os escritores latino-americanos e caribenhos passaram a
fabular a partir do discurso da ciência, erigindo suas obra como textos científicos.
Nos três romances que citei acima, Manuela, La vorágine e 4 años a bordo de
mi mismo ocorre uma repetição: o enredo se organiza a partir de uma viagem de um
andino às “tierras calientes”. Compreender este esquema é de fundamental importância
para conhecer a concepção de nação do qual ele faz parte. Penso que este esquema está
relacionado como o que Mary Louise Pratt (1999), nos seus estudos sobre a narrativa de
viagem, com a interação entre e ideologia ou gênero e uma comunidade de interesses. O
esquema de descida se inspira nas viagens de Alexander Von Humboldt e na autoridade
social que as narrativas de viagens obtiveram na Europa, América Latina e na
Colômbia, depois da publicação de sua volumosa obra.
As viagens que os protagonistas e/ou narradores realizam, assim, às “tierras
calientes”: ao vale do Magdalena no caso de Manuela, aos “Llanos orientales” e a
Amazônia, em La vorágine, bem como a “La Costa” e “La Guarija” em 4 años a bordo
de mi mismo, são reafirmações narrativas dos pertencimentos destas regiões à nação. As
figuras que viajam são: um literato-naturalista a la Humboldt, Don Demóstenes, dois
poetas, Arturo Cova e o protagonista/narrador de Zalamea Borda. Eles são os figuras
intelectuais modelos do projeto liberal (1849-1880) baseado numa pretensa
racionalidade científica, bem como da relação entre poética e política institucionalizada
pela chamada “Regeneración” conservadora (1880 a 1930). Deste modo, estes viajantes

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e estas viagens são emblemáticas. Tipos intelectuais a quem se outorgava grande


autoridade social. Eles são a vanguarda nacional: são os olhos da nação.
Como “olhos da nação” reproduzem um modelo de Crusoé: o “possuo-tudo-que-
vejo” – e escrevo (Ver PRATT, 1999). Os textos que produzem, a cardeneta de Don
Demóstenes, a auto-biografia de Cova e as notas jornalísticas do narrador/protagonista
de 4 años a bordo de mi mismo, são, simbolicamente, os diários da expansão nacional
sobre suas periferias. Em 1858 no Magdalena, na década de 1920 e 1930, na Amazônia
e – depois do Panamá e da “Liga Costeña” – na Costa Atlântica. Ou seja, inscrevem e
reafirmam tais regiões – para um leitor nacional ideal – dentro do mapa nacional. Esse
esquema de viagem às “terras calientes”, assim, fazem parte de um plano de
reafirmação ideológica de seu pertencimento à nação. O fato de serem escritas em
momentos de crises apenas sustenta ainda mais este argumento. O esquema textual está
aqui como nas viagens à África, no caso dos impérios europeus, à serviço do poder, da
dominação territorial das margens da nação.
Examino as fontes destas narrativas e, por conseguinte, as fontes da imaginação
territorial nacional que elas reproduzem. Acredito que elas estão nas obras de Francisco
José Caldas e Alexander Von Humboldt. A obra de José Maria Samper exemplifica o
sentido social da hierarquização dos Andes e das terras tropicais. Mas é sobretudo o
romance Manuela, de Eugenio Díaz Castro, escrito ao mesmo tempo que o Ensayo
sobre las revoluciones políticas y la condición social de las repúblicas colombianas, e
publicada um ano antes que o livro de Samper, que funda a relação entre narrativa e
dominação territorial na Colômbia. Num momento de crise, a nação envia seus olhos às
suas margens para assegurar o domínio das fronteiras. Assim também acontece no caso
de José Eustasio Rivera e Eduardo Zalamea Borda, no caso dos “llanos e da Amazônia”
e da Costa Caribe, conhecida à época como Costa Atlântica.

1. Geografias Hierarquizados e Narrativa de Dominação Territorial.

El “yo” latinoamericano teme e desea a este Otro interno, por su


ilegalidad, y viaja para conocerlo.
Roberto González Echevarría, 2000, grifos meus.

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O discurso científico (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2000) como discurso


maestro da narrativa latino-americana do século XIX e inícios do século XX, e que são
exemplificadas nas obras de Sarmiento e Euclides da Cunha, entre outros, forneceu aos
intelectuais colombianos, sobretudo um “esquema”: a viagem de pesquisa e coleta
enquanto forma de obtenção de autoridade social para as narrativas. Essas viagens como
enredo são um dos mais importantes “tropos” narrativos colombianos. A escolha de
Manuela, La vorágine e 4 años a bordo de mi mismo obedece a esse critério. Nesta
obras, se reproduz e se atualiza este esquema ou tropo narrativo colombiano. Contudo,
como ensina Mary Louise Pratt (1999), um “tropo” ou um gênero textual esconde uma
ideologia.
Roberto González Echevarría (2000) estudou como o discurso científico
substituiu, na narrativa americana em espanhol, o discurso da lei. Porém, ele não
dedicou atenção às obras dos intelectuais colombianos. Em Mito y archivo (1990), ele
se concentra nas obras de Sarmiento e Euclides da Cunha. Mary Louise Pratt, no seu
estudo sobre as narrativas de viagens, por outro lado, também se centra em Sarmiento, e
sequer se refere aos pensadores e narradores colombianos. No caso de Pratt, o recorte
que ela propõe no seu livro, parece impedir o tratamento da obra de homens como
Eugenio Díaz de Castro ou Manuel Ancízar e de como a narrativa de viagem se torna o
gênero textual maestro do discurso cultural colombiano, no século XX e parte do século
XX. Interessa-lhe a reinvenção da América, Europa e África a partir das narrativas de
viagens à América e à África.
Frédéric Martinez (2001) por outro lado, no livro El nacionalismo cosmopolita,
encontrou que as viagens à Europa e a construção de narrativas a partir destas viagens
geraram todo um mercado editorial na Colômbia dos anos de1850 a 1890. Ele chega a
afirmar que a narrativa de viagem é “um” gênero textual colombiano por excelência. O
que se pode censurar em Martinez é o fato dele pouco desenvolver suas pesquisas para
outro tipo de narrativa de viagens, as narrativas de viagens de andinos às “tierras
calientes”. Neste vazio é que este artigo se insere.
Essas narrativas coincidem com as narrativas de viagem à Europa e se afirmam,
em certo sentido, em contraponto a elas. Como mostra Martinez (2001), a viagem à
Europa e os relatos delas resultantes estão intimamente relacionados ao liberalismo

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colombiano 3. Os conservadores, católicos, sempre temerosos do contato com a Europa,


e com o pecado que dela emanaria, foram cautelosos com as viagens. Quando o poeta
José Asunción Silva se suicidou em 1896, o fato foi atribuído à contaminação européia
de sua alma, o que teria ocorrido durante a vida em Paris do poeta. O romance de Silva,
De sobremesa, que converte a narrativa de viagem à Europa em narrativa ficcional,
assim como Manuela já havia convertido a viagem às “tierras ardientes”, foi relegado ao
ostracismo, e apenas foi publicado em 1925 sob a avassaladora influência de La
vorágine de Jose Eustasio Rivera.
Apesar da morte de Silva coincidir com o fim do negócio editorial das narrativas
de viagens à Europa, no fim do século XIX, como mostra o fato de seu romance não ser
publicado senão trinta anos depois, o gênero textual e o tropo intelectual ainda
ganharam muitos adeptos no século XX. Martinez (2001) relaciona as viagens e as
narrativas produzidas por viajantes ao liberalismo. Seguindo esta tese, a publicação do
romance de Silva, se encaixa numa conjuntura na qual os liberais estavam articulando
um projeto que os levaria ao poder em 1930. Um processo de abertura do país, o que
criou espaço editorial para a publicação e circulação de narrativas de viagens como o
romance de Silva e outros. Contudo, a viagem em busca deste outro interno, já havia se
tornado um tropo fundamental do discurso cultural colombiano; ela é a base da
autoridade das narrativas de Eugenio Díaz Castro, Jose Eustasio Rivera e Eduardo
Zalamea Borda. Viajar, contudo, é tropo 4 fundamental da cultura colombiana, um modo

3
Nas narrativas de viagens à Europa e/ou aos Estados Unidos predominavam o diário de
viagem. Os narradores-viajantes forneciam ao público dos jornais suas impressões da vida
“civilizada”, e algumas vezes, receitas de como melhorar a civilização na Colômbia. Um
exemplo é o texto de Salvador Camacho Roldán, Notas de viaje, de 1892, onde ele descreve
uma viagem aos Estados Unidos. Enquanto ele descreve sua viagem de Bogotá até a província
do Panamá, ele elabora apertadas sínteses econômicas e sociais sobre a sociedade de Nova
Granada e a norte-americana. Essa síntese está informada por comparações, e críticas aos
erros colombianos; e elogios aos Estados Unidos. Além de algumas idéias de como fazer a
civilização avançar em Nueva Granada.
4
Uma forma de demonstrar o poder deste tropo, para além dos exemplos de García Márquez e
Fanny Buitrago, que discutiremos em outro trabalho, é o caso do poeta Jorge Gaitán Duran,
quando de sua viagem ao redor do mundo, na década de 1950. Este não conseguiu se livrar do
referido tropo. Ele enviou periodicamente a jornais e revistas literárias suas impressões e o
modo como suas viagens afetavam sua sensibilidade. Ao falar de Gaitán Duran é preciso
lembrar que se está falando de um dos intelectos mais críticos da “cultura nacional” do século
XX, e fundador da revista Mito. Outro exemplo, ocorre em 1962. O escritor Eduardo
Caballero Calderón, outro nome imprescindível das letras colombianas no século XX,
publicou na Espanha, o seu romance El buen selvaje. Ele retoma, como Silva, o relato da
viagem à Europa como discurso maestro. O jovem protagonista está em Paris e escreve uma
narrativa no processo de construir sua identidade como escritor, inscrevendo o retorno ao
relato de viagem como forma de auto-conhecimento e conhecimento dos dramas do intelectual
colombiano deslocado.

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de sustentar a autoridade narrativa, não apenas na literatura como demonstram o


exemplo de Manuel Ancízar e Merdardo Rivas.
Este tropo textual está ligado também ao projeto de definição de fronteiras,
projeto que marca uma velha preocupação das elites colombianas 5, a geografia nacional
e as suas fronteiras. Adentrar neste tropo numa forma geral, e, na forma particular que
ele assume em torno do esquema de descida dos “Andes” à “Terras Calientes”, é se
aproximar da forma específica que as periferias e as margens da nação colombianas
eram imaginadas pelas elites andinas, e que lugar ocupavam no projeto de nação que se
construía e que foi vencedor no século XIX.
A fragmentação geografia do país sempre foi considerada um grande problema
para aqueles que pensaram a nação. No momento mesmo de criar o projeto
homogeinizador de nação, nos inícios do século XIX, as elites intelectuais colombianas
viam na geografia do país um sério obstáculo a ser transposto para a estruturação da
nação colombiana. Apenas em 1860, segundo MÚNERA (2005) é que surgiu uma
tentativa de ordenar a geografia do país a partir de uma meta-geografia, onde cada
região do país tinha seu lugar demarcado. Esta tarefa ficou nas mãos de José Maria
Samper, um dos nomes fundamentais do pensamento nacional colombiano no século
XIX. O mapa simbólico da nação que Samper elabora divide o território nacional, que é
descrito globalmente, ao contrário do que ocorre em autores anteriores, em duas grandes
regiões geográficas e raciais: os Andes e as “tierras calientes”. A primeira é a detentora
da civilização, a segunda, está marcada pela barbárie e pela inaptidão para a civilização.
Os primeiros são dominados pelos elementos brancos europeu, o segundo pelos afro-
descendentes, mestiços e indígenas, “outros” da nação.
José Maria Samper articula essas idéias da seguinte maneira:

Las razas y castas debían tener, como tuvieron, su geografía inevitable y fatal: los blancos e
indios de color pálido y bronceado y los mestizos que de su cruzamiento naciesen, quedarían
aglomerados en la regiones montañosas y las altiplanices, mientras que los negros, los indios
color rojizo y bronceado oscuro, y los mestizos procedentes de su cruzamiento, debian poblar las
costas y los valles ardientes (…) Así pues, la población quedó distribuida en dos grandes grupos
de razas y castas; en las tierras altas, los blancos y blanquecinos y los indios más asimilables; en

5
Em Gobierno y Geografía (1999), de Efraín Sánchez, obra que estuda um dos principais
projeto de mapeamento nacional na Colômbia, a Comissão Coreografia de 1850, o autor
destaca a quantidade de políticos e intelectuais colombianos que se dedicaram a estudar e/ou
escrever sobre a geografia do país.

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las tierras bajas, los negros y negruzcos o pardos, las castas zambas y mulatos. Importa mucho
que no se pierda de vista esa geografía de las razas y castas hispanocolombianas, porque en ella
se encuentra el secreto o la clave de muy importante fenómenos sociales y de casi todas las
revoluciones que han agitado a las republicas de esa procedencia (MARIA SAMPER, 1984, p.
71, grifos meus).

Essa divisão, porém, tinha antecedentes tão notáveis como Francisco José
Caldas e Alexander Von Humboldt. O possível plágio que Humboldt fez de idéias de
Caldas é destacado em vários momentos por intelectuais colombianos do século XIX
(Ver SERJE, 2005). Humboldt teria se apropriado, por exemplo, das idéias de Caldas
sobre “la geografía de las plantas”. A geografia das plantas é uma das principais
contribuições do naturalista alemão à narrativa nacional colombiana. A idéia de que as
espécies naturais mudam de acordo com a altitude, levam Caldas e/ou Humboldt – ou os
dois – pensarem na idéia de que as qualidades humanas também variam de acordo com
a altitude, seguindo o determinismo geográfico e climático tão comum à época. Assim,
a idéia de que a civilização apenas pode medrar nas zonas temperadas era sustentada
numa hierarquia entre as zonas temperadas e as zonas quentes, que ambos chamam
zonas tórridas.
As duas citações ajudam a sustentar as semelhanças entre os escritos dos
naturalistas José Francisco Caldas e de Alexander Von Humboldt. Em 1806, Caldas
escrevia:

El ángulo facial, el angulo de Camper, reuni casi todas las cualidades morales e intelectuales del
individuo… El europeu tiene 85° y el africano 70°, que diferencia entre esta dos razas del género
humano. Las artes, las ciencias, la humanidad, el imperio de la tierra es el patrimonio de la
primera, la estolidez, la barbarie y la ignorancia son dotes de la segunda. El clima ha formado
este ángulo importante, el clima que ha dilatado o comprimido el cráneo, ha tambien dilatado y
comprimido el alma y la moral… El africano de la vencindad del ecuador vive desnudo bajo de
chozas miserables... simple, sin talentos…. Lascivo hasta la brutalidad, se entrega sin reserva al
comercio de las mujeres. Éstas, tal vez más licenciosas, hacen de rameras sin rubor y sin
remordimientos. Ocioso, apenas conoce las comodidades de la vida, a pesar de poseer un país
fértil… pasa sus días en el seno de la pereza y de la ignorancia. Vengativo, cruel, celoso con sus
compatriotas (CALDAS,1941, p. 147).

Em seu livro, Vista y monumentos, de 1810, amplamente analisado por


Margarita Serje (2005), Humboldt escreve:
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Para el momento del descubrimiento de Nuevo Mundo, o mejor, para cuando los españoles
invadieron por primera vez los pueblos americanos, eran los grupos montañenes los más
avanzados en cuanto a su cultura... Allí donde el hombre que, sujeto a un suelo poco fértil y
forzado a luchar contra los obstáculos que le opone la naturaleza, no sucumbe a esta prolongada
lucha, las facultades de se desarrollan más fácilmente (…) En aquella región equinoccial de
América, donde se ven sabanas siempre reverdecidas como suspendidas por encima de las nubes,
solo se han encontrado pueblos civiles en el seno de las cordilleras, cuyos primeros progresos en
las artes eran tan antiguos como la extraña forma de su gobiernos, tan poco favorables a la
liberdade individual (HUMBOLDT Apud SERJE, 2005, p. 32-33, meus grifos).

Em primeiro lugar, os escritos de Caldas participam na discussão crioula que


tentava imaginar uma face para a nação nas vésperas da independência, e está
relacionado ao pavor que as elites crioulas sentiam das “clases peligrosas”
(GUAZZELLI, 1996). Sua obra mostra claramente as dificuldades das elites
colombianos dos finais do século XVIII e inícios do século XIX, no que diz respeito a
incluir as classes subalternas em seu projeto de nação. Contudo, a particular relação que
propõe Caldas entre geográfia e raça, o que possibilita hierarquizá-las está baseado, por
um lado, no pensamento colonial da desigualdade fundamental entre os estratos sociais,
e por outro, no racialismo científico que havia sido iniciado pouco antes por Linné,
trinta anos antes. Na verdade, ele usa um novo vocabulário para afirmar idéias antigas.
O encontro de Humboldt e Caldas se deu antes que fossem escritos estes dois
trechos, em Bogotá, em 1801, e as semelhanças podem estar mais ligadas ao
intercambio intelectual que ao simples plágio. De qualquer modo, os vocabulários de
Humboldt e Caldas apesar de diferentes, dizem algo muito semelhante. Isso interessa
mais que um possível plágio. Em ambos, os europeus e/ou euro-descendentes, de clima
temperado, são superiores. Eles têm o domínio das artes, ciências e o império da terra;
os africanos e indigenas de climas dilatados, ou como reza a retórica do século
dezenove, de climas ardentes, são ignorantes e bárbaros. Este argumento dentro da
sociedade colombiana tinha um significado preciso. Significado reforçado pelas
palavras de Humboldt, de que a civilização estava mais desenvolvida, quando do
descobrimento, nas regiões andinas, e que nestas regiões, já que o clima ali é mais
próximo do clima europeu, a civilização teria mais chances de medrar. Humboldt se
olha no espelho. Nas regiões tropicais, as “tierras calientes” e nas costas, onde

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predominava uma sociedade crioula formada por afro-descendentes, mestiços e


indígenas, a civilização teria pouca possibilidades de se desenvolver. Pela pena de
Humboldt, essas palavras angariaram muito mais poder. Elas serviram de justificativa à
dominação territorial andina – e reforçaram as certezas das elites andinas no que diz
respeito a sua visão das terras tropicais e das chamadas classes perigosas, os afro-
descendentes, mestiços e indígena – e informaram os projetos de colonização das
“tierras calientes” por “razas europeas” que foram elaborados ao longo do século XIX
(ver MARTINEZ, 2001), bem como fornecem as bases da reflexão de José Maria
Samper em 1860 6.
De modo que parte da meta-geografia que sistematiza José Maria Samper no seu
Ensayo sobre las revoluciones políticas y la condición social de las repúblicas
colombianas, de 1860, tem o mérito de marcar esta hierarquia territorial dentro dos
quadros da nação, como disse acima. A hierarquização geográfica entre Andes e “tierras
calientes” como geografias da civilização e da barbárie era anterior, remontava aos
inícios da nação. Era uma de suas bases simbólicas. Samper define o país através de
uma meta-geografia que ganha unidade pela hierarquização das geografias regionais e
dos tipos raciais da população. Neste esquema, os Andes, em geral, e Bogotá, em
particular, se tornam o centro civilizado e civilizador. As “tierras calientes” estão
marcadas como o lugar bárbaro a ser civilizado. O discurso de José Maria Samper,
assim, é um louvor a uma nação andina, centrada em Bogotá, que se imagina branca, e
que despreza os mestiços, negros e indígenas. Ele construiu uma geografia
hierarquizada simbólica do território nacional. Uma hierarquia territorial que era
também uma hierarquia social e racial. Algo muito semelhante ao que Said (2007)
chama de geografia moral ou que Peter Wade (2007) chamou de geografias racializadas.
Acredito, entretando, que é preciso contextualizar a obra de José Maria Samper
para compreender a importância de sua obra. Ele escreveu no momento da agitação
liberal da década de 1850 e inícios de 1860, quando a fragmentação regional outorgada
pela constituição de 1954, colocava em risco a unidade do país (MÚNERA, 2005;
ROJAS, 2001). Escreveu cinqüenta anos depois de Caldas e Humboldt, num momento
em que as províncias alcançaram tal grau de autonomia que a desintegração do país
6
A grande autoridade que angariou seus escritos científicos na Europa e América fortaleceu
nos intelectuais colombianos o uso de um modelo de determinismo geográfico que segundo
Margarita Serje (2005) ainda informa, em grande medida, a geografia, a etnologia, e grande
parte das Ciências Sociais colombianas.

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começou a ser uma preocupação, e uma possibilidade real. Neste contexto, a afirmação
de um centro civilizador andino era mais do que imprescindível, era urgente. José Maria
Samper, então, se entregou à tarefa de fazê-lo. Ele inscreve na geografia da civilização e
da barbárie os problemas da sociedade colombiana como as agitações políticas
regionalistas e as constantes guerras civis, que ele chama de revoluções. A obra de José
Maria Samper, contextualizada, possibilita perceber seu potencial normatizador do
território nacional, bem como a inscrição de uma imagem da nação que conseguisse unir
as diferenças num sentido comum. A nação é a luta da civilização andina contra a
barbárie “calentana”.
Este mapa nacional se efetiva, porém, com o que chamo de narrativas de
dominação territorial. Ao mesmo tempo, e sob as mesmas pressões, que era necessário
afirmar um centro civilizado, era preciso enviar a civilização às margens na forma de
figuras com grande autoridade social como um naturalista ou um poeta. Quem leva essa
civilização às margens da nação, simbolicamente, são personagens como Don
Demóstenes, Arturo Cova e o personagem/narrador de 4 años a bordo de mi mismo. Um
naturalista e dois poetas. Eles se colocam como a vanguarda da nação, como seus olhos.
Os textos que produzem são os diários da expansão da nacional e o discurso
cartográfico que manipulam corrobora a barbárie, o selvagismo ou o primitivismo
“calentano”. Sem essas obras e estes personagens dificilmente o projeto de nação que as
elites andinas estruturaram e defenderam durante todo o século XIX e que seguiu por
grande parte do XX, não teria sido erigido como a imagem da nação.
Enfim, em 1860, estava se definido as linhas fundamentais da imagem da nação
colombiana como luta da civilização contra a barbárie, o selvagismo e o primitivismo
interno à própria nação. A contradição desse argumento é que mesmo assim, mesmo
estas terras sendo percebidas como pólo negativo da nação, sem estes outros nacionais,
as imagens vencedoras da identidade colombiana, argentina, e etc., não teriam sido
possível. Essa presença deu às elites colombianas, por exemplo, a oportunidade de se
afirmar como civilizadas e civilizadoras em tão alto grau quanto as elites européias.
Martinez (2001) fala da frustração destas elites colombianas quando não eram
reconhecidas como tal pelas elites européias e cita o caso do próprio José Maria
Samper, quando foi introduzido nos salões de Paris, e percebeu que os franceses que ele
considerava seus iguais o receberam com reservas. Grande parte da obra de Samper foi

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escrita com o propósito de afirmar o papel civilizador das elites andinas frentes as
populações “calentanas” na Colômbia.
Este mapa simbólico da nação baseado na hierarquia territorial entre Andes e
“tierras calientes”, contudo, está relacionado com outro tipo de texto: a narrativa de
viagem ou a narrativa que teatraliza a viagem como forma de reforçar, baseada na
autoridade da narrativa de viagem, este mapa nacional da civilização e da barbárie,
selvagismo e primitivismo. As narrativas a que me refiro, Manuela, La voragine e 4
años abordo de mi mismo, dramatizam esta expansão da civilização, e tornam
impensável a vitória deste projeto sem sua participação. Elas não trazem muito de novo
no que diz respeito ao mapa simbólico da nação. Mas elas funcionam de modo a
reafirmar a dominação territorial das margens pela nação. Não acredito que seja
possível pensar estas narrativas sem levar em consideração o contexto no qual foram
escritas.
Uma breve descrição destes contextos ajuda a estruturar a hipótese que guia este
trabalho, qual seja, tais narrativas funcionam como narrativas de dominação territorial.
A primeira destas narrativas foi Manuela de Eugênio Díaz Castro, escrita entre 1958 e
1959, e publicado na forma de folhetim no jornal El mosaico. Dois anos antes de ser
Jose Maria Samper publicar seu Ensayo sobre las revoluciones políticas y la condición
social de las repúblicas colombianas a qual me refiro acima. De modo que o pano de
fundo desta obra é o mesmo que descrevi acima: a instável década de 1850, e a possível
fragmentação do território em unidades nacionais autônomas, seguindo o princípio
federalista do liberalismo radical (ver MARTÍNEZ, 2001).
A segunda destas narrativas, La voragine, de José Eustasio Rivera de 1924, e a
terceira, 4 anos a bordo de mi mismo, de Eduardo Zalamea Borda, de 1934, ocorrem
num momento de grande tensão fronteiriça tanto na fronteira amazônica quanto na
fronteira caribenha. A fronteira amazônica estava em disputa com Venezuela e Brasil
por causa da exploração da borracha, e havia uma grande preocupação do estado
colombiano no sentido de demarcar suas fronteiras e assegurar sua integridade
territorial, inspirado no exemplo do Acre, que o Brasil comprou da Bolívia em 1903.
Em 1922, se constitui a comissão fronteiriça multinacional para a demarcação da
fronteira entre os três paises e José Eustasio Rivera faz parte da comissão como
representante do governo colombiano. Por outro lado, em 1919, a “Liga Costeña” havia
feito as elites andinas se preocuparem com a histórica insurgência “costeña”, e com a

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possibilidade separatista (Ver POSADA GARBÓ, 1998) menos de vinte anos depois da
independência do Panamá.
Esta conexão entre contexto histórico e narrativa de descida Andes/ “tierras
calientes” sustenta a hipótese de que estas narrativas, por um lado reforçam a mapa
simbólico da nação, e, por outro, funcionam como reafirmação da dominação territorial
do centro andino sobre as “tierras calientes” em geral, o vale do Magdalena, os “Llanos
orientales” e “La Costa” em particular. Essas narrativas reafirmam a hierarquização
geográfica, bem como lembram as elites colombianas o que é a história nacional, a luta
da civilização contra a barbárie.
Enfim, estas narrativas ou esquema de descida dos Andes às terras tropicais,
estão ancoradas tanto no mapa simbólico da nação que homens como Francisco José
Caldas e José Maria Samper construíram e que informaram o pensamento das elites
andinas sobre si mesmas e sobre as regiões tropicais, bem como estão fundamentadas na
viagem como experiência reveladora e como método de conhecimento com grande
autoridade social desde Humboldt. Elas, estando a serviço do poder, teatralizam a
atualização continua do mapa nacional e da dominação territorial que a nação projeta
sobre suas periferias. São os olhos da nação.

2. Manuela de Eugêncio Díaz Castro ou o Início da Narrativa Nacional de


Dominação Territorial.

Lo clave aquí era mostrar cómo en ese espacio impreciso y


jerarquizado la nación civilizada incorporaba, pero al mismo tiempo
dejaba de fuera, como herencia inevitable de su propia historia el
territorio donde imperaba aún la barbarie.
Múnera, 2005.

A citação marca a dubiedade da relação das elites colombianas com as suas


periferias. Ao mesmo tempo que as terras tropicais são marcadas como pólos inferiores
da território nacional, representantes das elites andinas, como Eugenio Díaz Castro,
elaboram complicados discursos de dominação territorial. O autor de Manuela escreveu
dois anos antes de José Maria Samper, e publicou seu relato, como já dissemos, em
entregas no jornal El mosaico, de propriedade do conservador José Vergara y Vergara,
entre 1858 e 1859. Não é absurdo pensar na influencia de Eugenio Díaz Castro sobre

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José Maria Samper. Se Manuela não é a mãe do Ensayo sobre las revoluciones
políticas, esse romance com certeza prepara diretamente a recepção na Colômbia e em
Bogotá em particular da obra de Samper. De qualquer modo, não é esse o ponto de
interesse aqui. As idéias de ambos respondem a um momento social tumultuoso e de
risco para o projeto de nação que ambos defendiam.
A preocupação com geografia, como já se disse, e a quantidade de políticos e
intelectuais colombianos que se dedicaram a ela, levaram muitos a viajar efetivamente
tentando descrever e dar a conhecer a geografia nacional e suas fronteiras. Simbolizar
tais narrativas, contudo, como uma descida dantesca do paraíso ao inferno (MENTON,
1986), resulta um dos modos mais usados de atualizar e reafirmar o discurso nacional.
Depois de Díaz Castro, os intelectuais colombianos, usaram o esquema da viagem
Andes/“Tierras calientes” de muitos modos. Mas sempre retornando a hierarquização
geográfica e racial, bem como a reafirmação do centro civilizador andino.
Manuel Ancísar, na coleção de crônicas Peregrinación de Alpha por las
provincias del norte de Nueva Granada en 1850-1851, de 1870, escreveu: “Detrás de
mi dejaba a Bogotá y todo lo que forma la vida del corazón y de la inteligência: delante
de mi se estendia las no medidas comarcas que debía visitar en mi largo peregrinación”
(ANCISAR, 1984, p.15). Ancízar publicou estas linhas como sua contribuição aos
trabalhos da Comissão Coreográfica, que foi contratada para estudar a geografia
colombiana e desenhar um mapa oficial do país. Ele, contudo, não resistiu à fascinação
de transformar seu relato numa reafirmação do que dois antropólogos chamaram
(AROCHA, & DEL MAR, 2006) andinocentrismo colombiano.
Do mesmo modo que Ancízar, Medardo Rivas, reuniu as crônicas de suas
viagens às “terras calientes”, alguns ano depois, em 1899. Ele rescreveu as crônicas e
compôs o livro Los trabajadores de tierra caliente onde descreve o que ele chama de o
processo de civilização das terras quentes do vale do rio Magdalena. Sua narrativa é
memorialista, e o que ele deseja é resgatar a memória do projeto liberal de civilizar as
terras quentes que havia sido abandonado pelo regime conservador. Nas suas páginas
podemos ver as mesmas imagens que consagrou Díaz Castro, via Caldas, Humboldt, e
etc.
Os narradores como Díaz Castro, todavia, produziram uma imagem muito mais
poderosa, pois ao dramatizarem a descida de um intelectual andino às terras baixas
tropicais, atualizavam o andinocentro e o barbarismo “calentano”. Eles produziram e

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afirmaram uma estetização da geografia nacional colombiana, que atualiza e afirmava a


geografia hierarquizada e o andinocentrimo; mas ao fazê-lo construíam tais geografias a
partir de uma poderosa retórica do “estranho”. As terras baixas são moralizadas através
da descrição dos “costumes bárbaros” dos povos que lá vivem.
Os escritos de Caldas, Humboldt, Samper chegavam apenas parcialmente ao
público mais amplo. Ao contrario, um folhetim como Manuela alcançava com suas
entregas semanais um número muito maior de leitores. Imagine-se a ansiedade
novelesca dos leitores pelo próximo capítulo, ansiedade que Díaz Castro sabia muito
bem canalizar com seu arsenal romântico. A pretensa inocência da ficção, com a quais
muitos romancistas jogam, fornece a possibilidade de afirmar conceitos e idéias de
modo mais profundo e convencedor, como ensina a semiótica. O romance, não por
acaso, era considerado um gênero perigoso (WILLIAMS,1992). As elites colombianas,
principalmente os conservadores, temiam o romance por seu potencial perigo sobre a
moral. O próprio Díaz Castro introduziu em Manuela um capítulo inteiro alertando
sobre os perigos que representa para damas civilizadas a leitura de romances como o
que ele escrevia.
Outro elemento que não se pode deixar de destacar é que esses textos – dois dos
três romances aqui examinados foram publicados como folhetins em jornais – eram
difundidos através de jornais. Manuela, no jornal conservador El mosaico, entre 1858 e
1859, e 4 años a bordo de mi mismo, no jornal conservador La tarde, em 1930. O fato
de que escritor liberal como Zalamea Borda publicasse num jornal conservador mostra
que, para além das questões políticas, compartilhavam as mesmas idéias sobre a nação.
De qualquer modo, o que gostaria de destacar é a relação literatura e jornais.
Benedict Anderson (1989, p. 42) nos fala da importância dos jornais para a
criação do sentido homogeinador do projeto nacional. A idéia de que “todos” estão
lendo ao mesmo tempo, criaria um tipo de percepção da simultaneidade da qual
necessita a nação para ser imaginada como uma comunidade. Anderson também fala da
importância do romance, e do modo como o autor escreve para um público nacional.
Um “nós” coletivo que se identifica com a nação. O que temos aqui é a coincidência
entre romance e jornal. Um jornal publica em capítulos um romance. O que junta num
só veiculo as duas formas privilegiadas de imaginar a nação, segundo Anderson (1989,
p. 34).

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Por outro lado, tanto Manuela, quanto La vorágine e 4 años a bordo de mi


mismo são livro nacionais, que são ensinados nas escolas colombianas. Considerados
grandes da narrativa colombiana, essas mensagens foram difundidas ao longo de
gerações de alunos, pedagogicamente informando-os de como deveriam imaginar a
nação: andinocentrica e fragmentada entre duas geografias hierarquizadas, os Andes e
as Terras Tropicias. Além, é claro, da moralização desta geografia entre ums Andes
civilizados e umas terras tropicais bárbaras.
Em Manuela, um jovem intelectual e político bogotano viaja às terras dos
“calentanos”. Don Demóstenes é um naturalista, político e literato liberal radical. Sua
viagem às terras quentes tem por fim o estudo da natureza e dos costumes da gente que
vive nas terras tropicais de Nova Granada. O que o leitor poderia notar de cara é a
insistência com que estão destacados os modos civilizados, as preocupações cívicas, as
atitudes cavalheirescas, a erudição literária e científica, as viagens pelos Estados
Unidos, a república “modelo”, e Europa, do personagem. Ou seja, se enfatiza o fato de
Demóstenes ser um homem civilizado, contrastando com aqueles com quem vai
conviver durante sua estadia nas terras “bajas”.
Neste sentido, é significativo que o livro esteja repleto de episódios que
representem luta natureza-cultura. Os mais destacados são aqueles nos quais a
camponesa Pía defende sua plantação de milho dos pássaros e animais que ameaçam
devorá-la. Pía lutava contra:

Las guacamayas, los loros, las catarnicas, los pericos grandes, los pericos chillones, los pericos
cascavelitos, que todos son de la comparsa de los del pico redondo. Ahora las guapas, los lulúes,
los cauchaos, los toches; más micos, los cuchumbíes, los ulamáes, las arditas, y un sinnúmero de
los de cuatro patas… ¡Y véalos allá!... ¡Ah, cochinos, ah, pícaros, ahí le va piedra! (DÍAZ
CASTRO, 2003, p.76).

Mary Louise Pratt (1999) convida a imaginar Humboldt e os demais naturalistas


recebendo explicações como essa dos camponeses venezuelanos, colombianos e de
outros lugares da América que visitaram. A explicação que fornece Pía sobre os seus
inimigos tem um claro parentesco com a descrição monumental da natureza americana
realizada por Humboldt. A variedade de espécies de pássaros descritas, fora um
“sinnúmero” de quatro patas, reforça a visão naturalística da natureza colombiana, que
Díaz Castro, como romântico, não podia descartar. Díaz Castro se apóia na descrição

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monumental da natureza americana que realiza Humboldt em vários momentos, e cita o


naturalista uma vez.
A cena está ligada de novo à luta natureza-cultura, pois se desenvolve na
plantação de milho de Pía. Manuela, a personagem principal da novela, está fugindo de
seus perseguidores e se refugia na estância de Pía. As duas se põem a lutar contra a
natureza. Mas:

los micos que habían asomado a la orilla de la roza en número de veinte o treinta, y Pía les tiró
varios hondazos, con lo cual les hizo volver caras. Vinieron en seguida algunos cuarenta o
cincuenta pericos que son de la familia de los papagayos, y se sentaron en la mita de la roza, pero
con la primera pedrada tuvieron para volver a volar levantando una vocería de lo más espantoso,
muy propia para confirmar la aserción de Humboldt cuando dice, que el ruido de los torrentes es
ahogado en algunas partes de la América del Sur, por el ruido que hacen los papagayos con sus
chillidos. A todos estos gritos agregaba los suyos la guardiana, diciendo: - ¡Urria, condenados!
¡Largo para otra parte! ¡Urria demonios![Contudo] Las ardillas habían logrado invadir las cañas
de maíz y asustabas con las pedradas, saltaban de mata en mata…. Las guapas también acudieron
a mortificar Pía (…) los pericos y las guacamayas revoloteavan y cambiaban de puestos con un
ruido formidable… Ya se habían perdido de vista las guacamayas, cuando reparó Pía en unos
tres micos…. (DÍAZ CASTRO, 2003, p. 197, 198, 199).

De novo, a luta natureza-cultura, Pía contra a natureza de Nova Granada. O episódio é


descrito com uma retórica de enfrentamento, ataque e defesa. Às arremetidas dos
animais, a camponesa, responde com “hondazos” 7.
Pía e sua família são arrendatários de um “trapiche”, um engenho de cana. Sua
condição os obriga a abrir terrenos para a plantação de canas. Os arrendatários fazem o
papel da primeira frente de expansão da colombiana sobre a natureza. Neste sentido,
vivem na fronteira entre natureza-cultura (na terminologia do livro,
“civilización/naturaleza”). A luta de Pía alegoriaza a luta da nação pela civilização
contra a natureza exuberante de Nova Granada. Os camponeses, como Pía, trabalham
para a civilização, mas como vivem na fronteira, são quase seres ambíguos, “bárbaros”
como atesta seus costumes “estranhos”.

7
A luta natureza-cultura é travada não apenas por Pia, o texto diz que existem outras “rozas”
muito perto dali; e que fustigados pela camponesa, os animais se dirigem às outras plantações.
O interessante é que desta vez a sombra de Humboldt se projeta sobre a cena na forma de uma
afirmação hiperbólica atribuída a ele: o canto dos pássaros abafa(ria) a barulho das águas.

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Demóstenes tem a oportunidade de observar alguns destes costumes. Um dos


costumes “caletanos” são as festas de Corpus Christi e São João. Os habitantes da
“paróquia” criam comparsas que desfilam pelas ruas na noite de festa. Quando
Demóstenes chegou à “paroquia”, Manuela estava sendo perseguida pelo cacique ou
“gamonal” político do lugar, Don Tadeo. Este faz editar leis que prejudicam Manuela, o
que causa a revolta do “partido manuelista”. Revolta esta que acaba na prisão de muitos
dos amigos da heroína da trama. Ela consegue fugir, contudo, para Ambalema.
Don Tadeo a persegue porque ele a deseja. Mas ela ama Dámaso, e não se
entrega a Tadeo. Como Don Demóstenes ajuda os namorados a se livrarem
momentaneamente de Tadeo, quando do São João, Manuela e sua amiga Marta, como
forma de agradecimento, vestem o gato da mãe de Manuela, de Demóstenes, numa
comparsa junina. Carnavalizam o acontecido com um comparsa de animais:

El gato blanco tenía botas, lo que indicaba ser de la aristocracia de la Nueva Granada; estava
vestido con uma levita blanca y tenía la corbata puesta conforme a la última moda. El gato
colorado tenía ruana forrada de bayeta, estaba calzado con alpargatas, el cuello de la camisa
estaba en el grado más alto de almidón que puede darse y no tenía chaqueta, sino chaleco de una
moda muy atrasada. El rótulo decía en letras de a cuarta: LOS MISTERIOS DE LOS GATOS
(DÍAZ CASTRO, 2003, p. 305).

O título da comparsa é uma referencia ao livro que o naturalista está lendo


durante sua viagem: “Los mistérios de Paris”. Ao ver a cena, Demóstenes, porém, se
sente profundamente ofendido, e reage violentamente. Saca sua arma e mata um gato e
alguns frangos que representavam os envolvidos na contenda entre o “partido
manuelista” e o “partido tadeísta” a tiros. As crianças e alguns adultos zombam de
sua atitude dizendo “¡Viva el libertador de la paróquia!” ao se darem conta que o
primeiro disparo do bogotano matou o gato que representava o “gamonal” Don Tadeo.
Demóstenes, o civilizado bogotano, naturalista, intelectual e político, viajante
experimentado, não consegue se conter ao ver-se naturalizado alegoricamente. A cena
descrita em tom de galhofa por Díaz Castro, que era conservador, marca algo mais que a
intenção de ironizar a conduta liberal. Ela marca ainda mais a diferença entre
Demóstenes e os “calentanos”, entre Andes e terras baixas. Ele pode perceber a relação
entre os “calentanos” e a natureza; este são seres ambíguos que vivem na fronteira
natureza-cultura. Ele, ao contraio, se percebe como parte unicamente da cultura.

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Um segundo quadro de costumes estranhos esta relacionado ao velório do filho


de Piá. Ela enquanto estancieira era obrigada a trabalhar no “Trapiche” uma quantidade
de horas por mês, e num destas jornadas de trabalho é violada pelo capataz e acaba
grávida. Seu filho, porém, morre pouco depois de nascer e o velório da criança ocorre
na vila. O capítulo começa com o retorno do bogotano, do “cachaco”, como é chamado,
para a casa onde está hospedado depois de passar o dia colhendo espécimes na floresta.
Ao chegar, porém, a mesa na qual depositava seus “insetos”, “plumas” e “ramas”,
desapareceu. Aborrecido com o fato, ele chama Manuela e lhe pergunta pela mesa. Ela
lhe informa que a mesa foi levada para fazer o altar do filho de Pía. Ele lhe pergunta
pelos objetos que guardava na mesa. Ele se enfurece com o fato de Manuela e de sua
família não apreciarem a importância dos objetos que coletava.
Manuela, contudo, diz-lhe que “usted es tolerante, y tolerancia quiere decir
aguantar, segun lo que usted mismo nos ha dicho”(DÍAZ CASTRO, 2003, p.313), e em
seguida lhe explica a forma que assumirá o velório: “Se murió mi ahijado, el hijito de
mi comadre Pía, y lo vamos a bailar” ”(DÍAZ CASTRO, 2003, p.313). Ele responde
estupefado: “¿Bailar un muerto? ¡Vaya una ocurrencia!” (DÍAZ CASTRO, 2003, p.313).
Antes de se encaminhar ao baile, uma cena reveladora ocorre.
O naturalista encontra um macaco que vinha dissecando e que é chamado pelo
narrador de “difundo”. A associação entre o macaco e o filho da Pía é evidente,
inclusive pelo tamanho de ambos. A conversa com Manuela sobre bailar o morto, e a
visão do macaco leva-o a refletir: “He aqui – dijo el naturalista –, la verdadera imagen
del hombre. La frente, los ojos y las orejas son las que yo he visto en algunos peones de
los trapiches” (DÍAZ CASTRO, 2003, p.314). Em vários momentos, o narrador diz que
estes “peones” e a gente que vive como trabalhadores nos engenhos são negros. Não se
pode esquecer que a narrativa se passa em 1856, cinco anos depois da abolição da
escravidão, e que um dos donos de engenho fala de seus escravos em tons sádicos.
Além disso, Demóstenes se refere a Rosa, que trabalha no “Trapiche Retiro” de graciosa
negra. Quando ele conhece Manuela, se refere a ela também como “preciosa negra”. De
modo, que os habitantes da paróquia onde está o naturalista bogotano são, em sua
maioria, mestiços e negros.
No contexto das afirmações do naturalista e das relações propostas pelo narrador
entre a cena da Pía e seu filho e a cena da macaca e sua cria, a afirmação racialista e
evolucionista da inferioridade constituinte do afro-descendente é evidente. Uma

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referencia evidente a Caldas, e sua descrição dos negros colombianos. Reforçam essa
afirmação duas outras cenas. Demóstenes e seus ajudantes encontram inscrições pré-
colombianas num monte. Ele força seu ajudante José, descendente de indígenas, a
adorar o sol, ao mesmo tempo em que afirma: “la ley, que protege a los negros [se
referindo à lei de abolição], despoja a los índios, a esta raza noble a la que no se enrostra
sino el ser maliciosa, que es el instinto de todo el que es perseguido” (p.70). Esse
comentário seguido da forma como ele reage e o que ele fala do costume de “bailar el
angelito” (DÍAZ CASTRO, 2003, p. 313), reafirma os pressupostos racistas de Demóstenes:

Yo no me había figurado – les dijo el bogotano – que las preocupaciones humanas llegasen ao
extremo de profanar la tumba; pero lo estoy viendo con mis propios ojos, y no puedo revocarlo a
duda. Los salvajes del Orinoco [lugar por onde Humboldt passou] respetan las cenizas de los
muertos sin atender a las edades, y sólo estaba reservado a los católicos de la Nueva Granada
cometer un acto de barbarie como el que ustedes mismas han perpetrado. (DÍAZ CASTRO,
2003, p. 318, grifos meus).

Ao que parece, pelo trecho acima, “los selvajes del Orinoco” estão mais perto da
civilização que “os bárbaros” negros e mestiços “calentanos”. Qualquer semelhança
com os discursos de Caldas, Humboldt, e de Samper, um ano depois, não é mera
coincidência.
Um terceiro quadro de costumes está ligado à música e à dança. Na primeira
noite depois de sua chegada à cidade, ele presencia um baile chamado “Torbellino”.
Depois de desistir de dormir por causa do barulho do baile, ele decide olhar: “Veamos,
dijo, si hay algo(...) por lo cual unos oídos configurados como los mios, puedan
aguantar el suplicio” (DÍAZ CASTRO, 2003, p.23, grifos meus). Nessa altura da narração o
leitor já sabe que aos ouvidos de Demóstenes foram configurados na Europa e Estados
Unidos. A partir disso ele avalia:

Tampoco merece la pena el baile (…) ¡Ir a una vara de distancia de una bella, hoy que la palabra
distancia es un borrón del diccionario! ¡Hoy que Roma se ha puesto a las puertas de Paris con el
telégrafo!... Esto es muy retrógrado…. Esto es contra la instituición del baile, que no se hizo para
huir sino para avanzar; esto es muy colonial sobretodo (DÍAZ CASTRO, 2003, p.24, grifos
meus).

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Neste trecho é introduzido outro elemento: “muy colonial sobretudo”. A possível


origem colonial da dança reforça suas características bárbaras, “retrogrado”, quando na
Europa, que completa o par “retrogrado-avanzado”, Roma e Paris estão ligados pelo
telégrafo.
Os costumes “estranhos”, ou que são descritos como estranhos, pelo narrador e
pelo personagem Don Demóstenes, afastam os “calentanos” da civilizada Bogotá.
Demóstenes pensa em escrever artigos de costumes, denunciando os costumes
“bárbaros” e “estranhos” dos “calentanos”, algo que Díaz Castro fez ao escrever o
romance, e era uma prática comum naquele momento, através dos artigos de costumes
reunidos em livros e publicados em jornais da época. Estes costumes eram descritos
alertando às elites colombianas sobre a barbárie “calentana”.
O diagnóstico que ele realiza do “baile” é simbólico porque inicia um serie de
falas, à medida que a narrativa avança, da cultura “calentana”. Isso o leva a tentar
civilizar os “calentanos”. Ele, horrorizado com o baile “calentano”, tenta levar Manuela
a gostar da música e danças européias. Díaz Castro dedica todo um capítulo, capítulo
extremamente sensual, diga-se de passagem, às lições de dança que o naturalista tentar
dar para Manuela. Mas ela não consegue estar próxima dele, ela sofre um ataque de
cócegas. Ela, assim, recusa seus ensinamentos civilizadores, que visavam ensiná-la a
“avanzar” pelo “baile”. Mas Don Demóstenes não recua, se propõe a denunciar os
costumes bárbaros dos “calentanos” através da imprensa e liderar um campanha
civilizadora. Em conversa, com o Padre da paróquia, depois da festa de São João, os
dois chegam uma conclusão, que dentro do romance é repetitiva. Após o Padre dizer
que apenas a civilização pode mudar a moral ou temperamento “calentano”, o
naturalista clama: “¡Civilicemos, señor cura! (...) Brindo por la pronta civilización de la
republica de la Nueva Granada” (DÍAZ CASTRO, 2003, p.343).
Este olhar que marca as “tierras calientes” como lugar do bárbaro, e o
compromisso de civilizar estas paragens, contudo, não leva à tentativa de se estruturar
um projeto nacional em torna da união entre andinos e “calentanos”. Na verdade, não
há possibilidade de futuro comum. A única criança da trama morre de inanição. A
possibilidade de um casamento como metáfora da união dos diferentes nacionais como
ocorre em outras narrativas nacionais do século XIX latino-americano não existe (Ver
SOMMER, 2004). Demóstenes, em certo momento da narrativa, se apaixona por uma
habitante das terras baixas, mas seu interesse não envolve casamento, bem como o fato

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de Don Demóstenes se reconciliar com sua noiva bogotana, Célia, um personagem


secundário, no final do texto, é revelador. Ele havia entrado em desacordo com ela dias
antes de sua descida às “tierras calientes”. O motivo do desacordo era a religião
católica. Ele exige que para que o casamento se realize, Célia deve deixar a religião. Ela
diz preferir a morte. Porém, Manuela lhe faz ver a verdade de que a tolerância que ele
tanto defendia teoricamente deveria levá-lo a aceitar que sua esposa fosse religiosa, e
que ele deveria se casar pelo rito católico. Convencido, ele decide reatar o noivado e
casar-se assim que retornar à Bogotá.
Neste casal está o futuro da pátria: uma futura aliança entre a religiosa Célia e o
liberal Don Demóstenes. Ambos brancos, andinos e civilizados. Uma idéia de aliança
futura entre as elites andinas a favor da civilização 8. A união política entre liberais e
conservadores tinha ressonâncias muito particulares, e se referia à união de
conservadores, liberais radicais e moderados, contras os “bárbaros” que ajudaram o
general Melo a tomar o poder em 1954. Este fato (MARTINEZ, 2001), havia provocado
uma mudança na atitude liberal frente aos grupos populares, que levaria, anos mais
tarde, muitos liberais radicais como José Maria Samper, ao conservadorismo. Os
liberais radicais, que se apoiaram nos grupos populares para forçar a eleição de seu
candidato em 1849, se afastaram destes grupos horrorizados com sua presumida falta de
espírito democrático em 1854.
A partir do Governo Mosquera (1845-1849), se tenta modernizar o país, e para
tal o governo se apoiou em intelectuais que conheciam os países “más avanzados”
(MARTÍNES, 2001, p.54), como Manuel Ancísar, que poderiam ajudar a modernizar o
país. Seguindo as idéias de Mosquera em 1949 é eleito o José Hilário López, dando
inicio à revolução liberal radical. Mosquera, apesar da vontade de modernizar o país,
não havia permitido aos liberais radicais destruir a sua base colonial. Hilário Lopez
havia sido eleito com a ajuda das “Sociedades Patrióticas”, formadas pelos artesãos de
Bogotá, que apoiaram o liberalismo em 1949. Contudo, os interesses dos artesãos se
chocam com as reformas radicais, o que provocou a revolução do general Melo em
1854.

8
Esta aliança se concretiza, por exemplo, no caso de José Maria Samper, liberal radical, e
Soledad Acosta, sua esposa, filha do conservador general Acosta. Outro fato interessante,
neste sentido, é que a única criança da trama, o filho de Pía, morre. Na verdade, Díaz Castro
pode ter percebido as conotações negativas que ficariam se por acaso ele deixasse vivo o filho
de Pía. Isso poderia levar à idéia de que existe um futuro para o país relacionado como o
negro e o mestiço, o que, obviamente, não estava nos planos das elites andinas.

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Como descreve Martínez (2001), essas reformas foram:

La libertad de cultos, abolición de la prisión por deudas, libertad total de prensa, libertad de
enseñanza, expulsión de los jesuitas, abolición de la esclavitud y abolición de los resguardos
indígenas. Estas reformas, inspiradas en parte por un afán democrático, apuntan sobretodo a
reducir el poder de la Iglesia (…) y debilitar el estado central. La ley de descentralización de
1850 transfiere a los gobiernos de las provincias rentas y gastos hasta entonces centralizados.
Los monopolios estatales sobre el tabaco y las salinas son abolidos. La fuerza pública es
reducida a 2500 hombres, y la intervención del Estado en la beneficencia pública también es
reducida. (MARTINEZ, 2001, p. 66, grifos meus).

A revolução de 1854 teve amplo apoio dos artesãos arruídos pelas importações que a
laisse faire liberal pressupunha e mostrou às elites o perigo que representava os grupos
populares. Numa conjunção de forças conservadores, liberais moderados e radicais,
Melo e seu exercito foi massacrado e o poder retomado pelas elites “democráticas”.
A política livre-cambista havia arruinado muitos artesãos que viram seus
produtos substituídos pelos “civilizados” produtos franceses (ROJAS,2001). Esse foi o
motivo que os levou a apoiarem Melo. As “Sociedades democráticas” que haviam
apoiado os radicais foram acusadas de anti-democraticas. Além das reformas liberais
provocarem a ira dos artesãos bogotanos – bem como dos artesãos de Santander, que
também foram arruinados pela importação de chapéus europeus –, os conservadores,
amplamente apoiados pela Igreja, estavam descontentes. Entre eles, Eugenio Díaz
Castro.
Os conservadores se opuseram às reformas liberais porque elas pressupunham o
enfraquecimento do poder da Igreja, o que era representado, naquelas reformas, pela
liberdade de ensino e pela expulsão dos jesuítas. Outro ponto de conflito era a
descentralização do Estado. Seguindo o modelo americano, “La república modelo”, os
liberais descentralizaram o poder do Estado a ponto de que as províncias eram
independentes de fato e não de direito. Neste contexto, segundo Múnera (2005), urgia a
necessidade de se afirmar e impor um centro civilizador andino às províncias semi-
independentes, que ameaçavam se independizar totalmente a qualquer momento. A
viagem de Don Demóstenes é simbólica neste sentido.
Mesmo orientados por perspectivas políticas diferentes, contudo, conservadores
e liberais se uniram contra o general Melo em 1854. Deste fato, Díaz Castro retira um

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juízo universalizante. A nação deve se estruturar futuramente pela união dos dois
partidos. Sua luta verdadeira, assim, é contra os elementos bárbaros que ele percebe
nestes grupos populares, e que pode ser melhor compreendido pelos costumes
“calentanos” 9. Uma nação como a luta da civilização contra a barbárie é o que se saiu
do relato de Díaz Castro. Ela será atualizada nas narrativas de Jose Eustasio Rivera e
Eduardo Zalamea Borda.
O fato de Don Demóstenes visitar as terras baixas sem estabelecer qualquer
projeto de união entre os diferentes nacionais, leva à reafirmação do mapa nacional
hierarquizado. Mas o fato de sua viagem estar relacionada à tentativa de inscrever estas
regiões como lócus do futuro nacional, como observa Serje (2005), apesar de ser a
inevitável heranças do colonialismo espanhol – lembre-se do “baile” colonial de
Manuela –, estas terras sustentam o futuro da nação enquanto projeto. O centro andino
civilizará as terras baixas, essa é a única história da nação. Hierarquizar os territórios é
um primeiro passo. Mantê-los sobre controle é a outra face desta moeda. À medida que
a nação avança sobre estas terras bárbaras, sobre as fronteiras, ela se alcança a realizar
seu destino enquanto luta da civilização contra a barbárie.
Enfim, como diz Serje (2005), a relação da nação com estes territórios está
baseada num duplo critério:

Desde la constitución de 1863 se estableció que estas ‘enormes extensiones selváticas, de gran
potencial económico e incapaces de gobernar a si mismas (…) fueran regidas directamente por el
gobierno central para ser colonizadas e sometidas a mejoras (…) El conjunto de relatos que
media la relación con estos espacios y sus habitantes históricos gira alrededor de dos imágenes
focales. La primera, es la de la enorme riqueza que encierran (…) La segunda imagen focal es de
la violencia constitutiva. La amenaza que representan. (SERJE, 2005, p. 4 e 5).

Não é por acaso, assim, que José Maria Samper estabelece uma íntima relação entre o
que ele chama de geografia das raças e a violência, no país, quando escreve em 1860.
Estas, assim, devem ser pacificadas, mantidas sobre o domínio. São o lócus simbólico
da realizam da missão histórica das elites andinas enquanto gentes civilizadas e
civilizadoras.

9
Os “calentanos” haviam amplamente ajudado a Melo. O pai de Manuela lutou ao lado deste
general em 1854, o que provoca em Demóstenes, quando se fica interado disso, a certeza
quanto ao fato da barbárie “calentana”.

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3. “Los Llanos”, a Amazônia e “La Costa” sob Controle: a Narrativa de


Dominação Territorial nos anos de 1920 e 1930.

Como o relato de viagem e exploração produziu ‘o resto do mundo’


para leitores europeus em momentos particulares da trajetória
expansionista da Europa?
Mary Louise Pratt, 1992.

A citação acima ajuda a compreender a relação entre a manutenção da imagem


da nação como luta entre a civilização e a barbárie e as narrativas de viagens
Andes/”tierras calientes”. La vorágine 10 de Jose Eustasio Rivera e 4 anos a bordo de
mismo de Eduardo Zalamea Borda reproduzem e atualizam esse esquema de descida
através da viagem de um intelectual, um poeta, aos “llanos orientales” e à Amazônia, na
primeira narrativa, e a Costa Atlântica e a “La Guajira”, no segundo caso. O nome do
primeiro deles é Arturo Cova, o segundo é um poeta anônimo e adolescente.
Arturo Cova levou sua amante Alicia para as terras baixas. O enredo tem início
com a fuga de Bogotá, logo após a “desonra” de Alicia se tornar pública. Eles se
dirigem aos “Llanos orientales”, tradicional refúgio de foragidos da justiça. Sua
intenção era tentar a sorte nos “Llanos” e depois retornar a Bogotá com o dinheiro que
conseguisse. No final da primeira parte, contudo, o casal conhece Narciso Barrera, que
está recrutando pessoal para trabalhar na extração de borracha na Amazônia, entre
Brasil, Peru, Venezuela e Brasil. Barrera convence Alicia, e Griselda, na casa de quem
se hospedam nos “Llanos”, a se dirigirem com ele para a Amazônia. Cova, ofendido
pela traição/abandono de Alicia, inicia a perseguição de ambos pela Amazônia. Em sua
trupe vai Fidel, esposo de Griselda e Correa, um vaqueiro. Depois se unem ao grupos
dois indígenas.
A narrativa de 4 anos a bordo de mismo segue o mesmo esquema. Um jovem
andino desce às “tierras calientes”, no caso, à “Costa Atlántica” e a “La guarija”, com
uma passagem por Cartagena de Índias e Puerto Colômbia. Inicialmente o texto era
chamado Memórias de Uchí Siechi Kuhmare. Uchí Siechi Kuhmare foi o nome que os

10
La vorágine de José Eustasio Rivera é um dos três romances colombianos mais conhecidos
no mundo. Sua difusão se compara à Maria de Jorge Issacs e de Cien años de soledad, de
García Márquez. Ver WILLIAMS, 1992.

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Wayuu deram a Zalamea Borda. O texto reescrito em 1932 e publicado em 1934 causou
um grande escândalo pelas cenas sensuais que aparecem no decorrer de toda a narrativa;
e mesmo na década de 1940, quando foi reeditado, era considerado excessivamente
sensual (JARAMILLO-ZULOAGA, 1996). Esta mensagem sensual do texto se encaixa
dentro do que teria motivado a viagem: o cansaço que a civilização e seus mecanismos
repressivos provocam no narrador.
Assim como a historia de Cova e Alicia, o texto fala de uma fuga. Neste caso se
foge da civilização às terras da aventura e da sensualidade. A critica à civilização que
está presente no texto se remete aos movimentos de vanguarda europeus, no geral, e à
Freud em particular, que publicou Mal-estar da civilização no mesmo ano que Zalamea
Borda escrevia seu folhetim. A viagem seria a busca dos instintos primitivos reprimidos
pela civilização, principalmente a sexualidade. Essa fuga da regulamentação opressiva
da civilização não pode se efetuar, contudo, fora do que Samper (1984) chamou
geografia da civilização e da barbárie em Nova Granada. Zalamea Borda contextualiza
esta fuga numa das fronteiras do país, Costa Atlântica e em “La guarija”. A pergunta de
porque não o fez em Bogotá ou em qualquer lugar dos Andes assume uma grande
validade. Freud convida a cavar nas cidades civilizadas em busca de seu passado
primitivo, e não se dirigir às terras não civilizadas. A resposta a ela, depois de tudo que
já foi dito acima, é obvia. Dentro da cartografia simbólica da Colômbia existe uma
geografia da civilização e outra da barbárie e selvagismo. Os Andes e as terras tropicais.
O que Zalamea Borda está fazendo é atualizando esta cartografia simbólica da nação e o
pertencimento destas fronteiras, “La Costa” e “La Guarija” à nação. Zalamea Borda está
fazendo o mesmo que José Eustasio Rivera fez alguns anos antes. Por trás do enredo de
amor, traição e abandono de La voragine está a atualização do discurso nacional sobre
as fronteiras da nação.
La vorágine e 4 años a bordo de mi mismo como disse foram criadas no
momento de transição que representou os anos de 1920 e inicio da de 1930 para a
Colômbia. Um novo projeto político estava em construção e efetivação pelas novas
gerações liberais, projeto político que levaria ao poder em 1930 o liberal Enrique Olaya
Herrera. Essa nova realidade política afetava diretamente Bogotá enquanto centro
simbólico da nação. Isso não apenas do ponto de vista político econômico, mas também
cultural. Cidade como Medellín, com a produção de café, e Barranquilla com o
comercio internacional, se tornaram importantes centros culturais modernizantes e se

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colocavam na vanguarda nacional, criticando a atitude fechada de Bogotá 11.


Neste contexto, o melhor modo de assegurar o controle sobre estas regiões que
se colocavam na vanguarda da época, era retornar ao discurso fundador da nação na
forma da descida da civilização andina à barbárie e selvageria “calentana”. E a idéia de
que é preciso livrar as terras tropicais do selvagismo e barbárie, juntamente como o
perigo para as fronteiras nacionais que representava a exploração da borracha, “Liga
Costeña” como a cada vez maior presença imperialista norte-americana no Caribe, se
tornou a base da obra de José Eustasio Rivera e Eduardo Zalamea Borda. Estas
narrativas são uma reafirmação do centro andino e da possessão territorial das fronteiras
da nação. Elas se erigem, como Manuela, como os olhos da nação.
Aqui do mesmo modo que em Manuela, não existe possibilidade de se construir
um projeto comum de futuro que envolva “calentanos” e andinos. Tanto Rivera quanto
em Zalamea Borda seguem o mesmo esquema de relação entre os homens andinos – no
caso de Arturo Cova, ele é uma “calentano” civilizado, que adotou a civilização e o
projeto nacional andino – e as mulheres “calentanas”. Não existe a possibilidade de um
futuro comum, representado no casamento ou na presença de um filho. A única criança
de La vorágine é fruto do pecado e é consumida pela selva, a devoradora de homens. No
caso do personagem anônimo de 4 años a bordo de mi mismo, ele também, como Cova
e Demóstenes, quer se relacionar sexualmente com as mulheres “calentanas”. Mas esse
relacionamente não envolve qualquer compromisso efetivo, como o casamento. Quando
ele vê a possibilidade de ter um filho de uma mulata “costeña”, Meme, ele entra em
pânico.
Em busca de liberar os instintos primitivos que a civilização reprime, ele se
encontra com a mulata caribenha Meme. O desejo lhe toma o corpo. Mas quando ele
descobre uma estranha soma escrita nas paredes do barco onde esta, seu desejo se
transforma em interdição. A soma dizia: um mais um, igual a três. Surge no personagem
a clareza de que o intercurso sexual com a mulata poderia levar à geração de um filho:

Puede ser un símbolo espantoso de que 1 y 1, puede surgir un 3. ¡No! ¡Seria terrible! ¿1, ella, y
1, yo, sumados, produciríamos otro 1? ¿Sumados los dos resultaríamos 3? ¡No! ¡No! Me
convertiría en asesino de mí mismo. ¡Sí, en asesino de mí mismo! No en suicida (…) Tengo
miedo, mucho miedo, no de mí mismo sino del otro, de ese 3. (…) El viento, los tiburones, el

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Algo que está diretamente ligado ao discurso cosmopolita “costeño”, e que será reiterado
continuamente por García Márquez.

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naufragio, ¿qué son ante ese abismo, ciego, sordo, ceñudo y terrible de mi deseo? Todos esos
peligros son débiles fichas de cartón delante de lo terrible que sería eso (…) Meme, Meme, ¿eres
tú quien me ha mostrado esa posibilidad espantosa? (ZALAMEA BORDA, 2003, p. 55 e 56).

A retórica usada neste trecho é uma retórica do “terrível” que lembra claramente
as descrições do Caribe, no sentido de canibalesco, e que é aparentado com o modo
como Cova descreve a selva. A simples possibilidade de que surja um filho do
intercambio sexual com uma mulher “costeña” aterroriza o personagem e o afasta
daquela que até então lhe atraia. Essa repulsa, que lhe vêem com a consciência da
possibilidade do filho, que qualificado de “outro” que é reduzido a um número, o 3, faz
com ele louve o fato de que Meme fique em Riohacha, enquanto ele segue viagem.
Um terceiro elemento que gostaria de levantar é a descrição da natureza como
sendo grandiosa e terrível, que media o primeiro contato destes personagens com as
terras tropicais. No início de La voragine, Cova se aproxima de uma pequena lagoa que

estaba cubierta de hojarascas. Por entre ellas nadaban unas tortuguillas llamadas galápagos,
asomando la cabeza rojiza; y aquí y allí los caimanejos nombrados cachirres exhibían sobre la
nata del pozo los ojos sin parpados. Garzas meditabundas, sotenidas en un pie, con picotazo
repentino arrugaban la charca tristísimo, cuyas evaporaciones maléficas flotaban bajo los árboles
como velo mortuorio. Partiendo una rama, me incliné para barrer con ellas las vegetaciones
acuátiles, pero Don Rafo me detuve, rápido como el grito de Alicia. Había emergido bostezando
para atraparme una serpiente guío, corpulenta como una viga, que a mis tiros de revólver se
hundió removiendo el pantano (EUSTÁSIO RIVERA, 2006, p.94).

A natureza exuberante está representada em 4 anos a bordo de mi mismo pela


coloração do mar, “mares (...) de águas azules y por las águas verdes” (EUSTÁSIO
RIVERA, 2006, p.33), produz uma impressão estética ao personagem muito semelhante a
que Cova sente pouco antes de ser atacado pela serpente. Pouco depois, essa natureza
exuberante mostrará sua face terrível na forma de uma tempestade que arrasta o barco
onde está o personagem por mais de duzentos quilômetros.
O furacão se remete diretamente a outra tempestade famosa, a de Shakespeare.
O personagem está no Caribe, na terra de Calibán e de tempestades. A visão que ele tem
do cozinheiro da embarcação é calibanesca:

el cocinero es de Curazao, negro y mugriento con una cara diabólica y un sombrero de color

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chocolate. Fuma constantemente una pipa casi carbonizada (…) A Meme (...) le gustan los
plátanos y las tortas que fríe en la sartén lentamente, como si friera personas (ZALAMEA
BORDA, 2003, p.13, grifos meus).

Além desta visão calinbanesca do cozinheiro negro, os outros negros lhe parecem sujos,
canalhas. Quando um dos marinheiros negros se oferece para curtir o cachimbo do
personagem, este se pergunta como depois poderá desinfetá-lo (2003, p.18).

Em último elemento que gostaria de descrever é o fato de que neste momento o


centro andino envie poetas às margens da nação. Como adverte Malcom Deas (2006), a
língua e a gramática estiveram intimamente relacionadas com o poder desde 1886,
quando se inicia o projeto conservador chamado de Regeneração Conservadora. Este é
o contexto no qual surge e se afirma a idéia de que Bogotá seja a Atenas Sudamericana
e que os colombianos é um povo de poetas de Samper. Se a civilização para os liberais
era algo ligado ao livre-comercio, para os conservadores, a poesia e língua serão os
máximos expoentes da civilização, na Colômbia (ROJAS, 2001). Neste contexto, o
poeta assume a autoridade social que o naturalista possuía na década de 1850. De modo
que quando Eustasio Rivera e Eduardo Zalamea Bordo decidem por poetas, eles estão
ancorados numa série de discursos que colocavam no discurso dos poetas um das bases
da autoridade social da nação.

Enfim, no caso da Costa Atlântica, essa necessidade de reafirmar a possessão era


crucial depois da “Liga Costeña” de 1919, movimento reinvidicatório de maior
independência dos departamentos “costeños” e mudanças nas políticas governamentais
que beneficiavam os Andes e preteriam “La Costa” (POSADA GARBÓ,1998).
Segundo Posada Garbo, as elites andinas estremeceram com a notícia da liga, pois fazia
apenas 16 anos da independência do Panamá. No texto de Zalamea Borda se fala do
perigo de que “no entren en la bahia y se tomen la ciudad, disfrazados de
transatlânticos, los barcos de la escuadra del Almirante Vernon” (ZALAMEA BORDA,
2003, p. 44). O perigo de que se repetisse em “La Costa” o que aconteceu com o
Panamá.

Neste sentido, as narrativas de Zalamea Borda e José Eustasio Rivera cumprem a


função de narrativas de dominação territorial, teatralizando a nação como luta da
civilização contra a barbárie, o selvagem e o primitivo. Não parece por acaso,
entendendo a narrativa como uma repetição do “possuo tudo o que vejo”, que um jornal

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conservador encomendara e publicara o texto de Zalamea Borda, e que o texto tivera


acolhida tão positiva mesmo estando entendido como sensual demais, bem como que
Eustasio Rivera tenha representado por tanto tempo o governo colombiano na tentativa
de demarcar e ordenar a fronteira entre Colômbia, Brasil, Peru e Venezuela.
Por outro lado, o fato de uma cidade “costeña”, Barranquilla, vir assumindo
importância econômica, chegando a ser a segunda cidade do país, nos anos de 1920, o
que foi reiterado pela “Liga Costeña” fazia necessário reafirmar o Caribe como
colombiano. Do mesmo modo, era preciso reafirmar Bogotá como cidade civilizada, e
líder natural da civilização na Colômbia. Como o texto de Rivera, no caso da disputa
pela Amazônia, com Venezuela, Brasil, Peru e Colômbia, o texto de Zalamea Borda
reafirma a possessão territorial colombiana pela imposição de uma identidade
negativizada às terras “calientes” em geral e ao Caribe em particular.
Essas margens pareciam controladas durante o período chamado Regeneração
Conservadora, que se iniciou em 1886 com um dos presidentes poetas, Rafael Nuñez, e
se estendeu até 1930, quando os liberais retomaram o poder, iniciando um período de
transição que apenas se concluiria nos anos de 1950, quando da união dos
conservadores e liberais contra a ditadura do general Rojas Pinilla. Assim, como o fim
do regime centralista andino, de novo se envia às margens os emissários da nação.
Acredito que a partir do caso das narrativas de José Eustasio Rivera e Eduardo
Zalamea Borda é possível sustentar a idéia de que estas narrativas, ancoradas no
esquema de descida Andes/”tierras tropicais”, são de fundamental importância para
manter o domínio territorial do centro andino sobre as margens e fronteiras da nação.
Na verdade, enviar esses viajantes às margens da nação nos momentos em que a
possessão destes territórios estão ameaçados, é uma estratégia extremamente poderosa
no sentido de manter controle sobre as “tierras calientes” em geral e “La Costa” em
particular.

Conclusão

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Comunidade imaginada por quem?


Partha Chatterjee, 2000.

Mary Louise Pratt (1999) estuda o relato de viagem como gênero textual e como
ideologia, investigando como o relatar viagens ajudou na reinvenção da África,
América, África e Europa. Um processo de inventar um “eu” e um “outro” num
processo transculturador. A construção do “eu” esta indissociável da cosntruçao do
“outro”. Seguindo Pratt, Serje afirma sobre a nação colombiana:

...uno de los lugares más propicios para explorar los modos concretos en que la Nación produce
diferencia como resultado de su forma particular de apropiar y de imaginar su territorio y sus
sujetos, es su relación con la periferia: con los ámbitos que se extienden más allá de sus
márgenes. No solo porque es allí donde su racionalidad moderna se muestra como espejismo,
donde se hace evidente que sus ideales fundamentales de seguridad, de orden social y orden
estético, de eficiencia y efectividad, tiene un revés, sino porque la producción misma de
‘periferias’, es decir de aquellos que se excluye, es una de sus condiciones necesarias. La
consolidación de la identidad del centro implica la reificación de sus márgenes. Y es allí, a la
sombra del lado oscuro, donde la situación misma de margen devela los sentidos que se ocultan
tras la normalidad y donde es posible visualizar el papel histórico del Estado Nacional como
forjador de alteridades (SERJE, 2005, p. 06).

Margarita Serje (2005) elaborou uma arqueologia do discurso nacional sobre as


fronteiras e como a relação com as fronteiras nacionais (fronteiras, os territórios
selvagens e terras de ninguém) são importantes para a construção da imagem da nação
vencedora na Colômbia. Alfonso Múnera (1996; 1998; 2005) vem mostrando como essa
imagem da nação e as formas como a nação imagina as suas fronteiras e as gentes que a
habitam é responsável pela dificuldade em criar um projeto homogeinizador que
incluísse todos os colombianos. Isso porque, a forma mesma em que se imaginou a
nação excluía a maior parte de sua população e território, “los calentanos” e “las tierras
calientes”. A isso ele chama fracasso de nação. Minha hipótese é que as narrativas que
examinei exemplificam aquilo que Alfonso Múnera (1998) chamou de o fracasso da
nação.
Por outro lado, pensando com Said (2007), podemos perceber que estas viagens
– como Pratt (1999) também diz – são viagens de dominação, de possessão territorial
através da imaginação tais geografias de forma negativizada. As terras quentes e as

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fronteiras colombianas são geografias imaginadas, e as narrativas de Díaz Castro,


Rivera e Zalamea Borda ‘imaginam’ tais territórios, ou seja, as preenchem com
imagens. Essas imagens inscrevem, no imaginário nacional, tais geografias e seus
habitantes como bárbaras, selvagens e primitivas, ao mesmo tempo que “imaginam” os
andes como territórios da civilização e os andinos mensageiros da civilização. Nestas
narrativas esses mensageiros se chamam Demóstenes, Cova e o narrador anônimo de
Zalamea Borda, como também foram mensageiros Humboldt e tantos outros viajantes.
Ou seja, estas narrativas também são uma maquinaria de dominação territorial.
Os personagens das narrativas aqui examinadas enquanto viajantes garantem
este mapeamento dos referidos territórios – dominando-os pela narrativa. Essas
narrativas têm no discurso dos viajantes um discurso maestro, no sentido que dá ao
termo González Echevarría (2000). Performance narrativas. Ou seja, estes escritores
atuando enquanto narradores e personagens interpretam o papel do viajante; e colocam a
viagem como base de autoridade e veracidade do que estão dizendo. Assim como a
viagem fornecia a autoridade simbólica daqueles viajantes que Pratt (1999) chamou de
“os olhos do império”, estes viajantes e as suas viagens – reais ou ficcionais – se
colocam como os olhos da Nação. Fazem parte dos grupos de pioneiros da civilização
nacional que se percebe como uma luta constante, uma luta com a da camponesa Pía:
civilização contra natureza.
As elaborações, e as re-elaboraçoes, e as repetições, constantes destas imagens e
esquemas narrativos garantem, em grande medida, o projeto colonial interno da nação
andina sobre as terras quentes. As elaborações sérias ou paródicas deste discurso
maestro, o dos viajantes, são indicadoras de um retorno constante ao que seria a origem
do discurso nacional na sua relação com o viajante Europeu que percebe as
potencialidades da pátria e alerta Bolívar, o homem de ação, para o fato de a América
estar pronta para a independência. Esse retorno também é um retorno ao discurso e ao
gênero textual fundador. É um retorno a Caldas e Humboldt – e no caso de Rivera e
Zalamea Borda, à Samper.

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PRINCIPIALISMO E POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:


1
ORIENTAÇÕES DA REVISTA BIOÉTICA

Profa. Mestranda Laura de Oliveira


Professora Substituta do Departamento de História
Universidade Federal de Goiás (UFG)
historilaura@yahoo.com.br

I. Considerações sobre a política neoliberal e a normatização da Bioética no Brasil

Os imperativos neoliberais impuseram uma dupla orientação ao Ocidente: ao


mesmo tempo em que atuam como elemento de unificação e supressão dos particularismos,
seu apelo ao individualismo acabou favorecendo a efervescência de identidades múltiplas,
que passaram a reivindicar reconhecimento e autonomia. Os fenômenos globais, assim,
estimularam a afirmação do específico, das micro-identidades. Elas se apresentam como
reações não só à política de unificação comercial, mas às tentativas de homogeneização
cultural. Afirmam sua contra-história frente à uniformização de uma História única
(PARGA, 1992). Na atual fase da globalização, os modelos essencializantes e
homogeneizantes estão sendo desafiados pela diferença, em um fenômeno que, segundo
Stuart Hall, está “elucidando as trevas do próprio Iluminismo ocidental” (HALL, 2003, p.
44). De um lado, os esforços de integração global, que não se restringem ao campo
econômico, estimulam a uniformização das instituições, dos valores e dos princípios
norteadores das relações humanas. De outro, existe uma crise de identificação dos grupos
com as chamadas macro-identidades: entre o indivíduo moderno (influenciado por
múltiplos elementos e pertencente, ao mesmo tempo, a diversos segmentos da sociedade) e
as macro-instituições, se colocam grandes barreiras. Essas instituições provocam nesses
indivíduos muito menos empatia do que as micro-identidades, forjadas a partir de
referências mais próximas, que estimulam seu sentido de pertencimento cotidianamente.
Inserida nesses fenômenos globalizantes, a Bioética principialista começou a ser
assimilada no Brasil na década de 90, como moral universal que se pretendia norteadora

1
As reflexões presentes neste artigo são parte da pesquisa ainda em andamento, realizada no Programa de
Pós-graduação da UFG, para a confecção da Dissertação de Mestrado, provisoriamente intitulada: “Os
Direitos Humanos e a memória: o debate sobre a Bioética na segunda metade do século XX”.

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das pesquisas envolvendo seres humanos e das políticas de saúde neste país. Em sintonia
com a política neoliberal adotada pelo governo brasileiro, a incorporação de um
instrumental teórico oriundo dos Estados Unidos que norteasse as pesquisas na área da
saúde parecia inserir ainda mais o Brasil na agenda global de discussões e nos crescentes
esforços em prol do controle e normatização das práticas científicas.
A adoção do Principialismo nas políticas de saúde, contudo, foi posterior à sua
ampla aceitação na comunidade científica, ou àquilo que chamaremos, na linha do
professor Estevão Martins, de “burguesia acadêmica” 2 (2004). Nas publicações
especializadas sobre Bioética, profissionais de saúde de diferentes universidades
rapidamente demonstraram ter incorporado a linguagem dos princípios, transitando com
familiaridade entre os termos autonomia, beneficência, não maleficência e justiça e
buscando nesse referencial teórico um instrumento para a resolução dos problemas
relacionados à saúde pública no Brasil. Embora, no início, o termo Principialismo não
aparecesse explicitamente, a influência da Bioética anglo-americana era evidente,
sobretudo quando a postura desses profissionais converteu-se em algo mais engajado, com
o empenho dos bioeticistas em prol da normatização da Bioética no Brasil. Essa militância
evidenciou-se nos artigos da Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, principal
publicação sobre Bioética daquela época. Tais esforços culminaram, em 1996, com a
publicação da resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, que traçou as diretrizes e
normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Como
referencial teórico, o CNS adotou a Bioética principialista estadunidense 3 (ou teoria dos
princípios), que articula quatro referenciais básicos norteadores de pesquisas envolvendo
seres humanos: a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça. No texto da
resolução, estão claros os princípios que a embasaram, embora tenha sido ignorado que
eles, em conjunto, constituem apenas um entre os diversos modelos teóricos produzidos

2
Refiro-me aqui aos profissionais, sobretudo da área médica, vinculados a universidades brasileiras, que
escreveram para a Revista no período de 1993 a 2005. Através dos artigos e ensaios nela publicados, eles
procuraram indicar caminhos para uma possível síntese da bioética principialista, que desse conta da
especificidade cultural brasileira. Apesar disso, revelaram um sentimento generalizado de identificação com
os valores embutidos no processo civilizatório do qual fizemos (fazemos?) parte e que estavam, naquele
contexto, sob a forma da moral principialista. (conf. MARTINS, 2004)
3
O Principialismo surgiu nos Estados Unidos em 1978 e foi elaborado pelos eticistas Tom Beauchamp e
James Childress. A teoria foi apresentada no livro Principles of Biomedical Ethics.

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pelos bioeticistas a partir do final da década de 1970. Em outras palavras, a adoção da


teoria dos princípios em detrimento de outras correntes bioéticas, como a feminista, a
casuística, a ética narrativa, a ética da virtude ou a da responsabilidade, não é explicitada na
resolução e o termo Principialismo sequer é mencionado.

Esta Resolução incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro


referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e
justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à
comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado. (Resolução nº196,
Conselho Nacional de Saúde, Brasil, 1996)

No ano posterior à publicação dessa resolução, 1997, foi aprovada a primeira lei
brasileira elaborada a partir dos pressupostos da Bioética principialista: a Lei da Doação
Presumida, referente à transplantação de órgãos no Brasil. A nova versão da legislação de
transplantes (a primeira datava de 1992) foi um passo importante para a consolidação do
Principialismo neste país, embora não tenha sido explicitado, novamente, que a lei tinha
como referencial a teoria dos princípios. Apesar disso, essa orientação ficou clara nas suas
diretrizes e foi evidenciada nas polêmicas decorridas após a promulgação da lei, em virtude
dos conflitos entre normas que se baseavam, de um lado, no princípio da autonomia, e
outras que estavam calçadas no princípio da beneficência. Esses referenciais,
aparentemente harmônicos, abriram um largo debate sobre os limites que separam a
autonomia do paciente sobre o próprio corpo e o dever dos profissionais de saúde e do
Estado de garantir a manutenção da vida, através da transplantação de órgãos. Essa e outras
discussões, como a questão da eutanásia, das pesquisas com células-tronco, da alocação de
recursos da saúde de forma equitativa e justa estão na pauta do dia desde a década de 90 e
têm sido temas de debate entre profissionais de diversas áreas, como médicos, biólogos,
cirurgiões-dentistas, antropólogos, filósofos, teólogos e juristas.
Esses debates, contudo, estiveram, durante alguns anos, sob a égide do
Principialismo. Todas as avaliações acerca de temas relacionados à saúde eram feitas
acriticamente à luz dos quatro princípios, como se instrumentalizá-los e buscar um possível
ajuste entre eles fosse a saída para resolver os problemas relacionados à saúde pública no
Brasil. Nas publicações especializadas, a reflexão sobre a adoção do Principialismo como
modelo teórico norteador das políticas públicas na área da saúde só se deu a partir de

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meados da década de 90. De lá para cá, artigos e ensaios sobre o tema têm sido
freqüentemente publicados: algumas vezes, com críticas a essa adoção irrestrita e irrefletida
do modelo estadunidense e sua rápida incorporação nas políticas de saúde brasileiras; em
outras, com esforços de traduzi-la à “realidade brasileira”, buscando na flexibilidade desse
modelo teórico uma saída para defender sua incorporação nas políticas públicas voltadas
para a saúde no Brasil.
Essas tentativas são respostas às críticas de que o Principialismo parte de uma moral
universalista, que desconsidera a existência de múltiplas identidades. Ao articular em torno
de quatro princípios um discurso humanista que se pretende válido para todo e qualquer
contexto, a doutrina estadunidense passou a ser alvo de críticas no mundo ex-colonial. Não
há indicativos, contudo, de que os bioeticistas brasileiros tenham desconfiado de que o
Principialismo seja uma nova faceta da dinâmica imperial (PRATT, 1994). As críticas a ele
voltam-se muito mais aos seus aspectos teóricos e sua aplicabilidade à realidade cultural
brasileira. Esses apontamentos apresentam, na maior parte das vezes, um caráter
nacionalista, buscando fundar a identidade Bioética brasileira no contraste com os
pressupostos da Bioética anglo-americana, e não simplesmente através da sua assimilação,
como havia sido nos primeiros tempos (MARTINS, 2004).
O caráter homogeneizador do Principialismo, em confrontação com as tentativas de
demarcação da diferença na Bioética brasileira, é o tema deste artigo. Proponho a análise de
uma das principais publicações brasileiras sobre Bioética: a Revista Bioética, do Conselho
Federal de Medicina (1993-2005). Nesta abordagem, pretendo avaliar o impacto das
discussões sobre identidades nas publicações especializadas sobre Bioética: como os
profissionais de saúde e eticistas brasileiros têm tentado considerar as micro-identidades
frente ao discurso universalista do Principialismo? Até que ponto os bioeticistas brasileiros
acreditam que a teoria dos princípios, dada sua flexibilidade, será capaz de dar conta dos
conflitos que envolvem questões relacionadas à saúde pública no Brasil? De que maneira
essa “burguesia acadêmica” tem tentado traduzir o Principialismo, produzir uma síntese que
confira a ele sentido dentro da dinâmica cultural brasileira? Qual caminho a Bioética
brasileira está trilhando e quais são as suas propostas para, em torno do amplo conceito de
cidadania, agregar múltiplas identidades?

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II. A Revista Bioética e a penetração do Principialismo no Brasil: moral universal


e ênfase na autonomia

O primeiro número da Revista Bioética, publicação semestral do Conselho Federal


de Medicina, foi lançado no ano de 1993. Impactada pelos altos índices de contaminação de
pessoas pelo vírus da AIDS na década de 80, a Revista trouxe um debate relacionando a
doença à Bioética. Os artigos, em sua maioria escritos por médicos (sobretudo
infectologistas), tratavam essencialmente de questões relacionadas à prática médica e à
relação médico-paciente: como deverá proceder um profissional de saúde infectado pelo
HIV? Como pensar a eutanásia nos casos de aidéticos em fase terminal? Qual tipo de
tratamento deverá ser dispensado a crianças infectadas, seja por transfusão sanguínea, seja
na vida intra-uterina? Essas e outras questões foram discutidas à luz de um princípio
essencial: a autonomia. Para os profissionais de saúde do início da década de 90, uma
postura Bioética perpassava pelo respeito à autonomia do paciente e, embora este não fosse
(ainda) o termo utilizado, o “consentimento informado” 4 era uma condição sine qua non
para a efetivação dos procedimentos terapêuticos. Defendia-se a permanência do
profissional de saúde infectado nos hospitais, ainda que este representasse risco para os
pacientes. Defendia-se a preservação da criança, de sua imagem e privacidade, sobretudo
na comunidade escolar, onde sua condição de soropositivo poderia ser mantida em sigilo,
de acordo com sua vontade e de sua família. Defendia-se que o paciente deveria ser
informado sobre suas condições e possibilidades, para estar apto a decidir o que considerar
melhor para si. As relações familiares, especialmente as matrimoniais, ganharam destaque:
defendia-se, sim, a autonomia do paciente, mas o cônjuge (parceiro sexual) deveria ser
informado das possibilidades de risco a que estava sujeito, ou seja, o cônjuge infectado
deveria pautar-se no princípio da não maleficência.
Nesse sentido, a Revista evidencia um aspecto importante da Bioética brasileira nos
seus primórdios: mesmo implicitamente, esboçavam-se os referenciais do Principialismo.

4
O termo “consentimento informado” foi utilizado pela primeira vez em 1947, no Código de Nuremberg, e se
refere ao direito que os pacientes têm de decidir voluntariamente se desejam ou não participar de alguma
experiência ou serem submetidos a determinado tipo de tratamento terapêutico. O Código foi produzido no
calor das discussões sobre as experimentações com seres humanos nos campos de concentração nazistas,
durante a Segunda Guerra Mundial.

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Em uma época em que a Bioética ainda não havia sido normatizada no Brasil, os
profissionais de saúde (cujos artigos embasaram-se, em grande medida, em autores de
língua inglesa) apresentavam um pensamento bioético com traços anglo-americanos. O
Principialismo, teoria mais difundida no mundo ocidental, desde a década de 80, no que
versa sobre os estudos bioéticos, estava sendo adotado no Brasil irrefletidamente, sendo
todas as questões relacionadas à saúde discutidas à luz dos seus referenciais. A autonomia,
contudo, era priorizada em detrimento dos outros princípios. A exemplo dos fenômenos
integracionistas e globais que marcavam o mundo pós-Guerra Fria, a Bioética brasileira
germinava nutrida pelo mais amplo e universal dos valores: o individualismo. Era na
satisfação das vontades e no respeito à autonomia individual que a moral universalista do
Principialismo era assimilada pelos eticistas brasileiros.
Ainda em 1993, o CFM publicou o segundo número da Revista, agora voltado para
os conflitos bioéticos referentes a pacientes terminais. Embora ainda não seja feita menção
à corrente principialista, seus referenciais são generalizados e tomados como pressupostos
da Bioética em si. A matriz principialista se confunde com a própria Bioética. Jefferson
Pedro Piva e Paulo R. Antonacci Carvalho, ambos membros do Departamento de Pediatria
e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS, no artigo “Considerações Éticas nos
Cuidados Médicos do Paciente Terminal”, defendem que a discussão sobre a atuação
profissional do médico em casos de pacientes terminais deverá ser feita a partir dos quatro
princípios: a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça, que deverão ser
superpostos de acordo com o quadro clínico do paciente, ou seja, salvável, inversão de
expectativas ou morte inevitável. A autonomia deveria ser priorizada em casos de pacientes
com grandes chances de sobrevivência, mas, na medida em que o quadro se agravasse,
caberia aos profissionais de saúde decidir sobre os procedimentos mais adequados visando
à cura do paciente (beneficência), sempre tendo em mente o princípio hipocrático
juramentado: “não causar dano” (não-maleficência).
Já Joaquim Clotet, professor de ética e filosofia da PUC-RS, no artigo intitulado
“Reconhecimento e Institucionalização da Autonomia do Paciente: Um Estudo da The
Patient Self-Determination Act”, no mesmo número da Revista, defende a autonomia do
paciente terminal, que deverá ter sido consultado previamente (antes do seu quadro clínico
se agravar) sobre o tipo de tratamento a que gostaria de ser submetido. Como fundamento
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para sua argumentação, ele utiliza o conteúdo da lei estadunidense "The Patient Self-
Determination Act (PSDA)" (A Lei da Autodeterminação do Paciente), vigente desde 1991.
No primeiro número de 1994, a Revista Bioética apresentou uma discussão sobre o
aborto que se pretendia multidisciplinar. Foi a primeira vez que um historiador escreveu
para a Revista. A professora Mary Del Priori, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, publicou artigo sobre a preocupação com a prática abortiva no Brasil
colonial, quando tanto médicos quanto a Igreja Católica preocupavam-se com a questão do
povoamento da colônia, sendo o aborto uma ameaça a esse intento. Os demais artigos,
contudo, foram produzidos por profissionais da área da saúde, especialmente médicos.
Novamente, a questão da autonomia norteou a escrita dos textos. O professor da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo, Cláudio Cohen, ressaltou que o exercício da
autonomia deveria pressupor autoconhecimento. Para o autor, o indivíduo deverá estar
cônscio das regras e valores sociais e da sua estrutura individual para poder exercer o livre-
arbítrio. Uma postura verdadeiramente ética deveria perpassar por essa interação que,
embora conflitiva, permite ao sujeito tomar decisões autônomas e, ao mesmo tempo,
condizentes com os princípios da sociedade em que vive.
O pensamento do professor Cohen sintetiza a lógica do pensamento dos bioeticistas
brasileiros dos dois primeiros anos da Revista Bioética: a reflexão sobre os problemas de
saúde voltava-se para questões polêmicas que envolviam a autonomia do paciente e tabus
da sociedade brasileira. Os temas selecionados pelos bioeticistas estavam em estreita
relação com os movimentos de emancipação feminina e liberdade sexual e seus
desdobramentos nas décadas de 80 e 90. De um modo geral, os assuntos de que a Bioética
brasileira procurava tratar tinham, naquele momento, uma orientação diferente do que
acontecia nos Estados Unidos. Se, aqui, a Bioética surgiu voltada para discussões
persistentes da sociedade brasileira, lá, ela servia como instrumento de reflexão sobre as
conseqüências da utilização de novas biotecnologias. O que dava o tom à Bioética
estadunidense era o biocatastrofismo 5, que permeava as discussões filosóficas sobre o
futuro da humanidade frente aos avanços da ciência.

5
Entenda-se por biocatastrofismo o discurso de alerta sobre os possíveis perigos que a ciência oferece à
humanidade, anunciando a desumanização do homem e o fim da história (LECOURT, 2005).

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As ferramentas utilizadas para pensar esses temas persistentes no Brasil, todavia,


eram as mesmas que, nos Estados Unidos, embasavam a reflexão sobre temas emergentes
dentro da Bioética: os referenciais do Principialismo. Embora não houvesse referência
explícita a essa corrente, seus princípios estavam incorporados ao vocabulário dos
profissionais de saúde que escreveram para a Revista nos seus primeiros números. O
manejo desse referencial denota intimidade com ele, adquirida, possivelmente, através da
ampla bibliografia em inglês consultada e da formação desses profissionais, cujo currículo
inclui, em muitos casos, cursos de pós-graduação e aperfeiçoamento nos Estados Unidos.
Pensar a adoção do Principialismo no Brasil, no início da década de 90, por esse
viés, nos leva a um importante indicativo: as idéias da Bioética anglo-americana teriam
penetrado no Brasil primeiro pela via acadêmica, e não política. Teria sido nas
universidades que o Principialismo ganhou seus primeiros adeptos, que se converteriam,
posteriormente, em agentes de pressão política em prol da normatização da Bioética de
acordo com o modelo estadunidense. Nesse sentido, é importante pensar a adoção do
Principialismo na perspectiva do difusionismo, em que o saber produzido pelos países
centrais é assimilado (ou assimila) os países periféricos, num processo que se concretiza
como um “estado intelectual e institucional de não-liberdade” (PRATT, 1994, p. 52). Em
um mundo que se dizia global, econômica e culturalmente interconectado e aberto à
diferença, as universidades converteram-se na zona de contato através da qual o
vocabulário principialista foi assimilado pelos eticistas brasileiros. A Bioética apresentava-
se como uma nova faceta da política imperialista estadunidense (PRATT, 1994), em que o
saber principialista era transplantado no Brasil impensadamente, naturalizado, confundido
com a própria ética. Ao mesmo tempo em que ele se configurava como um saber específico
dentro do domínio da ética e das ciências, consistia também em um conjunto de princípios
morais que se pretendia universal e que deveria promover, nas nações ex-coloniais como o
Brasil, uma nova modalidade do processo civilizatório (Elias, 1990). Civilizar, aqui, era
introduzir uma doutrina moral que fundamentasse todo o pensamento relacionado não só à
saúde, mas à vida e ao próprio estatuto de humanidade.

Ainda no primeiro número de 1994, a Revista trouxe um texto importante do


professor Ernesto Lima Gonçalves, também da FMUSP, intitulado: “Situações Novas e
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Novos Desafios para a Bioética”, em que ele apresenta discussão sobre temas emergentes
nos estudos bioéticos. Para o autor, os rápidos avanços tecnológicos e a potencialização da
capacidade de intervir no corpo humano haviam tornado premente a necessidade de
normatização da Bioética no Brasil. O autor sugeriu a criação de um Código de Conduta
Bioética, a exemplo do que já havia ocorrido em países como a Inglaterra, Suécia,
Alemanha e Estados Unidos, que incorporasse a legislação de 1992 sobre transplantes e os
impasses colocados pelo surgimento de novas biotecnologias. Esse texto marca o início de
uma nova fase da Revista, agora mais engajada politicamente, em que se notará um esforço
em prol da incorporação dos princípios bioéticos nas políticas de saúde brasileiras e sua
normatização através de códigos de conduta e legislações específicas. Os temas
diversificam-se, passando a Revista a tratar dos desafios impostos pela introdução de novas
biotecnologias no Brasil. O discurso biocatastrofista vai sendo paulatinamente incorporado.
Os referenciais do Principialismo continuam sendo naturalizados, não havendo a
confrontação com outras correntes, nem mesmo uma reflexão sobre a adoção desses
princípios.

III A Revista Bioética e a proposta de normatização da Bioética no Brasil: o relato


da experiência portuguesa e a opção pelo referencial anglo-americano

Em 1995, A Revista Bioética trouxe um simpósio com o nome de “Pesquisas


envolvendo seres humanos”. Na realidade, os artigos estavam orientados para a formação
de Comitês de Ética, tendo como referencial a institucionalização da Bioética fora do
Brasil. Dois artigos são bastante elucidativos: “As Comissões de Ética Hospitalares e a
Institucionalização da Bioética em Portugal”, da professora de filosofia da Universidade de
Açores, Maria do Céu Patrão Neves, e “Comitês de Ética em Pesquisa em Seres Humanos
nos Estados Unidos da América”, de Carlos A. Von Muhlen, da Faculdade de Medicina da
PUC-RS, cuja formação acadêmica inclui pós-doutorado na Califórnia. Esses artigos, de
orientações distintas, apontam dois possíveis encaminhamentos para a Bioética: de um
lado, o viés português, que, de acordo com Neves, rejeita o Principialismo e procura
construir uma Bioética nacional, amparada no modelo francês, de orientação social e

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ambientalista. De outro, o modelo norte-americano, que foca nas instituições como


asseguradoras do respeito à autonomia e às garantias individuais.

Segundo Neves, a institucionalização da Bioética deveria ser prioritária em todos os


países, na medida em que somente a criação de espaços comunitários de discussão poderia
dar conta dos problemas específicos que a introdução de novas biotecnologias causa em
cada comunidade. Em outras palavras, fazia-se imperioso criar comitês de Bioética,
cátedras de Bioética nas universidades, cursos de pós-graduação, legislações que tratassem
de tais problemas, levando em consideração seus desdobramentos no contexto específico do
país em questão, a exemplo do que vinha sendo feito em Portugal desde o início da década
de 90.

Este despertar de uma nova consciência de exigência ética e de natureza


humanista foi-se expandindo progressivamente, com particular implantação nos
países tecnologicamente mais desenvolvidos, como são os da Europa Ocidental.
Aqui também ganhou uma diferente expressão, mercê de uma diversidade de
identidades de ordem histórico-cultural, econômico-social e religiosa que se
fazem sentir em relação aos Estados Unidos e também entre os países europeus.
Ora, é importante que as idiossincrasias de um povo, de uma sociedade, sejam
como tal consideradas, para que os problemas, em larga medida comuns, que as
biotecnologias impõem, encontrem uma solução adaptada à realidade a que se
aplicam. (NEVES, 1995)

Segundo a autora, a Bioética portuguesa desde o início desenvolveu-se em sintonia


com o modelo francês, que vinha influenciando não só Portugal, mas todos os países da
Europa mediterrânea. A Bioética principialista, de origem anglo-americana, não era
difundida em Portugal como no Brasil, sendo os quatro princípios praticamente ignorados.
Além disso, a linguagem de direitos e deveres quase não era utilizada. Ainda de acordo
com a autora, a Bioética dos países da Europa continental era mais voltada para questões
sociais, para os macro-problemas, em contraposição à tendência individualista e normativa
da teoria dos princípios.

Desta sorte, para além dos problemas éticos levantados pela genética e
pela necessidade agravada da distribuição dos escassos recursos existentes que
serão os grandes temas do futuro da Bioética, independentemente das fronteiras,
há outros que alcançarão maior relevância na Europa e, assim, em Portugal
também. São eles: questões relativas à população, sobretudo o seu
envelhecimento nos países ocidentais, em contraposição à explosão demográfica
em países subdesenvolvidos, e questões ecológicas, principalmente a urgente

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cooperação internacional para defesa do habitat humano e da biodiversidade (na


recuperação do sentido mais amplo atribuído por Potter 6 à "Bioética"). (NEVES,
1995)

Não há, entretanto, no artigo sobre a experiência portuguesa, qualquer tentativa de


aproximação com o caso brasileiro. A autora, ao relatar o processo de institucionalização da
Bioética em Portugal, apenas procura demarcar os limites que separam a Bioética anglo-
americana da européia continental, numa flagrante rejeição ao Principialismo. De qualquer
forma, é interessante notar que, pela primeira vez, a Revista trouxe um artigo com uma
perspectiva diferente da adotada até então, com a reprodução acrítica dos quatro princípios,
especialmente da autonomia.

Na outra ponta, o professor Von Muhlen apresentou um modelo para a


institucionalização da Bioética no Brasil de clara orientação principialista, predizendo o que
aconteceria, no ano seguinte, com a publicação da Resolução 196 do Conselho Nacional de
Saúde. Pela primeira vez, ficou evidenciada a referência ao Principialismo na Revista,
sobretudo ao princípio da autonomia individual, da autodeterminação. Segundo o autor, a
base dos instrumentos legais constituídos nos Estados Unidos é o consentimento
informado. Em respeito a ele, além da fiscalização que os comitês de ética realizam sobre
as pesquisas, as revistas especializadas procuram tomar conhecimento e se recusam a
publicar artigos que partam de pesquisas realizadas em desacordo com os referenciais da
Bioética principialista. É nesse modelo que o Brasil deveria pautar a sua Bioética, seja na
atuação dos comitês, seja nas legislações ou nas universidades. A proposta de Von Muhlen
para a institucionalização da Bioética no Brasil consistia na articulação de uma rede de ação
e informação que incluísse as instâncias governamentais, acadêmicas, midiáticas e sociais,
a favor do amplo controle sobre a atuação de médicos e cientistas, da produção acadêmica
relacionada à Bioética e da formação ética dos profissionais de saúde embasada no
Principialismo.

6
A autora faz referência à acepção original do termo bioética, cunhado pelo médico norte-americano Van
Ressenlaer Potter, em 1971 na obra: “Bioethics: bridge to the future”. Para ele, a bioética era uma “ciência da
sobrevivência” e deveria ser um instrumento de preservação das condições de vida no planeta. Suas
preocupações eram, em grande medida, relacionadas aos problemas ecológicos.

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Ainda voltada para a normatização da Bioética no Brasil, a Revista Bioética trouxe,


no número 2 de 1995, uma coletânea com as principais diretrizes nacionais e internacionais
concernentes à pesquisa em seres humanos: as Diretrizes Éticas Internacionais –
CIOMS/OMS e a resolução nº 01 de 1988, do Conselho Nacional de Saúde. Os objetivos:
esclarecer os profissionais de saúde sobre as normas para a realização de pesquisas
envolvendo seres humanos no Brasil (funcionando como uma espécie de manual) e chamar
a atenção para a ineficiência da resolução, que não contemplava diversos pontos já na pauta
de discussão dos organismos internacionais.

No número seguinte, um novo artigo da professora Maria do Céu Patrão Neves, “A


Fundamentação Antropológica da Bioética”, dava prosseguimento à discussão sobre as
diferentes orientações da Bioética estadunidense e da européia. No artigo, que começa com
um relato autobiográfico sobre a experiência da autora na Georgetown University, em
Washington, e seu primeiro contato com o Principialismo, ela revela ceticismo imediato em
relação à doutrina dos princípios, criticando seu caráter instrumental. Segundo a autora, o
que marca as diferenças entre as duas vertentes (anglo-americana e européia continental) é
a tradição filosófica: na Europa continental, de caráter mais humanista e personalista,
focada na dimensão social do homem e no sentido de justiça; na anglo-América, um

panorama filosófico (...) claramente dominado pelo pragmatismo, que se


desenvolve como corolário do empirismo de Francis Bacon, do utilitarismo de
Jeremy Bentham e John Stuart Mill, e que posteriormente avançará para o
positivismo lógico. (NEVES, 1996)

Essas diferentes orientações seriam evidenciadas na maneira como os bioeticistas


atuam nas duas sociedades: nos Estados Unidos, estão presentes cotidianamente nas
instituições de saúde, participando das decisões e assegurando que a prática médica esteja
em acordo com os princípios bioéticos predominantes naquele país; na Europa continental,
esta figura é, quando muito, substituída pela de um consultor.

Embora os textos da filósofa portuguesa Maria do Céu Patrão Neves tenham


indicado uma outra possibilidade de normatização da Bioética, o que se notou, de maneira
geral, na Revista, foi uma ampla adesão dos bioeticistas brasileiros ao Principialismo. De
fato, não houve esforços no sentido de propor uma outra alternativa para a Bioética no

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Brasil. O relato da experiência portuguesa não foi vinculado a um apelo ao passado colonial
brasileiro; não se tentou apresentar o modelo português como uma alternativa viável ao
Brasil, buscando na nossa filiação européia um tipo de vínculo que justificasse a
incorporação da Bioética de orientação francesa.

De qualquer maneira, a crítica à ênfase demasiada que o Principialismo dava à


autonomia tornou-se mais freqüente. Embora a Revista não tenha, àquela época, trazido
artigos que apresentassem essas críticas, propondo vias alternativas para a Bioética
brasileira e latino-americana, um texto do teólogo Hubert Lepargneur intitulado “Força e
Fraqueza dos Princípios da Bioética” trouxe uma resposta a essas críticas, propondo a
análise dos princípios à luz da teoria de São Tomás de Aquino: a sobreposição de um
princípio a outro de acordo com a situação, com vistas à garantia do melhor para o grupo e
para os indivíduos. Em defesa do Principialismo, ele recusa a idéia de que a Bioética anglo-
americana é essencialmente individualista, cabendo à América Latina dar um enfoque mais
social a ela. Para o autor, o social está representado na doutrina pelo princípio da justiça,
especialmente se se utilizar o termo equivalente: eqüidade 7. O autor rejeita a idéia de uma
Bioética adaptada à realidade brasileira ou latino-americana e defende a Bioética e os
direitos humanos na sua universalidade: ambas buscam “o essencial, a dignidade da pessoa
humana”. Defende a valorização da autonomia com base no argumento de que ela é uma
reação às “experimentações iníquas dos nazistas, que trataram seres humanos como gado
destinado ao matadouro ou como ratos em laboratórios”. Além disso, ele crê que o
desenvolvimento crescente das biotecnologias pode acarretar a desumanização do homem,
sendo a afirmação da autonomia uma maneira de atenuar esse processo. A autonomia seria
uma maneira de situar o cidadão como co-responsável nesse desenvolvimento tecnológico,
na medida em que ele seria capaz de decidir o tipo de intervenção a ser feita no seu corpo.
Apesar de sair em defesa da autonomia e de um “individualismo consciente” como
forma de garantir o bem social, o autor chama a atenção para a intencionalidade que está
por trás da prioridade dada, nos Estados Unidos, ao poder decisório do paciente. Ela é
resultado da presença constante de advogados nos corredores dos hospitais e nos velórios,

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O termo equidade refere-se a tratar os diferentes na sua diferença, ou seja, conceder a cada indivíduo um
tratamento condizente com as suas necessidades.

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ávidos por novos clientes que tenham sido vítimas de erro médico. Nos Estados Unidos,
são duras as responsabilidades civis e penais que pesam sobre os profissionais de saúde
nesses casos. A autonomia do paciente, exercitada na escolha do procedimento terapêutico
a que será submetido, isenta ou, pelo menos, minimiza a responsabilidade dos médicos.
Dessa maneira, o autor explica, pelo menos parcialmente, a supervalorização da autonomia
naquele país.

As idéias apresentadas pelo teólogo tinham um objetivo importante: reafirmar a


validade da teoria dos princípios para o contexto brasileiro e latino-americano. Embora,
como já foi dito, a Revista não tenha trazido essas críticas, o autor de antemão já negou que
a América Latina, aí incluído o Brasil, se voltasse mais para questões amplas, de dimensão
social e não individual, como os Estados Unidos. Ele buscou reafirmar que a flexibilidade
do modelo teórico principialista seria capaz de dar conta dos problemas bioéticos que
desafiavam a sociedade brasileira em meados da década de 90. Era na sobreposição de um
princípio sobre o outro, de acordo com as circunstâncias, e na valorização da autonomia
como forma de evitar a desumanização do homem, que Lepargneur defendia sua
incorporação nas políticas de saúde brasileiras. Para ele, não cabia uma discussão sobre a
tradução do Principialismo à moda latino-americana. O caráter instrumental da teoria dos
princípios, por si só, já favorecia sua transplantação no Brasil, na hispano-América, em
qualquer lugar.

Esse aquecimento do debate sobre a regulamentação dos comitês de ética biomédica


no Brasil culminou com a publicação, em 10 de outubro de 1996, da Resolução 196, que
traçava as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no
Brasil e que foi objeto de um suplemento da Revista número 2, de 1996, do Conselho
Federal de Medicina. Como já foi dito, a resolução incorporou explicitamente os quatro
princípios, tomando-os como inerentes à Bioética em si. Essa opção pelo Principialismo, no
entanto, não encerrou as propostas de vias alternativas para a Bioética latino-americana e
brasileira; ao contrário, tornou esse debate mais fecundo e mais acalorado. Se, nas
instâncias governamentais, ocorreu a opção nítida pelo Principialismo, na chamada

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“burguesia acadêmica” foi dada a largada para uma série de discussões sobre a necessidade
de descolonizar o saber bioético no Brasil.

IV. Bioética e gerenciamento dos conflitos sociais no Brasil: a questão da eqüidade

O primeiro número de 1997 da Revista Bioética deixou clara uma nova orientação
no discurso da Revista. Desde o tema escolhido até os artigos selecionados, tudo indicava
uma proposta de reflexão sobre a conjuntura brasileira, sobre os aspectos sociais da saúde
pública, em uma tentativa de análise que ultrapassasse os aspectos instrumentais do
Principialismo. Intitulado "A Ética da Alocação de Recursos em Saúde", o número trouxe
artigos que discutiam os limites que separam a realidade brasileira, no que se refere à saúde
pública, da dos países de centro. Para os autores, a escassez de recursos da saúde era
realidade em todos os países, em virtude do aumento da expectativa de vida humana e os
conseqüentes déficits nos sistemas previdenciários e assistenciais, do alto custo das novas
biotecnologias que, ao mesmo tempo em que ampliavam o leque de possibilidades de cura,
aumentavam também os gastos do Estado com as despesas na área da saúde.
Diferentemente dos países de centro, o Brasil ainda enfrentava outros problemas,
decorrentes da falta de acesso de milhões de pessoas a condições mínimas de saneamento,
que acarretavam, dentre outras, a proliferação de doenças como dengue, malária, Chagas,
esquistossomose e febre amarela. A conclusão a que esses bioeticistas chegaram é de que a
escassez de recursos para a saúde é geral, embora mais grave nos países periféricos. Se, nos
países de centro, cabe às instâncias governamentais priorizar alguns pontos em detrimento
de outros na hora de distribuir os recursos para a saúde, aqui,

a discussão sobre prioridades começa a adquirir conotações éticas


crescentemente dramáticas. É responsabilidade do Estado e das
instituições públicas individualizar soluções morais com as quais se possa
enfrentar a escassez, soluções estas que não comportam nem a
discriminação injusta nem a tirania de minorias. Dentro do contexto
brasileiro, individualizar soluções morais ou priorizar recursos públicos
deve significar atenção preferencial à maioria populacional necessitada.
(GARRAFA, V., OSELKA, G., DINIZ, D., 1997)

Garrafa (et al.) chegou a reconhecer que as críticas à corrente principialista, já


freqüentes àquela época, eram oportunas e indicou a ética da responsabilidade de Hans

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Jonas como uma importante ferramenta para se tratar as questões de saúde pública no
Brasil. Para ele, pensar as responsabilidades dos governantes e dos profissionais de saúde
vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) era o primeiro passo para garantir um
atendimento mais justo à população, sobretudo à população mais pobre. Fez crítica à ênfase
demasiada que os Estados Unidos dão à autonomia, ponderando que a sobreposição desse
princípio sobre os demais pode acarretar um excessivo individualismo, que provoque a
ausência de políticas públicas moralmente justas e que efetivamente visem ao bem comum.
Para o professor José Eduardo Siqueira, no artigo “A Evolução Científica e Tecnológica, o
Aumento dos Custos em Saúde e a Questão da Universalidade do Acesso”, a sociedade
moderna é marcada por priorizar a

auto-realização e a felicidade pessoal, independente do compromisso com a vida


familiar ou comunitária. A prevalecer essa tendência, mergulharemos no escuro
poço do cultivo ao hedonismo e todos morreremos afogados. Equivocam-se os
que vêem nos vínculos sociais uma ameaça à autonomia da pessoa. A figura do
"Eu isolado", sem vínculos com a comunidade que o cerca, gerou o que alguns
sociólogos denominam de "Eu saturado". (SIQUEIRA, 1997)

Esses bioeticistas acreditavam que era hora da Bioética brasileira adquirir uma
postura mais engajada, que buscasse contemplar as questões que diferenciavam o caso
brasileiro dos países de centro, especialmente dos Estados Unidos. Para eles, porém, não se
tratava de questionar os aspectos doutrinários do Principialismo e foi dentro desse
referencial que encontraram uma proposta para a resolução dos dilemas que envolviam a
alocação de recursos da saúde no Brasil: o conceito de justiça ou eqüidade. Justificaram a
importância do conceito de eqüidade vinculando-o aos movimentos de emancipação
feminina e igualdade racial. Segundo Siqueira, esses movimentos teriam sido os pioneiros
na adoção do termo como bandeira de luta. Também a Bioética brasileira deveria adotá-lo,
uma vez que, como eles, apresentava-se agora, de acordo com o autor, como uma voz de
reivindicação de autonomia e reconhecimento frente aos ditames do mundo globalizado.
Em outras palavras, a justificativa para a utilização do termo eqüidade é aproximar a
Bioética nacional dos movimentos identitários que floresceram da supressão do específico
(PARGA, 1992). A Bioética de cunho nacionalista que se propunha deveria partir, portanto,
de uma síntese do Principialismo que desse conta da realidade social do país, com vistas à
instituição de uma realidade social mais justa, marcada pelo respeito aos direitos humanos e

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à cidadania. A igualdade almejada seria o conseqüente desdobramento do atendimento


particularizado, de acordo com a necessidade de cada grupo. Ressalte-se que não se trata de
um atendimento individualizado, mas de uma proposta política de distribuição de recursos
que priorize as necessidades dos grupos menos favorecidos.

Autores como Garrafa (et al.) e Siqueira defendiam, portanto, a tradução do


Principialismo à realidade brasileira, criticando sua adoção nos moldes estadunidenses, com
enfoque no princípio da autonomia. Esse esforço está vinculado às críticas de que a
Bioética nacional estava se fundando num modelo incapaz de atender às necessidades do
país. Após a publicação da Resolução 196 do CNS e da Legislação de Transplantes, os
bioeticistas demonstravam preocupação com o caráter instrumental e exclusivamente
institucional que, a exemplo dos Estados Unidos, a Bioética brasileira estava tomando.
Esboçaram, então, propostas para tornar a Bioética mais intervencionista, exercitada
cotidianamente pelos profissionais de saúde. O foco, contudo, ainda eram as intâncias
governamentais. Caberia ao Estado brasileiro garantir a justa e equitativa distribuição de
recursos para a saúde. O Estado era tomado como “depositário e intérprete dos valores
universais” da doutrina principialista (MARTINS, 2004). Para o Estado-nação brasileiro
convergia, portanto, a expectativa de uma Bioética de cunho nacionalista, amparada no
modelo anglo-americano, capaz de responder às críticas de que a Bioética brasileira estava
se moldando em princípios universais, que não correspondiam à conjuntura nacional.
Construir uma Bioética nacional, baseada no princípio da eqüidade, representava, naquele
contexto, um esforço de descolonização do saber bioético brasileiro.

No mesmo número, a Revista trouxe um artigo de Rejane Maria de Freitas Xavier,


doutora em filosofia pela USP, intitulado “Por uma Ética do Gerenciamento dos Conflitos”,
em que ela aponta para a crise de sentidos da pós-modernidade, para a dificuldade de
identificação com as macro-instituições e para a crise de referencial ético decorrente da
desconfiança em relação às “grandes narrativas”, desde as religiosas até o mito da razão
ocidental. Em uma crítica às já efervescentes discussões sobre identidades, a autora afirma
que elas estão vinculadas a um exacerbado individualismo. O indivíduo flutua entre
diversos segmentos, grupos e “tribos” que nunca o absorvem de forma total ou definitiva.

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Entre esses grupos, segundo Xavier, não há comunicação ou diálogo, porque os interesses,
a linguagem, os códigos, tudo é incompatível. É nesse contexto, para a autora, que a ética
ou a Bioética havia se tornado uma “linguagem de surdos”, onde o discurso universalista é
rejeitado porque se tornou uma afronta às reivindicações de autonomia das micro-
identidades. O desafio para a Bioética seria construir uma comunidade marcada pelo
respeito à diferença e ao conflito, onde o consenso e o equilíbrio possíveis provoquem
satisfação e contentamento, em detrimento da perseguição ao bem e à verdade supremos.
Nessa comunidade ideal, o Estado atuaria como mediador, garantindo a todos o acesso à
saúde e o respeito à cidadania.

O pensamento de Xavier não diverge dos demais autores contemporâneos a ela que
escreveram para a Revista: procura-se defender o Principialismo na sua flexibilidade,
apontando o conceito de eqüidade como o meio para se garantir a justiça social e indicar
caminhos para a resolução dos problemas persistentes legados pelo nosso passado colonial.,
Essa autora inaugura, porém, uma nova fase da Revista, já que foi ela a primeira a utilizar
um termo que será recorrente na publicação a partir daquele momento: o conceito de
cidadania, que será tomado como o meio para se atingir o bem-comum, como o caminho
para a satisfação dos interesses individuais e a garantia da promoção de justiça social.

Em uma clara rejeição à discussão sobre identidades, que passa a ser vinculada ao
individualismo e à ausência de laços sociais sólidos, a Revista apresenta no discurso
nacionalista uma possibilidade de particularização do universalismo da teoria dos
princípios. Ressalta a importância de se pensar o caso brasileiro a partir da desigualdade de
tratamento e acesso à saúde, tomadas como reminiscências do passado colonial. Incorpora,
todavia, o Principialismo na sua universalidade, encontrando na maleabilidade desse
instrumento teórico a justificativa para sua incorporação nas políticas de saúde brasileiras.
A cidadania, alcançada a partir de práticas que visem à justiça social, será a base do
discurso humanista adotado a partir desse momento. Ela será o ponto de partida para se
pensar as questões relacionadas à saúde no Brasil

V. A Revista Bioética em defesa da cidadania: a proposta de uma bioética


nacional baseada na eqüidade principialista e na ética da responsabilidade
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Em 1998, a Revista Bioética retomou o tema autonomia, agora com um número


especialmente dedicado a ela. Os títulos dos artigos sugeriam uma relativização do
princípio, com estudos de casos em que ele ficava comprometido pela incapacidade do
indivíduo em questão de exercitá-lo. Mas isso é apenas uma impressão inicial. Nos textos, a
Revista retomava o discurso inicialmente adotado: uma postura Bioética perpassava pelo
respeito à autonomia. “A Autonomia Difícil”, “É Possível a Autonomia do Sentenciado no
Sistema Penitenciário?”, “Doença Mental e Autonomia”, “O Estigma da Loucura e a Perda
de Autonomia” e “A Ética Médica e o Respeito às Crenças Religiosas” são alguns dos
títulos de artigos contidos nesse número da Revista. No interior deles, um retorno ao
discurso de que a autonomia era um princípio essencial nas relações médico-paciente, nas
políticas de saúde e inclusive no tratamento de pessoas cuja liberdade havia sido ceifada
por decisão do Estado ou das famílias. Presidiários e doentes mentais, confinados em
penitenciárias e instituições psiquiátricas, deveriam ter sua autonomia respeitada e ser
consultados sobre o tipo de tratamento médico a que poderiam ser submetidos. O
consentimento informado deveria ser garantido, como forma de evitar que autonomia e
liberdade fossem confundidas. A restrição à liberdade não significava que o indivíduo
deveria ser sujeitado a qualquer forma de tratamento. Os bioeticistas alertavam para o fato
de que, ao terem seus corpos controlados, poderiam tornar-se objeto de experimentações ou
alvo de tratamentos cujos efeitos seriam indesejáveis por esses indivíduos. Em outras
palavras, conferir a essas pessoas um tratamento justo era respeitar a sua autonomia,
indispensável à sua condição de cidadã. Fique claro, no entanto, que a promoção da
cidadania não pode, nesses casos, se efetivar plenamente. A condição de cidadão, que
juridicamente pressupõe direito ao voto e a ser votado, não se efetiva.

No primeiro número de 1999, Garrafa trouxe um artigo em que a questão da


cidadania foi claramente colocada: “Reflexões Bioéticas Sobre Ciência, Saúde e
Cidadania”. O autor propôs a distinção entre dois tipos de Bioética para pensar o caso dos
países periféricos: bioética das questões persistentes e bioética das questões emergentes.
Por questões persistentes, entenda-se a exclusão social, o racismo, a discriminação contra a
mulher, a eutanásia, o aborto. Por bioética das situações emergentes, as fecundações
assistidas, as doações e transplantes de órgãos e tecidos, o engenheiramento genético de

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animais e da própria espécie humana. Para Garrafa, os países periféricos como o Brasil
deveriam ter políticas de saúde que contemplassem não só as questões emergentes, trazidas
pelo desenvolvimento de novas biotecnologias, como as questões persistentes, que
continuavam mantendo milhões de pessoas à margem do desenvolvimento científico e
tecnológico. Essas questões colocavam os seres humanos nas “fronteiras da cidadania e dos
direitos humanos” e deveriam, portanto, ser alvo de políticas públicas que garantissem o
controle estatal sobre essas práticas, a fim de que fosse atingida a justiça social no país.

O autor alertava, contudo, que a discussão não deveria se restringir ao plano da


política e dos princípios, estendendo-se a uma reavaliação dos valores sociais e das práticas
cotidianas, norteada pelo senso de tolerância, pluralidade, responsabilidade e justiça. Na
verdade, a perspectiva intervencionista de Garrafa que se delineava desde 1998 e que se
tornou evidente nos anos 2000, partia da constatação de que somente as políticas estatais e
a distribuição equitativa de recursos para a saúde não seria capaz de dar conta dos
problemas que envolviam a saúde pública no Brasil. Para tanto, ele se aproximou da ética
da responsabilidade de Hans Jonas e apontou nessa outra vertente, também de origem
anglo-americana, uma alternativa para se pensar a atuação dos profissionais da saúde com
vistas à melhoria do atendimento prestado à população.

Embora Garrafa tenha atentado para a pluralidade de valores que marca os nossos
dias, dificultando a padronização de princípios éticos que garantam o bem-estar da
coletividade, ele reafirmou a importância de um pacto coletivo que visasse à garantia da
cidadania a todos e à justa distribuição de recursos para a saúde. Em 2000, quando a
Revista trouxe um simpósio sobre os desafios da Bioética no século XXI, Garrafa (et al.)
retomou o tema da eqüidade e da responsabilidade, ponderando que o controle social sobre
as questões que envolviam a saúde no Brasil era uma meta democrática. Seu enunciado nos
remete ao pensamento do professor Estevão Martins, segundo o qual a nação democrática
funda sua legitimidade sobre a igualdade política abstrata que o conceito de cidadania
representa (MARTINS, 2004). Segundo Garrafa (et al.), era no pluralismo participativo que
a Bioética brasileira deveria se orientar, de forma que todas as pessoas se engajassem em
uma postura responsável em prol de uma saúde pública mais justa. Além disso, chamou-se

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a atenção para os danos que o progresso científico e tecnológico poderiam causar à


humanidade, submetendo “o cidadão a novas formas de escravidão e exclusão social”.

Na linha da atuação pluriparticipativa, Almeida e Valle (pesquisadores da Fundação


Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro) sugeriram, no artigo intitulado “Biossegurança no Ano
2010: o futuro em nossas mãos?”, a criação de uma Comissão Nacional de Bioética, onde
diversos segmentos da sociedade estivessem representados. O objetivo dessa comissão seria
levar à população as discussões que até então estavam quase inteiramente restritas às
universidades, além de tornar público o conhecimento que estava confinado nas empresas
privadas. Os autores utilizaram como referência as experiências de França e Inglaterra. A
proposta de criação de uma “comissão nacional” (embora não tenha sido esclarecido se esta
deveria ser ou não uma iniciativa estatal), indica a permanência da proposta de integração
de diversos grupos em torno de um elemento comum: a nação. As especificidades desses
grupos, que, aliás, não são caracterizados pelos autores, deverão ser anuladas em torno do
ideal de uma Bioética de cunho nacional, para a qual todos os interesses seriam
convergentes.

Ainda na linha nacionalista, Dirceu Greco, professor titular do Departamento de


Clínica Médica da UFMG, em “Ética, saúde e pobreza”, ressalta que uma ordem
internacional harmoniosa, assim como o desejado pelos primeiros bioeticistas, só seria
atingida a partir da resolução dos problemas internos que afetavam o Brasil. A partir do
conceito principialista de eqüidade, o autor propõe a mudança do “paradigma de
valorização monetária” pelo “paradigma da valorização do ser humano”. A partir dessa
mudança interna, o Brasil poderia se “impor como nação”, “contrapondo-se aos valores
neoliberais da ordem econômica atual”. É interessante notar como o autor distingue a
universalização de princípios econômicos da universalização de princípios morais. Não
ocorreu a ele que a Bioética, aqui especificamente a doutrina principialista, fosse uma
permutação de sentido da dinâmica imperial. Obscurecida por uma estratégia de inocência
(PRATT, 1994), essa doutrina há quase dez anos era a base do pensamento relacionado à
saúde e à vida no Brasil.

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Em 2002, no simpósio intitulado “Humanização no atendimento à saúde” e em


2005, quando artigos especiais versaram sobre a responsabilidade dos médicos, ficou claro
novamente que a Revista estava imbuída do discurso da responsabilidade para pensar a
saúde pública brasileira. A ética da responsabilidade, que vinha sendo defendida por alguns
bioeticistas desde 1998, porém, não se opunha necessariamente ao Principialismo. Ao
contrário, na maior parte das vezes, eles estavam imbricados: a responsabilidade deveria
nortear práticas autônomas que visassem à garantia de justiça social. O que não foi
explicitado, nas reflexões apresentadas, é se esses bioeticistas tinham claro que o princípio
da responsabilidade estava diretamente vinculado a uma Bioética normatizada, estatizada.
Responsabilidade implica responder por algo em alguma instância. De qualquer maneira, a
Bioética de cunho nacional que se propôs estava sempre atrelada ao controle estatal sobre
as práticas médicas, às pesquisas na área de biotecnologia e à alocação de recursos para a
saúde.

Nessa última fase, o que Revista propôs foi um pacto social em que diversos
segmentos da sociedade voltassem seus esforços para a garantia de uma saúde pautada em
princípios bioéticos. Os referenciais do Principialismo continuavam norteando as reflexões,
traduzidos para tentar atender às demandas sociais brasileiras. A princípio da justiça,
contudo, aparece agora atrelado à ética da responsabilidade, com o objetivo, ao mesmo
tempo, de reforçar o compromisso ético dos profissionais de saúde e garantir que eles
estejam cônscios de que deverão responder por sua conduta nas instâncias governamentais.
A autonomia não é rechaçada, como ocorreu na terceira fase da revista: ela é vista como
uma maneira de garantir a cidadania e o respeito à pessoa humana. A cidadania aparece,
portanto, como um ligamento entre as persistentes tensões entre o particular, o específico, e
os “elementos abstratos (ou abstraídos), de cunho genérico, abrangente, universal,
atribuídos habitualmente à humanidade em si e ao homem em geral” (MARTINS, 2004, P.
27). Esse princípio funciona como “categoria supra-histórica”, que tem como objetivo
garantir a continuidade de valores universais que são generalizados e atribuídos à natureza
humana e que deverão ser organizados em “matrizes nacionais” e operacionalizados em
“instituições estatais” (MARTINS, 2004, P. 27).

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VI. Considerações Finais

O presente artigo é resultado da análise dos textos publicados pela Revista Bioética,
do Conselho Federal de Medicina, entre os anos de 1993 e 2005. Procurou-se organizar os
textos de referência em ordem cronológica, com o objetivo de visualizar as mudanças no
tratamento dado ao Principialismo a partir das críticas que esse instrumental sofreu em
virtude do seu caráter universalista. As quatro fases em que eles foram, didaticamente, aqui
divididos, naturalmente não refletem a totalidade do que foi publicado na Revista, mas sim,
sua orientação geral. Os textos selecionados e aqui referenciados estão em acordo com o
objetivo do trabalho: optou-se por aqueles que apresentassem alguma reflexão sobre a
adoção do Principialismo como referencial para a institucionalização da Bioética no Brasil.
Não foram mencionadas as vozes isoladas de orientação feminista, que se fundamentaram
no conceito de vulnerabilidade para defender uma Bioética em que se pensasse a
medicalização do corpo feminino e as novas tecnologias de reprodução. Também se optou
por omitir o volume 11, de 2003, em foi apresentado um projeto de cooperação
internacional entre Brasil e Portugal, aproximados pelo vínculo histórico do colonialismo,
onde se propôs discutir semelhanças e diferenças da institucionalização da Bioética nos
dois países. Mais do que preocupado com uma discussão sobre a questão identitária, o
projeto nos parece vinculado ao impulso pessoal dos pesquisadores e seus respectivos
interesses acadêmicos. Isso seria tema para um outro artigo.

Coube aqui perceber a maneira como o Principialismo foi incorporado no Brasil;


como esses profissionais da saúde vinculados a universidades brasileiras aderiram à
corrente e se converteram em instrumentos de pressão política em prol da normatização da
Bioética de acordo como modelo estadunidense. Como, em resposta às críticas de que o
Principialismo parte de uma moral universalista, optou-se pelo distanciamento em relação
às discussões sobre identidades, que foram vinculadas ao individualismo e à ausência de
laços sociais sólidos. Mesmo quando a Revista se esforça no sentido de descolonizar o
saber bioético no Brasil, esse esforço é feito a partir dos pressupostos do próprio
Principialismo. É no conceito de justiça ou equidade que esses profissionais encontraram a
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saída para defender suas incorporação nas políticas de saúde brasileiras. O Principialismo
não deixa de ser o modelo teórico de referência em nenhum momento, mesmo quando os
bioeticistas brasileiros se voltam para uma “intencionalidade prática utilitarista”,
objetivando pensar os serviços da saúde pública no Brasil. Essa corrente bioética é aqui
entendida como um conjunto de valores humanos e sociais que, a exemplo do sucesso
econômico da empreitada norte-americana, está sendo “fornecido como modelo às nações
ocidentais e imitado por elas” (SANTIAGO, 2006). Eles se apresentam como valores
inquestionáveis, justos e adequados ao progresso geral da humanidade, espalhando-se por
todo o mundo ocidental e sendo incorporados não só ao senso comum, mas ao próprio
discurso acadêmico.

No quarto momento da Revista Bioética, em que se busca uma nova orientação


teórica, a ética da responsabilidade é conjugada ao Principialismo, com o objetivo de
ampliar uma discussão que antes se fazia somente nas universidades e tinha como foco
unicamente as políticas estatais. O que se espera, nessa última fase da Revista, é uma ampla
adesão à discussão sobre Bioética, que agregue toda a sociedade em torno desses
princípios, eliminando as particularidades e as especificidades, com vistas à instituição de
uma Bioética nacional. A resposta dada ao universalismo do Principialismo é uma outra
categoria tão ampla, abrangente e opressora da diferença como a teoria dos princípios: a
cidadania. Ela será um meio de atenuar as essencialmente conflituosas relações entre os
interesses individuais e os da coletividade, através dos conceitos de autonomia e justiça.
Será em torno dessa categoria que o Estado brasileiro deverá atuar como gestor de uma
moral universal e dar conta dos problemas que envolvem a saúde pública no Brasil. É isso
que conferirá a ele legitimidade como Estado democrático moderno (MARTINS, 2004).

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O ASSUJEITAMENTO DO SER: A ANÁLISE DO DISCURSO DE JOHN F. KENNEDY


E OS NORTE-AMERICANOS NOS ANOS 60

Acadêmica Nayara Cristina Carneiro de Araújo


Graduanda em História (PIVIC)
Universidade Federal de Goiás (UFG)
anayaracristina@gmail.com

A análise de Discurso é uma prática que muitos colocam entre a lingüística e a


comunicação. O objetivo básico desse trabalho é discutir a construção de qualquer
forma de linguagem concretizada, considerando que a linguagem possui o papel nuclear
de força constitutiva do homem, funcionando como uma ponte para a identificação dos
traços sociais do sujeito que discursa e daquele que recepta tal discurso. Pois, é do outro
que o sujeito recebe a mensagem que ele emite (LACAN, 1966).
O discurso na metodologia em questão torna-se algo plural, não solitário. A
elaboração mental daquilo que está sendo exposto é influenciada pela subjetividade do
sujeito – o que ele interiorizou da sociedade -, pela sua formação social, tentando obter
coesão entre o que se diz e o contexto no qual a fala se concretiza. Se antes o que era
dito era somente a palavra de Deus, onde a voz do homem funcionava como um
prolongamento, um instrumento divino; o alfabeto grego, com a introdução das vogais,
fez com que o texto passasse a ser identificado com a voz do próprio homem que fala,
que lê, dando a palavra ao sujeito: a relação das coisas da linguagem com as coisas do
mundo, uma relação imediata, quase sensível que estabelece uma identidade
necessária, sempre, cada dia, reapresentada (HERRENSCHMIDT, 1995; P.102).
Este sujeito é formado por inúmeros focos, que é plural em si, uma verdadeira
luta de vozes. A linguagem enquanto discurso é interação, constituída por fatores sócio-
historicos e, assim, não pode ser estudada fora da sociedade, do seu contexto de
exposição e articulação. Tem-se, a partir de então, a idéia do discurso como transmissor
de ideologia.
Mas o que faz a ideologia? Ela unifica as classes sociais, as divergências,
permitindo uma identificação social: uma mesma língua, uma nação; e dissimula as
desigualdades sociais, as lutas de poder/dominação, apropriando-se da aparência do
real, dando às pessoas a impressão de autonomia, de liberdade. No limite o que a
ideologia faz é oferecer a imagem ilusória do Estado originado do contrato social entre
homens livres e iguais (GREGOLIN, 2005).

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Esse conceito estaria enraizado em tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo
original, como acende a teoria marxista. Numa noção mais ampla, é uma concepção
geral que é direcionada pelas relações pessoais e sociais de uma determinada
comunidade em uma dita circunstância histórica. O discurso torna-se transmissor de
ideologia por ser a materialidade ideológica, a sua concretização. Tem-se, assim, uma
consciência falsificada.
Ela sai de si, retorna a si, se precipita, é travada, some, emerge, luta,
se exprime, progride, afirma, nega, sofre, morre, crê, sabe, ignora, se
divide, se reconhece, nos arrasta numa sarabanda desenfreada,
freqüentemente inquieta e de repente apaziguada, se erguendo contra a
evidência e cedendo à força das coisas, conhecendo a boa e a má fé, a
prisão e o despertar da liberdade, se elevando enfim à sua verdadeira
estatura, à atitude forte e modesta deste saber absoluto que conhece
conceitualmente o mundo sem nada acrescentar-lhe e estabelece uma
exigente identidade entre o que é dado e o que é compreendido
(JARCZYK, LABARRIÈRE, 1993; p.22).

É nesses discursos que vemos o real amordaçado pela imagem afundada na


ideologia, pois aquele que discursa pode confundir a interpretação do receptor e, dessa
forma, antevendo o imaginário do receptor, fundar estratégias de discurso e, então, de
controle.
Para Antonio Gramsci, a supremacia de um grupo social manifesta-se de duas
maneiras, como dominação e como direção intelectual e moral, transcendendo o limite
do interesse econômico provendo o povo com liderança moral e intelectual. Este caráter
dominador e direcionador definem o que se entende por hegemonia: uma unidade em
que o poder é baseado na dominação e racionalizado por uma ideologia que incorporo
consenso entre grupos dominantes e dominados, forjando a ausência de poderes rivais
(KEOHANE, 1984).
O discurso torna-se a arena da luta de vozes, da luta de ideologias e, sem
chegar ao extremo, da luta de classes – pois aquele que discursa tem a capacidade de
permanecer no poder através do assujeitamento do seu próprio discurso, fazendo com
que o receptor insira-se neste contexto, seja sujeito desse discurso. Tem-se, portanto,
que realização de um aparelho hegemônico enquanto cria um novo terreno ideológico,
determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um facto de
conhecimento, um facto filosófico. (GRAMSCI, 1979, p.52).
Dessa forma, com o receptor entendendo-se como sujeito do discurso que o
acolhe, ele o aceita e até mesmo luta para que ele prevaleça sobre os demais discursos.

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O sujeito passa a ser a complementação do outro, uma completa interação. Nessa


interação é que o sujeito do discurso domina o outro, fazendo-o crer que estão unidos
contra um outro sujeito.
Os indivíduos, assim, são influenciados pelo discurso do outro, formam suas
subjetividades através deste discurso e até mesmo aprendem no discurso do outro a sua
própria ideologia. Dessa forma, Lacan destaca a linguagem como fundamental na
constituição do homem, onde o discurso do outro é ponto de partida para as relações
humanas.
Num enunciado isolado é possível detectar mais de uma voz. Para Bakhtin, o
dialogismo passa a ser uma condição constitutiva do sentido. Toda fala e todo discurso
está em um contexto de diálogo – o interdiscurso. O discurso deve ser contextualizado,
pois os elementos que o constituem são elementos relacionados em redes sociais.
O dialogismo defende que todo o sentido é relativo na medida em que
ocorre apenas como resultado da relação entre dois corpos ocupando
um espaço simultâneo, mas diferente; sendo que corpos aqui podem
ser entendidos como recobrindo um leque que vai da imediatez dos
nossos corpos físicos até aos corpos políticos e aos corpos de idéias
em geral (HOLQUIST, 1990; p.20).
A linguagem faz-se dessa maneira uma forma de prática social, onde as
palavras não devem ser meramente classificadas e interpretadas em seus significados
singulares – devem sim ser consideradas as variações presentes no contexto. Ela não se
esgota ou se reduz a uma forma totalmente fechada em significações fixas,
estabelecidas.
O sentido de um discurso sempre fica em aberto. O sentido dá-se na recepção,
na leitura. Quando escrevemos algo, transmitimos coisas inconscientemente. Essas
coisas podem ser percebidas conscientemente pelos receptores, independentemente das
intenções do autor. Assim, para Michel Foulcault (2000), de uma maneira ou de outra,
as coisas ditas dizem muito mais do que elas próprias (...). Um mesmo conjunto de
palavras pode dar lugar a vários sentidos, e a várias construções possíveis.
Podemos, a partir de então, focalizar o discurso de John Fitzgerald Kennedy,
presidente dos Estados Unidos da América em 20 de janeiro de 1961, e localizar os
traços sociais dos anos sessenta.
Nós observamos hoje não a vitória do partido, mas a celebração da liberdade
– simbolizando um final, bem como um começo – significando renovação, bem como
mudança. De fato os Estados Unidos da América é marcado por forte otimismo nos

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primeiros anos de 1960. Esperanças no jovem presidente, que chamava uma nova nação
contra a pobreza, a discriminação e males sociais presentes nesta conjectura.
Certamente, era esse o discurso que os norte-americanos queriam ouvir e, mais
do que isso, compartilhar. Kennedy fez-se a voz do discurso norte-americano, fazendo
com que a população confiasse que estavam juntos neste discurso, nesta luta pela
liberdade. Depois da turbulência dos anos 50, da agonia e do desespero pela paz, o
jovem presidente, com seu discurso de paz e de crescimento harmônico, dominou com
palavras a sociedade dos EUA.
O contexto contribui para esse domínio presidencial: o governo de Kennedy
ainda teve a nomeação de negros para cargos públicos como renovação e mudança,
afinal, em 1955 a Suprema Corte dos EUA já tinha determinado o fim da segregação
racial. Entre os servidores públicos, diz-se que os negros eram menos corruptos que os
demais, demonstrando honra e dignidade perante a sua valorização dentro da sociedade.
Além disso, o presidente lançou ementas que proibia a discriminação racial em projetos
habitacionais financiados pelo governo federal. A população norte-americana, junto ao
presidente, deixava assim de ser objeto para ser sujeito da história.
O mundo está diferente. O homem detém em suas mãos o poder de
eliminar todas as formas de pobreza humana e todas as formas de
vida. E ainda as mesmas convicções revolucionárias dos nossos pais,
que lutaram, ainda estão em causa em todo o mundo – a crença de que
os direitos do homem estão não na generosidade do Estado, mas do
lado de Deus.

O mundo realmente estava diferente. Nos anos 60 o mundo viu a rebeldia dos
jovens, inconformados não apenas em uma crise de adolescentes, mas por motivos
sociais, humanos; e viu ainda a sociedade industrial avançando, com toda sua força
destrutiva, expulsando princípios, rompendo relações e homogeneizando a sociedade.
Walter Benjamin (1992) é precursor da idéia de que o progresso tecno-
científico e industrial é portador de catástrofes sem precedentes. Assim, declara um
pessimismo vivo em todos os caminhos. Desacredita-se num futuro que nunca chega,
numa liberdade nunca alcançada. A técnica associada às reflexões políticas torna o
campo recheado de fascínio e, dessa forma, constroem-se os discursos fundamentais,
que dão à massa, aparentemente homogênea, uma identidade fixa – fornecida então pelo
Estado. Idéia de "manipulação de massas" irracionais.
Discursos não só tocam o âmbito teórico fechado, mas atingem um publico
também variado – um projeto moderno que nos apresenta desafios até hoje. O nazismo,

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para Adorno, é fruto do mundo tecnológico. Os nazistas se portavam como


"consciências", pessoas tecnológicas. Isso significa que os nazistas não tinham ligação
com o mundo sensível; pessoas incapazes de amar suficientemente. O que permanece
nelas são somente coisas materiais. A ordem social para um ser de fato humano só é
possível se os impulsos não fossem reprimidos, fazendo com o que o indivíduo não
fosse cativo.
Finalmente, para aquelas nações que decidiram tornarem-se nossas
adversárias, nós oferecemos não um compromisso, mas um pedido:
que ambos os lados começam novamente a busca pela paz, antes que
os negros poderes da destruição, desenvolvidos pela ciência engolfem
toda a humanidade numa autodestruição planejada ou acidental (...)
Que ambos os lados se unam para ouvir em todos os quadrantes da
terra, as palavras de Isaías: Removei as pesadas cargas... deixai os
oprimidos serem livres.

Assim, o discurso de Kennedy foi construído em diálogo com o discurso do


seu receptor, o norte-americano que o elegeu, carregado de valores morais e as crenças
pessoais que se estenderam pelo país, tornando-o natural. John Fitzgerald Kennedy é o
primeiro presidente católico do país.
A relação de identidade do discurso do presidente com a identidade do
discurso dos cidadãos mostra o que Pêcheux (1983) analisa sobre os protagonistas do
discurso que tem não a presença física, mas a representação de lugares determinados na
estrutura de uma formação social. O emissor antecipa as representações do receptor e,
de acordo com essa antevisão do imaginário, que é colocado depois como real, funda
estratégias de discurso. Como destaca Gouveia (2004), a busca da plenitude apenas no
pensamento invalida a ação prática e concorre para a autoliquidação do sujeito.
Materializar através do discurso a uma população católica que os direitos humanos são
divinos faz do sujeito uma voz totalizante, de autoridade e verdade.
Na Conferência de Genebra (1954), resolveu-se que o Vietnã seria dividido em
duas áreas, mas que depois, em julho do mesmo ano, seriam unificadas por eleições
livres e supervisionadas internacionalmente. De forma direta, votar-se-ia no ponto de
vista do norte ou do sul. Mas nem todos foram de acordo. A divisão realmente
aconteceu, mas a unificação tornou-se uma grande disputa de poderes. Afinal, se
fizessem um levantamento da opinião pública, os comunistas venceriam com alta
porcentagem de diferença. O maior medo era de que ocorre um "efeito dominó" e outras
regiões se sentissem fascinadas pelos encantos comunistas. O norte tinha o apoio da

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China e da União Soviética e o sul, dos Estados Unidos da América. Assim, o Vietnã
tornou-se foco durante a Guerra Fria.
Àquelas pessoas nos casebres e vilas por todo o globo, lutando para
romper com as cadeias da miséria em massa, nós comprometemos os
nossos melhores esforços para ajudá-los a se ajudarem, por qualquer
tempo que seja requerido - não porque os comunistas possam estar
fazendo isto, não porque estejamos em busca de seus votos, mas
porque é justo. Se uma sociedade livre não pode ajudar os muitos que
são pobres, ela não pode salvar os poucos que são ricos.

A Guerra do Vietnã durou entre 1958 e 1975. O envolvimento dos EUA deu-
se baseado num ataque norte-vietnamita aos navios norte-americanos, que patrulhavam
o Golfo de Tonkin, em 1964. No entanto, os soldados estadunidenses sofreram grandes
perdas e se encontravam perdidos em um território desconhecido e amplo, enquanto
seus adversários, os vietcongs, conheciam a região assim como conheciam a palma da
própria mão.
Apesar do discurso promissor de Kennedy sobre os Estados Unidos da
América de que desde que este país foi fundado, cada geração de americanos foi
convocada para dar testemunho de sua lealdade à nação, a população não queria mais
perder amigos e parentes nesta guerra. Enquanto a China e a União Soviética ajudavam
com armas e alimentos, os norte-americanos lutavam com vidas. Como resposta surgiu
o movimento anti-guerra e contracultura. Os estadunidenses queriam que o país se
retirasse daquela guerra o mais rápido possível, e de forma honrosa.
Em 1963, num desfile em Dallas, no Texas, John Kennedy é assassinado. Mas
este não seria o fim, pois deixa em vida um dos pensamentos mais importantes na
ideologia norte-americana:
Eu não creio que nenhum de nós aceitaria trocar de lugar com
qualquer outro povo, ou com qualquer outra geração. Por isso meus
irmãos americanos não perguntem o que o seu país pode fazer por
vocês. Perguntem o que vocês podem fazer pelo seu país. Meus
irmãos do mundo: não pergunte o que a América fará por vocês, mas o
que juntos podemos fazer pela liberdade do homem.

Século XXI, norte-americanos ainda clamam por Kennedy, dando-lhe


qualidades como o melhor presidente de todos os tempos ou até mesmo o pai dos
negros norte-americanos. A razão de isso acontecer, apesar de tal presidente ter
aumentado a presença norte-americana na Guerra do Vietnã, fazendo com que milhares
de jovens morressem em uma guerra injusta entre comunistas e capitalistas, em
contradição com o que convocou em sua posse, referindo-se ao adversário, que ambos

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os lados procurem invocar as maravilhas da ciência, ao invés de seus terrores, está na


sua dominação sob a população através de seus discursos de progresso para com a
sociedade.
Como Kant coloca em sua obra Crítica da Razão Pura, os seres humanos não
podem saber da essência das coisas em si, mas saber das coisas segundo nossos
esquemas mentais nos permite apreender a experiência.
Se a verdade é historicamente construída, podemos agora falar também que a
verdade é uma construção discursiva. Nada mais justo colocar que a imagem tomada
como natural é uma miragem produzida pelo discurso. São sobre essa realidade
falseadora que os políticos adquirem os seus poderes sob a população. Eles criam essa
imagem falsa, essa ideologia que esconde o real, e enganam centenas de pessoas. São
verdades construídas por políticos oportunistas. O discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta,
é o poder do qual nós queremos apoderar (FOUCAULT, 1999; p.10).
O poder, assim, conquistado através do discurso, produz uma verdade antes de
falseá-la, de mascará-la na ideologia. Produz, como uma miragem, uma verdade antes
de forçar o seu molde através da violência.
Podemos então partir para uma questão direta: "como é possível que a classe
operária pense e aja contra os seus próprios interesses?" (ROUANET, 1989, p. 70).
Ou seja, por que ela age favoravelmente ao sistema que a oprime (ROUANET, 1989).
Entende-se, a priori, que as vontades da sociedade vão de acordo com as vontades da
ideologia dominante, fazendo com que os sujeitos se tornem sujeitos cativos.
Essa reconciliação de interesses é falsa. Decreta-se definitivamente a sentença
de morte do sujeito (ADORNO, 1992). Pois se declara um “personagem” alheio ao seu
destino e à sua situação. Conforme determina Bakhtin (1990), um personagem que não
consegue se situar no seu tempo, criando uma linha divisória entre o homem aparente e
o homem interno. Esses conflitos têm como fruto o sujeito cativo de Theodor Adorno
(RAMOS, 1999). Esse sujeito cativo interioriza a cultura externa, inibindo suas
vontades e seu verdadeiro ser. Eis o desencantamento do mundo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Tr.


Aurora Fornoni Bernardini et allii. São Paulo: UNESP\HUCITEC, 1990.

BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. In:


Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política. Lisboa: Antropos, 1992.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX. In: Dois ensaios frankfurtianos.
João Pessoa: Idéia, 2004, p. 19.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 3 ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1979

GREGOLIN, Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e


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HERRENSCHMIDT, Clarisse. O Todo, o Enigma e a Ilusão. In: Cultura, Pensamento e


Escrita. São Paulo: Editora Ática, 1995.

HOLQUIST, Michael. Bakhtin and his world: dialogism. New York: Routledge, 1990.

JARCZYK, G. e LABARRIÈRE, P. J. Présentation. In: Phénoménologie de l’Esprit par


G.W.F. Hegel. Paris: Gallimard, 1993.

KEOHANE, Robert O. After hegemony: Cooperation and discord in the world


political economy. Princeton: Princeton University Press, 1984.

LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du desir dans l´inconscient freudien. In:


Écrits. Paris: Seuil, 1966.

PÊCHEUX, M. O Discurso - estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Orlandi.


Campinas: Pontes, 1983.

RAMOS, Conrado. Elementos para uma psicologia do sujeito cativo. Revista


de Psicologia USP. Vol. 10, n.2. São Paulo, 1999.

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Artigos
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ASPECTOS DO BRAMANISMO:
REFORMULAÇÕES E HERANÇAS DO PERÍODO VÉDICO

Acadêmica Iasminy de Paula Berquó


Graduanda em História
Universidade Federal de Goiás (UFG)
iasminy_pb@yahoo.com.br

A sabedoria ortodoxa hindu surgiu da antiga religião ária dos Vedas, escrituras
sagradas que prescrevem rituais, princípios e condutas que devem atuar cotidianamente na
vida do homem. Portanto, determinada concepção religiosa, conhecida como Bramanismo,
constitui as suas bases preliminares no Período Védico compreendido entre os anos de 1500
à 500 aC. A partir do contato estabelecido entre arianos e drávidas, novos valores são
acoplados e resignificados, permitindo assim o estabelecendo da época védica referida.
A religião ária possui como característica marcante, o aspecto patriarcal,
responsável pelas práticas religiosas e formação da sociedade de modo particular. Desta
forma, a vida guerreira baseada em constantes conquistas, possui como referência uma
religião na qual as divindades se apresentam através de uma masculinidade poderosa e
invencível. Em contrapartida, os povos que residiam na Índia anteriormente à chegada dos
arianos, cultuavam o aspecto feminino como suprema inspiração espiritual. Logo, o contato
entre as duas culturas possibilitou uma nova adequação e organização dos princípios de
adoração e relação com o transcendental.
Assim, a concepção védica nascida da mescla ariana-dravídica, pormenoriza
explicações acerca do universo, das ilusões do mundo material, dos rituais, dentre outros
fatores que se relacionam com o sagrado e a auto-realização espiritual. O termo dualismo,
também se impõe com constância na sabedoria védica como um conceito refutado, o qual
discerne as entidades provenientes da suprema divindade e outras cuja origem não comunga
com este aspecto sagrado. Portanto, de acordo com os Vedas, o mundo é não-dual, pelo fato
de o Supremo e suas criações serem os mesmos, provêm de uma mesma essência.
Deste modo, o universo se apresenta como uma manifestação do não-dual, uma vez
que o supremo criador possui em si a consciência completa e a clareza das formas ilusórias
que instituem a idéia dual da vida. Paratanto, o princípio fundamental da sabedoria védica é

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a constante busca do equilíbrio, do uno, em meio à multiplicidade de nomes e formas.


Assim, as representações concretas e abstratas, como também as inquietações possuídas
pelo homem sobre si mesmo, eram projetadas no universo, estabelecendo-o a partir de
visões específicas.
Os antigos místicos, os quais estabeleciam a relação última com o espiritual e
traziam a verdade absoluta para os devotos, traduziram as suas visões e sabedorias em
hinos e preces secretas, que foram repassadas, oralmente, por gerações de famílias
ritualistas, compondo um patrimônio exclusivo da casta brâmane. ( Raveri, 2005: 27).
Assim, as concepções anteriormente descritas, foram guardadas e praticadas pelos
brâmanes, pelo fato de possuírem o privilégio da casta. Determinada característica da
preservação dos preceitos, é bastante presente na cultura indiana, principalmente entre os
sábios, neste caso a prática é realizado por meio do parampara, ou seja, a sucessão
discipular.
Os hinos evocam o poder do som sagrado, remetendo ao som originário que contêm
em si a energia suprema e a realização espiritual secreta.Portanto, essa herança visualizada
no Bramanismo, é aprimorada como uma prática religiosa purificadora e um caminho de
elevação da mente para além das “armadilhas” do mundo material.
Porém, não é somente devida prática que demonstra as influências sofridas pela
sabedoria ortodoxa hindu, advindas do Período Védico. A concepção de um cosmos aberto,
que participa da comunicação com os deuses e da sacralidade do mundo, também é uma
característica marcante do vedismo no Bramanismo. Assim, o homem religioso sente a
necessidade de viver neste mundo “aberto”, situando-se em um “centro” que permita a
comunicação com os deuses. A habitação de determinado homem é o microcosmos, como
também o seu corpo, permitindo a correspondência entre corpo-casa-cosmos (Eliade,2001:
141). Em específico contexto, o corpo de assemelha a um altar védico, no qual se constitui
como um verdadeiro templo guardião da alma, em sua mais pura identidade sagrada. Logo,
um microcosmos repleto de conflitos, apresentados pelos sentidos e a mente, assim como a
fonte da sabedoria completa presente no Eu, a atma (alma espiritual).
Deste modo, a relação do Eu não se estabelece de uma forma externa, mas é através
do microcosmo presente no corpo que se permite a ligação com o Supremo. A partir da
consciência de si é que se reconhece o macrocosmo em sua amplitude. Isso permite
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perceber que a sabedoria se volta para o interior, como um local do saber preliminar do
todo, a alma então é aquela entidade plena de conhecimento, mas imersa em um mundo de
contaminações e ilusões.
O Bramanismo, com o passar do tempo, modifica determinadas condutas para a
realização da sabedoria, adquirindo particularidades maiores. Como exemplo marcante,
tem-se a ascensão do “caminho do conhecimento” (jnanamarga), em detrimento do
“caminho da atividade ritualística” (karmanarga). O problema dos detalhes rituais foram
desaparecendo, cedendo lugar à investigação especulativa, onde a identidade secreta das
faculdades e potências do corpo e os poderes do mundo externo, formaram o foco dos
novos estudos (Zimmer, 2005: 249).
Assim, objetivando compreender os saberes provindos da esfera espiritual, inicia-se
um estudo mais focado nas configurações externas e internas ao corpo, que abarcam o
sentido espiritual da existência. Desencadeando então, em uma série de denominações para
os efeitos do mundo, para melhor compreende-lo em sua amplitude. Todavia, o infinito é
posto a parte de qualquer definição, uma vez que ultrapassa os limites de qualquer
conceituação. O universo da espiritualidade completa, em sua profundidade e lógica
próprias, não se faz explicável através dos métodos materiais. A esfera do tangível e do
conceitual é que são passíveis de explicação, sendo aceitas como reflexos e não a realidade
em si. É por isso, que as palavras são tidas como limitadas, pois abrangem somente o
universo material, são insuficientes para esclarecer, na sua completude, a experiência
espiritual. Desta maneira, tanto as entidades vivas (jivas) quanto a natureza material
(prakrti), são manifestações de uma instância superior, altamente abstrata e intangível.
A tradição védica ariana, também se perpetuou no Bramanismo ortodoxo de
períodos posteriores, através da concepção não-dualista da vida. Este pensamento defende
que tanto a realidade Suprema, quanto as suas manifestações mundanas, em essência, são as
mesmas. Conforme a fórmula bramânica, o Universo é uma manifestação de um princípio
transcendente, e por isso não-dual (Zimmer, 2005: 247). Assim, o Bramanismo mesmo em
sua forma inicial, na Antiga Idade Védica, e as suas organizações posteriores, permanece
com o objetivo de encontrar a unidade em um mundo repleto de nomes, representações e
ilusões. Entendendo aqui, a representação como uma resignificação da vida, em suas
dimensões visível e invisível, a partir de abordagens específicas baseadas nas concepções
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de cada seguimento. Deste modo, a representação não é vista positivamente, mas sim como
um mecanismo que permite a transfiguração da realidade em si, realizada por diversos
motivos, como: busca de explicações para a compreensão do mundo, comprovação e
justificação daquilo que se segue e acredita, dentre outros. Assim, a representação e a
manifestação dos aspectos ilusórios, caminham juntos na produção da ignorância da mente
e entorpecimento dos sentidos.
Determinadas ilusões, que afastam a jiva do seu caráter divino, é referida
como Maya. Se constitui, como uma faculdade dos deuses e demônios que dirigem o
mundo, na qual produz contextos diversos responsáveis pela confusão da consciência e dos
valores que proporcionam a auto-realização da alma. Na sabedoria indiana, a
personificação de sentimentos e conceitos como: conhecimento, ilusão, música, dentre
outros, é uma característica comum. Desta maneira, encontram-se em forma de deuses e
deusas, como Sarasvati que corporifica a sabedoria, Ganesha deus da música e das artes ,
são vários os exemplos. Maya em seu aspecto corpóreo mitológico, é explicada como sendo
uma semideusa criada por Vishnu, deus mantenedor do universo material e criador dos
planetas celestiais, com a função de servi-lo tanto no mundo terreno quanto nos planetas
celestiais, através da promoção de acontecimentos ilusórios. Na instância material, a
atuação de Maya visa corresponder aos anseios individuais, dispondo cada indivíduo em
realidades virtuais, onde experimentarão diferentes aspectos daquilo que desejaram,
juntamente com os sofrimentos intrínsecos a cada situação. Enquanto que no mundo
espiritual, a sua função é proporcionar diferentes situações, nas quais a alma e o Supremo
vivenciem momentos repletos de harmonia, cooperação e amor. Desta maneira, Maya
apresenta dois aspectos funcionais principais: o esquecimento da relação entre a alma e o
Supremo, devido à vivência de fantasias próprias do indivíduo, como também a constante
lembrança do Eu para com sua realidade espiritual. Neste segundo aspecto, Maya exerce a
função de auxílio, no sentido de ajudar a alma na manutenção de relações eternas com o Ser
Absoluto.
Desta forma, a investigação bramânica almeja à liberação das máscaras ilusórias
produzidas por Maya, como também seus consecutivos sofrimentos. Assim, a solução para
os desvios da mente e as misérias da vida, se encontra na identificação do eu interior com a
substância eterna, ou seja, através da sabedoria a verdadeira identidade do Eu permite a
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relação com a Suprema divindade. Possibilitando então, a unicidade em um mundo repleto


de mutações diversas.
Pode-se averiguar portanto, o fato de a santidade e o constante contato com o
sagrado, serem partes de extrema relevância na vida cotidiana de um brâmane. Além de
compor todo o Antigo Período Védico a partir do ano de 1500 aC, como um fator para a
construção dos valores e princípios presentes na sociedade. Na idade védica referida, para a
transcendência da mente o caminho da devoção (bhaktimarga) realizado com referência em
uma dedicação sincera aos deuses, aos cultos e aos ritos, era o meio para se alcançar o
objetivo. Nos séculos posteriores, o Bramanismo busca seguir um caminho concentrado no
interior para alcançar a meta grandiosa da bem-aventurança eterna.
O Bramanismo configurado como a sabedoria ortodoxa hindu, trouxe uma nova
significação para a relação do Eu com o Supremo. Desta maneira, o sagrado se constitui a
partir de uma referência interna, da atma. Anteriormente apegado aos aspectos externos,
dos eventos da natureza, dos rituais repletos de detalhes, passa-se a considerar o interior
como a fonte de conhecimento amplo da vida espiritual. Assim, se faz necessário destacar
que específica mudança nos procedimentos, não diz respeito a uma fortificação do
indivíduo, uma vez que o mesmo é caracterizado, na sabedoria indiana, como limitado. A
lei do karma, que sustenta eternamente o ciclo de nascimentos e mortes, designa a
existência individual como participante da sucessão de vidas, e por isso possui um papel
restrito. Portanto, a consciência do indivíduo se encontra imersa na natureza temporal, por
isso restringida às inconsistências desta. É a alma que deve ser apreendida em sua
completude, pois ela transcende, através da sabedoria, o universo material e
conseqüentemente as obrigações do karma.
A contínua busca pela sabedoria plena, tem como ponto de partida e inspiração, o
Eu interior e não o indivíduo transitório preso na esfera de deveres e prazeres mundanos.
Desta forma, a mudança nos valores se explicita na mudança de um universo exterior e os
limites tangíveis do mundo, para um universo interior e intangível. Exige-se do discípulo
então, severas disciplinas psicológicas do Yoga, que possibilitem disciplinar o corpo e a
mente para a apreensão do conhecimento.
O conhecimento daquele que se tornará sábio, se efetua mediante a duas técnicas: a
rejeição total do mundo material e a compreensão da absoluta materialidade do mundo.
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Caracterizando deste modo, um estilo de vida renunciado dos bens materiais fúteis e
voltado para o cotidiano monástico, aspirando à “vida simples e o pensamento elevado”.
Desta forma, a sabedoria como modo de vida, prevê a existência de um mestre
instrutor e um discípulo aprendiz. Os pré-requisitos básicos do discípulo, abrangem dois
princípios: a obediência (susrusa) e a fé absoluta (sradda). Após um longo período de
estudos e aprendizagens, o discípulo vai adquirindo o posto de um estudante competente
(adhikarin), desejando a liberação (mumuksutva) verdadeiramente. Logo, a sabedoria
fortificada no íntimo do adhikarin, desenvolve neste a indiferença para com os gozos da
ação tanto aqui quanto no além. A constante concentração da mente e o controle das
faculdades de percepção (audição, tato, visão, paladar e olfato) e das faculdades de ação
(fala, apreensão, locomoção, evacuação e procriação), prepara o discípulo para o caminho
da auto-realização e bem-aventurança espirituais. Assim, uma série de etapas se configuram
na vida do discípulo para que sejam ultrapassadas com muito rigor e firmeza no objetivo
espiritual.
O Bramanismo conquistou muito respeito e poder na Antiga Idade Védica, como
também nos anos posteriores. Devido à sabedoria adquirida pelos brâmanes, estabeleceu-se
então privilégios de casta que vão perdurar por muito tempo. Pode-se constatar assim, que a
sabedoria se institui como um instrumento de poder, uma vez que conhecer permite a
elevação para além dos sofrimentos e ilusões materiais. A maioria das pessoas, se
encontravam presas a determinados infortúnios da vida, por isso aquele que através da
sabedoria conseguia se desprender destes dilemas, eram altamente respeitados e elevados,
em muitos casos, à posição de divindade.
Os brâmanes durante os períodos dos grandes impérios Mauria, Gupta, dentre
outros, desempenharam a função de conselheiros do rei, sendo suas palavras, muitas vezes,
as últimas para qualquer decisão importante. Assim, o Bramanismo sempre se integrou à
sistemas poderosos na sociedade indiana, assumindo uma posição de exclusividade, da qual
somente os capacitados participavam. Posteriormente, determinado seguimento se atêm
mais aos templos, onde servem em período integral e instruem os que necessitam de
ensinamentos ou para os que querem seguir este caminho da espiritualidade.
Desta forma, o Bramanismo como uma sabedoria de grande influência na história da
Antiga Índia, apresenta configurações particulares nos diversos séculos decorrentes, sendo
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várias as características e conexões que no presente trabalho não foram analisadas.


Portanto, as formas do pensamento bramânico concentrados em uma disciplina rígida diária
e na leitura repetida dos Vedas se perpetuou como um referencial para a vivência cotidiana
e espiritual. A mitologia indiana possui vários exemplos quanto ao domínio e o profundo
saber detido pelos brâmanes, mostrando o quanto se fizeram influentes na construção da
cultura indiana e na sua sabedoria milenar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZIMMER, Heinrich. Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia, São Paulo: Palas
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Alegre: Movimento, SBEC, 1992, p.15-29.

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THESAURUS PAUPERUM: MAGIA E SEXUALIDADE


NA OBRA MÉDICA DE PEDRO HISPANO (SÉCULO XIII)

Acadêmica Catarina Stacciarini Seraphin


Graduanda em História (PIBIC)
Universidade Federal de Goiás (UFG)
cathystacciarini@hotmail.com

Acadêmica Halynne Alves Goulart


Graduanda em História (PIBIC)
Universidade Federal de Goiás (UFG)

O Thesaurus pauperum (Tesouro dos Pobres), provavelmente composto na Itália,


atribuído a Pedro Hispano, foi escrito para que estudantes pobres de medicina tivessem
acesso facilitado a receitas médicas. Diferente das outras obras do autor, esta atravessa os
séculos, tendo aparecido 81 edições em diferentes línguas - a última publicada no século
XVIII. Isso se explica pelo caráter popular da obra. O grande problema deste documento
histórico é que até hoje não se encontrou o original (escrito provavelmente em latim) e as
edições encontradas foram dantes modificadas.
Pedro Hispano (? 1205-1277) estudou medicina na Universidade de Paris,
lecionou na Studia Generalia, serviu na corte de Afonso III e ocupou o papado de 1276 a
1277, como João XXI. Foi o único físico - physici, especialista da natureza, como se
denominava os médicos universitários na Idade Média [Pouchelle, 2002] – a tornar-se papa
[Santos, 2004], embora fosse comum, nesse período, os mestres universitários chegarem a
ocupar altos cargos eclesiásticos [Le Goff, 1973]. Morreu em 12 de maio de 1277,
fatalmente ferido pelo colapso do teto da biblioteca papal.
O Thesaurus pauperum é um agrupamento de receitas médicas de variados
autores, cujos nomes – como o do grego Discórides e o árabe Avicena – revelam uma forte
influência grego-árabe.

Para curar pústulas da cabeça, [...] coza-se e água raiz de ciclame e com essa água
lava-se a rasca e depois unta-se com azeite no qual se tenha cozido ciclane; cura
eficazmente. Dioscórides (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 84).

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Chifre de veado queimado, até ficar branco, e moído, limpa energicamente os
dentes, restringe as gengivas e acalma a dor. Avicena. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha,
1973:142).

Com o comércio e as conquistas militares entre o Oriente e o Ocidente os


manuscritos grego-árabes foram levados a Europa, sendo os árabes os grandes responsáveis
pela preservação da cultura cientifica clássica. No século XII, várias obras de autoridades
gregas, romanas e árabes foram traduzidas para o latim. Muitos assuntos considerados
controversos, como o aborto, a contracepção, a esterilidade e a virgindade foram
incorporados aos textos médicos devido à influência das obras grego-árabes [Cadden,
1993].
Desta forma, a ciência medieval foi profundamente influenciada pelas culturas
destes povos. Mas, é importante ressaltar que a medicina do século XIII não se constitui
apenas de textos greco-romanos e árabes como também de elementos próprios do período e
da cultura pré-cristã européia que manteve parte de si viva.
Seja pela influência grego-árabe ou por elementos do próprio período e da cultura
pré-cristã européia encontramos fortemente colocado o uso da magia e a representação da
sexualidade no referido tratado médico, tal como em muitos outros textos médicos da
época.
O uso da magia se explica porque, embora os físicos fossem muito mais teóricos
do que práticos, quando os textos científicos não podiam indicar respostas aos problemas
naturais apelavam para um conhecimento “rudimentar”, perpassado por tradições
[Kieckhefer, 1992]. Mesmo os sábios da Antiguidade não foram diferentes, para
“encobertarem as falhas” de suas ciências, associavam-se de praticas mágicas. A exemplo,
a astrologia e alquimia que os islâmicos herdaram destes [Kieckhefer, 1992].
Os físicos do século XIII se diferenciam dos sábios antigos no sentido de não
fugirem de usar o conceito de magia. Consideravam a magia uma ciência, desde que essa
estivesse relacionada ao conhecimento da natureza e distinguisse da chamada magia
diabólica.
Nos primeiros séculos da Idade Média qualquer tipo de magia era considerada
demoníaca pela Igreja e pela maioria dos intelectuais. Com o cristianismo consolidado, no
século XIII assume-se uma distinção entre magia diabólica e magia natural [Kieckhefer,

117
1992]. Todavia a linha que dividiam ambas era muito tênue. Em muitos casos dependia da
legitimação consagrada pela Igreja e pela Coroa [Bethencout, 1987].

[...] suco de prímula dado durante noves dias cura eficazmente. Isto disse o
demônio a certa mulher a quem sujeitava, tomando a forma de um homem. (PEREIRA,
Maria Helena da Rocha, 1973: 108).

O trecho acima retirado do Thesaurus pauperum comprova quão tênue era a linha
que dividia os dois tipos de magia e levanta algumas questões: Qual o poder e o grau de
malefício concedido ao diabo e os semelhantes a ele pela sociedade do período? Qual era a
real tolerância da Igreja Católica para com as práticas mágicas?
No geral, a magia diabólica era o pacto com o demônio para se atingir causas
sobrenaturais. A magia natural era um ramo da ciência, não se distinguindo desta, que se
ocupava das virtudes ocultas.
Quando os homens de saber falavam de magia natural, falavam como algo que
trata dos poderes ocultos da natureza, falavam daquilo que não podiam entender com os
sentidos. Propriedade das plantas, animais ou minerais que não podiam ser explicados por
suas estruturas físicas. O poder seria, então, advindo de uma fonte externa ou baseava-se
em alguma característica simbólica do objeto – magia simpática, ou empatia e antipatia
simbólicas. Juntamente podiam ser citadas preces e bendições ou conjuros. Podia-se,
também, usar amuletos para assegurar a saúde. [Kieckhefer, 1992]
No Thesaurus pauperum:
• Magia simpática ou empatia:

Um pente feito do chifre direito de carneiro, se se pentear a cabeça do lado


direito, tira a dor de cabeça, e igualmente e esquerdo, da esquerda. Cirano. (PEREIRA,
1973: 100)
Escreveu Bernardo..., se o dente doente for tocado com um dente de um homem
morto, sem dúvida ficará liberto... (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 142)

• Magia simpática ou antipatia:

118
Testículos de galo com sangue do mesmo, posto por baixo da cama, proíbem o
coito a quem nela está deitado. Sixto e Octaviano. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha,
1973: 240)

• Encantamentos:

Três ramos de Corriola, apanhados em nome da Santíssima Trindade com a


Oração Dominical e suspensos <do pescoço> dentro de um pano de linho tiram sem dúvida
a mancha. Cirano. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 116)

• Amuletos:

Pendurar Artemísia no limiar da casa faz com que nenhum malefício prejudique
essa casa. Dioscórides. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 238)
Trazer a pedra que se chama íman apazigua por completo a discórdia entre
marido e mulher. (PEREIRA, Maria Helena da Roha, 1973: 236)

Eclesiásticos especialistas da natureza em medicina, no século XIII,


confeccionavam encantamentos cristãos ou cristianizados, entretanto, não hesitavam em
indicar procedimentos terapêuticos heterodoxos, como fez Pedro Hispano [Pouchelle,
2002].
Para Homet (1980), é certo que, em qualquer dos níveis sociais (clérigos ou laicos,
pobre ou rico...), durante toda a Idade Média há um consenso quanto à efetividade das
práticas mágicas independente da valoração que se dê a esses atos.
A astronomia fazia parte das artes liberais ensinadas nas universidades.
Acreditavam no preceito de Aristóteles de que os astros eram fonte externa poderosa e
influenciavam os corpos humanos e o poder de uma planta ou de uma pedra deriva da
emanação vinda das estrelas e planetas. Astrólogos, médicos e filósofos naturalistas
acreditavam que o céu e as estrelas influenciavam os fenômenos terrestres, como o
comportamento sexual humano, porém estes divergiam quanto ao grau de influência
[Lemay, 1982].

119
Desta maneira, a astrologia fazia parte do currículo das universidades e foi mais
estudada na medicina do que qualquer outra faculdade e temos, então, o que podemos
chamar de astromagia [Kieckhefer, 1992].

Contra a opilação e cirrose do baço faz um bem maravilhoso dar a beber raiz de
língua cervina pulverizada, com vinho fino, durante três dias, em quarto minguante. Galeno
no Passionário. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 216).

A pedra do topázio gera a castidade e reprime Vênus. (PEREIRA, Maria Helena


da Rocha, 1973: 242).

Atribuíam propriedades específicas aos materiais utilizados e cuidavam de


escolher os locais qualificados, observar as horas, dias, semanas e épocas do ano
simbolicamente valorizadas, articulando os ritos manuais e orais. Em um misticismo
subjetivo.
Além da magia, a sexualidade também estava presente na obra de Pedro Hispano.
Não obstante as aparentes contradições - ciência e magia - figura comumente no Thesaurus
pauperum indicações médicas para inibir o coito e para conceber, tal como métodos
contraceptivos e abortivos, mesmo diante do predomínio da Igreja, a qual rechaçava o sexo
com qualquer outra finalidade que se não a de gerar filhos.
Existia no período medieval uma preocupação com a castidade. A sexualidade
estava inserida em uma concepção hierárquica de valores, na qual os virgines ocupavam o
nível supremo, sendo um exemplo a ser seguido, os oratores ligados à renúncia ou à
continência possuíam maior autoridade sobre os conjugati [Rossiaud, 2002].
Alguns tópicos relacionados ao comportamento sexual estavam, durante este
período, submetidos aos dogmas da Igreja, principalmente aqueles relacionados à
sexualidade dos casais. A Igreja instruía o casal da melhor maneira de realizar os atos
sexuais. Estes deveriam seguir regras e ritos, na tentativa de moderar a luxúria. As relações
deveriam ser noturnas, sendo necessário evitar a nudez. O excesso de carne e vinho poderia
levar ao desejo carnal e o casal deveria dominar o corpo e reduzir o número de relações.
As mulheres deveriam deixar a iniciativa para os homens. O casal deveria limitar-
se às posições comuns, pois as incomuns eram consideradas perigosas e poderiam gerar

120
concepções monstruosas. O casal deveria ainda respeitar os períodos de abstinência
impostos pela Igreja. Esses períodos eram maneiras naturais de controlar a natalidade
[Rossiaud, 2002].
A tentativa da Igreja em normatizar a sexualidade no interior do casamento,
através da teologia do matrimônio, representa uma tentativa de controle, que na realidade
não se efetivava.
No século XIII, segundo Danielle Jacquart e Claude Thomasset (1989), chegaram
a circular uma coleção de bulas que diziam que evitar gravidez era considerado um pecado
maior do que o adultério, a fornicação e o incesto, porque seria agir contra a natureza.
Todavia, no século XIII, as informações sobre contracepção circulavam
fortemente. Existia neste período uma mentalidade contraceptiva. Dessa maneira, casais
buscavam formas de limitar os nascimentos por meio de práticas contraceptivas. Muitas
mulheres na tentativa de controlar a natalidade recorriam às parteiras, feiticeiras e
prostitutas que eram consideradas entendidas dessas práticas. Entretanto, ao recorrerem a
esses métodos, muitas mulheres eram acusadas de proteger a beleza e a reputação por meio
de conhecimentos secretos.
Na Idade Média não se tinha conhecimento aprofundado acerca das práticas
contraceptivas. Em regiões menos cristianizadas as mulheres representavam um importante
papel (mágico-medicinal) na prática contraceptiva. Apesar de não muito corrente esta
prática estava mais presente entre os citadinos e nas áreas mais afastadas da Igreja
[McLaren, 1997].
A História animalium de Aristóteles e os textos de Rhazés e Avicena, que faziam
parte dos programas das universidades, auxiliaram na incorporação dessas práticas na
sociedade medieval. Informações que estavam intrinsecamente ligadas a pensamentos
analógicos, empirismo e práticas mágicas [Jacquart e Thomasset, 1989].
Muitos casais recorriam a uma variedade de métodos médicos e mágicos para
fomentar as concepções. Existiam poções para excitar ou enfraquecer as paixões, propiciar
a gravidez, impedir o aborto, determinar o sexo da criança. Havia por toda a Europa a
manutenção de ritos de fertilidade pagã tradicionais [McLaren, 1997].

Quando a mulher não quiser conceber, talvez porque tema morrer ou por
qualquer outro razão, coma osso de coração de veado, e não conceberá. [...] testículos de

121
doninha-macho vivo, castrados por uma mulher e envolvidos numa pele de ganso ou noutra,
evitam a concepção. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 258).

Dar mirra, com o feito de uma noz pequena, com vinho quente, imediatamente
expulsa o feto, vivo ou morto. [...] dar leite de cadela com vinho e mel imediatamente liberta
a madre do seu feto. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 274).

Danielle Jacquart e Claude Thomasset (1989) dizem ainda que no ocidente


verifica-se a reafirmação da utilidade do coito para se conservar a saúde e a busca do prazer
como condição para o ato sexual, pela necessidade de favorecer a concepção.

Triturem-se bagas de loureiro e prepare-se uma confecção das mesmas com suco
de satirião; untem-se com isso os rins e as partes genitais; excita poderosamente ao coito.
Experimentador. [...] testículos de veado ou a ponta da cauda da raposa e testículos de touro
excitam a mulher ao prazer. Gilberto. Se untar o pênis com fel de porco varrasco ou javali,
excita a vontade do coito e causa-se deleite na mulher. Gilberto. (PEREIRA, Maria Helena
da Rocha, 1973: 234 e 235).

Para ficar como a de uma virgem, R/ incenso macho, mirra, mastigue, colofónia,
pez negro, bolo armeno, gesso, cinzas de chifre de veado, aristolóquia longa redonda, ana;
faça-se um pó e meta-se dentro. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 263).

Por que uma mulher retomaria a condição de uma virgem se não pelo prazer ou
para omitir fornicação. Isso extravasa o discurso de que o prazer no ato sexual era para
propiciar a concepção.
No Thesaurus pauperum, Pedro Hispano discute também uma doença masculina:
o prurido do pênis, que era bastante comum na Idade Média.

[...] Cinza de abóbora seca cura em breve as úlceras do pênis, mesmo que
estejam putrefactas. [...] untar com suco de língua-de-ovelha, cozido com um pouco de mel,
cura as ulcerações do pênis. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 230).

Não existe, na obra de Pedro Hispano, nenhum capítulo dedicado às doenças


relacionadas à vagina, existe, entretanto, um interesse mais profundo nas doenças
relacionadas aos seios e ao útero. Estes órgãos estão diretamente ligados à concepção.

122
Assim, é possível perceber a preocupação de Pedro Hispano com o corpo feminino e que
esta preocupação está relacionada com a concepção [Rodrigues, 2006].

Se os seios incharem por causa do excesso de leite, cubram-se em primeiro lugar


com argila ou com fava partida e moída e clara de ovo, ou com lentilhas cozida em vinagre;
com a continuação, aplique-se ovo com óleo rosado, pois tira o tumor e toda a dureza dos
seios. [...] um emplastro de mel, cera e excrementos de pombo misturados ao mesmo
tempo, colocado sobre os seios inchados, tira a dor e o tumor e <não> os deixa crescer.
(Pereira, Maria Helena da Rocha, 1973: 250 e 252).

De acordo com Hipócrates o útero poderia se deslocar e simpatizar com as áreas


superiores do corpo, causando uma sensação de desconforto e sufocação. O físico
acreditava que a doença era uma conseqüência desagradável da castidade, causada pela
retenção do esperma feminino.
Dessa maneira, os médicos geralmente recomendavam a masturbação para expelir
os fluídos. As práticas masturbatórias eram realizadas pelas parteiras ou pelas próprias
pacientes [Rodrigues, 2006]. Pedro Hispano, todavia, oferece outras receitas para resolver o
problema da sufocação da madre.

Se a mulher sofre de sufocação da madre, uma aplicação de folhas de urtiga


trituradas acode imediatamente ao desmaio. [...] um supositório ou pressário de hortelã,
calaminta, segurelha, serpão, tudo misturado, e musgo, se houver, castóreo, assafétida e
arruda; encham-se as narinas profundamente. É muito eficaz. (Pereira, Maria Helena da
Rocha, 1973: 254 e 256).

O desejo e o prazer sexual, considerados tão importantes para a concepção, são de


grande interesse para os físicos medievais. Em várias obras médicas do período é possível
observar tal interesse. Desta maneira, existem inúmeras receitas para excitar o coito e
aumentar o desejo sexual, todavia, existem também receitas para apagar as paixões e
impedir as ereções.

Lê-se no livro I de Cirano que, se derem a beber a alguém nove formigas


cozidas com suco de abróteas, em todos os dias da sua vida, não terá potência venérea. [...]
se se beber raiz de nenúfar com água durante trinta dias, extingue-se o desejo. [...] tomar

123
com freqüência nenúfar diminui a corrupção e destrói o desejo do coito, quando se bebe
uma onça dele com xarope de papoilas; congela o sêmen, com a propriedade que existe nele
e na sua raiz (Pereira, Maria Helena da Rocha, 1973: 238 e 242).

O Thesaurus pauperum de Pedro Hispano serve para testemunhar que os


estudiosos da natureza, clérigos ou não, buscavam cuidar das necessidades de sua época.
No século XIII, ao que parece, estavam muito preocupados com questões emergentes como
o prazer e a contracepção, profundamente relacionados à sexualidade. Observa-se uma
negociação cotidiana do homem com o sobrenatural em busca da sua sobrevivência social e
física, misturando signos cristãos e mágicos e conhecimento empírico e sobrenatural.
As diferentes maneiras como a magia e a sexualidade são concebidas e o lugar
que ocupam na sociedade medieval, assim como sua presença no imaginário, na realidade e
no cotidiano auxiliam o historiador na compreensão desta sociedade [Le Goff, 2006].
Desta forma, procuramos desconstruir a idéia de que no medievo todas as coisas
estavam sob o controle da Igreja Católica e que não havia um diálogo acerca da magia e da
sexualidade, neste período. Ao contrário, a autoridade da instituição não pós-fim a crenças
e costumes heterodoxos e ela mesma estava permeada destes. A sexualidade e a magia
faziam parte do cotidiano da sociedade medieval, de suas práticas e representações.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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nigromantes no século XVI. Lisboa: Projeto Universidade Aberta, 1987.
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Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
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A ESCOLÁSTICA MÉDICA MEDIEVAL

Acadêmica Izabela Portes Bittencourt


Graduanda em História (PIBIC)
Universidade Federal de Goiás (UFG)

Introdução

Um historiador começa seu trabalho na maioria das vezes a partir de documentos


escritos em tempos passados. No estudo da Idade Média, documentos foram escritos e hoje
são trabalhados para desvendarmos o que se passou nesta época. Os documentos médicos que
serão trabalhados neste artigo foram escritos, em sua maior parte, nos séculos XIII e XIV por
praticantes desta ciência e por homens eclesiásticos, que detalhavam práticas, experiências e
conhecimentos que mudaram toda a história da medicina nos séculos que se seguiram.
As obras essenciais para o desenvolvimento deste artigo são: Health, Sickness,
Medicine and the Friars in the Thirteenth and Fourteenth Centuries, na qual Ângela
Montford explica a relação entre medicina e religião e também entre médicos e frades;
Women’s Secrets - A Translation of Pseudo-Albertus Magnus De Secretis Mulierum with
Commentaries, em que Helen Lemay trabalha a medicina relacionada às mulheres de acordo
com os tratados escritos pelo médico medieval Pseudo-Albertus; The Renaissance Notion of
Women:A Study in the Fortunes of Scholasticism and Medical Science in European
Intellectual Life, de Ian Maclean que trabalha especialmente a medicina feminina e os tratados
escolásticos médicos do século XVI; por último, Medieval & Early Renaissance Medicine: An
Introduction to Knowledge and Practice, de Nancy Siraisi que trabalha com textos
escolásticos medievais e mostra como aconteceu a evolução da medicina na Idade Média.

A Proximidade entre Religião e Medicina

Durante todo o século XIII as legislações religiosas, civis e universitárias começaram a


regular o controle dos currículos dos estudantes de medicina e a controlar sua admissão para
exercer a profissão. No final deste mesmo século a educação universitária em medicina estava

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começando a ser aceita como parte do treinamento médico para aqueles que aspiravam chegar
ao nível máximo da profissão.
Existia um grande número de médicos práticos se oferecendo nos mercados das
cidades, eles vinham de diferentes locais e tinham diferentes níveis de competência e a partir
daí os frades poderiam escolher quais iriam trabalhar para eles. Alguns dos médicos que
trabalhavam com os frades recebiam o título de “Médico do Convento” (medicus conventu).
Este título poderia ser dado a um frade que era médico ou a um médico visitante vindo de fora
para trabalhar no convento ou mosteiro.
A autora Ângela Montford em seu livro Health, Sickness, Medicine and the Friars in
the Thirteenth and Fourteenth Centuries, mostra que existia uma conexão entre o
comportamento esperado de um médico secular e o esperado de um frade, o médico das
almas, que acabava dando aos dois profissionais uma grande afinidade. Como resultado desta
conexão entre a saúde mental e a espiritual, o vocabulário de ambos profissionais era muito
similar. Tanto os religiosos quanto os médicos eram experientes, discretos, agradáveis,
humildes, acessíveis, generosos, conscientes e devotos. Estes dois grupos tinham que lidar
com a saúde e a salvação tendo em comum padrões éticos de comportamento e prática.
A experiência e a maturidade eram requerimentos essenciais que os frades procuravam
nos médicos que trabalhariam com eles. Além de exigirem provas sobre a educação e a
capacidade, o que mais importava era a maturidade, já que dizia respeito ao fato de que a
sabedoria chega com a idade, o que era uma certeza para os frades monásticos.
Os pacientes tinham o dever e a necessidade de obedecer ao médico, e os mesmo
conseguiram apoio legal da Igreja nesta questão. O Papa Inocêncio III deu sua opinião em
1210 em relação a um caso no qual um monge, agindo como cirurgião, operou uma mulher
que morreu alguns dias após o procedimento. O monge não foi censurado ou sentenciado a
cumprir pena porque a paciente havia ignorado seu conselho médico.
Os regulamentos dos Capítulos Dominicanos indicavam que frades mais idosos
poderiam usar sua experiência médica para validarem doenças e autorizarem os tratamentos
que os frades precisavam e existiam várias ocasiões em que um conselho médico poderia ser
recomendado. Os mais comuns eram: conselhos sobre dietas em geral, a necessidade de
comer carne ou outros alimentos considerados inválidos, a necessidade de banhos terapêuticos
e a prescrição de remédios.
A autora também diz que já existiam evidências de especialidades médicas no século
XIII com o registro de médicos em Bolonha que lidavam com a cura dos olhos (medicus
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oculorum), hérnias (crepatorum) e feridas (plagarum). No Norte da Itália muitos dos médicos
urbanos e cirurgiões eram empregados civis. Esses medici eram contratados para investigarem
mortes suspeitas, tratar de cidadãos pobres e prisioneiros sem receber pagamento enquanto
outros pacientes pagavam por seus tratamentos.
A maioria, mas não todos, dos medici urbanos eram cristãos, mas existem provas de
fontes médicas e civis que alguns conventos empregavam médicos judeus entre seus
conselheiros. Em Avignon em 1374 os Franciscanos empregaram Abraham de Carcassonne,
judeu de renome, como seu conselheiro médico. Na Itália, médicos judeus não eram incomuns
nas áreas de Assisi, Todi, Spello e Perugia. Em Bolonha, a população judia era muito pequena
até o fim do século XIV e não existem registros de médicos judeus ate 1398.
Existia também uma relação especial entre os deveres médicos do boticário e do
farmacêutico e dos cirurgiões e médicos, que não eram diferenciados nesta época. Fora
algumas ocasiões em que certas técnicas terapêuticas eram usadas em situações especiais, não
é fácil estabelecer o que o medici ou o cirurgici faziam quando eram chamados no convento.
Não existem evidências que mostram se eram os médicos que faziam certas ações como
examinar a urina de alguns frades.
O status crescente dos médicos foi assistido por membros treinados e formados na
universidade para assumir a profissão médica. As universidades, como a de Paris e Bolonha,
passaram a incluir os títulos de artium et medicine professore e artis fisice professor e, mais
tarde, começaram a ser utilizados adjetivos como subtilissimus, famossisimus,
excellentissimus e monarcha et totius speculo mundi.
Apesar do envolvimento próximo dos frades com as universidades, os estudantes, os
professores e colegas da ordem médica, poderíamos supor que eles aceitassem as teorias
seculares médicas, fazendo com que seus benefícios fossem apreciados e os médicos
pudessem ocupar um lugar mais proeminente dentro da comunidade médica. A associação
próxima entre os frades e a Universidade de Bolonha poderia fazer com que estes homens
fossem a escolha óbvia para cuidarem de sua assistência médica.
O autor inglês Jeremy Citrome em seu livro The Surgeon in the Medieval English
Literature explora como a sangrenta arte da cirurgia serviu como metáfora para a identidade
cristã medieval, definida pela luta entre condenação e salvação articulada vividamente na
poesia e prosa inglesas medievais.
A cirurgia foi marginalizada durante um longo tempo nas definições clássicas e
escolásticas de medicina sendo colocada como último recurso nas tentativas de cura de males
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diversos. Apesar de sua colocação como recurso final, sendo utilizada apenas depois que
remédios e dietas não obtivessem sucesso, a cirurgia compartilhava de um método utilizado
em outros tratamentos médicos. Este método se baseava no fato de que o corpo humano é
composto de quatro humores: melancolia, sangue, cólera e pus.
Durante a Idade Média pecado e doença estavam profundamente ligados entre si. Por
este motivo à cirurgia progrediu em sua habilidade de curar aflições físicas e se tornou ainda
mais importante como uma metáfora para a busca da cura espiritual.
O autor usa de uma variedade de aproximações críticas para explicar como metáforas
cirúrgicas acabaram tornando uma importante ferramenta de poder eclesiástico após o Quarto
Concílio de Latrão em 1215. Este Concílio assumiu uma importância especial para os
historiadores médicos, já que nele foi decidido pelo Papa Inocêncio III que tanto a medicina
teórica quanto a prática sofreriam mudanças. O cirurgião profissional se tornou uma figura
autônoma e de forte influência na transformação das metáforas espirituais. O Papa Inocêncio
III também colocou em prática a reforma que proibiam os membros do clero de praticarem
algumas atividades médicas. Cirurgia estava entre estas atividades que o Papa identificava
como dissonantes da vocação clerical. Por culpa destas regras impostas por ele, a cirurgia se
tornou uma atividade separada da medicina.
Alguns teólogos cristãos acreditavam que o pecado poderia afetar o corpo diretamente
e, assim, fazer com que o calor vital saísse do coração e fosse para as extremidades do corpo,
proporcionando aflições corporais visíveis ou paralisia. Para garantir que o calor disperso no
corpo aconteceria em uma proporção favorável a saúde, os médicos precisavam ter certeza de
que os fluídos biológicos presentes no corpo (conhecidos também como os quatro humores),
possuíam seus respectivos balanços. Esses balanços eram mantidos através de fatores externos
como dieta, sono e comportamento sexual.
Para um paciente medieval, a doença e seu tratamento subseqüente partiam do Pecado
Original e deveriam ser tratados com a intervenção de Cristo. Mesmo a mais simples das
cirurgias dependia da presença da graça divina. O cirurgião curava as mais variadas doenças
com uma grande quantidade de métodos violentos que incluíam queimar, cortar e aplicar
corrosivos químicos no corpo do doente. Por este motivo ele era responsável por atribuir
penitências não só como metáforas, mas dentro do seu direito como cirurgião. Cirurgiões não
só atendiam os corpos de seus pacientes como também as suas almas. Assim como a cirurgia
poderia significar a cura eterna do corpo através da salvação por meios médicos, ela poderia
também ter um significado extremamente oposto a esse: a fragmentação eterna que
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caracterizava os corpos daqueles cidadãos condenados dentro da tradicional penitência da


Idade Média. Aqueles que são salvos pela cirurgia serão eternamente “sábios e claros”,
enquanto aqueles condenados por ela serão “bestas e feios”.
A cirurgia é um ato que causa dor extrema, mas que também traz a cura eterna o que
faz com que tanto o cirurgião quanto o confessor se tornem figuras de caráter ambivalente. O
cirurgião promete a saúde, mas essa promessa só é realizada ao custo do sofrimento de
grandes dores. O confessor é responsável por trazer a salvação ao pecador, mas a salvação só
acontece através do desconforto, dor e humilhação. Essa ambivalência dos dois personagens
fica mais evidente dentro da mais comum das metáforas cirúrgicas: as feridas do pecado. A
metáfora cirúrgica do pecado como ferida pode ser dividida em três componentes. O primeiro
é a abundância das formas de humores dentro do ser humano e sua expulsão do corpo através
da carne. O segundo componente seria a formação de feridas em um determinado local,
requerendo um diagnóstico feito por um cirurgião para determinar seu tipo e sua seriedade. O
terceiro e último componente é a maneira como a ferida deve ser tratada, se por incisão, ferro
quente ou por aplicação de corrosivos químicos. Na retórica confessional, as ações
correspondentes geralmente envolviam a observação do comportamento e a reconstrução dos
pensamentos pecaminosos do pecador. Seguindo esses atos o confessor iniciava uma
inquisição do pecador, e, finalmente, após a admissão dos seus pecados é que o indivíduo
recebia a sua absolvição que o redimia dos seus pecados.
Cirurgiões freqüentemente discutem não só os efeitos do pecado no desenvolvimento
de doenças, mas também o aspecto divino de retribuição pelo comportamento dos indivíduos
na terra, incrustado nas doenças e em seus tratamentos. O cirurgião, assim como o padre, se
torna um agente disciplinário de Deus. A cirurgia funcionava como uma dolorosa saída para o
excesso libidinal ao “cortar fora” as manifestações físicas de pecado de uma maneira similar
com o trabalho de um padre. As feridas do pecado seriam uma inscrição física do pecado
sobre o corpo, um pequeno lembrete para relembrar as punições que aguardavam os corpos
dos condenados após a morte.
Um outro componente da metáfora das feridas do pecado, o diagnóstico, facilitava a
distribuição do poder eclesiástico dentro da figura do cirurgião ao usar a metodologia verbal
do confessor. Assim que uma ferida aparecia, caía sobre o cirurgião a responsabilidade de
criar um plano apropriado de ação. Feridas eram de vários tipos. Elas poderiam ser de caráter
superficial ou complexo e requeriam diferentes tratamentos dependendo do seu tamanho,
grau, profundidade e local presente no corpo. Esses fatores determinavam se um cirurgião
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deveria usar a incisão ou métodos menos evasivos de tratamento. Como um erro cirúrgico na
maioria das vezes era irreparável, a falha em determinar o tipo de tratamento adequado ao
paciente era sinal de um cirurgião mal treinado. Cirurgiões viam a possibilidade de dar o
diagnóstico de uma ferida de duas maneiras: através da observação visual da área atingida ou
através da inquisição verbal do paciente e ambos os métodos eram recomendados antes de
diagnosticar um paciente.
Os cirurgiões sempre procuravam usar o melhor de suas habilidades em tratamentos,
especialmente naqueles que envolviam incisões por serem de maior risco para o paciente.
Mesmo com os riscos, os cirurgiões usavam todos os meios que tinham ao seu alcance para
aliviar a dor e o medo existentes até nas menores operações cirúrgicas. O cirurgião medieval
era capaz de executar atos de cura que poucos, incluindo médicos acadêmicos, eram capazes
de fazer, e, por esses motivos, acabou se tornando uma figura que é responsável pela punição
e pelo perdão, pela condenação e cura e pela fragmentação e redenção do corpo e, também, do
homem.

A Medicina Feminina

O estudo dos textos médicos escolásticos renascentistas nos mostra como o


pensamento intelectual e o modo de pensamento desta época influenciaram nos pensamentos
contemporâneos sobre o papel da mulher. Muitos questionamentos como qual é a noção sobre
a mulher achada nos textos renascentistas e como ela se desenvolve? Qual é o relacionamento
entre a noção do papel feminino e a diferenciação entre os sexos? Ficaram marcados como
fundamentais para desvendarmos a medicina feminina.
O autor Ian Maclean traça um paralelo em seu livro The Renaissance Notion of
Women: A Study in the Fortunes of Scholasticism and Medical Science in European
Intellectual Life entre a medicina como disciplina para o mundo medieval e para o mundo
renascentista, mostrando que a maior distinção entre os dois períodos é o trabalho dos
humanistas durante o renascentismo nos textos já publicados de Aristóteles, Hipócrates e
Galeno e o aumento do estudo da anatomia experimental.
Maclean faz comparações entre os trabalhos escritos destes três autores (Galeno,
Aristóteles e Hipócrates) sobre o estudo do papel da mulher dentro da anatomia, fisiologia e
medicina. Para Aristóteles e Galeno a idéia sobre o papel feminino anatomicamente falando
era à mesma. Estes autores consideravam a mulher como um ser passivo, com seus humores
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dominantes frios e molhados e com um desejo de encontrar sua complementação ao praticar o


ato sexual com um indivíduo do sexo masculino, sendo elas menos desenvolvidas que o
homem pela falta de calor durante sua geração e, por este motivo, seus órgãos sexuais eram
internos e, assim, a mulher seria um ser imperfeito.
Galeno se diferenciava de Aristóteles em apenas um ponto: para ele existia uma
substância produzida pelas mulheres conhecida como sêmem feminino. Este sêmem seria
mais frio e menos ativo do que o masculino, o que provaria que a mulher não é igualmente
perfeita como o homem e, também, que ela é inferior a ele por razões fisiológicas.
Muitos médicos do século XVI e do começo do século XVII escrevem críticas aos
textos de Aristóteles, já que o mesmo desonrava o papel da mulher e a partir destas críticas
surgiram as primeiras esferas médicas consideradas feministas. A fisiologia aristotélica obteve
um impacto considerável no final do século XII quando os escritos de Aristóteles começaram
a ser estudados na Universidade de Paris. Nesses escritos ele reduziu o papel da mulher no
processo da procriação chamando-a de “matéria-prima” que espera a formação e o movimento
do sêmen masculino. Aristóteles definiu o sexo feminino por sua inabilidade de simular
funções masculinas. Médicos e comentadores muitas vezes disputavam as piores
considerações de Aristóteles sobre a mulher, como por exemplo: que a mulher é um “homem
deformado” e que a mulher não contribuí com nenhuma “semente” ativa durante o ato de
procriação.
Apenas no ano de 1580 surge a teoria de que a mulher não seria imperfeita pelo fato de
ter seus humores dominantes frios e molhados e que estas características seriam importantes
já que por ter o metabolismo frio a mulher consumiria os alimentos e os digeriria
vagarosamente e assim poderia nutrir o feto e produzir leite para amamentação.
Já no final do século XVI muitos médicos já tinham se convencido de que a noção da
mulher havia mudado e pela remoção do papel de imperfeição a mulher agora havia
conseguido ser considerada digna. Mas mesmo sendo considerada igualmente perfeita ao
homem, a mulher não conseguiu alcançar o patamar onde está o homem. Sua fisiologia e seus
humores faziam com que o destino da mulher seja sempre inferior ao do homem, tanto
mentalmente quanto fisicamente.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Texts. Nova Iorque: Oxford Unity Press, 1992.

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Ashgate, 2004.

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Macmillan, 2006.

HOENIGER, Cathleen. Visualizing Medieval Medicine and Natural History, 1200-1550.


Londres: Ashgate, 2006.

LEMAY, Helen Rodnite.Women’s Secrets - A Translation of Pseudo-Albertus Magnus De


Secretis Mulierum with Commentaries. Albany: State University of New York, 1992.

MACLEAN, Ian. The Renaissance Notion of Women: A Study in the Fortunes of


Scholasticism and Medical Science in European Intellectual Life. Londres - Nova Iorque:
Cambridge, 1983.

MONTFORD, Angela. Health, Sickness, Medicine and the Friars in the Thirteenth and
Fourteenth Centuries. Londres: Ashgate, 2004.

SIRAISI, Nancy G. Medieval & Early Renaissance Medicine: An Introduction to Knowledge


and Practice. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.

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O SURGIMENTO DE GOIÂNIA E O ESTABELECIMENTO DO ESPIRITISMO KARDECISTA


COMO UMA RELIGIOSIDADE MODERNA

Acadêmico Victor Creti Bruzadelli


Graduando em História (PIBIC)
Universidade Federal de Goiás (UFG)

1. ESPIRITISMO: DE SUA ORIGEM AO BRASIL

Nos Estados Unidos da América, num pequeno vilarejo de Nova Iorque


chamado Hydesville, já haviam notícias a respeito de fenômenos estranhos onde seres
invisíveis se comunicavam de várias maneiras com humanos atestando serem espíritos
de pessoas mortas desde a primeira metade do século XIX. No início dos anos de 1850,
predominantemente na Europ, outro fato curioso que também pode ser entendido como
o início do contato entre o mundo dos vivos e dos mortos, sob a ótica espírita, são as
denominadas mesas girantes, onde mesas redondas quando tocadas pelos participantes
elas começavam instataneamente e sem nenhuma explicação prévia a se movimentar.
(Gomes, 2004)

Porém, como religião organizada, o espiritismo surge na França do mesmo


século, tendo como “codificador” o pedagogo positivista Hippolyte Léon Denizard
Rivail, que mais tarde adotaria o pseudônimo de Allan Kardec para diferenciar suas
obras pedagógicas de suas obras espíritas. Em abril de 1857 é lançada a pedra
fundamental da doutrina com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, uma espécie de
manual composto por perguntas e respostas colhidas por vários médiuns. Um caráter
bastante interessante é que o espiritismo, além de se declarar religião, se entende
também como filosofia e ciência. Aqui podemos perceber fortemente a influência do
pensamento de Auguste Comte, devido a estes serem os estágios pelos quais, segundo o
pai do positivismo, o homem passaria para conquistar uma etapa definitiva (para
Kardec, a evolução espiritual plena ou mais próxima ao que eles denominam “esferas
crísticas”). Essa tríade busca explicar que o homem deve passar por várias
“encarnações” (vidas sucessivas) com o objetivo de se tornar mais evoluído e alcançar o
Reino de Deus, representando, assim, uma nova perspectiva do cristianismo, porém,
divergente das anteriores, quais sejam, o catolicismo e protestantismo, no que se refere

136
aos dogmas do castigo eterno no inferno ou à conquista de uma beática vida no paraíso,
ainda que se perceba interpretações aproximadas a estas em algumas obras e práticas
kardecistas.

É interessante ressaltar que vários estudiosos e cientistas do século XIX


dedicaram-se ao estudo do espiritismo, realizando inclusive pesquisas a partir de um
pretenso método de investigação científica, da experimentação. Dentre os filósofos
destacam-se o francês Leon Dennis e o italiano Ernesto Bozzano; entre os cientistas
franceses destaca-se, Cammile Flamarion, astrônomo; o químico e Prêmio Nobel inglês
Willian Crockes; o também, inglês Arthur Conan Doyle 1, médico e escritor, autor do
famoso Sherlock Holmes; o inglês Paul Gibier, discípulo de Pasteur, que foi diretor do
Instituto Bacteriológico (hoje Instituto Pasteur) de Nova Iorque, membro da Academia
de Ciências de Nova Iorque e da Sociedade Psíquicas de Londres.

Ainda no século XIX o espiritismo alcança adeptos no Brasil, ele adentra o


território brasileiro em 1865 através dos portos de Salvador e Rio de Janeiro e vai se
fixando como uma religião bastante relevante graças a importantes médiuns e expoentes
do espiritismo, como o médico e político Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, o professor
Eurípedes Barsanulfo e o também político Rui Barbosa, e acaba atingindo, nos dias
atuais, um enorme número, segundo Giumbelli na “casa dos milhões” (Giumbelli, 1997),
de adeptos nas terras brasileiras, que receberá o título de “capital do espiritismo”, também
conhecido como Coração do Mundo ou Pátria do Evangelho, termos tirados de um livro
psicografado por Chico Xavier e de autoria de Humberto de Campos, escritor maranhense
detentor da categoria de imortal da Academia Brasileira de Letras. O livro Brasil,
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho busca construir um mito de fundação para o
Brasil, tornando-o o novo ‘berço’ para onde será transportada a “árvore do Evangelho de
Jesus” (Xavier, 1977). A narrativa mitológica e romântica explicíta a presença de
espíritos superiores no camando de vários dos grandes acontecimentos históricos da
nação, como o descobrimento e a abolição da escravatura, entre outros. Ainda acaba
vinculando o Brasil, sua origem e história, aos mais importantes fatos do mundo
ocidental, tendo como berço desse país a própria Europa, aspecto bastante apreciado pela
elite de um país periférico como o Brasil.
Mas este processo de consolidação da religião espírita no território brasileiro é
permeado por um conjunto de avanços e retorcessos, de sistóles e diastóles no que tange a

1
Publicou, inclusive, uma série de volumes intitulados A História do Espiritismo.

137
legislação que a regulamentava. Um episódio que contribuirá de forma decissiva no seu
processo de regulamentação será a realização do Primeiro Congresso Espírita do Brasil,
no dia 6 de setembro de 1881, mesmo que em agosto do mesmo ano jornais fluminenses
divulgassem a ordem policial que proibia a fundação de instituições espíritas,
caracterizando uma perseguição oficial por parte do governo a religião que se estabelecia
aos poucos no Brasil. Porém, é entre os anos de 1883 e o seguinte, que se caracterizará
um dos momentos mais importates da religião espírita no Brasil, “pois além da
legalização das instituições espíritas, também é o momento em surge a primeira
publicação de ‘O Reformador’”, períodico que será um dos responsáveis pela grande
divulgação do espiritismo no país.
O ano de 1884 ainda verá o surgiemento, aos dias 2 de janeiro, da Federação
Epírira Brasileira, a FEB, na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Souza a FEB “é
respinsável por toda a organização, regimento, controle e jurisdição das demais
instituições espíritas a ela filiadas [...]. Foi através dela, e de sua Livraria e Editora, que o
espiritismo conseguiu abrir caminhos e prosperar em todo território brasileiro.” (Souza
apud Gomes, 2004) Porém, é precisso ressaltar que algumas das instituições espíritas
existentes no país não são filiadas a ela, podendo se alinhar a outras ‘federações’ ou não,
ainda que se denominem também kardecistas.

2. GOIÂNIA: DO SURGIMENTO À INSTITUIÇÃO DO ESPIRITISMO

A construção da cidade de Goiânia, e conseqüentemente a transferência da


Capital, são processos decorrentes de um complexo contexto histórico, talhado nas
fontes do urbanismo moderno das utopias de uma sociedade gestada nas idéias
européias dos séculos XVIII e XIX, como o Iluminismo e o Cientificismo. A crença no
modernismo e na modernidade, decorrentes da economia industrializada, da burguesia
capitalista, do cientificismo e seus outros tantos ideários modernos, como propriedade
privada e democracia, tornaram-se quase dogmas. Isto desencadeou uma espantosa onda
de movimentos modernistas, desde a segunda metade do século XIX, em todo o mundo
ocidental.
Viver num mundo moderno é, segundo Marshall Berman, “encontrar-se em um
ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que

138
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. [...] Ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústias. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse
Marx, ‘tudo que é sólido se desmancha no ar’” (Berman, 1996).
A modernidade é uma atitude que procura afastar o velho e buscar o novo, o
progresso, mesmo que o velho traga segurança diante as incertezas do mundo moderno
que se apresenta como desconhecido. Essa ambiguidade entre a busca pelo novo e a
insegurança causada pela perda do velho se percebe entre a população no contexto da
transferência da capital de Goiás. Quando o interventor Pedro Ludovico Teixeira
percebe que “para criar uma nova era – como aspirava fazer a revolução [de 1930] -
nenhum símbolo melhor que criar uma nova capital, que seria a expressão concreta da
revolução” (Palacín & Moraes, 1994) e do fim da supremacia Caiado durante a primeira
República brasileira em Goiás, decide fazer a transferência da Capital. Esse ideal
mudancista será encontrado em escritos que datam desde o século XVII e XIX e se
transformará na pricipal plataforma política do interventor nas eleições de 1934.
Todo o discurso mudancista estará alicerçado sobre a questão do progresso e a
integração do estado tanto na economia quanto na vida política do país. A maioria da
população, frente a estes argumentos, via a mudança da capital com olhos bastante
positivos, porém um terço das pessoas da antiga Capital, segundo Chaul, viam-na com
uma espécie de perda de suas próprias raízes e privilégios, principalmente os mais
ligados aos antigos donos do poder e a estrutura fundiária. É nesse contexto que deve
ser analisada a meta principal de Pedro Ludovico Teixeira, que teve o intuito de
transformar uma sociedade ligada a estruturas políticas, econômicas e sociais de raízes
aristocrático-escravocratas, fundiárias e, portanto, conservadoras, que se mantinha no
mecanismo do famoso pacto coronelístico dos favores e clientelismos, daí a criação de
Goiânia, pois uma “capital nova materializa uma nova era; ela mostra os princípios de
um empreendimento coletivo; é o espetáculo que o poder oferece da nação em atividade
e dele próprio.” (Balandier, 1982: p. 11)
A proposta de se criar “uma capital moderna, planejada, coerente com os novos
tempos do Goiás que se anunciava” (Chaul, 1995) acabou por abarcar quase toda a
população e os políticos fazendo com que as eleições de 1934 fossem
predominantemente vencida a políticos ligados ao Partido Social Republicano (PSR),
liderado por Pedro Ludovico. A “marcha para o Oeste” do governo Vargas se efetivara
em Goiás e possibilitara a construção da nova capital.

139
No dia 18 de março de 1933 o governador do Estado de Goiás, Pedro
Ludovico, publica o decreto nº. 3.359, pelo qual se demarca a área designada para a
construção da nova capital do Estado. Neste mesmo decreto fica imposta a distribuição
de áreas para edificação de obras específicas, como prédios da administração pública,
escolas, templos religiosos e outros. Mas deste último tipo de edificação a única que o
Estado se preocupa em manter é a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, na cidade de
Campinas, na qual os católicos professavam sua fé (essa Igreja se encontra atualmente
demolida).

E os templos destinados às outras religiões? Segundo vários estudiosos do tema,


o espaço para prédios não-católicos não foi prioridade, nem sequer foi citada a
necessidade dessas construções nos projetos urbanísticos de Attílio Corrêa Lima e
Armando Godoy, os dois primeiros urbanistas responsáveis pela estruturação da nova
capital.
Essa despreocupação com o espaço dedicado aos cultos não-católicos poderia
ser entendida como um indício da inexpressividade do espiritismo kardecista e de outras
religiões no território goiano, mas não é o que apontam os dados colhidos em pesquisa.
As primeiras notícias que se têm sobre o espiritismo em Goiás remontam ainda ao séc.
XIX, com um grupo de senhoras da antiga capital que se reuniam junto a um Frei
dominicano, D. Raimundo Maimoré, para as primeiras sessões experimentais em suas
casas (Guilarducci, 2003). Já a primeira entidade espírita juridicamente regulamentada
data de 1924, chamando-se Centro Espírita “Amigo dos Sofredores”, ainda em Goiás, a
antiga capital do Estado, casa que enfrentou por diversas vezes a hostilidade da
sociedade vilaboense e outros segmentos religiosos da cidade (Castro, 1995).
Outro fato interessante do espiritismo kardecista em Goiás é a fundação do
Centro Espírita “Luz da Verdade”, na região rural do Estado, que dará início ao
primeiro Município espírita do mundo, Palmelo. Diferentemente de qualquer outra
cidade, Palmelo surge em decorrência às atividades de um grupo espírita (Paes, 1992).
Já na cidade de Goiânia, o primeiro Centro Espírita data de oito de maio de 1938
recebendo o nome do mesmo grupo familiar que estudava os preceitos kardecquianos,
“Estudantes do Evangelho”. Já nesse período, a casa se preocupa em colocar em prática
os estudos das bases “científicas, filosóficas e religiosas” do espiritismo e,
principalmente, a prática da caridade, um dos ideais espíritas para a salvação 2. Outro

2
Um dos princípios mais importantes para o espírita é “Fora da caridade não há salvação”.

140
Centro de bastante expressão entre as casas espíritas do início da nova capital é a
Agremiação “Dr. Adolfo Bezerra de Menezes”, fundado em 15 de dezembro de 1943
(Castro, 1995).
Por iniciativa de João Nicolau, um dos líderes do movimento espírita, e com a
doação da Gráfica Romeu, pertencente a Romeu Pelado, surge o primeiro jornal espírita
de Goiás, o Goiaz Espírita. Esse jornal representa uma primeira iniciativa de
transcender o espaço de cada Centro para a busca de uma maior organização, integração
e fortalecimento do movimento perante a sociedade civil. Esse espaço servia além de
divulgar reuniões espíritas e textos referentes à doutrina para a defesa das acusações de
práticas de “macumba” (num texto repetido em várias edições, onde se afirma que no
“espiritismo não há velas” e não “se pratica o mal”) e para atacar diversas vezes outras
religiões, especialmente a católica que era acusada de ser “aliada do estado”. É verdade
também que em outras edições o periódico buscava uma reconciliação com a religião
dominante no país, como uma que ostentava a manchete: “A Igreja faz propaganda do
Espiritismo”. Para o censo de 1950, o jornal instrui aos seus leitores que se afirmem
espíritas perante a pergunta de credo religioso. Como se pode perceber, esse jornal teve
um caráter múltiplo, de doutrinação, informação, defesa dos ideais espíritas e ataque
contra àqueles que deturpavam seu ideário ou divergia de sua interpretação das coisas
espirituais.
As duas casas espíritas já citadas, juntamente com outras recém fundadas, como
“Paz em Jesus”, “Amor, Caridade e Luz”, “Grupo Ismael”, “Amor e Caridade”, “Centro
Santo Agostinho” e a “Escola Caibar Schutel” organizam a Primeira Semana Espírita de
Goiânia, nos dias 21 a 27 de dezembro de 1947. Nota-se quão distante ficaram as datas
entre o Primeiro Congresso Espírita do Brasil e esta Semana, porém, percebemos aí
outra iniciativa de unificar o “movimento espírita” em Goiás, iniciativa essa que já
vinha acontecendo em todos os estados brasileiros, tendo a FEB como órgão
coordenador e dirigente. Da necessidade de aglutinação de ideais surge, no dia 3 de
outubro de 1950, a “União Espírita Goiana”, na já citada Agremiação “Dr. Adolfo
Bezerra de Menezes”, que buscava exercer no Estado as mesmas atribuições da FEB no
que tange o país inteiro. Nesse mesmo ano de 1950, era criado na FEB o Conselho
Federativo Nacional, que tinha por objetivo “executar, desenvolver e ampliar”, em
caráter nacional, os planos da FEB. Mas a construção da União não foi de simples
execução, pois foram necessárias várias “dezenas de meses de expectativa”, para que se
conseguisse a aprovação de grande contingente de dirigentes de centros tanto da capital,

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quanto do interior do Estado. Um fato relevante é que apesar de o movimento espírita
kardecista buscar se defender, através do Goiaz Espírita, de acusações de macumbaria,
magia, entre outros, a construção da “União Espírita Goiana” está marcada pela
participação de comunidades esotéricas, como o “Centro Esotérico da Comunhão do
Pensamento Tatwa Jesus Cristo”, e umbandistas (que são vulgarmente tratadas por
macumbaria) como o “Centro Eclético Espiritualista Tenda do Caminho”.
Em 1948 começa-se a estruturar o “Centro Eclético Espiritualista Tenda do
Caminho”, organização de umbanda que se reunia na casa dos integrantes das reuniões,
muitas vezes de forma escondida. Este se constituiria juridicamente e se instalaria em
sua sede definitiva em 1953. Em 1962, a instituição modifica a orientação umbandista
para kardecista e, por sugestão do médium Chico Xavier, também seu nome é
transformado em “Irradiação Espírita Cristã”. Embora de orientação kardecista, alguns
hábitos da origem umbandista permanecem entre seus membros, dentre os quais se
destaca a utilização de vestuário branco pelos médiuns da casa, durante as sessões.
Uma nova sede para a Federação Espírita do Estado de Goiás (FEEGO), antiga
União Espírita Goiana é criada em 1992. Essa nova sede, maior e mais organizada, se
torna necessária devido à expansão do espiritismo em todo o estado. Em 1998 é criada a
ASEFEGO (Associação de Entidades Filantrópicas Espíritas de Goiás), que busca dar
suporte logístico às casas que promovem ações de assistência e promoção social, os
principais constituintes da prática espírita e grande responsáveis pela boa aceitação da
religião no seio das elites dominantes.
Pode-se ver assim que o espiritismo em Goiânia encontrou um terreno fértil e se
organizou para que pudesse se perpetuar. Segundo Peixoto da Silveira (Silveira, 1951),
“após 1942 temos 21 templos católicos, 8 protestantes e 4 espíritas”, em Goiânia. Em
1970, segundo Oscar Sabino Junior (Sabino Junior, 1980), a capital de Goiás apresenta
mais de 50 centros espíritas kardecistas e umbandistas. Já, segundo o Censo de 1991, do
IBGE, a cidade apresenta 48 centros espíritas kardecistas. Em relação à atualidade,
segundo dados estatísticos da Prefeitura Municipal, organizados pelo SEPLAM,
Goiânia possui hoje 200 instituições de orientação espírita. Pode-se verificar, assim, um
crescimento exponencial no movimento espírita no Estado.
A presença do médium Chico Xavier em Goiânia já era bastante comum, pois,
desde há muito tempo, ele vinha fazendo visitas à colônia Santa Marta, hospital
especializado em cuidados com pacientes portadores de hanseníase. Fato que se pode
comprovar, também, com sua vinda à Assembléia Legislativa de Goiás, em 7 de maio

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de 1974. A convite do Dep. Lúcio Lincoln de Paiva, Chico Xavier faz uma grande
“conversa informal” (palavras dele), sobre o tema “Cristo e a Atualidade”, com
intelectuais, jornalistas, políticos e povo goiano. Esta foi a primeira presença efetiva de
um médium em solenidade oficial, promovida por autoridades constituídas em Goiânia.
Este evento ficou registrado no livro Chico Xavier em Goiânia de 1977. Outro momento
importante foi a transformação do médium Divaldo Pereira Franco em cidadão goiano e
goianiense em 1984, através do recebimento das duas simbólicas “chaves”. Estes fatos
descritos revelam a enorme aceitação que essa religião terá no interior deste estado.
A presença marcante do espiritismo, não é exclusividade da cidade de Goiânia,
ou seja, está em consonância com o que ocorre no resto do país. Porém, podemos
afirmar que o fato da nova capital ter sido erigida nas perspectivas da modernidade
favoreceu sua ampliação. A modernidade dá certa coerência tanto à construção da nova
capital de Goiás, quanto para a expansão da religião kardecista na nova metrópole do
Brasil Central, o que possibilitou que ambos os movimentos compartilharem valores em
comum. Se a cidade havia sido construída sobre os ideais de modernidade e progresso e
esses ideais habitavam de forma bastante contundente o imaginário e a visão de mundo
dos goianienses, a religião espírita se caracterizava, frente à católica e também
protestante, como uma religião moderna. Esse fator de alinhamento entre, de um lado,
imaginário e visão de mundo e por outro a religiosidade, sem dúvida alguma,
possibilitou uma mais fácil expansão do espiritismo kardecista na nova Capital de
Goiás.

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