Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Agosto de 2008.
Ano I, Número 01.
Dossiê Temático:
Reitor
Edward Madureira Brasil
Vice-Reitor
Benedito Ferreira Marques
Diretor
Fausto Miziara
Revista Chrônidas
Editor Sênior
Marlon Salomon
Editores Juniores
Ivan Vieira Neto
Victor Creti Bruzadelli
RCA01N01.AGO2008
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
Editores
Editor Sênior
Prof. Dr. Marlon Salomon
Editores Juniores
Ivan Vieira Neto
Victor Creti Bruzadelli
Editores Executivos
Conselhos
Conselho Editorial
Conselho Consultivo
Revista Chrônidas
Sítio: www.revistachronidas.com.br
Contato: chronidas@revistachronidas.com.br
ISSN 1984-266X
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História
Universidade Federal de Goiás
Editorial
Dossiê
Artigos
6
o artigo da graduanda Nayara Cristina Carneiro de Araújo traz uma análise dos
discursos de John F. Kennedy na construção dos Estados Unidos da década de 1960.
Além do dossiê, esta edição traz outros quatro artigos independentes, todos de
autoria de alunos da graduação em História da UFG. As heranças do bramanismo no
período védico da Índia Antiga são tratadas no artigo de Iasminy de Paula Berquó. As
teorias e práticas médicas recorrentes na Idade Média e sua utilização, sobretudo no
cotidiano feminino, são abordadas no artigo de autoria das estudantes Catarina
Stacciarini Seraphin e Halynne Alves Goulart e também no artigo assinado por Izabela
Portes Bittencourt. O último artigo desta edição traz a questão da modernização goiana,
sob uma ótica religiosa, a partir do Espiritismo Kardecista e seu estabelecimento na
nova capital do estado.
Apesar de todos os artigos publicados nesta primeira edição provirem de autores
ligados a instituições goianas, especialmente da Universidade Federal de Goiás, o
intento desta revista não é ser um periódico endógeno para publicação de artigos de
docentes e discentes da casa. Esperamos receber para as próximas edições artigos de
diversas partes do Brasil e também do exterior.
Finalmente, em nome de todo o Editorial Executivo da Revista Chrônidas,
agradecemos ao Departamento de História e ao Programa de Pós-Graduação em
História da UFG, nas pessoas dos docentes Profa. Dra. Fabiana de Souza Fredrigo e
Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho, por seu apoio incondicional ao projeto e
criação desta revista. Agradecemos também ao Prof. Dr. Marlon J. Salomon, que
contribuiu tanto com a idealização quanto com a concretização deste projeto.
7
Dossiê
“Escrita, narrativa e discurso
na constituição de processos históricos nas
Américas”
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
RESUMO: Produzido entre os anos de 1799 e 1830, o epistolário de Simón Bolívar permite
vincular a escrita de cartas, a memória e a historiografia. Entre as temáticas variadas e as
distintas estratégias narrativas, um dos discursos mais constantes no epistolário alude à renúncia
ao cargo político-administrativo. Este artigo apresenta os múltiplos sentidos narrativos
constitutivos do que denomino de memória da indispensabilidade. Após expor os elementos que
compõem a memória da indispensabilidade, os relacionarei aos limites do missivista em
compreender a conformação de uma nova cena histórica, a partir da ocorrência das
independências na América do Sul.
I.
1
Esse artigo é parte da Tese de Doutorado intitulada História e memória no epistolário de Simón Bolívar
(1799-1830), defendida em 2005, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual
Paulista (UNESP).
2
Simon Bolívar nasceu em Caracas, no dia 24 de julho de 1783. Filho de família poderosa e abastada, ele
perdeu pai e mãe bem cedo, respectivamente, aos três e nove anos. Em 1798, embarcou para a Espanha e
conheceu Maria Teresa Rodriguéz Del Toro, com quem se casou em 1802. De volta à Caracas, em 1803,
Bolívar sofreria outra perda, dessa vez, a da esposa em virtude da febre amarela. Foi quando decidiu
retornar à Espanha e iniciou uma série de viagens, conhecendo a Itália, a França e os Estados Unidos. Em
1810, tomou contato com Miranda, em Londres. Participou da primeira tentativa de independência da
Venezuela, em 1810. Dessa data até cerca de 1828, Bolívar dedicou-se ora às inúmeras batalhas pela
conquista da emancipação, ora às tentativas de montagem de uma estrutura de poder que viabilizasse um
governo criollo na América. Em 1828, sofreu um atentado, no qual não foi vitimado. No dia 30 de
dezembro de 1830, faleceu na Quinta de San Pedro de Alejandrino, próxima à Santa Marta. O espaço
geográfico no qual atuou compreendia os antigos vice-reinados da Nova Granada e Peru (este último
corresponde aos territórios atuais de Peru e Bolívia – à época a Bolívia era conhecida como Alto Peru). O
território da Nova Granada corresponde aos atuais países: Colômbia, Panamá, Venezuela e Equador.
(BELLOTTO; CORRÊA, 1983).
10
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
lo, impôs uma relação cristalina entre a escrita de cartas, um projeto de memória e a
historiografia. 3
Numa fórmula antiga, a carta faz o ausente presente. Escrever cartas revela
o desejo de registrar acontecimentos, racional e afetivamente, para não esquecê-los, para
estabelecer uma memória de si e dos outros. Essa atividade irrompe no mundo particular
do indivíduo que escreve, mas, certamente, exige um grupo, posto que as memórias,
para serem imortalizadas, precisam ser partilhadas. Precisa-se do grupo porque é ele o
responsável por afiançar a memória individual. Com o efeito do esquecimento,
intrínseco ao ato de lembrar, e das mudanças plásticas e flexíveis do presente, o grupo
responsabiliza-se pela sustentação e pela partilha de uma memória. No caso de Simón
Bolívar, o grupo eleito para a prática da correspondência compunha-se dos militares que
o acompanharam nas campanhas bélicas e foram, igualmente, os políticos estreantes das
repúblicas sul-americanas, nascentes na primeira metade do século XIX.
A leitura das missivas permitiu lidar com distintos sentidos para a escrita,
entre eles: a revelação para si e/ou para os outros; a compreensão dos códigos do mundo
que rodeia o narrador; a tentativa de catarse por meio do texto; a “invenção” de si,
considerando-se o poder de prefiguração da escrita; o projeto de conhecimento e de
ação política; o projeto de memória. Entre as temáticas variadas e as distintas estratégias
narrativas, um dos discursos mais constantes no epistolário alude à renúncia política.
Este artigo apresenta os múltiplos sentidos narrativos constitutivos do que denomino de
memória da indispensabilidade 4. Após expor os elementos que compõem a memória da
indispensabilidade, os relacionarei aos limites do missivista em compreender a
conformação de uma nova cena histórica, a partir da ocorrência das independências na
América do Sul. A complexidade desses limites de compreensão do missivista permite
explicar o apego de Simón Bolívar ao ideal da liberdade e sua crença na guerra como a
única forma de rompimento com a Espanha. Permite, também, ir ao encontro das
mitificações memoriais sobre o lugar da América e de seus projetos, esses últimos, em
grande parte do tempo, questionados quanto à sua capacidade de fazer a América
3
O epistolário de Simón Bolívar conta com 2.815 cartas, divididas em sete tomos. A coletânea utilizada
foi organizada por Vicente Lecuna, o mesmo que cuidaria da restauração da Casa Natal do Libertador na
Venezuela e que se tornaria o guardião mais empedernido da documentação e da memória do Libertador.
Teve-se acesso à segunda edição das Cartas del Libertador, publicada entre os anos de 1964 e 1969.
4
Esse termo é de minha autoria e serviu ao propósito de explicar o discurso da renúncia, apresentando,
em conjunto, os outros elementos retóricos a ele associados – a morte, o ressentimento, a doença e a
solidão. Sua primeira aparição foi na referida tese de doutorado, defendida em 2005.
11
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
ingressar na modernidade ocidental. Essas me parecem duas boas razões para expor os
limites do missivista, recompondo, a partir do projeto narrativo epistolar, as cenas do
processo de independência na América Hispânica.
II.
5
Os dados biográficos de Fernando Peñalver indicam o seu apoio fiel ao projeto de Simón Bolívar, o que
explica o tom da carta. Nas cartas destinadas a Peñalver – assim como nas enviadas para o Marquês Del
Toro – grassava o tom muito pessoal, marcado pela relação de amizade e de lealdade. Atente-se para o
fato de que Bolívar muito pouco escrevia sobre a sua saúde. Comentar a respeito de sua saúde – e fazer
isso ainda em 1821 – não era algo comum, o que revela o diferencial concedido a Fernando Peñalver.
12
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Meu querido Fernando, muito sinto não voar para te estreitar em meus braços
e participar de tuas dores, para diminuí-las, consolar-te com o que estivesse a
meu alcance; mas tu sabes que o homem social é um monstro da natureza,
que não escuta seus gritos e não obedece senão ao fantasma do dever.
Entretanto, eu não perco a esperança de sair logo desta tortura que
desnaturaliza os verdadeiros afetos e os bens únicos e positivos. Concluída
minha comissão no Sul, marcharei para Bogotá e dali para Caracas para ser
cidadão livre, e retirar de minha agoniada cabeça o enorme peso de
responsabilidade que gravita sobre ela (Carta para Fernando Del Toro.
Cuenca, 23/09/1822. Tomo III, R. 893, p. 295-297. Original.).
13
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
14
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
interesses escusos. A pedagogia republicana devia exalar da sua liderança, desde que
resguardada sua posição de comandante do exército patriótico:
Eu recebi sua apreciável carta, que me foi trazida pelo mensageiro Alvarez.
Por ela vejo, com muita satisfação, que o Senhor me crê necessário por lá
[Colômbia]. Há pânico e terror dos Senhores relação à república. Ela pode se
governar perfeitamente sem mim, desde que com um exército que a defenda
sob minhas ordens, quero dizer, sob as ordens de um cidadão qualquer que
deseje a liberdade. Eu quero supor, meu amigo, que, embora eu fosse
indispensável para fazer o que temos feito, essa não seria a razão para me
persuadir da minha necessidade para se fazer o que ainda falta. Um homem
pode levantar o peso de muitos quintais, nem por isso, outro não poderá
levantar o de algumas arrobas. Este é o caso presente, meu amigo, e é por
isso mesmo que estou disposto a dar exemplo de um grande republicanismo
para que esse mesmo ato sirva de preceito aos outros. Não convém que o
governo esteja nas mãos de um homem mais perigoso; não convém que a
opinião e a força estejam nas mesmas mãos e que toda força esteja
concentrada no governo; não convém que o chefe das armas administre a
justiça porque então o choque universal será contra este indivíduo; e uma vez
derrubado, será derrubado todo o governo. [...]
[...] Todo mundo sabe que tenho inimigos, muitos pensam que aspiro ao
poder absoluto; não será um golpe para a república que as inimizades e os
zelos, conspirando contra mim, derrubem o governo? Mandando no exército,
a Colômbia me terá sempre na reserva e o governo na vanguarda (Carta para
Dr. José María Castillo Rada. Maracaibo, 16/09/1821. Tomo III, R. 774, p.
125-126. Cópia).
15
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
6
A partir dessa consideração, é oportuno tecer uma comparação. Pode-se dizer que o discurso da renúncia
foi para Bolívar o que o discurso da morte foi para Getúlio Vargas. Sobre esse último, Maria Celina D’
Araújo (2004), quando analisa as cartas-testamento deixadas pelo gaúcho, aponta a tessitura de um
discurso sobre a morte como uma resposta do presidente ao seu fracasso e à vitória dos inimigos. Por
meio de suas cartas-testamento, dos relatos em diários e de alguns manifestos, Getúlio Vargas foi, aos
poucos, construindo-se como “vítima do poder e redentor do povo”. O suicídio – muito antes anunciado –
lhe permitiu adentrar vitorioso para a história. As referências metafóricas à morte apareceram antes de
1954, pode-se encontrá-las nos anos de 1930, 1932 e 1945. Nesse sentido, pode-se equiparar os projetos
narrativos de Bolívar e de Vargas, posto que ambos deixaram o registro sobre si e sobre o porquê
mereciam ocupar os olhares da posteridade. Nos dois universos, há a utilização – seja da morte, seja da
renúncia – de artifícios retóricos como “instrumento de poder, um recurso político, uma maneira de
valorizar seus feitos e de construir uma imagem grandiosa para o futuro”. (D’ARAÚJO, 2004, p. 295).
7
Nome da cidade venezuelana que sediou o Congresso de Angostura em 1819, quando Bolívar conseguiu
aprovar a criação da Grã-Colômbia. Entre uma das peças políticas mais importantes de seus escritos,
apontadas pelos pesquisadores, está o discurso pronunciado por ocasião da instalação do Congresso.
Nesse documento, Bolívar defendeu a inaplicabilidade de uma Constituição Federal, apesar de admitir
que o federalismo florescia muito bem na América do Norte. Suas considerações objetivavam convencer
os legisladores da necessidade de adotar uma constituição que lidasse com “a idéia sólida de formar uma
16
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Farei outra confissão: a única causa, por assim dizer, que tem me animado a
propor a criação da Colômbia [Grã-Colômbia], tem sido a idéia de destruir
para sempre os motivos de ódio, de discordância e de dissolução. Se estes
aumentam, que horroroso desengano!
Desde que saí daqui para Caracas pela primeira vez, ia firmemente resoluto a
deixar o mando no mesmo dia em que libertasse a minha pátria: a guerra me
forçou a continuar no mando para combater com sucesso, ou pelo menos com
esperanças. Esta resolução cresce em mim progressivamente na razão do
tempo e dos sucessos e a cada dia se multiplica em progressão geométrica.
Muitas vezes tenho dito a alguns de meus amigos que eu me encontro em alto
mar procurando um porto para desembarcar. A paz será o meu porto, minha
glória, minha recompensa, minha esperança, minha dita e tudo o quanto é
precioso no mundo. Já proclamei uma vez à face da Venezuela: o primeiro
dia de paz será o último de meu mando: nada me fará mudar esta
determinação. Poderão se amontoar sobre a minha cabeça as tempestades do
céu, abrir aos meus pés todos os abismos, convidar-me à fama com um
templo último na posteridade; o Paraíso oferecer-me as suas delícias; mas eu,
mais forte que o inflexível Catão, ficarei inexorável como ele. Por fim direi:
se não me resta outro caminho que o da fuga, esse será o da minha salvação.
(Carta para Francisco de Paula Santander. El Rosario, 10/06/1820. Tomo II,
R. 591, p. 354-355. Original.).
república indivisível e centralizada” (BOLÍVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 121). Munido
dessas convicções, Bolívar defendeu um Senado hereditário e um executivo forte. Ao propor um
executivo forte, Simón Bolívar comparou as atribuições de um presidente da República às do rei na
monarquia britânica. O rei teria, no “modelo perfeito”, as mãos atadas pela vigilância do legislativo, mas,
ao mesmo tempo, a sua “inviolável e sagrada pessoa” seria fundamental para o equilíbrio político
(BOLÍVAR apud BELLOTTO; CORREA, 1983, p. 127).
17
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
III.
18
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Não se quer negar a trajetória de Bolívar, pode-se mesmo afirmar que ele
oscilou do mais profundo entusiasmo ao mais desesperado desencanto. Sua crença na
premissa de que a liberdade, uma vez instaurada, liberaria forças capazes de construir
uma América soberana, feliz e ordenada, certamente, explica a oscilação desse homem
em pólos opostos. Ainda mais: sua crença na liberdade lhe permitiu ser o “Libertador” e
não o “Administrador” ou o “Ordenador”:
Se há reclamações que expõem sobre a legitimidade ou ilegitimidade da
reunião da Colômbia, cabe ao Congresso Geral resolver sobre esta grande e
odiosa matéria. Pelo que a mim toca, só faço votos ao céu para que a
América seja livre e eu me veja livre de mandar na Venezuela e na
Cundinamarca, para as quais tenho feito tudo o que tem estado ao meu
alcance, não para mandá-las, mas sim para constituí-las independentes. Se
estes dois povos querem viver separados, nada será mais conforme com o
ardente e vivo desejo de meu coração e se querem viver reunidos, nada mais
será conforme sua verdadeira ordem, sua felicidade futura e a glória de seus
filhos. (Nota à representação do general Santander protestando por ter sido
privado o Departamento da Cundinamarca de seu Tribunal de Justiça. Quartel
General de El Rosário, 20/06/1820. Tomo II, R. 595, p. 363-364. Retirada de
Acotaciones bolivarianas, p. 73, Fundação John Boulton.).
19
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Mais uma vez, a metáfora invertida: embora simples soldado, podia servir
em condição de almirante, desde que no meio de uma tempestade, ou seja, diante de
uma ocasião singular e dramática – exatamente como a que cercava de
descontentamento e intriga a criação da Grã-Colômbia. Passada a tempestade,
renunciaria ao posto, pois a humildade também é lição a ser retirada do bom
republicanismo. Seu mundo era o da guerra e, embora pensasse em alternativas políticas
para o ordenamento e a administração das repúblicas, não tomava essa tarefa como
sendo sua tarefa mais importante 8. A tarefa que se impunha era a de libertar a América,
tarefa vaga e imprecisa discursivamente, o que demonstra um limite de ação
compreensível do ator histórico. Limite que, consciente ou não, o missivista confessa e
justifica, particularmente, quando se apresenta como o guerreiro ou como o
“Libertador”. Para o leitor atento, é certo que Bolívar construiu-se a partir da crença
absoluta na liberdade, a ponto de assumi-la como um ideal demiurgo (PRADO, 1981).
8
Por um lado, é importante registrar que Bolívar foi o idealizador da primeira constituição da República
da Bolívia. Por outro, uma frase sua revela, mesmo no final da vida, o apego ao ideal da liberdade,
desprovido do desejo de assumir o cargo administrativo: “Meu único amor tem sido o da pátria, minha
única ambição, a sua liberdade” (Carta para Pedro Briceño Méndez. Bucaramanga, 13/04/1828. Tomo VI,
R. 2.044, p. 252. Original.).
20
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Essa crença, entre outras, colocou Simón Bolívar na fileira dos que acreditavam
encontrar na ruptura com a metrópole o melhor caminho. Ainda mais: foi pela crença na
capacidade transformadora da guerra e da instauração “mágica” da liberdade que, finda
a luta contra os espanhóis, Bolívar pressentiu a sua dispensabilidade.
Também é certo que, no momento em que Bolívar percebeu que a liberdade
não conseguiria resolver os problemas colocados à América, sendo esse ideal demiurgo
apenas o início da longa e lenta escalada, ele sentiu-se traído em suas convicções e em
seus afetos. Era o momento de pressagiar que a liberdade tinha se destituído do seu
poder transformador e, portanto, toda a vida dedicada à revolução e à pátria tornara-se
uma grande perda de tempo, restando, então, a lamentação por ter se deixado absorver
de tal modo por essa tarefa que, na verdade, lhe garantiu apenas a solidão. Assim,
apontar a linha decrescente entre encanto e desencanto, usando o epistolário bolivariano
como “fonte comprobatória da verdade”, sem apresentar o sentido narrativo que liga as
missivas, serve para reforçar a inviabilidade da América, assentando-se, desse modo,
uma memória comprometida com o “pecado original” (a conquista e a colonização) e
com a incapacidade de mudança das instituições políticas e sociais. O epistolário revela
muito mais do que o desencanto, pois permite compreender o caldo formativo do
desencanto, associado à experiência da guerra e da libertação. Como não perder a
convicção pelo grande projeto da independência frente aos clamores populares pelo
retorno ao status quo monárquico? Como desconsiderar a força dos realistas, em
especial depois da experiência no Peru? Embora Simón Bolívar tenha tomado a
liberdade como um ideal capaz de resolver todas as mazelas americanas, interessa é
assumir a complexidade deste debate e perguntar no que isso poderia ter sido diferente.
Para tanto, o discurso da renúncia torna-se peça-chave.
Visto esse tema de outro modo, a primeira afirmação que deve ser colocada
é: Bolívar tinha de tomar a liberdade como um ideal demiurgo. Em meio a tantas
transformações rápidas e de impacto como é característico das revoluções 9, esse general
9
Muito já se escreveu sobre o caráter revolucionário ou não das independências americanas. Os modelos
usados para a avaliação do caráter revolucionário de um movimento foram, no decorrer do século XIX, a
Revolução Francesa e, no decorrer do século XX, a Revolução Russa. Usados tais modelos, o caráter
revolucionário estaria ligado a processos de grande intensidade, com evidente ruptura. As revoluções
seriam explosões, em nada graduais ou perceptíveis em longo prazo, capazes de “derrubar um sistema” e
“implantar outro sistema completamente novo”. Dessa perspectiva, à revolução não caberia o
continuísmo. Essa avaliação foi revista por uma historiografia mais recente. Pese as continuidades,
Carrera-Damas (1964) afirma haver consenso entre os historiadores venezuelanos sobre o caráter
revolucionário do processo de independência. Também François-Xavier Guerra (2003) admite o caráter
21
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
optou pela ruptura com a metrópole. E a ruptura com a metrópole significava deixar de
se reconhecer como até então os criollos se reconheciam – afinal, era em nome de sua
ascendência (a pureza de sangue) e de seus vínculos com a Coroa que os criollos
reafirmavam-se como um grupo perante os demais, posto que os “outros” não tinham
uma linhagem e, portanto, não eram dignos de partilhar dos privilégios em solo
americano.
Findo o processo de luta pela independência, as repúblicas recém-fundadas
precisariam construir para si uma identidade nacional que, por sua vez, deveria traduzir
os anseios e as expectativas populares e harmonizá-los com o projeto estatal
republicano, federalista e oligárquico. Em 1831, com a separação da Grã-Colômbia,
surgiriam as repúblicas da Venezuela, Colômbia e Equador, tendo como líderes
respectivamente José António Páez, Francisco de Paula Santander e Juan José Flores. A
situação econômica ou política dessas repúblicas não conheceu grande melhora com o
término das guerras de independência. Às guerras de independência sucederam-se
outras, tais como as guerras locais que associaram a política à instabilidade. Também, a
bancarrota fiscal, a ausência de crédito externo e as dificuldades de incorporação das
comunidades indígenas e de ex-escravos à vida da república foram problemas
cotidianos na segunda metade do século XIX 10.
22
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
completamente iguais. Tendiam a coincidir – e foram mais exacerbadas quando isso acontecia – com os
períodos de dificuldade econômica, às vezes, identificáveis com crises na economia mundial, outras vezes
com conjeturas locais particularmente infelizes. As dificuldades econômicas diminuíam as receitas dos
governos e governos pobres tinham menos condição de satisfazer e entusiasmar seus partidários e de
enfrentar seus inimigos. A insatisfação endêmica das províncias tornou-se mais intensa à medida que a
pobreza dos governos restringia seus gastos às regiões mais próximas de sua sede.” (DEAS, 2001, p. 523-
525).
23
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
24
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
11
A dramaticidade, os exageros e os apelos repetidos, certamente, tornaram-se armas discursivas.
Convencer era uma das funções da escrita da carta. A carta tem uma temporalidade própria, não devendo
ser analisada somente em relação a um contexto. O texto expressa, simultaneamente, o desejo daquele
que escreve – e está vinculado a um contexto externo à missiva – e o desejo daquela persona criada por
aquele que escreve – a persona que adquire vida no texto, mas que nem por isso é menos importante. De
qualquer maneira, a dramaticidade – representada por meio de seus elementos subjetivos, tais como a
angústia, o desencanto, a amargura, o ressentimento – também deve ser avaliada a partir de uma severa
crítica da fonte. Não é porque a escrita investe em elementos subjetivos que a carta representa a
“verdadeira confissão” do escritor.
25
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
26
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
algoz e vítima das transformações; um Novo Mundo com o qual o general não interagia
tendo plena identificação. Essa contradição encontra-se presente em suas missivas e o
desejo de renunciar à presidência e servir como simples soldado, embora faça parte de
uma construção de memória que pretende edificar a imagem do homem público
consagrado por meio da guerra e do espírito de abnegação e sacrifício, da mesma forma,
aponta para a ciência de Simón Bolívar de sua incompreensão das transformações
impostas pelo nascimento desse Novo Mundo. Em algumas circunstâncias narrativas,
especialmente vinculadas à renúncia do cargo administrativo, caracterizar-se como
soldado era o mesmo que se excluir como magistrado – tal discurso podia ser explícito
ou não. Nesses momentos, o próprio missivista reconhecia a sua tradição: era ele o
homem da revolução, formado no tumulto e na anarquia. A dificuldade de Simón
Bolívar em lidar com os herdeiros do constitucionalismo – os homens da “república
filosófica”, como ele mesmo os denominara – demonstra seu conflito diário na tentativa
de perceber qual o sentido do Mundo Novo que a liberdade instaurara. A carta a seguir,
após a indicação de José Maria Del Castillo Rada para o governo da Colômbia, é
reveladora:
Assim, amigo, faça e desfaça o quanto lhe pareça melhor neste departamento,
que eu tenho organizado muito ligeiramente e com extrema repugnância,
porque você não pode imaginar nem pensar o desagrado que me causa tudo o
que tem relação com a parte administrativa da república, pois minha sorte já
estava fechada, eu não quero ser mais do que soldado, simples soldado se for
preciso, antes que Presidente. Tudo isto digo a você para que tenha entendido
minha absoluta abnegação ao governo, e que faça cargo dele, sem contar
comigo para nada.
[...]
Estou certo de que outro presidente corrigirá tudo o que não fui capaz de
corrigir durante o meu mandato, porque o novo presidente não estará
colocado no centro da revolução como eu estive, e trabalhará, por
conseguinte, com olhar próprio para a nova era que encontrará. Esta é outra
razão que tenho, além do mais, para querer sair da presidência, porque eu
jamais poderei tirar minhas linhas da esfera da revolução, ainda que esta
tenha fenecido ou esteja pronta para fenecer. É tão difícil, por outro lado, que
um chefe, criado em meio ao tumulto, à anarquia e ao ruído das armas, possa
governar com acerto uma república filosófica, decretada por um congresso.
Tal república não é para ser habitada por homens que se educaram em meio
aos furacões revolucionários. Estou persuadido que o Congresso percebeu a
exatidão dessas verdades e, por isso mesmo, não quer que eu governe pela
espada ou com pulso terrível, mas com uma pluma e tato delicado, porque
sem dúvida a marcha do tempo tudo deve submeter. (Carta para José María
Del Castillo Rada. Tocuyo, 16/08/1821. Tomo III, R. 753, p. 102-103.
Cópia.).
27
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
elemento novo: o dilema bolivariano em conviver com o desafio de lidar com um novo
modo de fazer política. Para esses novos tempos, a cena pública esteve mapeada por
também novas legitimidade e sociabilidade, ambas perceptíveis pelos atores históricos
(GUERRA, 2003).
Para Bolívar, o dilema de como se colocar numa nascente e distinta cena
pública resolver-se-ia por meio de sua afirmação enquanto soldado. O anterior
permitiria que ele mantivesse sua autoridade e legitimidade bem como lhe possibilitaria
não ser testado em seu tato político, em particular quando os novos tempos exigiam
“embainhar a espada e testar a pluma, submetendo-as à marcha do tempo”. Assim
mesmo, a leitura atenta da carta anuncia a necessidade justificadora de Simón Bolívar:
implicitamente, o general indicava que seus limites formativos o impediam de fazer
mais pela pátria. Desse modo, a renúncia vinha associada a um homem público que
tinha se doado completamente e que continuaria doando-se, desde que lhe deixassem
seguir no posto de soldado. O ano da carta acima, como se pode observar, é 1821,
quando mal tinham começado os embates no Peru. Bolívar sabia que a guerra não
chegara ao fim e que a segurança da Colômbia e da Venezuela dependia dos resultados
no Peru. Em virtude disso, também sabia que renunciar ao posto de magistrado e
manter-se como o soldado mais importante da república não era, como pode parecer,
renunciar ao poder. Antes de tudo, era possibilitar a si mesmo a construção da figura do
herói salvador.
Como a carta anterior demonstra, apreender e lidar com o discurso da
renúncia era ampliar o leque para além do escrito exclusivo sobre a renúncia. Bolívar
nomeou a renúncia de várias maneiras e escreveu sobre ela até mesmo quando não
parecia ser esse o assunto principal. A riqueza do discurso da renúncia encontra-se
exatamente nos vários outros temas que a ele vêm associados. Se, à primeira vista, os
temas permitiam a impressão de que estavam imersos nas cartas ao acaso, sem indicar
necessariamente uma relação mais fértil com o discurso da renúncia, com o
conhecimento mais aprofundado do epistolário, tais temas vieram acrescentar
complexidade à análise, sugerindo uma investigação muito mais abrangente do que a
calculada no início. O discurso da renúncia permitiu conceber o que se denomina como
memória da indispensabilidade. Construída entre a ciência e a impossibilidade de
onisciência do missivista, essa memória tomava para si o cultivo do ressentimento que,
por sua vez, também incorporava elementos como o medo da solidão e da morte.
28
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
29
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
12
Nota de Lecuna sobre a carta: El Recopilador, de Bogotá, n. 3 de 17/09/1830. “Encontramos este
fragmento na coleção de cartas do Libertador organizadas pelo senhor Pérez y Soto com indicação do
jornal de onde foi retirado. Não nos consta sua autenticidade, mas está ajustado a fatos positivos.
Verificada a cópia por nosso distinto colega, senhor Dom Roberto Cortázar, secretário da Academia
Colombiana de História, de Bogotá, encontrou-se uma variante. Em vez da frase: ‘Minhas melhores têm-
se convertido’, no jornal diz: ‘Minhas melhores intenções têm-se construído’. ‘El Recopilador’ expressa:
‘Este fragmento é tomado do jornal Mercurio de Nova Iorque, 03/07/1830’.” (LECUNA, 1969, p. 476).
13
Essas relações são objeto de outro artigo a ser publicado, cujo título provisório é Correspondência,
literatura e biografia: a conformação da memória da indispensabilidade no epistolário bolivariano
(1799-1830).
30
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
FONTES
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1964. Tomo I. 485 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1818-1820). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1964. Tomo II. 578 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1821-1823). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1965. Tomo III. 559 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1824-1825). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1966. Tomo IV. 568 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1826-jun.1827). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1967. Tomo V. 529 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (jul.1827-1828). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1968. Tomo VI. 606 p.
LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1829-1830). 2. ed. Caracas:
Fundación Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1969. Tomo VII. 649 p.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão
sensível. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 2001. p. 15-36.
BELLOTTO, Manuel Lello; CORRÊA, Ana Maria Martinez (Orgs.). Simon Bolívar:
política. São Paulo: Ática, 1983.
CARRERA-DAMAS, Gérman. Cuestiones de historiografia venezoelana. Venezuela:
Universidad Central de Caracas, 1964.
______. El culto a Bolívar: esbozo para um estúdio de la historia de las ideas em la
Venezuela. Caracas: Fundação do Instituto de Antropologia y História/ Universidad
Central de Venezuela, 1969.
31
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
32
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
OS OLHOS DA NAÇÃO:
NARRATIVA E DOMINAÇÃO TERRITORIAL NA COLÔMBIA
Introdução.
... uno de los lugares más propicios para explorar los modos concretos
en que la Nación produce diferencia como resultado de su forma
particular de apropiar y de imaginar su territorio y sus sujetos, es su
relación con la periferia: con los ámbitos que se extienden más allá de
sus márgenes.
Margarita Serje, 2005.
1
Adianto, porém, que não pretendo que essas obras representem toda a narrativa colombiana,
no período estudado. Alguém se lembrará de Maria de Jorge Isaccs, de Frutos de mi tierra de
Tomás Carrasquilha e Diana cazadora de Clímaco Soto Borba, De sobremesa de José
Asunción Silva, entre outras, e se alguém se lembrar terá razão. Pretendo, contudo, que a
imagem da nação vencedora na Colômbia é mais claramente perceptível nas narrativas
selecionadas.
34
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
2
Essa divisão tem várias versões. Uma delas tinha um pressuposto climático como a
designação “tierras calientes” mostra. A civilização está ligada a um fator climático e racial.
O frio andino e o euro-americano eram os exemplos de civilização. Os negros, os mestiços e
os indígenas “eram” bárbaros e inaptos à civilização. O que levou à repetida discussão da
necessidade de trazer da Europa uma raça “forte” que conseguisse des-bravar e civilizar as
“tierras calientes” e melhorar a “raça” nacional através da mestiçagem (Ver MARTÍNEZ,
2001).
35
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
36
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
37
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
38
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
3
Nas narrativas de viagens à Europa e/ou aos Estados Unidos predominavam o diário de
viagem. Os narradores-viajantes forneciam ao público dos jornais suas impressões da vida
“civilizada”, e algumas vezes, receitas de como melhorar a civilização na Colômbia. Um
exemplo é o texto de Salvador Camacho Roldán, Notas de viaje, de 1892, onde ele descreve
uma viagem aos Estados Unidos. Enquanto ele descreve sua viagem de Bogotá até a província
do Panamá, ele elabora apertadas sínteses econômicas e sociais sobre a sociedade de Nova
Granada e a norte-americana. Essa síntese está informada por comparações, e críticas aos
erros colombianos; e elogios aos Estados Unidos. Além de algumas idéias de como fazer a
civilização avançar em Nueva Granada.
4
Uma forma de demonstrar o poder deste tropo, para além dos exemplos de García Márquez e
Fanny Buitrago, que discutiremos em outro trabalho, é o caso do poeta Jorge Gaitán Duran,
quando de sua viagem ao redor do mundo, na década de 1950. Este não conseguiu se livrar do
referido tropo. Ele enviou periodicamente a jornais e revistas literárias suas impressões e o
modo como suas viagens afetavam sua sensibilidade. Ao falar de Gaitán Duran é preciso
lembrar que se está falando de um dos intelectos mais críticos da “cultura nacional” do século
XX, e fundador da revista Mito. Outro exemplo, ocorre em 1962. O escritor Eduardo
Caballero Calderón, outro nome imprescindível das letras colombianas no século XX,
publicou na Espanha, o seu romance El buen selvaje. Ele retoma, como Silva, o relato da
viagem à Europa como discurso maestro. O jovem protagonista está em Paris e escreve uma
narrativa no processo de construir sua identidade como escritor, inscrevendo o retorno ao
relato de viagem como forma de auto-conhecimento e conhecimento dos dramas do intelectual
colombiano deslocado.
39
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Las razas y castas debían tener, como tuvieron, su geografía inevitable y fatal: los blancos e
indios de color pálido y bronceado y los mestizos que de su cruzamiento naciesen, quedarían
aglomerados en la regiones montañosas y las altiplanices, mientras que los negros, los indios
color rojizo y bronceado oscuro, y los mestizos procedentes de su cruzamiento, debian poblar las
costas y los valles ardientes (…) Así pues, la población quedó distribuida en dos grandes grupos
de razas y castas; en las tierras altas, los blancos y blanquecinos y los indios más asimilables; en
5
Em Gobierno y Geografía (1999), de Efraín Sánchez, obra que estuda um dos principais
projeto de mapeamento nacional na Colômbia, a Comissão Coreografia de 1850, o autor
destaca a quantidade de políticos e intelectuais colombianos que se dedicaram a estudar e/ou
escrever sobre a geografia do país.
40
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
las tierras bajas, los negros y negruzcos o pardos, las castas zambas y mulatos. Importa mucho
que no se pierda de vista esa geografía de las razas y castas hispanocolombianas, porque en ella
se encuentra el secreto o la clave de muy importante fenómenos sociales y de casi todas las
revoluciones que han agitado a las republicas de esa procedencia (MARIA SAMPER, 1984, p.
71, grifos meus).
Essa divisão, porém, tinha antecedentes tão notáveis como Francisco José
Caldas e Alexander Von Humboldt. O possível plágio que Humboldt fez de idéias de
Caldas é destacado em vários momentos por intelectuais colombianos do século XIX
(Ver SERJE, 2005). Humboldt teria se apropriado, por exemplo, das idéias de Caldas
sobre “la geografía de las plantas”. A geografia das plantas é uma das principais
contribuições do naturalista alemão à narrativa nacional colombiana. A idéia de que as
espécies naturais mudam de acordo com a altitude, levam Caldas e/ou Humboldt – ou os
dois – pensarem na idéia de que as qualidades humanas também variam de acordo com
a altitude, seguindo o determinismo geográfico e climático tão comum à época. Assim,
a idéia de que a civilização apenas pode medrar nas zonas temperadas era sustentada
numa hierarquia entre as zonas temperadas e as zonas quentes, que ambos chamam
zonas tórridas.
As duas citações ajudam a sustentar as semelhanças entre os escritos dos
naturalistas José Francisco Caldas e de Alexander Von Humboldt. Em 1806, Caldas
escrevia:
El ángulo facial, el angulo de Camper, reuni casi todas las cualidades morales e intelectuales del
individuo… El europeu tiene 85° y el africano 70°, que diferencia entre esta dos razas del género
humano. Las artes, las ciencias, la humanidad, el imperio de la tierra es el patrimonio de la
primera, la estolidez, la barbarie y la ignorancia son dotes de la segunda. El clima ha formado
este ángulo importante, el clima que ha dilatado o comprimido el cráneo, ha tambien dilatado y
comprimido el alma y la moral… El africano de la vencindad del ecuador vive desnudo bajo de
chozas miserables... simple, sin talentos…. Lascivo hasta la brutalidad, se entrega sin reserva al
comercio de las mujeres. Éstas, tal vez más licenciosas, hacen de rameras sin rubor y sin
remordimientos. Ocioso, apenas conoce las comodidades de la vida, a pesar de poseer un país
fértil… pasa sus días en el seno de la pereza y de la ignorancia. Vengativo, cruel, celoso con sus
compatriotas (CALDAS,1941, p. 147).
Para el momento del descubrimiento de Nuevo Mundo, o mejor, para cuando los españoles
invadieron por primera vez los pueblos americanos, eran los grupos montañenes los más
avanzados en cuanto a su cultura... Allí donde el hombre que, sujeto a un suelo poco fértil y
forzado a luchar contra los obstáculos que le opone la naturaleza, no sucumbe a esta prolongada
lucha, las facultades de se desarrollan más fácilmente (…) En aquella región equinoccial de
América, donde se ven sabanas siempre reverdecidas como suspendidas por encima de las nubes,
solo se han encontrado pueblos civiles en el seno de las cordilleras, cuyos primeros progresos en
las artes eran tan antiguos como la extraña forma de su gobiernos, tan poco favorables a la
liberdade individual (HUMBOLDT Apud SERJE, 2005, p. 32-33, meus grifos).
42
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
43
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
começou a ser uma preocupação, e uma possibilidade real. Neste contexto, a afirmação
de um centro civilizador andino era mais do que imprescindível, era urgente. José Maria
Samper, então, se entregou à tarefa de fazê-lo. Ele inscreve na geografia da civilização e
da barbárie os problemas da sociedade colombiana como as agitações políticas
regionalistas e as constantes guerras civis, que ele chama de revoluções. A obra de José
Maria Samper, contextualizada, possibilita perceber seu potencial normatizador do
território nacional, bem como a inscrição de uma imagem da nação que conseguisse unir
as diferenças num sentido comum. A nação é a luta da civilização andina contra a
barbárie “calentana”.
Este mapa nacional se efetiva, porém, com o que chamo de narrativas de
dominação territorial. Ao mesmo tempo, e sob as mesmas pressões, que era necessário
afirmar um centro civilizado, era preciso enviar a civilização às margens na forma de
figuras com grande autoridade social como um naturalista ou um poeta. Quem leva essa
civilização às margens da nação, simbolicamente, são personagens como Don
Demóstenes, Arturo Cova e o personagem/narrador de 4 años a bordo de mi mismo. Um
naturalista e dois poetas. Eles se colocam como a vanguarda da nação, como seus olhos.
Os textos que produzem são os diários da expansão da nacional e o discurso
cartográfico que manipulam corrobora a barbárie, o selvagismo ou o primitivismo
“calentano”. Sem essas obras e estes personagens dificilmente o projeto de nação que as
elites andinas estruturaram e defenderam durante todo o século XIX e que seguiu por
grande parte do XX, não teria sido erigido como a imagem da nação.
Enfim, em 1860, estava se definido as linhas fundamentais da imagem da nação
colombiana como luta da civilização contra a barbárie, o selvagismo e o primitivismo
interno à própria nação. A contradição desse argumento é que mesmo assim, mesmo
estas terras sendo percebidas como pólo negativo da nação, sem estes outros nacionais,
as imagens vencedoras da identidade colombiana, argentina, e etc., não teriam sido
possível. Essa presença deu às elites colombianas, por exemplo, a oportunidade de se
afirmar como civilizadas e civilizadoras em tão alto grau quanto as elites européias.
Martinez (2001) fala da frustração destas elites colombianas quando não eram
reconhecidas como tal pelas elites européias e cita o caso do próprio José Maria
Samper, quando foi introduzido nos salões de Paris, e percebeu que os franceses que ele
considerava seus iguais o receberam com reservas. Grande parte da obra de Samper foi
44
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
escrita com o propósito de afirmar o papel civilizador das elites andinas frentes as
populações “calentanas” na Colômbia.
Este mapa simbólico da nação baseado na hierarquia territorial entre Andes e
“tierras calientes”, contudo, está relacionado com outro tipo de texto: a narrativa de
viagem ou a narrativa que teatraliza a viagem como forma de reforçar, baseada na
autoridade da narrativa de viagem, este mapa nacional da civilização e da barbárie,
selvagismo e primitivismo. As narrativas a que me refiro, Manuela, La voragine e 4
años abordo de mi mismo, dramatizam esta expansão da civilização, e tornam
impensável a vitória deste projeto sem sua participação. Elas não trazem muito de novo
no que diz respeito ao mapa simbólico da nação. Mas elas funcionam de modo a
reafirmar a dominação territorial das margens pela nação. Não acredito que seja
possível pensar estas narrativas sem levar em consideração o contexto no qual foram
escritas.
Uma breve descrição destes contextos ajuda a estruturar a hipótese que guia este
trabalho, qual seja, tais narrativas funcionam como narrativas de dominação territorial.
A primeira destas narrativas foi Manuela de Eugênio Díaz Castro, escrita entre 1958 e
1959, e publicado na forma de folhetim no jornal El mosaico. Dois anos antes de ser
Jose Maria Samper publicar seu Ensayo sobre las revoluciones políticas y la condición
social de las repúblicas colombianas a qual me refiro acima. De modo que o pano de
fundo desta obra é o mesmo que descrevi acima: a instável década de 1850, e a possível
fragmentação do território em unidades nacionais autônomas, seguindo o princípio
federalista do liberalismo radical (ver MARTÍNEZ, 2001).
A segunda destas narrativas, La voragine, de José Eustasio Rivera de 1924, e a
terceira, 4 anos a bordo de mi mismo, de Eduardo Zalamea Borda, de 1934, ocorrem
num momento de grande tensão fronteiriça tanto na fronteira amazônica quanto na
fronteira caribenha. A fronteira amazônica estava em disputa com Venezuela e Brasil
por causa da exploração da borracha, e havia uma grande preocupação do estado
colombiano no sentido de demarcar suas fronteiras e assegurar sua integridade
territorial, inspirado no exemplo do Acre, que o Brasil comprou da Bolívia em 1903.
Em 1922, se constitui a comissão fronteiriça multinacional para a demarcação da
fronteira entre os três paises e José Eustasio Rivera faz parte da comissão como
representante do governo colombiano. Por outro lado, em 1919, a “Liga Costeña” havia
feito as elites andinas se preocuparem com a histórica insurgência “costeña”, e com a
45
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
possibilidade separatista (Ver POSADA GARBÓ, 1998) menos de vinte anos depois da
independência do Panamá.
Esta conexão entre contexto histórico e narrativa de descida Andes/ “tierras
calientes” sustenta a hipótese de que estas narrativas, por um lado reforçam a mapa
simbólico da nação, e, por outro, funcionam como reafirmação da dominação territorial
do centro andino sobre as “tierras calientes” em geral, o vale do Magdalena, os “Llanos
orientales” e “La Costa” em particular. Essas narrativas reafirmam a hierarquização
geográfica, bem como lembram as elites colombianas o que é a história nacional, a luta
da civilização contra a barbárie.
Enfim, estas narrativas ou esquema de descida dos Andes às terras tropicais,
estão ancoradas tanto no mapa simbólico da nação que homens como Francisco José
Caldas e José Maria Samper construíram e que informaram o pensamento das elites
andinas sobre si mesmas e sobre as regiões tropicais, bem como estão fundamentadas na
viagem como experiência reveladora e como método de conhecimento com grande
autoridade social desde Humboldt. Elas, estando a serviço do poder, teatralizam a
atualização continua do mapa nacional e da dominação territorial que a nação projeta
sobre suas periferias. São os olhos da nação.
46
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
José Maria Samper. Se Manuela não é a mãe do Ensayo sobre las revoluciones
políticas, esse romance com certeza prepara diretamente a recepção na Colômbia e em
Bogotá em particular da obra de Samper. De qualquer modo, não é esse o ponto de
interesse aqui. As idéias de ambos respondem a um momento social tumultuoso e de
risco para o projeto de nação que ambos defendiam.
A preocupação com geografia, como já se disse, e a quantidade de políticos e
intelectuais colombianos que se dedicaram a ela, levaram muitos a viajar efetivamente
tentando descrever e dar a conhecer a geografia nacional e suas fronteiras. Simbolizar
tais narrativas, contudo, como uma descida dantesca do paraíso ao inferno (MENTON,
1986), resulta um dos modos mais usados de atualizar e reafirmar o discurso nacional.
Depois de Díaz Castro, os intelectuais colombianos, usaram o esquema da viagem
Andes/“Tierras calientes” de muitos modos. Mas sempre retornando a hierarquização
geográfica e racial, bem como a reafirmação do centro civilizador andino.
Manuel Ancísar, na coleção de crônicas Peregrinación de Alpha por las
provincias del norte de Nueva Granada en 1850-1851, de 1870, escreveu: “Detrás de
mi dejaba a Bogotá y todo lo que forma la vida del corazón y de la inteligência: delante
de mi se estendia las no medidas comarcas que debía visitar en mi largo peregrinación”
(ANCISAR, 1984, p.15). Ancízar publicou estas linhas como sua contribuição aos
trabalhos da Comissão Coreográfica, que foi contratada para estudar a geografia
colombiana e desenhar um mapa oficial do país. Ele, contudo, não resistiu à fascinação
de transformar seu relato numa reafirmação do que dois antropólogos chamaram
(AROCHA, & DEL MAR, 2006) andinocentrismo colombiano.
Do mesmo modo que Ancízar, Medardo Rivas, reuniu as crônicas de suas
viagens às “terras calientes”, alguns ano depois, em 1899. Ele rescreveu as crônicas e
compôs o livro Los trabajadores de tierra caliente onde descreve o que ele chama de o
processo de civilização das terras quentes do vale do rio Magdalena. Sua narrativa é
memorialista, e o que ele deseja é resgatar a memória do projeto liberal de civilizar as
terras quentes que havia sido abandonado pelo regime conservador. Nas suas páginas
podemos ver as mesmas imagens que consagrou Díaz Castro, via Caldas, Humboldt, e
etc.
Os narradores como Díaz Castro, todavia, produziram uma imagem muito mais
poderosa, pois ao dramatizarem a descida de um intelectual andino às terras baixas
tropicais, atualizavam o andinocentro e o barbarismo “calentano”. Eles produziram e
47
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
48
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Las guacamayas, los loros, las catarnicas, los pericos grandes, los pericos chillones, los pericos
cascavelitos, que todos son de la comparsa de los del pico redondo. Ahora las guapas, los lulúes,
los cauchaos, los toches; más micos, los cuchumbíes, los ulamáes, las arditas, y un sinnúmero de
los de cuatro patas… ¡Y véalos allá!... ¡Ah, cochinos, ah, pícaros, ahí le va piedra! (DÍAZ
CASTRO, 2003, p.76).
49
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
los micos que habían asomado a la orilla de la roza en número de veinte o treinta, y Pía les tiró
varios hondazos, con lo cual les hizo volver caras. Vinieron en seguida algunos cuarenta o
cincuenta pericos que son de la familia de los papagayos, y se sentaron en la mita de la roza, pero
con la primera pedrada tuvieron para volver a volar levantando una vocería de lo más espantoso,
muy propia para confirmar la aserción de Humboldt cuando dice, que el ruido de los torrentes es
ahogado en algunas partes de la América del Sur, por el ruido que hacen los papagayos con sus
chillidos. A todos estos gritos agregaba los suyos la guardiana, diciendo: - ¡Urria, condenados!
¡Largo para otra parte! ¡Urria demonios![Contudo] Las ardillas habían logrado invadir las cañas
de maíz y asustabas con las pedradas, saltaban de mata en mata…. Las guapas también acudieron
a mortificar Pía (…) los pericos y las guacamayas revoloteavan y cambiaban de puestos con un
ruido formidable… Ya se habían perdido de vista las guacamayas, cuando reparó Pía en unos
tres micos…. (DÍAZ CASTRO, 2003, p. 197, 198, 199).
7
A luta natureza-cultura é travada não apenas por Pia, o texto diz que existem outras “rozas”
muito perto dali; e que fustigados pela camponesa, os animais se dirigem às outras plantações.
O interessante é que desta vez a sombra de Humboldt se projeta sobre a cena na forma de uma
afirmação hiperbólica atribuída a ele: o canto dos pássaros abafa(ria) a barulho das águas.
50
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
El gato blanco tenía botas, lo que indicaba ser de la aristocracia de la Nueva Granada; estava
vestido con uma levita blanca y tenía la corbata puesta conforme a la última moda. El gato
colorado tenía ruana forrada de bayeta, estaba calzado con alpargatas, el cuello de la camisa
estaba en el grado más alto de almidón que puede darse y no tenía chaqueta, sino chaleco de una
moda muy atrasada. El rótulo decía en letras de a cuarta: LOS MISTERIOS DE LOS GATOS
(DÍAZ CASTRO, 2003, p. 305).
51
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
52
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
referencia evidente a Caldas, e sua descrição dos negros colombianos. Reforçam essa
afirmação duas outras cenas. Demóstenes e seus ajudantes encontram inscrições pré-
colombianas num monte. Ele força seu ajudante José, descendente de indígenas, a
adorar o sol, ao mesmo tempo em que afirma: “la ley, que protege a los negros [se
referindo à lei de abolição], despoja a los índios, a esta raza noble a la que no se enrostra
sino el ser maliciosa, que es el instinto de todo el que es perseguido” (p.70). Esse
comentário seguido da forma como ele reage e o que ele fala do costume de “bailar el
angelito” (DÍAZ CASTRO, 2003, p. 313), reafirma os pressupostos racistas de Demóstenes:
Yo no me había figurado – les dijo el bogotano – que las preocupaciones humanas llegasen ao
extremo de profanar la tumba; pero lo estoy viendo con mis propios ojos, y no puedo revocarlo a
duda. Los salvajes del Orinoco [lugar por onde Humboldt passou] respetan las cenizas de los
muertos sin atender a las edades, y sólo estaba reservado a los católicos de la Nueva Granada
cometer un acto de barbarie como el que ustedes mismas han perpetrado. (DÍAZ CASTRO,
2003, p. 318, grifos meus).
Ao que parece, pelo trecho acima, “los selvajes del Orinoco” estão mais perto da
civilização que “os bárbaros” negros e mestiços “calentanos”. Qualquer semelhança
com os discursos de Caldas, Humboldt, e de Samper, um ano depois, não é mera
coincidência.
Um terceiro quadro de costumes está ligado à música e à dança. Na primeira
noite depois de sua chegada à cidade, ele presencia um baile chamado “Torbellino”.
Depois de desistir de dormir por causa do barulho do baile, ele decide olhar: “Veamos,
dijo, si hay algo(...) por lo cual unos oídos configurados como los mios, puedan
aguantar el suplicio” (DÍAZ CASTRO, 2003, p.23, grifos meus). Nessa altura da narração o
leitor já sabe que aos ouvidos de Demóstenes foram configurados na Europa e Estados
Unidos. A partir disso ele avalia:
Tampoco merece la pena el baile (…) ¡Ir a una vara de distancia de una bella, hoy que la palabra
distancia es un borrón del diccionario! ¡Hoy que Roma se ha puesto a las puertas de Paris con el
telégrafo!... Esto es muy retrógrado…. Esto es contra la instituición del baile, que no se hizo para
huir sino para avanzar; esto es muy colonial sobretodo (DÍAZ CASTRO, 2003, p.24, grifos
meus).
53
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
54
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
8
Esta aliança se concretiza, por exemplo, no caso de José Maria Samper, liberal radical, e
Soledad Acosta, sua esposa, filha do conservador general Acosta. Outro fato interessante,
neste sentido, é que a única criança da trama, o filho de Pía, morre. Na verdade, Díaz Castro
pode ter percebido as conotações negativas que ficariam se por acaso ele deixasse vivo o filho
de Pía. Isso poderia levar à idéia de que existe um futuro para o país relacionado como o
negro e o mestiço, o que, obviamente, não estava nos planos das elites andinas.
55
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
La libertad de cultos, abolición de la prisión por deudas, libertad total de prensa, libertad de
enseñanza, expulsión de los jesuitas, abolición de la esclavitud y abolición de los resguardos
indígenas. Estas reformas, inspiradas en parte por un afán democrático, apuntan sobretodo a
reducir el poder de la Iglesia (…) y debilitar el estado central. La ley de descentralización de
1850 transfiere a los gobiernos de las provincias rentas y gastos hasta entonces centralizados.
Los monopolios estatales sobre el tabaco y las salinas son abolidos. La fuerza pública es
reducida a 2500 hombres, y la intervención del Estado en la beneficencia pública también es
reducida. (MARTINEZ, 2001, p. 66, grifos meus).
A revolução de 1854 teve amplo apoio dos artesãos arruídos pelas importações que a
laisse faire liberal pressupunha e mostrou às elites o perigo que representava os grupos
populares. Numa conjunção de forças conservadores, liberais moderados e radicais,
Melo e seu exercito foi massacrado e o poder retomado pelas elites “democráticas”.
A política livre-cambista havia arruinado muitos artesãos que viram seus
produtos substituídos pelos “civilizados” produtos franceses (ROJAS,2001). Esse foi o
motivo que os levou a apoiarem Melo. As “Sociedades democráticas” que haviam
apoiado os radicais foram acusadas de anti-democraticas. Além das reformas liberais
provocarem a ira dos artesãos bogotanos – bem como dos artesãos de Santander, que
também foram arruinados pela importação de chapéus europeus –, os conservadores,
amplamente apoiados pela Igreja, estavam descontentes. Entre eles, Eugenio Díaz
Castro.
Os conservadores se opuseram às reformas liberais porque elas pressupunham o
enfraquecimento do poder da Igreja, o que era representado, naquelas reformas, pela
liberdade de ensino e pela expulsão dos jesuítas. Outro ponto de conflito era a
descentralização do Estado. Seguindo o modelo americano, “La república modelo”, os
liberais descentralizaram o poder do Estado a ponto de que as províncias eram
independentes de fato e não de direito. Neste contexto, segundo Múnera (2005), urgia a
necessidade de se afirmar e impor um centro civilizador andino às províncias semi-
independentes, que ameaçavam se independizar totalmente a qualquer momento. A
viagem de Don Demóstenes é simbólica neste sentido.
Mesmo orientados por perspectivas políticas diferentes, contudo, conservadores
e liberais se uniram contra o general Melo em 1854. Deste fato, Díaz Castro retira um
56
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
juízo universalizante. A nação deve se estruturar futuramente pela união dos dois
partidos. Sua luta verdadeira, assim, é contra os elementos bárbaros que ele percebe
nestes grupos populares, e que pode ser melhor compreendido pelos costumes
“calentanos” 9. Uma nação como a luta da civilização contra a barbárie é o que se saiu
do relato de Díaz Castro. Ela será atualizada nas narrativas de Jose Eustasio Rivera e
Eduardo Zalamea Borda.
O fato de Don Demóstenes visitar as terras baixas sem estabelecer qualquer
projeto de união entre os diferentes nacionais, leva à reafirmação do mapa nacional
hierarquizado. Mas o fato de sua viagem estar relacionada à tentativa de inscrever estas
regiões como lócus do futuro nacional, como observa Serje (2005), apesar de ser a
inevitável heranças do colonialismo espanhol – lembre-se do “baile” colonial de
Manuela –, estas terras sustentam o futuro da nação enquanto projeto. O centro andino
civilizará as terras baixas, essa é a única história da nação. Hierarquizar os territórios é
um primeiro passo. Mantê-los sobre controle é a outra face desta moeda. À medida que
a nação avança sobre estas terras bárbaras, sobre as fronteiras, ela se alcança a realizar
seu destino enquanto luta da civilização contra a barbárie.
Enfim, como diz Serje (2005), a relação da nação com estes territórios está
baseada num duplo critério:
Desde la constitución de 1863 se estableció que estas ‘enormes extensiones selváticas, de gran
potencial económico e incapaces de gobernar a si mismas (…) fueran regidas directamente por el
gobierno central para ser colonizadas e sometidas a mejoras (…) El conjunto de relatos que
media la relación con estos espacios y sus habitantes históricos gira alrededor de dos imágenes
focales. La primera, es la de la enorme riqueza que encierran (…) La segunda imagen focal es de
la violencia constitutiva. La amenaza que representan. (SERJE, 2005, p. 4 e 5).
Não é por acaso, assim, que José Maria Samper estabelece uma íntima relação entre o
que ele chama de geografia das raças e a violência, no país, quando escreve em 1860.
Estas, assim, devem ser pacificadas, mantidas sobre o domínio. São o lócus simbólico
da realizam da missão histórica das elites andinas enquanto gentes civilizadas e
civilizadoras.
9
Os “calentanos” haviam amplamente ajudado a Melo. O pai de Manuela lutou ao lado deste
general em 1854, o que provoca em Demóstenes, quando se fica interado disso, a certeza
quanto ao fato da barbárie “calentana”.
57
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
10
La vorágine de José Eustasio Rivera é um dos três romances colombianos mais conhecidos
no mundo. Sua difusão se compara à Maria de Jorge Issacs e de Cien años de soledad, de
García Márquez. Ver WILLIAMS, 1992.
58
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Wayuu deram a Zalamea Borda. O texto reescrito em 1932 e publicado em 1934 causou
um grande escândalo pelas cenas sensuais que aparecem no decorrer de toda a narrativa;
e mesmo na década de 1940, quando foi reeditado, era considerado excessivamente
sensual (JARAMILLO-ZULOAGA, 1996). Esta mensagem sensual do texto se encaixa
dentro do que teria motivado a viagem: o cansaço que a civilização e seus mecanismos
repressivos provocam no narrador.
Assim como a historia de Cova e Alicia, o texto fala de uma fuga. Neste caso se
foge da civilização às terras da aventura e da sensualidade. A critica à civilização que
está presente no texto se remete aos movimentos de vanguarda europeus, no geral, e à
Freud em particular, que publicou Mal-estar da civilização no mesmo ano que Zalamea
Borda escrevia seu folhetim. A viagem seria a busca dos instintos primitivos reprimidos
pela civilização, principalmente a sexualidade. Essa fuga da regulamentação opressiva
da civilização não pode se efetuar, contudo, fora do que Samper (1984) chamou
geografia da civilização e da barbárie em Nova Granada. Zalamea Borda contextualiza
esta fuga numa das fronteiras do país, Costa Atlântica e em “La guarija”. A pergunta de
porque não o fez em Bogotá ou em qualquer lugar dos Andes assume uma grande
validade. Freud convida a cavar nas cidades civilizadas em busca de seu passado
primitivo, e não se dirigir às terras não civilizadas. A resposta a ela, depois de tudo que
já foi dito acima, é obvia. Dentro da cartografia simbólica da Colômbia existe uma
geografia da civilização e outra da barbárie e selvagismo. Os Andes e as terras tropicais.
O que Zalamea Borda está fazendo é atualizando esta cartografia simbólica da nação e o
pertencimento destas fronteiras, “La Costa” e “La Guarija” à nação. Zalamea Borda está
fazendo o mesmo que José Eustasio Rivera fez alguns anos antes. Por trás do enredo de
amor, traição e abandono de La voragine está a atualização do discurso nacional sobre
as fronteiras da nação.
La vorágine e 4 años a bordo de mi mismo como disse foram criadas no
momento de transição que representou os anos de 1920 e inicio da de 1930 para a
Colômbia. Um novo projeto político estava em construção e efetivação pelas novas
gerações liberais, projeto político que levaria ao poder em 1930 o liberal Enrique Olaya
Herrera. Essa nova realidade política afetava diretamente Bogotá enquanto centro
simbólico da nação. Isso não apenas do ponto de vista político econômico, mas também
cultural. Cidade como Medellín, com a produção de café, e Barranquilla com o
comercio internacional, se tornaram importantes centros culturais modernizantes e se
59
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Puede ser un símbolo espantoso de que 1 y 1, puede surgir un 3. ¡No! ¡Seria terrible! ¿1, ella, y
1, yo, sumados, produciríamos otro 1? ¿Sumados los dos resultaríamos 3? ¡No! ¡No! Me
convertiría en asesino de mí mismo. ¡Sí, en asesino de mí mismo! No en suicida (…) Tengo
miedo, mucho miedo, no de mí mismo sino del otro, de ese 3. (…) El viento, los tiburones, el
11
Algo que está diretamente ligado ao discurso cosmopolita “costeño”, e que será reiterado
continuamente por García Márquez.
60
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
naufragio, ¿qué son ante ese abismo, ciego, sordo, ceñudo y terrible de mi deseo? Todos esos
peligros son débiles fichas de cartón delante de lo terrible que sería eso (…) Meme, Meme, ¿eres
tú quien me ha mostrado esa posibilidad espantosa? (ZALAMEA BORDA, 2003, p. 55 e 56).
A retórica usada neste trecho é uma retórica do “terrível” que lembra claramente
as descrições do Caribe, no sentido de canibalesco, e que é aparentado com o modo
como Cova descreve a selva. A simples possibilidade de que surja um filho do
intercambio sexual com uma mulher “costeña” aterroriza o personagem e o afasta
daquela que até então lhe atraia. Essa repulsa, que lhe vêem com a consciência da
possibilidade do filho, que qualificado de “outro” que é reduzido a um número, o 3, faz
com ele louve o fato de que Meme fique em Riohacha, enquanto ele segue viagem.
Um terceiro elemento que gostaria de levantar é a descrição da natureza como
sendo grandiosa e terrível, que media o primeiro contato destes personagens com as
terras tropicais. No início de La voragine, Cova se aproxima de uma pequena lagoa que
estaba cubierta de hojarascas. Por entre ellas nadaban unas tortuguillas llamadas galápagos,
asomando la cabeza rojiza; y aquí y allí los caimanejos nombrados cachirres exhibían sobre la
nata del pozo los ojos sin parpados. Garzas meditabundas, sotenidas en un pie, con picotazo
repentino arrugaban la charca tristísimo, cuyas evaporaciones maléficas flotaban bajo los árboles
como velo mortuorio. Partiendo una rama, me incliné para barrer con ellas las vegetaciones
acuátiles, pero Don Rafo me detuve, rápido como el grito de Alicia. Había emergido bostezando
para atraparme una serpiente guío, corpulenta como una viga, que a mis tiros de revólver se
hundió removiendo el pantano (EUSTÁSIO RIVERA, 2006, p.94).
el cocinero es de Curazao, negro y mugriento con una cara diabólica y un sombrero de color
61
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
chocolate. Fuma constantemente una pipa casi carbonizada (…) A Meme (...) le gustan los
plátanos y las tortas que fríe en la sartén lentamente, como si friera personas (ZALAMEA
BORDA, 2003, p.13, grifos meus).
Além desta visão calinbanesca do cozinheiro negro, os outros negros lhe parecem sujos,
canalhas. Quando um dos marinheiros negros se oferece para curtir o cachimbo do
personagem, este se pergunta como depois poderá desinfetá-lo (2003, p.18).
62
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Conclusão
63
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Mary Louise Pratt (1999) estuda o relato de viagem como gênero textual e como
ideologia, investigando como o relatar viagens ajudou na reinvenção da África,
América, África e Europa. Um processo de inventar um “eu” e um “outro” num
processo transculturador. A construção do “eu” esta indissociável da cosntruçao do
“outro”. Seguindo Pratt, Serje afirma sobre a nação colombiana:
...uno de los lugares más propicios para explorar los modos concretos en que la Nación produce
diferencia como resultado de su forma particular de apropiar y de imaginar su territorio y sus
sujetos, es su relación con la periferia: con los ámbitos que se extienden más allá de sus
márgenes. No solo porque es allí donde su racionalidad moderna se muestra como espejismo,
donde se hace evidente que sus ideales fundamentales de seguridad, de orden social y orden
estético, de eficiencia y efectividad, tiene un revés, sino porque la producción misma de
‘periferias’, es decir de aquellos que se excluye, es una de sus condiciones necesarias. La
consolidación de la identidad del centro implica la reificación de sus márgenes. Y es allí, a la
sombra del lado oscuro, donde la situación misma de margen devela los sentidos que se ocultan
tras la normalidad y donde es posible visualizar el papel histórico del Estado Nacional como
forjador de alteridades (SERJE, 2005, p. 06).
64
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
65
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMARIO GARCÍA, Oscar. “Etnias, regiones y Estado nacionales. Resistencia y
etnogenese en el Gran Cauca”. Relatos de Nación. La construcción de las identidades
nacionales en el mundo hispánico. Madri: Editorial Iberoamericana, 2005, p. 801-820.
ALMARZA, Sara. “García Márquez, entre el mar y la cordillera”. Revista Brasileira do
Caribe. Ano 01, Vol. 01. Agosto/Dezembro de 2000. Goiania: Editora do CECAB,
2000.
ANCISAR, Manuel. Peregrinación de Alpha por las provincias del norte de La Nueva
Granada en 1850-1851. Biblioteca de la Presidencia de Colombia. Bogotá, Banco
Popular, 1984
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Editora Ática,1989.
AROCHA, Jaime y MORENO, Lina del Mar. “Andinocentrismo, salvajismo y
afroreparaciones”. Claudia Mosquera y Luiz Claudio Barcelos (Eds.) Afro-
reparaciones y justicia reparativa para negros, afrocolombianos y raizales. Bogotá:
Serie Editorial estudios Afrocolombianos/Centro de Estudios Sociales, Universidad
Nacional de Colombia, 2006.
BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
BENÍTEZ ROJO, Antonio. La isla que se repite. Barcelona: Editorial CASIOPEA,
1998.
BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão
crítica sobre a idéia de região”. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1998.
CABALLERO CALDERÓN, Eduardo. El buen salvaje. Madrid: Ediciones Destino:
1966.
CALDAS, Francisco José. “El influjo del clima sobre los seres organizados”. Estudios
Varios de Francisco José Caldas. Bogotá: Colcultura, 1941.
CAMACHO DELGADO, José Manuel. Cesares, tiranos y santos en ‘El otono del
patriarca’. La falsa biografia del guerrero. Sevilla: Diputación de Sevilla, 1997
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Edusp, 1998.
66
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
COCA, César. García Márquez canta un bolero. Madri: Biblioteca Nueva, 2006.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Vol. 1. Petrópolis: Editora Vozes,
1994.
DEAS, Malcom. Del poder y la gramática y otros ensayos sobre História, política e
literatura colombianas. Bogotá: Taurus, 2006.
DÍAZ CASTRO, Eugenio. Manuela. Bogotá: Casa Editorial El Tiempo, 2003.
FALS BORDA, Orlando. “Ordenamiento territorial e integración regional en
Colombia”. La insurgencia de las provincias. Hacia un nuevo ordenamiento territorial
para Colombia. Bogotá: Siglo Veintiuno Editores, 1988.
FALS BORDA, Orlando. “Ordenamiento territorial e integración regional en
Colombia”. La insurgencia de las provincias. Hacia un nuevo ordenamiento territorial
para Colombia. Bogotá: Siglo Veintiuno Editores, 1988.
GAITÁN DURAN, Jorge. “Diários – 1950/1960”. Obra de Gaitán Duran. Bogotá:
Instituto Colombiano de Cultura, 1972.
GALLEGOS, Rómulo. Doña Bárbara. Madrid: Catedra, 2007.
GERBI, Antonello. O novo mundo. História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, Roberto. Mito y archivo. México: Fondo de Cultura
Economica, 2000.
GUILLÉN, Nicolás. “West Indies, Ltd”. Antologia Poetica. Madrid: Cátedra, 2005, p.
88-99.
GUILLÉN, Nicolás. “Nicolás Guillén en Colombia”. Viajeros extranjeros por
Colombia. Organizado por José Luis Díaz Granados. Bogotá: Presidencia da Republica,
1996.
GEERTZ, Clinfford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
GUAZZELLI, César Augusto Barcelos. “A crise do sistema colonial e o processo de
independência”. História da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre: Editora da
UFRGS,1996, p. 121-171.
HENRIQUES, Isabel Castro. Território e identidade. O desmantelamento da terra
africana e a construção da Angola Colonial (1872-1926). Lisboa, 2003, texto avulso.
HENRY, Paget. Caliban’s reason. Nova York: Routledge, 2000.
ISAACS, Jorge. Maria. Madrid: Catedra, 2007.
LIMA, Edvaldo Pereira. Colômbia. Espelho América. São Paulo: Perspectiva, 1989.
LIMA, Luiz Costa (Org). A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LOPEZ DE MESA, Luis. De como se há formado la nación colombiana. Bogotá:
Librería Colombiana, 1934.
MARTÍNEZ,Frédéric. El nacionalismo cosmopolita. La referencia europea en la
construcción nacional colombiana (1845-1900). Bogotá: Banco de la República, 2001.
MENTON, Seymour. La novela colombiana. Planetas y satelites. Bogotá: Plaza y
Janés, 1986.
MORENO BLANCO, Juan. La cepa de las palabras. Ensayo sobre la relación entre el
imaginário wayuu y la obra de García Márquez. Kassel: Ediciones Reincheberger,
2002.
67
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
68
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
69
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
70
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
1
As reflexões presentes neste artigo são parte da pesquisa ainda em andamento, realizada no Programa de
Pós-graduação da UFG, para a confecção da Dissertação de Mestrado, provisoriamente intitulada: “Os
Direitos Humanos e a memória: o debate sobre a Bioética na segunda metade do século XX”.
72
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
das pesquisas envolvendo seres humanos e das políticas de saúde neste país. Em sintonia
com a política neoliberal adotada pelo governo brasileiro, a incorporação de um
instrumental teórico oriundo dos Estados Unidos que norteasse as pesquisas na área da
saúde parecia inserir ainda mais o Brasil na agenda global de discussões e nos crescentes
esforços em prol do controle e normatização das práticas científicas.
A adoção do Principialismo nas políticas de saúde, contudo, foi posterior à sua
ampla aceitação na comunidade científica, ou àquilo que chamaremos, na linha do
professor Estevão Martins, de “burguesia acadêmica” 2 (2004). Nas publicações
especializadas sobre Bioética, profissionais de saúde de diferentes universidades
rapidamente demonstraram ter incorporado a linguagem dos princípios, transitando com
familiaridade entre os termos autonomia, beneficência, não maleficência e justiça e
buscando nesse referencial teórico um instrumento para a resolução dos problemas
relacionados à saúde pública no Brasil. Embora, no início, o termo Principialismo não
aparecesse explicitamente, a influência da Bioética anglo-americana era evidente,
sobretudo quando a postura desses profissionais converteu-se em algo mais engajado, com
o empenho dos bioeticistas em prol da normatização da Bioética no Brasil. Essa militância
evidenciou-se nos artigos da Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, principal
publicação sobre Bioética daquela época. Tais esforços culminaram, em 1996, com a
publicação da resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, que traçou as diretrizes e
normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Como
referencial teórico, o CNS adotou a Bioética principialista estadunidense 3 (ou teoria dos
princípios), que articula quatro referenciais básicos norteadores de pesquisas envolvendo
seres humanos: a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça. No texto da
resolução, estão claros os princípios que a embasaram, embora tenha sido ignorado que
eles, em conjunto, constituem apenas um entre os diversos modelos teóricos produzidos
2
Refiro-me aqui aos profissionais, sobretudo da área médica, vinculados a universidades brasileiras, que
escreveram para a Revista no período de 1993 a 2005. Através dos artigos e ensaios nela publicados, eles
procuraram indicar caminhos para uma possível síntese da bioética principialista, que desse conta da
especificidade cultural brasileira. Apesar disso, revelaram um sentimento generalizado de identificação com
os valores embutidos no processo civilizatório do qual fizemos (fazemos?) parte e que estavam, naquele
contexto, sob a forma da moral principialista. (conf. MARTINS, 2004)
3
O Principialismo surgiu nos Estados Unidos em 1978 e foi elaborado pelos eticistas Tom Beauchamp e
James Childress. A teoria foi apresentada no livro Principles of Biomedical Ethics.
73
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
No ano posterior à publicação dessa resolução, 1997, foi aprovada a primeira lei
brasileira elaborada a partir dos pressupostos da Bioética principialista: a Lei da Doação
Presumida, referente à transplantação de órgãos no Brasil. A nova versão da legislação de
transplantes (a primeira datava de 1992) foi um passo importante para a consolidação do
Principialismo neste país, embora não tenha sido explicitado, novamente, que a lei tinha
como referencial a teoria dos princípios. Apesar disso, essa orientação ficou clara nas suas
diretrizes e foi evidenciada nas polêmicas decorridas após a promulgação da lei, em virtude
dos conflitos entre normas que se baseavam, de um lado, no princípio da autonomia, e
outras que estavam calçadas no princípio da beneficência. Esses referenciais,
aparentemente harmônicos, abriram um largo debate sobre os limites que separam a
autonomia do paciente sobre o próprio corpo e o dever dos profissionais de saúde e do
Estado de garantir a manutenção da vida, através da transplantação de órgãos. Essa e outras
discussões, como a questão da eutanásia, das pesquisas com células-tronco, da alocação de
recursos da saúde de forma equitativa e justa estão na pauta do dia desde a década de 90 e
têm sido temas de debate entre profissionais de diversas áreas, como médicos, biólogos,
cirurgiões-dentistas, antropólogos, filósofos, teólogos e juristas.
Esses debates, contudo, estiveram, durante alguns anos, sob a égide do
Principialismo. Todas as avaliações acerca de temas relacionados à saúde eram feitas
acriticamente à luz dos quatro princípios, como se instrumentalizá-los e buscar um possível
ajuste entre eles fosse a saída para resolver os problemas relacionados à saúde pública no
Brasil. Nas publicações especializadas, a reflexão sobre a adoção do Principialismo como
modelo teórico norteador das políticas públicas na área da saúde só se deu a partir de
74
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
meados da década de 90. De lá para cá, artigos e ensaios sobre o tema têm sido
freqüentemente publicados: algumas vezes, com críticas a essa adoção irrestrita e irrefletida
do modelo estadunidense e sua rápida incorporação nas políticas de saúde brasileiras; em
outras, com esforços de traduzi-la à “realidade brasileira”, buscando na flexibilidade desse
modelo teórico uma saída para defender sua incorporação nas políticas públicas voltadas
para a saúde no Brasil.
Essas tentativas são respostas às críticas de que o Principialismo parte de uma moral
universalista, que desconsidera a existência de múltiplas identidades. Ao articular em torno
de quatro princípios um discurso humanista que se pretende válido para todo e qualquer
contexto, a doutrina estadunidense passou a ser alvo de críticas no mundo ex-colonial. Não
há indicativos, contudo, de que os bioeticistas brasileiros tenham desconfiado de que o
Principialismo seja uma nova faceta da dinâmica imperial (PRATT, 1994). As críticas a ele
voltam-se muito mais aos seus aspectos teóricos e sua aplicabilidade à realidade cultural
brasileira. Esses apontamentos apresentam, na maior parte das vezes, um caráter
nacionalista, buscando fundar a identidade Bioética brasileira no contraste com os
pressupostos da Bioética anglo-americana, e não simplesmente através da sua assimilação,
como havia sido nos primeiros tempos (MARTINS, 2004).
O caráter homogeneizador do Principialismo, em confrontação com as tentativas de
demarcação da diferença na Bioética brasileira, é o tema deste artigo. Proponho a análise de
uma das principais publicações brasileiras sobre Bioética: a Revista Bioética, do Conselho
Federal de Medicina (1993-2005). Nesta abordagem, pretendo avaliar o impacto das
discussões sobre identidades nas publicações especializadas sobre Bioética: como os
profissionais de saúde e eticistas brasileiros têm tentado considerar as micro-identidades
frente ao discurso universalista do Principialismo? Até que ponto os bioeticistas brasileiros
acreditam que a teoria dos princípios, dada sua flexibilidade, será capaz de dar conta dos
conflitos que envolvem questões relacionadas à saúde pública no Brasil? De que maneira
essa “burguesia acadêmica” tem tentado traduzir o Principialismo, produzir uma síntese que
confira a ele sentido dentro da dinâmica cultural brasileira? Qual caminho a Bioética
brasileira está trilhando e quais são as suas propostas para, em torno do amplo conceito de
cidadania, agregar múltiplas identidades?
75
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
4
O termo “consentimento informado” foi utilizado pela primeira vez em 1947, no Código de Nuremberg, e se
refere ao direito que os pacientes têm de decidir voluntariamente se desejam ou não participar de alguma
experiência ou serem submetidos a determinado tipo de tratamento terapêutico. O Código foi produzido no
calor das discussões sobre as experimentações com seres humanos nos campos de concentração nazistas,
durante a Segunda Guerra Mundial.
76
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Em uma época em que a Bioética ainda não havia sido normatizada no Brasil, os
profissionais de saúde (cujos artigos embasaram-se, em grande medida, em autores de
língua inglesa) apresentavam um pensamento bioético com traços anglo-americanos. O
Principialismo, teoria mais difundida no mundo ocidental, desde a década de 80, no que
versa sobre os estudos bioéticos, estava sendo adotado no Brasil irrefletidamente, sendo
todas as questões relacionadas à saúde discutidas à luz dos seus referenciais. A autonomia,
contudo, era priorizada em detrimento dos outros princípios. A exemplo dos fenômenos
integracionistas e globais que marcavam o mundo pós-Guerra Fria, a Bioética brasileira
germinava nutrida pelo mais amplo e universal dos valores: o individualismo. Era na
satisfação das vontades e no respeito à autonomia individual que a moral universalista do
Principialismo era assimilada pelos eticistas brasileiros.
Ainda em 1993, o CFM publicou o segundo número da Revista, agora voltado para
os conflitos bioéticos referentes a pacientes terminais. Embora ainda não seja feita menção
à corrente principialista, seus referenciais são generalizados e tomados como pressupostos
da Bioética em si. A matriz principialista se confunde com a própria Bioética. Jefferson
Pedro Piva e Paulo R. Antonacci Carvalho, ambos membros do Departamento de Pediatria
e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS, no artigo “Considerações Éticas nos
Cuidados Médicos do Paciente Terminal”, defendem que a discussão sobre a atuação
profissional do médico em casos de pacientes terminais deverá ser feita a partir dos quatro
princípios: a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça, que deverão ser
superpostos de acordo com o quadro clínico do paciente, ou seja, salvável, inversão de
expectativas ou morte inevitável. A autonomia deveria ser priorizada em casos de pacientes
com grandes chances de sobrevivência, mas, na medida em que o quadro se agravasse,
caberia aos profissionais de saúde decidir sobre os procedimentos mais adequados visando
à cura do paciente (beneficência), sempre tendo em mente o princípio hipocrático
juramentado: “não causar dano” (não-maleficência).
Já Joaquim Clotet, professor de ética e filosofia da PUC-RS, no artigo intitulado
“Reconhecimento e Institucionalização da Autonomia do Paciente: Um Estudo da The
Patient Self-Determination Act”, no mesmo número da Revista, defende a autonomia do
paciente terminal, que deverá ter sido consultado previamente (antes do seu quadro clínico
se agravar) sobre o tipo de tratamento a que gostaria de ser submetido. Como fundamento
77
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
para sua argumentação, ele utiliza o conteúdo da lei estadunidense "The Patient Self-
Determination Act (PSDA)" (A Lei da Autodeterminação do Paciente), vigente desde 1991.
No primeiro número de 1994, a Revista Bioética apresentou uma discussão sobre o
aborto que se pretendia multidisciplinar. Foi a primeira vez que um historiador escreveu
para a Revista. A professora Mary Del Priori, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, publicou artigo sobre a preocupação com a prática abortiva no Brasil
colonial, quando tanto médicos quanto a Igreja Católica preocupavam-se com a questão do
povoamento da colônia, sendo o aborto uma ameaça a esse intento. Os demais artigos,
contudo, foram produzidos por profissionais da área da saúde, especialmente médicos.
Novamente, a questão da autonomia norteou a escrita dos textos. O professor da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo, Cláudio Cohen, ressaltou que o exercício da
autonomia deveria pressupor autoconhecimento. Para o autor, o indivíduo deverá estar
cônscio das regras e valores sociais e da sua estrutura individual para poder exercer o livre-
arbítrio. Uma postura verdadeiramente ética deveria perpassar por essa interação que,
embora conflitiva, permite ao sujeito tomar decisões autônomas e, ao mesmo tempo,
condizentes com os princípios da sociedade em que vive.
O pensamento do professor Cohen sintetiza a lógica do pensamento dos bioeticistas
brasileiros dos dois primeiros anos da Revista Bioética: a reflexão sobre os problemas de
saúde voltava-se para questões polêmicas que envolviam a autonomia do paciente e tabus
da sociedade brasileira. Os temas selecionados pelos bioeticistas estavam em estreita
relação com os movimentos de emancipação feminina e liberdade sexual e seus
desdobramentos nas décadas de 80 e 90. De um modo geral, os assuntos de que a Bioética
brasileira procurava tratar tinham, naquele momento, uma orientação diferente do que
acontecia nos Estados Unidos. Se, aqui, a Bioética surgiu voltada para discussões
persistentes da sociedade brasileira, lá, ela servia como instrumento de reflexão sobre as
conseqüências da utilização de novas biotecnologias. O que dava o tom à Bioética
estadunidense era o biocatastrofismo 5, que permeava as discussões filosóficas sobre o
futuro da humanidade frente aos avanços da ciência.
5
Entenda-se por biocatastrofismo o discurso de alerta sobre os possíveis perigos que a ciência oferece à
humanidade, anunciando a desumanização do homem e o fim da história (LECOURT, 2005).
78
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Novos Desafios para a Bioética”, em que ele apresenta discussão sobre temas emergentes
nos estudos bioéticos. Para o autor, os rápidos avanços tecnológicos e a potencialização da
capacidade de intervir no corpo humano haviam tornado premente a necessidade de
normatização da Bioética no Brasil. O autor sugeriu a criação de um Código de Conduta
Bioética, a exemplo do que já havia ocorrido em países como a Inglaterra, Suécia,
Alemanha e Estados Unidos, que incorporasse a legislação de 1992 sobre transplantes e os
impasses colocados pelo surgimento de novas biotecnologias. Esse texto marca o início de
uma nova fase da Revista, agora mais engajada politicamente, em que se notará um esforço
em prol da incorporação dos princípios bioéticos nas políticas de saúde brasileiras e sua
normatização através de códigos de conduta e legislações específicas. Os temas
diversificam-se, passando a Revista a tratar dos desafios impostos pela introdução de novas
biotecnologias no Brasil. O discurso biocatastrofista vai sendo paulatinamente incorporado.
Os referenciais do Principialismo continuam sendo naturalizados, não havendo a
confrontação com outras correntes, nem mesmo uma reflexão sobre a adoção desses
princípios.
80
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Desta sorte, para além dos problemas éticos levantados pela genética e
pela necessidade agravada da distribuição dos escassos recursos existentes que
serão os grandes temas do futuro da Bioética, independentemente das fronteiras,
há outros que alcançarão maior relevância na Europa e, assim, em Portugal
também. São eles: questões relativas à população, sobretudo o seu
envelhecimento nos países ocidentais, em contraposição à explosão demográfica
em países subdesenvolvidos, e questões ecológicas, principalmente a urgente
81
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
6
A autora faz referência à acepção original do termo bioética, cunhado pelo médico norte-americano Van
Ressenlaer Potter, em 1971 na obra: “Bioethics: bridge to the future”. Para ele, a bioética era uma “ciência da
sobrevivência” e deveria ser um instrumento de preservação das condições de vida no planeta. Suas
preocupações eram, em grande medida, relacionadas aos problemas ecológicos.
82
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
83
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Brasil. O relato da experiência portuguesa não foi vinculado a um apelo ao passado colonial
brasileiro; não se tentou apresentar o modelo português como uma alternativa viável ao
Brasil, buscando na nossa filiação européia um tipo de vínculo que justificasse a
incorporação da Bioética de orientação francesa.
7
O termo equidade refere-se a tratar os diferentes na sua diferença, ou seja, conceder a cada indivíduo um
tratamento condizente com as suas necessidades.
84
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
ávidos por novos clientes que tenham sido vítimas de erro médico. Nos Estados Unidos,
são duras as responsabilidades civis e penais que pesam sobre os profissionais de saúde
nesses casos. A autonomia do paciente, exercitada na escolha do procedimento terapêutico
a que será submetido, isenta ou, pelo menos, minimiza a responsabilidade dos médicos.
Dessa maneira, o autor explica, pelo menos parcialmente, a supervalorização da autonomia
naquele país.
85
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
“burguesia acadêmica” foi dada a largada para uma série de discussões sobre a necessidade
de descolonizar o saber bioético no Brasil.
O primeiro número de 1997 da Revista Bioética deixou clara uma nova orientação
no discurso da Revista. Desde o tema escolhido até os artigos selecionados, tudo indicava
uma proposta de reflexão sobre a conjuntura brasileira, sobre os aspectos sociais da saúde
pública, em uma tentativa de análise que ultrapassasse os aspectos instrumentais do
Principialismo. Intitulado "A Ética da Alocação de Recursos em Saúde", o número trouxe
artigos que discutiam os limites que separam a realidade brasileira, no que se refere à saúde
pública, da dos países de centro. Para os autores, a escassez de recursos da saúde era
realidade em todos os países, em virtude do aumento da expectativa de vida humana e os
conseqüentes déficits nos sistemas previdenciários e assistenciais, do alto custo das novas
biotecnologias que, ao mesmo tempo em que ampliavam o leque de possibilidades de cura,
aumentavam também os gastos do Estado com as despesas na área da saúde.
Diferentemente dos países de centro, o Brasil ainda enfrentava outros problemas,
decorrentes da falta de acesso de milhões de pessoas a condições mínimas de saneamento,
que acarretavam, dentre outras, a proliferação de doenças como dengue, malária, Chagas,
esquistossomose e febre amarela. A conclusão a que esses bioeticistas chegaram é de que a
escassez de recursos para a saúde é geral, embora mais grave nos países periféricos. Se, nos
países de centro, cabe às instâncias governamentais priorizar alguns pontos em detrimento
de outros na hora de distribuir os recursos para a saúde, aqui,
86
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Jonas como uma importante ferramenta para se tratar as questões de saúde pública no
Brasil. Para ele, pensar as responsabilidades dos governantes e dos profissionais de saúde
vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) era o primeiro passo para garantir um
atendimento mais justo à população, sobretudo à população mais pobre. Fez crítica à ênfase
demasiada que os Estados Unidos dão à autonomia, ponderando que a sobreposição desse
princípio sobre os demais pode acarretar um excessivo individualismo, que provoque a
ausência de políticas públicas moralmente justas e que efetivamente visem ao bem comum.
Para o professor José Eduardo Siqueira, no artigo “A Evolução Científica e Tecnológica, o
Aumento dos Custos em Saúde e a Questão da Universalidade do Acesso”, a sociedade
moderna é marcada por priorizar a
Esses bioeticistas acreditavam que era hora da Bioética brasileira adquirir uma
postura mais engajada, que buscasse contemplar as questões que diferenciavam o caso
brasileiro dos países de centro, especialmente dos Estados Unidos. Para eles, porém, não se
tratava de questionar os aspectos doutrinários do Principialismo e foi dentro desse
referencial que encontraram uma proposta para a resolução dos dilemas que envolviam a
alocação de recursos da saúde no Brasil: o conceito de justiça ou eqüidade. Justificaram a
importância do conceito de eqüidade vinculando-o aos movimentos de emancipação
feminina e igualdade racial. Segundo Siqueira, esses movimentos teriam sido os pioneiros
na adoção do termo como bandeira de luta. Também a Bioética brasileira deveria adotá-lo,
uma vez que, como eles, apresentava-se agora, de acordo com o autor, como uma voz de
reivindicação de autonomia e reconhecimento frente aos ditames do mundo globalizado.
Em outras palavras, a justificativa para a utilização do termo eqüidade é aproximar a
Bioética nacional dos movimentos identitários que floresceram da supressão do específico
(PARGA, 1992). A Bioética de cunho nacionalista que se propunha deveria partir, portanto,
de uma síntese do Principialismo que desse conta da realidade social do país, com vistas à
instituição de uma realidade social mais justa, marcada pelo respeito aos direitos humanos e
87
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
88
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Entre esses grupos, segundo Xavier, não há comunicação ou diálogo, porque os interesses,
a linguagem, os códigos, tudo é incompatível. É nesse contexto, para a autora, que a ética
ou a Bioética havia se tornado uma “linguagem de surdos”, onde o discurso universalista é
rejeitado porque se tornou uma afronta às reivindicações de autonomia das micro-
identidades. O desafio para a Bioética seria construir uma comunidade marcada pelo
respeito à diferença e ao conflito, onde o consenso e o equilíbrio possíveis provoquem
satisfação e contentamento, em detrimento da perseguição ao bem e à verdade supremos.
Nessa comunidade ideal, o Estado atuaria como mediador, garantindo a todos o acesso à
saúde e o respeito à cidadania.
O pensamento de Xavier não diverge dos demais autores contemporâneos a ela que
escreveram para a Revista: procura-se defender o Principialismo na sua flexibilidade,
apontando o conceito de eqüidade como o meio para se garantir a justiça social e indicar
caminhos para a resolução dos problemas persistentes legados pelo nosso passado colonial.,
Essa autora inaugura, porém, uma nova fase da Revista, já que foi ela a primeira a utilizar
um termo que será recorrente na publicação a partir daquele momento: o conceito de
cidadania, que será tomado como o meio para se atingir o bem-comum, como o caminho
para a satisfação dos interesses individuais e a garantia da promoção de justiça social.
Em uma clara rejeição à discussão sobre identidades, que passa a ser vinculada ao
individualismo e à ausência de laços sociais sólidos, a Revista apresenta no discurso
nacionalista uma possibilidade de particularização do universalismo da teoria dos
princípios. Ressalta a importância de se pensar o caso brasileiro a partir da desigualdade de
tratamento e acesso à saúde, tomadas como reminiscências do passado colonial. Incorpora,
todavia, o Principialismo na sua universalidade, encontrando na maleabilidade desse
instrumento teórico a justificativa para sua incorporação nas políticas de saúde brasileiras.
A cidadania, alcançada a partir de práticas que visem à justiça social, será a base do
discurso humanista adotado a partir desse momento. Ela será o ponto de partida para se
pensar as questões relacionadas à saúde no Brasil
90
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
animais e da própria espécie humana. Para Garrafa, os países periféricos como o Brasil
deveriam ter políticas de saúde que contemplassem não só as questões emergentes, trazidas
pelo desenvolvimento de novas biotecnologias, como as questões persistentes, que
continuavam mantendo milhões de pessoas à margem do desenvolvimento científico e
tecnológico. Essas questões colocavam os seres humanos nas “fronteiras da cidadania e dos
direitos humanos” e deveriam, portanto, ser alvo de políticas públicas que garantissem o
controle estatal sobre essas práticas, a fim de que fosse atingida a justiça social no país.
Embora Garrafa tenha atentado para a pluralidade de valores que marca os nossos
dias, dificultando a padronização de princípios éticos que garantam o bem-estar da
coletividade, ele reafirmou a importância de um pacto coletivo que visasse à garantia da
cidadania a todos e à justa distribuição de recursos para a saúde. Em 2000, quando a
Revista trouxe um simpósio sobre os desafios da Bioética no século XXI, Garrafa (et al.)
retomou o tema da eqüidade e da responsabilidade, ponderando que o controle social sobre
as questões que envolviam a saúde no Brasil era uma meta democrática. Seu enunciado nos
remete ao pensamento do professor Estevão Martins, segundo o qual a nação democrática
funda sua legitimidade sobre a igualdade política abstrata que o conceito de cidadania
representa (MARTINS, 2004). Segundo Garrafa (et al.), era no pluralismo participativo que
a Bioética brasileira deveria se orientar, de forma que todas as pessoas se engajassem em
uma postura responsável em prol de uma saúde pública mais justa. Além disso, chamou-se
91
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
92
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Nessa última fase, o que Revista propôs foi um pacto social em que diversos
segmentos da sociedade voltassem seus esforços para a garantia de uma saúde pautada em
princípios bioéticos. Os referenciais do Principialismo continuavam norteando as reflexões,
traduzidos para tentar atender às demandas sociais brasileiras. A princípio da justiça,
contudo, aparece agora atrelado à ética da responsabilidade, com o objetivo, ao mesmo
tempo, de reforçar o compromisso ético dos profissionais de saúde e garantir que eles
estejam cônscios de que deverão responder por sua conduta nas instâncias governamentais.
A autonomia não é rechaçada, como ocorreu na terceira fase da revista: ela é vista como
uma maneira de garantir a cidadania e o respeito à pessoa humana. A cidadania aparece,
portanto, como um ligamento entre as persistentes tensões entre o particular, o específico, e
os “elementos abstratos (ou abstraídos), de cunho genérico, abrangente, universal,
atribuídos habitualmente à humanidade em si e ao homem em geral” (MARTINS, 2004, P.
27). Esse princípio funciona como “categoria supra-histórica”, que tem como objetivo
garantir a continuidade de valores universais que são generalizados e atribuídos à natureza
humana e que deverão ser organizados em “matrizes nacionais” e operacionalizados em
“instituições estatais” (MARTINS, 2004, P. 27).
93
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
O presente artigo é resultado da análise dos textos publicados pela Revista Bioética,
do Conselho Federal de Medicina, entre os anos de 1993 e 2005. Procurou-se organizar os
textos de referência em ordem cronológica, com o objetivo de visualizar as mudanças no
tratamento dado ao Principialismo a partir das críticas que esse instrumental sofreu em
virtude do seu caráter universalista. As quatro fases em que eles foram, didaticamente, aqui
divididos, naturalmente não refletem a totalidade do que foi publicado na Revista, mas sim,
sua orientação geral. Os textos selecionados e aqui referenciados estão em acordo com o
objetivo do trabalho: optou-se por aqueles que apresentassem alguma reflexão sobre a
adoção do Principialismo como referencial para a institucionalização da Bioética no Brasil.
Não foram mencionadas as vozes isoladas de orientação feminista, que se fundamentaram
no conceito de vulnerabilidade para defender uma Bioética em que se pensasse a
medicalização do corpo feminino e as novas tecnologias de reprodução. Também se optou
por omitir o volume 11, de 2003, em foi apresentado um projeto de cooperação
internacional entre Brasil e Portugal, aproximados pelo vínculo histórico do colonialismo,
onde se propôs discutir semelhanças e diferenças da institucionalização da Bioética nos
dois países. Mais do que preocupado com uma discussão sobre a questão identitária, o
projeto nos parece vinculado ao impulso pessoal dos pesquisadores e seus respectivos
interesses acadêmicos. Isso seria tema para um outro artigo.
saída para defender suas incorporação nas políticas de saúde brasileiras. O Principialismo
não deixa de ser o modelo teórico de referência em nenhum momento, mesmo quando os
bioeticistas brasileiros se voltam para uma “intencionalidade prática utilitarista”,
objetivando pensar os serviços da saúde pública no Brasil. Essa corrente bioética é aqui
entendida como um conjunto de valores humanos e sociais que, a exemplo do sucesso
econômico da empreitada norte-americana, está sendo “fornecido como modelo às nações
ocidentais e imitado por elas” (SANTIAGO, 2006). Eles se apresentam como valores
inquestionáveis, justos e adequados ao progresso geral da humanidade, espalhando-se por
todo o mundo ocidental e sendo incorporados não só ao senso comum, mas ao próprio
discurso acadêmico.
95
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
96
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
98
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Esse conceito estaria enraizado em tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo
original, como acende a teoria marxista. Numa noção mais ampla, é uma concepção
geral que é direcionada pelas relações pessoais e sociais de uma determinada
comunidade em uma dita circunstância histórica. O discurso torna-se transmissor de
ideologia por ser a materialidade ideológica, a sua concretização. Tem-se, assim, uma
consciência falsificada.
Ela sai de si, retorna a si, se precipita, é travada, some, emerge, luta,
se exprime, progride, afirma, nega, sofre, morre, crê, sabe, ignora, se
divide, se reconhece, nos arrasta numa sarabanda desenfreada,
freqüentemente inquieta e de repente apaziguada, se erguendo contra a
evidência e cedendo à força das coisas, conhecendo a boa e a má fé, a
prisão e o despertar da liberdade, se elevando enfim à sua verdadeira
estatura, à atitude forte e modesta deste saber absoluto que conhece
conceitualmente o mundo sem nada acrescentar-lhe e estabelece uma
exigente identidade entre o que é dado e o que é compreendido
(JARCZYK, LABARRIÈRE, 1993; p.22).
99
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
100
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
primeiros anos de 1960. Esperanças no jovem presidente, que chamava uma nova nação
contra a pobreza, a discriminação e males sociais presentes nesta conjectura.
Certamente, era esse o discurso que os norte-americanos queriam ouvir e, mais
do que isso, compartilhar. Kennedy fez-se a voz do discurso norte-americano, fazendo
com que a população confiasse que estavam juntos neste discurso, nesta luta pela
liberdade. Depois da turbulência dos anos 50, da agonia e do desespero pela paz, o
jovem presidente, com seu discurso de paz e de crescimento harmônico, dominou com
palavras a sociedade dos EUA.
O contexto contribui para esse domínio presidencial: o governo de Kennedy
ainda teve a nomeação de negros para cargos públicos como renovação e mudança,
afinal, em 1955 a Suprema Corte dos EUA já tinha determinado o fim da segregação
racial. Entre os servidores públicos, diz-se que os negros eram menos corruptos que os
demais, demonstrando honra e dignidade perante a sua valorização dentro da sociedade.
Além disso, o presidente lançou ementas que proibia a discriminação racial em projetos
habitacionais financiados pelo governo federal. A população norte-americana, junto ao
presidente, deixava assim de ser objeto para ser sujeito da história.
O mundo está diferente. O homem detém em suas mãos o poder de
eliminar todas as formas de pobreza humana e todas as formas de
vida. E ainda as mesmas convicções revolucionárias dos nossos pais,
que lutaram, ainda estão em causa em todo o mundo – a crença de que
os direitos do homem estão não na generosidade do Estado, mas do
lado de Deus.
O mundo realmente estava diferente. Nos anos 60 o mundo viu a rebeldia dos
jovens, inconformados não apenas em uma crise de adolescentes, mas por motivos
sociais, humanos; e viu ainda a sociedade industrial avançando, com toda sua força
destrutiva, expulsando princípios, rompendo relações e homogeneizando a sociedade.
Walter Benjamin (1992) é precursor da idéia de que o progresso tecno-
científico e industrial é portador de catástrofes sem precedentes. Assim, declara um
pessimismo vivo em todos os caminhos. Desacredita-se num futuro que nunca chega,
numa liberdade nunca alcançada. A técnica associada às reflexões políticas torna o
campo recheado de fascínio e, dessa forma, constroem-se os discursos fundamentais,
que dão à massa, aparentemente homogênea, uma identidade fixa – fornecida então pelo
Estado. Idéia de "manipulação de massas" irracionais.
Discursos não só tocam o âmbito teórico fechado, mas atingem um publico
também variado – um projeto moderno que nos apresenta desafios até hoje. O nazismo,
101
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
102
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
China e da União Soviética e o sul, dos Estados Unidos da América. Assim, o Vietnã
tornou-se foco durante a Guerra Fria.
Àquelas pessoas nos casebres e vilas por todo o globo, lutando para
romper com as cadeias da miséria em massa, nós comprometemos os
nossos melhores esforços para ajudá-los a se ajudarem, por qualquer
tempo que seja requerido - não porque os comunistas possam estar
fazendo isto, não porque estejamos em busca de seus votos, mas
porque é justo. Se uma sociedade livre não pode ajudar os muitos que
são pobres, ela não pode salvar os poucos que são ricos.
A Guerra do Vietnã durou entre 1958 e 1975. O envolvimento dos EUA deu-
se baseado num ataque norte-vietnamita aos navios norte-americanos, que patrulhavam
o Golfo de Tonkin, em 1964. No entanto, os soldados estadunidenses sofreram grandes
perdas e se encontravam perdidos em um território desconhecido e amplo, enquanto
seus adversários, os vietcongs, conheciam a região assim como conheciam a palma da
própria mão.
Apesar do discurso promissor de Kennedy sobre os Estados Unidos da
América de que desde que este país foi fundado, cada geração de americanos foi
convocada para dar testemunho de sua lealdade à nação, a população não queria mais
perder amigos e parentes nesta guerra. Enquanto a China e a União Soviética ajudavam
com armas e alimentos, os norte-americanos lutavam com vidas. Como resposta surgiu
o movimento anti-guerra e contracultura. Os estadunidenses queriam que o país se
retirasse daquela guerra o mais rápido possível, e de forma honrosa.
Em 1963, num desfile em Dallas, no Texas, John Kennedy é assassinado. Mas
este não seria o fim, pois deixa em vida um dos pensamentos mais importantes na
ideologia norte-americana:
Eu não creio que nenhum de nós aceitaria trocar de lugar com
qualquer outro povo, ou com qualquer outra geração. Por isso meus
irmãos americanos não perguntem o que o seu país pode fazer por
vocês. Perguntem o que vocês podem fazer pelo seu país. Meus
irmãos do mundo: não pergunte o que a América fará por vocês, mas o
que juntos podemos fazer pela liberdade do homem.
103
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
104
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX. In: Dois ensaios frankfurtianos.
João Pessoa: Idéia, 2004, p. 19.
HOLQUIST, Michael. Bakhtin and his world: dialogism. New York: Routledge, 1990.
105
Artigos
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
ASPECTOS DO BRAMANISMO:
REFORMULAÇÕES E HERANÇAS DO PERÍODO VÉDICO
A sabedoria ortodoxa hindu surgiu da antiga religião ária dos Vedas, escrituras
sagradas que prescrevem rituais, princípios e condutas que devem atuar cotidianamente na
vida do homem. Portanto, determinada concepção religiosa, conhecida como Bramanismo,
constitui as suas bases preliminares no Período Védico compreendido entre os anos de 1500
à 500 aC. A partir do contato estabelecido entre arianos e drávidas, novos valores são
acoplados e resignificados, permitindo assim o estabelecendo da época védica referida.
A religião ária possui como característica marcante, o aspecto patriarcal,
responsável pelas práticas religiosas e formação da sociedade de modo particular. Desta
forma, a vida guerreira baseada em constantes conquistas, possui como referência uma
religião na qual as divindades se apresentam através de uma masculinidade poderosa e
invencível. Em contrapartida, os povos que residiam na Índia anteriormente à chegada dos
arianos, cultuavam o aspecto feminino como suprema inspiração espiritual. Logo, o contato
entre as duas culturas possibilitou uma nova adequação e organização dos princípios de
adoração e relação com o transcendental.
Assim, a concepção védica nascida da mescla ariana-dravídica, pormenoriza
explicações acerca do universo, das ilusões do mundo material, dos rituais, dentre outros
fatores que se relacionam com o sagrado e a auto-realização espiritual. O termo dualismo,
também se impõe com constância na sabedoria védica como um conceito refutado, o qual
discerne as entidades provenientes da suprema divindade e outras cuja origem não comunga
com este aspecto sagrado. Portanto, de acordo com os Vedas, o mundo é não-dual, pelo fato
de o Supremo e suas criações serem os mesmos, provêm de uma mesma essência.
Deste modo, o universo se apresenta como uma manifestação do não-dual, uma vez
que o supremo criador possui em si a consciência completa e a clareza das formas ilusórias
que instituem a idéia dual da vida. Paratanto, o princípio fundamental da sabedoria védica é
108
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
perceber que a sabedoria se volta para o interior, como um local do saber preliminar do
todo, a alma então é aquela entidade plena de conhecimento, mas imersa em um mundo de
contaminações e ilusões.
O Bramanismo, com o passar do tempo, modifica determinadas condutas para a
realização da sabedoria, adquirindo particularidades maiores. Como exemplo marcante,
tem-se a ascensão do “caminho do conhecimento” (jnanamarga), em detrimento do
“caminho da atividade ritualística” (karmanarga). O problema dos detalhes rituais foram
desaparecendo, cedendo lugar à investigação especulativa, onde a identidade secreta das
faculdades e potências do corpo e os poderes do mundo externo, formaram o foco dos
novos estudos (Zimmer, 2005: 249).
Assim, objetivando compreender os saberes provindos da esfera espiritual, inicia-se
um estudo mais focado nas configurações externas e internas ao corpo, que abarcam o
sentido espiritual da existência. Desencadeando então, em uma série de denominações para
os efeitos do mundo, para melhor compreende-lo em sua amplitude. Todavia, o infinito é
posto a parte de qualquer definição, uma vez que ultrapassa os limites de qualquer
conceituação. O universo da espiritualidade completa, em sua profundidade e lógica
próprias, não se faz explicável através dos métodos materiais. A esfera do tangível e do
conceitual é que são passíveis de explicação, sendo aceitas como reflexos e não a realidade
em si. É por isso, que as palavras são tidas como limitadas, pois abrangem somente o
universo material, são insuficientes para esclarecer, na sua completude, a experiência
espiritual. Desta maneira, tanto as entidades vivas (jivas) quanto a natureza material
(prakrti), são manifestações de uma instância superior, altamente abstrata e intangível.
A tradição védica ariana, também se perpetuou no Bramanismo ortodoxo de
períodos posteriores, através da concepção não-dualista da vida. Este pensamento defende
que tanto a realidade Suprema, quanto as suas manifestações mundanas, em essência, são as
mesmas. Conforme a fórmula bramânica, o Universo é uma manifestação de um princípio
transcendente, e por isso não-dual (Zimmer, 2005: 247). Assim, o Bramanismo mesmo em
sua forma inicial, na Antiga Idade Védica, e as suas organizações posteriores, permanece
com o objetivo de encontrar a unidade em um mundo repleto de nomes, representações e
ilusões. Entendendo aqui, a representação como uma resignificação da vida, em suas
dimensões visível e invisível, a partir de abordagens específicas baseadas nas concepções
110
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
de cada seguimento. Deste modo, a representação não é vista positivamente, mas sim como
um mecanismo que permite a transfiguração da realidade em si, realizada por diversos
motivos, como: busca de explicações para a compreensão do mundo, comprovação e
justificação daquilo que se segue e acredita, dentre outros. Assim, a representação e a
manifestação dos aspectos ilusórios, caminham juntos na produção da ignorância da mente
e entorpecimento dos sentidos.
Determinadas ilusões, que afastam a jiva do seu caráter divino, é referida
como Maya. Se constitui, como uma faculdade dos deuses e demônios que dirigem o
mundo, na qual produz contextos diversos responsáveis pela confusão da consciência e dos
valores que proporcionam a auto-realização da alma. Na sabedoria indiana, a
personificação de sentimentos e conceitos como: conhecimento, ilusão, música, dentre
outros, é uma característica comum. Desta maneira, encontram-se em forma de deuses e
deusas, como Sarasvati que corporifica a sabedoria, Ganesha deus da música e das artes ,
são vários os exemplos. Maya em seu aspecto corpóreo mitológico, é explicada como sendo
uma semideusa criada por Vishnu, deus mantenedor do universo material e criador dos
planetas celestiais, com a função de servi-lo tanto no mundo terreno quanto nos planetas
celestiais, através da promoção de acontecimentos ilusórios. Na instância material, a
atuação de Maya visa corresponder aos anseios individuais, dispondo cada indivíduo em
realidades virtuais, onde experimentarão diferentes aspectos daquilo que desejaram,
juntamente com os sofrimentos intrínsecos a cada situação. Enquanto que no mundo
espiritual, a sua função é proporcionar diferentes situações, nas quais a alma e o Supremo
vivenciem momentos repletos de harmonia, cooperação e amor. Desta maneira, Maya
apresenta dois aspectos funcionais principais: o esquecimento da relação entre a alma e o
Supremo, devido à vivência de fantasias próprias do indivíduo, como também a constante
lembrança do Eu para com sua realidade espiritual. Neste segundo aspecto, Maya exerce a
função de auxílio, no sentido de ajudar a alma na manutenção de relações eternas com o Ser
Absoluto.
Desta forma, a investigação bramânica almeja à liberação das máscaras ilusórias
produzidas por Maya, como também seus consecutivos sofrimentos. Assim, a solução para
os desvios da mente e as misérias da vida, se encontra na identificação do eu interior com a
substância eterna, ou seja, através da sabedoria a verdadeira identidade do Eu permite a
111
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Caracterizando deste modo, um estilo de vida renunciado dos bens materiais fúteis e
voltado para o cotidiano monástico, aspirando à “vida simples e o pensamento elevado”.
Desta forma, a sabedoria como modo de vida, prevê a existência de um mestre
instrutor e um discípulo aprendiz. Os pré-requisitos básicos do discípulo, abrangem dois
princípios: a obediência (susrusa) e a fé absoluta (sradda). Após um longo período de
estudos e aprendizagens, o discípulo vai adquirindo o posto de um estudante competente
(adhikarin), desejando a liberação (mumuksutva) verdadeiramente. Logo, a sabedoria
fortificada no íntimo do adhikarin, desenvolve neste a indiferença para com os gozos da
ação tanto aqui quanto no além. A constante concentração da mente e o controle das
faculdades de percepção (audição, tato, visão, paladar e olfato) e das faculdades de ação
(fala, apreensão, locomoção, evacuação e procriação), prepara o discípulo para o caminho
da auto-realização e bem-aventurança espirituais. Assim, uma série de etapas se configuram
na vida do discípulo para que sejam ultrapassadas com muito rigor e firmeza no objetivo
espiritual.
O Bramanismo conquistou muito respeito e poder na Antiga Idade Védica, como
também nos anos posteriores. Devido à sabedoria adquirida pelos brâmanes, estabeleceu-se
então privilégios de casta que vão perdurar por muito tempo. Pode-se constatar assim, que a
sabedoria se institui como um instrumento de poder, uma vez que conhecer permite a
elevação para além dos sofrimentos e ilusões materiais. A maioria das pessoas, se
encontravam presas a determinados infortúnios da vida, por isso aquele que através da
sabedoria conseguia se desprender destes dilemas, eram altamente respeitados e elevados,
em muitos casos, à posição de divindade.
Os brâmanes durante os períodos dos grandes impérios Mauria, Gupta, dentre
outros, desempenharam a função de conselheiros do rei, sendo suas palavras, muitas vezes,
as últimas para qualquer decisão importante. Assim, o Bramanismo sempre se integrou à
sistemas poderosos na sociedade indiana, assumindo uma posição de exclusividade, da qual
somente os capacitados participavam. Posteriormente, determinado seguimento se atêm
mais aos templos, onde servem em período integral e instruem os que necessitam de
ensinamentos ou para os que querem seguir este caminho da espiritualidade.
Desta forma, o Bramanismo como uma sabedoria de grande influência na história da
Antiga Índia, apresenta configurações particulares nos diversos séculos decorrentes, sendo
113
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
114
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
115
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Para curar pústulas da cabeça, [...] coza-se e água raiz de ciclame e com essa água
lava-se a rasca e depois unta-se com azeite no qual se tenha cozido ciclane; cura
eficazmente. Dioscórides (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 84).
116
Chifre de veado queimado, até ficar branco, e moído, limpa energicamente os
dentes, restringe as gengivas e acalma a dor. Avicena. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha,
1973:142).
117
1992]. Todavia a linha que dividiam ambas era muito tênue. Em muitos casos dependia da
legitimação consagrada pela Igreja e pela Coroa [Bethencout, 1987].
[...] suco de prímula dado durante noves dias cura eficazmente. Isto disse o
demônio a certa mulher a quem sujeitava, tomando a forma de um homem. (PEREIRA,
Maria Helena da Rocha, 1973: 108).
O trecho acima retirado do Thesaurus pauperum comprova quão tênue era a linha
que dividia os dois tipos de magia e levanta algumas questões: Qual o poder e o grau de
malefício concedido ao diabo e os semelhantes a ele pela sociedade do período? Qual era a
real tolerância da Igreja Católica para com as práticas mágicas?
No geral, a magia diabólica era o pacto com o demônio para se atingir causas
sobrenaturais. A magia natural era um ramo da ciência, não se distinguindo desta, que se
ocupava das virtudes ocultas.
Quando os homens de saber falavam de magia natural, falavam como algo que
trata dos poderes ocultos da natureza, falavam daquilo que não podiam entender com os
sentidos. Propriedade das plantas, animais ou minerais que não podiam ser explicados por
suas estruturas físicas. O poder seria, então, advindo de uma fonte externa ou baseava-se
em alguma característica simbólica do objeto – magia simpática, ou empatia e antipatia
simbólicas. Juntamente podiam ser citadas preces e bendições ou conjuros. Podia-se,
também, usar amuletos para assegurar a saúde. [Kieckhefer, 1992]
No Thesaurus pauperum:
• Magia simpática ou empatia:
118
Testículos de galo com sangue do mesmo, posto por baixo da cama, proíbem o
coito a quem nela está deitado. Sixto e Octaviano. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha,
1973: 240)
• Encantamentos:
• Amuletos:
Pendurar Artemísia no limiar da casa faz com que nenhum malefício prejudique
essa casa. Dioscórides. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 238)
Trazer a pedra que se chama íman apazigua por completo a discórdia entre
marido e mulher. (PEREIRA, Maria Helena da Roha, 1973: 236)
119
Desta maneira, a astrologia fazia parte do currículo das universidades e foi mais
estudada na medicina do que qualquer outra faculdade e temos, então, o que podemos
chamar de astromagia [Kieckhefer, 1992].
Contra a opilação e cirrose do baço faz um bem maravilhoso dar a beber raiz de
língua cervina pulverizada, com vinho fino, durante três dias, em quarto minguante. Galeno
no Passionário. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 216).
120
concepções monstruosas. O casal deveria ainda respeitar os períodos de abstinência
impostos pela Igreja. Esses períodos eram maneiras naturais de controlar a natalidade
[Rossiaud, 2002].
A tentativa da Igreja em normatizar a sexualidade no interior do casamento,
através da teologia do matrimônio, representa uma tentativa de controle, que na realidade
não se efetivava.
No século XIII, segundo Danielle Jacquart e Claude Thomasset (1989), chegaram
a circular uma coleção de bulas que diziam que evitar gravidez era considerado um pecado
maior do que o adultério, a fornicação e o incesto, porque seria agir contra a natureza.
Todavia, no século XIII, as informações sobre contracepção circulavam
fortemente. Existia neste período uma mentalidade contraceptiva. Dessa maneira, casais
buscavam formas de limitar os nascimentos por meio de práticas contraceptivas. Muitas
mulheres na tentativa de controlar a natalidade recorriam às parteiras, feiticeiras e
prostitutas que eram consideradas entendidas dessas práticas. Entretanto, ao recorrerem a
esses métodos, muitas mulheres eram acusadas de proteger a beleza e a reputação por meio
de conhecimentos secretos.
Na Idade Média não se tinha conhecimento aprofundado acerca das práticas
contraceptivas. Em regiões menos cristianizadas as mulheres representavam um importante
papel (mágico-medicinal) na prática contraceptiva. Apesar de não muito corrente esta
prática estava mais presente entre os citadinos e nas áreas mais afastadas da Igreja
[McLaren, 1997].
A História animalium de Aristóteles e os textos de Rhazés e Avicena, que faziam
parte dos programas das universidades, auxiliaram na incorporação dessas práticas na
sociedade medieval. Informações que estavam intrinsecamente ligadas a pensamentos
analógicos, empirismo e práticas mágicas [Jacquart e Thomasset, 1989].
Muitos casais recorriam a uma variedade de métodos médicos e mágicos para
fomentar as concepções. Existiam poções para excitar ou enfraquecer as paixões, propiciar
a gravidez, impedir o aborto, determinar o sexo da criança. Havia por toda a Europa a
manutenção de ritos de fertilidade pagã tradicionais [McLaren, 1997].
Quando a mulher não quiser conceber, talvez porque tema morrer ou por
qualquer outro razão, coma osso de coração de veado, e não conceberá. [...] testículos de
121
doninha-macho vivo, castrados por uma mulher e envolvidos numa pele de ganso ou noutra,
evitam a concepção. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 258).
Dar mirra, com o feito de uma noz pequena, com vinho quente, imediatamente
expulsa o feto, vivo ou morto. [...] dar leite de cadela com vinho e mel imediatamente liberta
a madre do seu feto. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 274).
Triturem-se bagas de loureiro e prepare-se uma confecção das mesmas com suco
de satirião; untem-se com isso os rins e as partes genitais; excita poderosamente ao coito.
Experimentador. [...] testículos de veado ou a ponta da cauda da raposa e testículos de touro
excitam a mulher ao prazer. Gilberto. Se untar o pênis com fel de porco varrasco ou javali,
excita a vontade do coito e causa-se deleite na mulher. Gilberto. (PEREIRA, Maria Helena
da Rocha, 1973: 234 e 235).
Para ficar como a de uma virgem, R/ incenso macho, mirra, mastigue, colofónia,
pez negro, bolo armeno, gesso, cinzas de chifre de veado, aristolóquia longa redonda, ana;
faça-se um pó e meta-se dentro. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 263).
Por que uma mulher retomaria a condição de uma virgem se não pelo prazer ou
para omitir fornicação. Isso extravasa o discurso de que o prazer no ato sexual era para
propiciar a concepção.
No Thesaurus pauperum, Pedro Hispano discute também uma doença masculina:
o prurido do pênis, que era bastante comum na Idade Média.
[...] Cinza de abóbora seca cura em breve as úlceras do pênis, mesmo que
estejam putrefactas. [...] untar com suco de língua-de-ovelha, cozido com um pouco de mel,
cura as ulcerações do pênis. (PEREIRA, Maria Helena da Rocha, 1973: 230).
122
Assim, é possível perceber a preocupação de Pedro Hispano com o corpo feminino e que
esta preocupação está relacionada com a concepção [Rodrigues, 2006].
123
com freqüência nenúfar diminui a corrupção e destrói o desejo do coito, quando se bebe
uma onça dele com xarope de papoilas; congela o sêmen, com a propriedade que existe nele
e na sua raiz (Pereira, Maria Helena da Rocha, 1973: 238 e 242).
124
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
125
História. Estudos em Homenagem A. A. Marques de Almeida. Lisboa: Edições Colibri,
2006. p. 33-44.
ROSSIAUD, J. Sexualidade. In: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (Orgs) Dicionário
Temático do Ocidente Medieval.. Cord. Trad. Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: EDUSC,
2002. vol. II p. 477-492.
SANTOS, Dulce oliveira Amarante dos. Caminhos cruzados: magia e ciência nos reinos
ibéricos (século XIII). In: ANAIS, IV Encontro internacional de Estudos Medievais.
Ângela Vaz Leão e Vanda O. Bethencourt (Orgs). Belo Horizonte: PUC minas, 2003.
p.625-630.
126
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
Introdução
128
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
começando a ser aceita como parte do treinamento médico para aqueles que aspiravam chegar
ao nível máximo da profissão.
Existia um grande número de médicos práticos se oferecendo nos mercados das
cidades, eles vinham de diferentes locais e tinham diferentes níveis de competência e a partir
daí os frades poderiam escolher quais iriam trabalhar para eles. Alguns dos médicos que
trabalhavam com os frades recebiam o título de “Médico do Convento” (medicus conventu).
Este título poderia ser dado a um frade que era médico ou a um médico visitante vindo de fora
para trabalhar no convento ou mosteiro.
A autora Ângela Montford em seu livro Health, Sickness, Medicine and the Friars in
the Thirteenth and Fourteenth Centuries, mostra que existia uma conexão entre o
comportamento esperado de um médico secular e o esperado de um frade, o médico das
almas, que acabava dando aos dois profissionais uma grande afinidade. Como resultado desta
conexão entre a saúde mental e a espiritual, o vocabulário de ambos profissionais era muito
similar. Tanto os religiosos quanto os médicos eram experientes, discretos, agradáveis,
humildes, acessíveis, generosos, conscientes e devotos. Estes dois grupos tinham que lidar
com a saúde e a salvação tendo em comum padrões éticos de comportamento e prática.
A experiência e a maturidade eram requerimentos essenciais que os frades procuravam
nos médicos que trabalhariam com eles. Além de exigirem provas sobre a educação e a
capacidade, o que mais importava era a maturidade, já que dizia respeito ao fato de que a
sabedoria chega com a idade, o que era uma certeza para os frades monásticos.
Os pacientes tinham o dever e a necessidade de obedecer ao médico, e os mesmo
conseguiram apoio legal da Igreja nesta questão. O Papa Inocêncio III deu sua opinião em
1210 em relação a um caso no qual um monge, agindo como cirurgião, operou uma mulher
que morreu alguns dias após o procedimento. O monge não foi censurado ou sentenciado a
cumprir pena porque a paciente havia ignorado seu conselho médico.
Os regulamentos dos Capítulos Dominicanos indicavam que frades mais idosos
poderiam usar sua experiência médica para validarem doenças e autorizarem os tratamentos
que os frades precisavam e existiam várias ocasiões em que um conselho médico poderia ser
recomendado. Os mais comuns eram: conselhos sobre dietas em geral, a necessidade de
comer carne ou outros alimentos considerados inválidos, a necessidade de banhos terapêuticos
e a prescrição de remédios.
A autora também diz que já existiam evidências de especialidades médicas no século
XIII com o registro de médicos em Bolonha que lidavam com a cura dos olhos (medicus
129
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
oculorum), hérnias (crepatorum) e feridas (plagarum). No Norte da Itália muitos dos médicos
urbanos e cirurgiões eram empregados civis. Esses medici eram contratados para investigarem
mortes suspeitas, tratar de cidadãos pobres e prisioneiros sem receber pagamento enquanto
outros pacientes pagavam por seus tratamentos.
A maioria, mas não todos, dos medici urbanos eram cristãos, mas existem provas de
fontes médicas e civis que alguns conventos empregavam médicos judeus entre seus
conselheiros. Em Avignon em 1374 os Franciscanos empregaram Abraham de Carcassonne,
judeu de renome, como seu conselheiro médico. Na Itália, médicos judeus não eram incomuns
nas áreas de Assisi, Todi, Spello e Perugia. Em Bolonha, a população judia era muito pequena
até o fim do século XIV e não existem registros de médicos judeus ate 1398.
Existia também uma relação especial entre os deveres médicos do boticário e do
farmacêutico e dos cirurgiões e médicos, que não eram diferenciados nesta época. Fora
algumas ocasiões em que certas técnicas terapêuticas eram usadas em situações especiais, não
é fácil estabelecer o que o medici ou o cirurgici faziam quando eram chamados no convento.
Não existem evidências que mostram se eram os médicos que faziam certas ações como
examinar a urina de alguns frades.
O status crescente dos médicos foi assistido por membros treinados e formados na
universidade para assumir a profissão médica. As universidades, como a de Paris e Bolonha,
passaram a incluir os títulos de artium et medicine professore e artis fisice professor e, mais
tarde, começaram a ser utilizados adjetivos como subtilissimus, famossisimus,
excellentissimus e monarcha et totius speculo mundi.
Apesar do envolvimento próximo dos frades com as universidades, os estudantes, os
professores e colegas da ordem médica, poderíamos supor que eles aceitassem as teorias
seculares médicas, fazendo com que seus benefícios fossem apreciados e os médicos
pudessem ocupar um lugar mais proeminente dentro da comunidade médica. A associação
próxima entre os frades e a Universidade de Bolonha poderia fazer com que estes homens
fossem a escolha óbvia para cuidarem de sua assistência médica.
O autor inglês Jeremy Citrome em seu livro The Surgeon in the Medieval English
Literature explora como a sangrenta arte da cirurgia serviu como metáfora para a identidade
cristã medieval, definida pela luta entre condenação e salvação articulada vividamente na
poesia e prosa inglesas medievais.
A cirurgia foi marginalizada durante um longo tempo nas definições clássicas e
escolásticas de medicina sendo colocada como último recurso nas tentativas de cura de males
130
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
diversos. Apesar de sua colocação como recurso final, sendo utilizada apenas depois que
remédios e dietas não obtivessem sucesso, a cirurgia compartilhava de um método utilizado
em outros tratamentos médicos. Este método se baseava no fato de que o corpo humano é
composto de quatro humores: melancolia, sangue, cólera e pus.
Durante a Idade Média pecado e doença estavam profundamente ligados entre si. Por
este motivo à cirurgia progrediu em sua habilidade de curar aflições físicas e se tornou ainda
mais importante como uma metáfora para a busca da cura espiritual.
O autor usa de uma variedade de aproximações críticas para explicar como metáforas
cirúrgicas acabaram tornando uma importante ferramenta de poder eclesiástico após o Quarto
Concílio de Latrão em 1215. Este Concílio assumiu uma importância especial para os
historiadores médicos, já que nele foi decidido pelo Papa Inocêncio III que tanto a medicina
teórica quanto a prática sofreriam mudanças. O cirurgião profissional se tornou uma figura
autônoma e de forte influência na transformação das metáforas espirituais. O Papa Inocêncio
III também colocou em prática a reforma que proibiam os membros do clero de praticarem
algumas atividades médicas. Cirurgia estava entre estas atividades que o Papa identificava
como dissonantes da vocação clerical. Por culpa destas regras impostas por ele, a cirurgia se
tornou uma atividade separada da medicina.
Alguns teólogos cristãos acreditavam que o pecado poderia afetar o corpo diretamente
e, assim, fazer com que o calor vital saísse do coração e fosse para as extremidades do corpo,
proporcionando aflições corporais visíveis ou paralisia. Para garantir que o calor disperso no
corpo aconteceria em uma proporção favorável a saúde, os médicos precisavam ter certeza de
que os fluídos biológicos presentes no corpo (conhecidos também como os quatro humores),
possuíam seus respectivos balanços. Esses balanços eram mantidos através de fatores externos
como dieta, sono e comportamento sexual.
Para um paciente medieval, a doença e seu tratamento subseqüente partiam do Pecado
Original e deveriam ser tratados com a intervenção de Cristo. Mesmo a mais simples das
cirurgias dependia da presença da graça divina. O cirurgião curava as mais variadas doenças
com uma grande quantidade de métodos violentos que incluíam queimar, cortar e aplicar
corrosivos químicos no corpo do doente. Por este motivo ele era responsável por atribuir
penitências não só como metáforas, mas dentro do seu direito como cirurgião. Cirurgiões não
só atendiam os corpos de seus pacientes como também as suas almas. Assim como a cirurgia
poderia significar a cura eterna do corpo através da salvação por meios médicos, ela poderia
também ter um significado extremamente oposto a esse: a fragmentação eterna que
131
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
deveria usar a incisão ou métodos menos evasivos de tratamento. Como um erro cirúrgico na
maioria das vezes era irreparável, a falha em determinar o tipo de tratamento adequado ao
paciente era sinal de um cirurgião mal treinado. Cirurgiões viam a possibilidade de dar o
diagnóstico de uma ferida de duas maneiras: através da observação visual da área atingida ou
através da inquisição verbal do paciente e ambos os métodos eram recomendados antes de
diagnosticar um paciente.
Os cirurgiões sempre procuravam usar o melhor de suas habilidades em tratamentos,
especialmente naqueles que envolviam incisões por serem de maior risco para o paciente.
Mesmo com os riscos, os cirurgiões usavam todos os meios que tinham ao seu alcance para
aliviar a dor e o medo existentes até nas menores operações cirúrgicas. O cirurgião medieval
era capaz de executar atos de cura que poucos, incluindo médicos acadêmicos, eram capazes
de fazer, e, por esses motivos, acabou se tornando uma figura que é responsável pela punição
e pelo perdão, pela condenação e cura e pela fragmentação e redenção do corpo e, também, do
homem.
A Medicina Feminina
134
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BULLOUGH, Vern L. The Study of Medicine and the Medieval University. Londres:
Ashgate, 2004.
MONTFORD, Angela. Health, Sickness, Medicine and the Friars in the Thirteenth and
Fourteenth Centuries. Londres: Ashgate, 2004.
135
Revista Chrônidas
Revista Eletrônica da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás
____________________________________________________________________________________________
136
aos dogmas do castigo eterno no inferno ou à conquista de uma beática vida no paraíso,
ainda que se perceba interpretações aproximadas a estas em algumas obras e práticas
kardecistas.
1
Publicou, inclusive, uma série de volumes intitulados A História do Espiritismo.
137
legislação que a regulamentava. Um episódio que contribuirá de forma decissiva no seu
processo de regulamentação será a realização do Primeiro Congresso Espírita do Brasil,
no dia 6 de setembro de 1881, mesmo que em agosto do mesmo ano jornais fluminenses
divulgassem a ordem policial que proibia a fundação de instituições espíritas,
caracterizando uma perseguição oficial por parte do governo a religião que se estabelecia
aos poucos no Brasil. Porém, é entre os anos de 1883 e o seguinte, que se caracterizará
um dos momentos mais importates da religião espírita no Brasil, “pois além da
legalização das instituições espíritas, também é o momento em surge a primeira
publicação de ‘O Reformador’”, períodico que será um dos responsáveis pela grande
divulgação do espiritismo no país.
O ano de 1884 ainda verá o surgiemento, aos dias 2 de janeiro, da Federação
Epírira Brasileira, a FEB, na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Souza a FEB “é
respinsável por toda a organização, regimento, controle e jurisdição das demais
instituições espíritas a ela filiadas [...]. Foi através dela, e de sua Livraria e Editora, que o
espiritismo conseguiu abrir caminhos e prosperar em todo território brasileiro.” (Souza
apud Gomes, 2004) Porém, é precisso ressaltar que algumas das instituições espíritas
existentes no país não são filiadas a ela, podendo se alinhar a outras ‘federações’ ou não,
ainda que se denominem também kardecistas.
138
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. [...] Ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústias. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse
Marx, ‘tudo que é sólido se desmancha no ar’” (Berman, 1996).
A modernidade é uma atitude que procura afastar o velho e buscar o novo, o
progresso, mesmo que o velho traga segurança diante as incertezas do mundo moderno
que se apresenta como desconhecido. Essa ambiguidade entre a busca pelo novo e a
insegurança causada pela perda do velho se percebe entre a população no contexto da
transferência da capital de Goiás. Quando o interventor Pedro Ludovico Teixeira
percebe que “para criar uma nova era – como aspirava fazer a revolução [de 1930] -
nenhum símbolo melhor que criar uma nova capital, que seria a expressão concreta da
revolução” (Palacín & Moraes, 1994) e do fim da supremacia Caiado durante a primeira
República brasileira em Goiás, decide fazer a transferência da Capital. Esse ideal
mudancista será encontrado em escritos que datam desde o século XVII e XIX e se
transformará na pricipal plataforma política do interventor nas eleições de 1934.
Todo o discurso mudancista estará alicerçado sobre a questão do progresso e a
integração do estado tanto na economia quanto na vida política do país. A maioria da
população, frente a estes argumentos, via a mudança da capital com olhos bastante
positivos, porém um terço das pessoas da antiga Capital, segundo Chaul, viam-na com
uma espécie de perda de suas próprias raízes e privilégios, principalmente os mais
ligados aos antigos donos do poder e a estrutura fundiária. É nesse contexto que deve
ser analisada a meta principal de Pedro Ludovico Teixeira, que teve o intuito de
transformar uma sociedade ligada a estruturas políticas, econômicas e sociais de raízes
aristocrático-escravocratas, fundiárias e, portanto, conservadoras, que se mantinha no
mecanismo do famoso pacto coronelístico dos favores e clientelismos, daí a criação de
Goiânia, pois uma “capital nova materializa uma nova era; ela mostra os princípios de
um empreendimento coletivo; é o espetáculo que o poder oferece da nação em atividade
e dele próprio.” (Balandier, 1982: p. 11)
A proposta de se criar “uma capital moderna, planejada, coerente com os novos
tempos do Goiás que se anunciava” (Chaul, 1995) acabou por abarcar quase toda a
população e os políticos fazendo com que as eleições de 1934 fossem
predominantemente vencida a políticos ligados ao Partido Social Republicano (PSR),
liderado por Pedro Ludovico. A “marcha para o Oeste” do governo Vargas se efetivara
em Goiás e possibilitara a construção da nova capital.
139
No dia 18 de março de 1933 o governador do Estado de Goiás, Pedro
Ludovico, publica o decreto nº. 3.359, pelo qual se demarca a área designada para a
construção da nova capital do Estado. Neste mesmo decreto fica imposta a distribuição
de áreas para edificação de obras específicas, como prédios da administração pública,
escolas, templos religiosos e outros. Mas deste último tipo de edificação a única que o
Estado se preocupa em manter é a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, na cidade de
Campinas, na qual os católicos professavam sua fé (essa Igreja se encontra atualmente
demolida).
2
Um dos princípios mais importantes para o espírita é “Fora da caridade não há salvação”.
140
Centro de bastante expressão entre as casas espíritas do início da nova capital é a
Agremiação “Dr. Adolfo Bezerra de Menezes”, fundado em 15 de dezembro de 1943
(Castro, 1995).
Por iniciativa de João Nicolau, um dos líderes do movimento espírita, e com a
doação da Gráfica Romeu, pertencente a Romeu Pelado, surge o primeiro jornal espírita
de Goiás, o Goiaz Espírita. Esse jornal representa uma primeira iniciativa de
transcender o espaço de cada Centro para a busca de uma maior organização, integração
e fortalecimento do movimento perante a sociedade civil. Esse espaço servia além de
divulgar reuniões espíritas e textos referentes à doutrina para a defesa das acusações de
práticas de “macumba” (num texto repetido em várias edições, onde se afirma que no
“espiritismo não há velas” e não “se pratica o mal”) e para atacar diversas vezes outras
religiões, especialmente a católica que era acusada de ser “aliada do estado”. É verdade
também que em outras edições o periódico buscava uma reconciliação com a religião
dominante no país, como uma que ostentava a manchete: “A Igreja faz propaganda do
Espiritismo”. Para o censo de 1950, o jornal instrui aos seus leitores que se afirmem
espíritas perante a pergunta de credo religioso. Como se pode perceber, esse jornal teve
um caráter múltiplo, de doutrinação, informação, defesa dos ideais espíritas e ataque
contra àqueles que deturpavam seu ideário ou divergia de sua interpretação das coisas
espirituais.
As duas casas espíritas já citadas, juntamente com outras recém fundadas, como
“Paz em Jesus”, “Amor, Caridade e Luz”, “Grupo Ismael”, “Amor e Caridade”, “Centro
Santo Agostinho” e a “Escola Caibar Schutel” organizam a Primeira Semana Espírita de
Goiânia, nos dias 21 a 27 de dezembro de 1947. Nota-se quão distante ficaram as datas
entre o Primeiro Congresso Espírita do Brasil e esta Semana, porém, percebemos aí
outra iniciativa de unificar o “movimento espírita” em Goiás, iniciativa essa que já
vinha acontecendo em todos os estados brasileiros, tendo a FEB como órgão
coordenador e dirigente. Da necessidade de aglutinação de ideais surge, no dia 3 de
outubro de 1950, a “União Espírita Goiana”, na já citada Agremiação “Dr. Adolfo
Bezerra de Menezes”, que buscava exercer no Estado as mesmas atribuições da FEB no
que tange o país inteiro. Nesse mesmo ano de 1950, era criado na FEB o Conselho
Federativo Nacional, que tinha por objetivo “executar, desenvolver e ampliar”, em
caráter nacional, os planos da FEB. Mas a construção da União não foi de simples
execução, pois foram necessárias várias “dezenas de meses de expectativa”, para que se
conseguisse a aprovação de grande contingente de dirigentes de centros tanto da capital,
141
quanto do interior do Estado. Um fato relevante é que apesar de o movimento espírita
kardecista buscar se defender, através do Goiaz Espírita, de acusações de macumbaria,
magia, entre outros, a construção da “União Espírita Goiana” está marcada pela
participação de comunidades esotéricas, como o “Centro Esotérico da Comunhão do
Pensamento Tatwa Jesus Cristo”, e umbandistas (que são vulgarmente tratadas por
macumbaria) como o “Centro Eclético Espiritualista Tenda do Caminho”.
Em 1948 começa-se a estruturar o “Centro Eclético Espiritualista Tenda do
Caminho”, organização de umbanda que se reunia na casa dos integrantes das reuniões,
muitas vezes de forma escondida. Este se constituiria juridicamente e se instalaria em
sua sede definitiva em 1953. Em 1962, a instituição modifica a orientação umbandista
para kardecista e, por sugestão do médium Chico Xavier, também seu nome é
transformado em “Irradiação Espírita Cristã”. Embora de orientação kardecista, alguns
hábitos da origem umbandista permanecem entre seus membros, dentre os quais se
destaca a utilização de vestuário branco pelos médiuns da casa, durante as sessões.
Uma nova sede para a Federação Espírita do Estado de Goiás (FEEGO), antiga
União Espírita Goiana é criada em 1992. Essa nova sede, maior e mais organizada, se
torna necessária devido à expansão do espiritismo em todo o estado. Em 1998 é criada a
ASEFEGO (Associação de Entidades Filantrópicas Espíritas de Goiás), que busca dar
suporte logístico às casas que promovem ações de assistência e promoção social, os
principais constituintes da prática espírita e grande responsáveis pela boa aceitação da
religião no seio das elites dominantes.
Pode-se ver assim que o espiritismo em Goiânia encontrou um terreno fértil e se
organizou para que pudesse se perpetuar. Segundo Peixoto da Silveira (Silveira, 1951),
“após 1942 temos 21 templos católicos, 8 protestantes e 4 espíritas”, em Goiânia. Em
1970, segundo Oscar Sabino Junior (Sabino Junior, 1980), a capital de Goiás apresenta
mais de 50 centros espíritas kardecistas e umbandistas. Já, segundo o Censo de 1991, do
IBGE, a cidade apresenta 48 centros espíritas kardecistas. Em relação à atualidade,
segundo dados estatísticos da Prefeitura Municipal, organizados pelo SEPLAM,
Goiânia possui hoje 200 instituições de orientação espírita. Pode-se verificar, assim, um
crescimento exponencial no movimento espírita no Estado.
A presença do médium Chico Xavier em Goiânia já era bastante comum, pois,
desde há muito tempo, ele vinha fazendo visitas à colônia Santa Marta, hospital
especializado em cuidados com pacientes portadores de hanseníase. Fato que se pode
comprovar, também, com sua vinda à Assembléia Legislativa de Goiás, em 7 de maio
142
de 1974. A convite do Dep. Lúcio Lincoln de Paiva, Chico Xavier faz uma grande
“conversa informal” (palavras dele), sobre o tema “Cristo e a Atualidade”, com
intelectuais, jornalistas, políticos e povo goiano. Esta foi a primeira presença efetiva de
um médium em solenidade oficial, promovida por autoridades constituídas em Goiânia.
Este evento ficou registrado no livro Chico Xavier em Goiânia de 1977. Outro momento
importante foi a transformação do médium Divaldo Pereira Franco em cidadão goiano e
goianiense em 1984, através do recebimento das duas simbólicas “chaves”. Estes fatos
descritos revelam a enorme aceitação que essa religião terá no interior deste estado.
A presença marcante do espiritismo, não é exclusividade da cidade de Goiânia,
ou seja, está em consonância com o que ocorre no resto do país. Porém, podemos
afirmar que o fato da nova capital ter sido erigida nas perspectivas da modernidade
favoreceu sua ampliação. A modernidade dá certa coerência tanto à construção da nova
capital de Goiás, quanto para a expansão da religião kardecista na nova metrópole do
Brasil Central, o que possibilitou que ambos os movimentos compartilharem valores em
comum. Se a cidade havia sido construída sobre os ideais de modernidade e progresso e
esses ideais habitavam de forma bastante contundente o imaginário e a visão de mundo
dos goianienses, a religião espírita se caracterizava, frente à católica e também
protestante, como uma religião moderna. Esse fator de alinhamento entre, de um lado,
imaginário e visão de mundo e por outro a religiosidade, sem dúvida alguma,
possibilitou uma mais fácil expansão do espiritismo kardecista na nova Capital de
Goiás.
143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
144
© 2008. Revista Chrônidas.
O conteúdo dos artigos publicados pela Revista Chrônidas é de inteira responsabilidade de seus autores.
Permitida a reprodução parcial dos artigos, desde que atentamente observadas nossas normas de citação.