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Macau, 1999 ou a crónica da arca revisitada

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Macau, 1999 ou a crónica


da arca revisitada

Jaime crespo
Jaime crespo
7/1/1999
MACAU, 1999 OU A CRÓNICA
DA ARCA REDESCOBERTA

introdução

DEDICAÇÃO: a todos os que em algum momento das


suas vidas passaram por Macau porque também eles
terão para contar a(s) sua(s) história(s) desta cidade que
sem ser bela nos prende e apaixona. Para eles dedico
este singelo escrito para que o possam confrontar com
as suas próprias histórias e experiências aqui vividas.
Porque quanto a mim estes pequenos segredos são para
serem partilhados, não guardados.

INTRODUÇÃO: Nestas coisas de transições, umas mais


marcantes que outras, sentimos, sem dar por isso, fortes
tendências para cairmos em exageros de negatividade. A
partir daí o criarmos os cenários mais pessimistas e
mórbidos é um passo muito fácil de executar.

Ao contrário, julgo serem estas ocasiões, muito


especiosas e raras, capazes de serem aproveitadas em
prol do otimismo, de constituírem hinos ao
cosmopolitismo, bandeiras à miscigenação, emblemas
reais da interculturalidade; contra o racismo, a
xenofobia, a intolerância cultural; pela afirmação do
direito à diferença, contra todas as discriminações...
Contrariando uma carga negativa e inquieta, podermos
contrapor com uma atividade desinquieta e criativa.

Em resumo, devemos aproveitar a raridade do momento


histórico para construir algo de positivo, contribuindo
decisiva e exemplarmente, em prol da criação humana.

É no seguimento das linhas anteriormente expostas que


me proponho relegar para segundo plano alguma coisa
de menos agradável ou positiva que se tenha passado
neste namoro de séculos, de portugueses por Macau, e
procurar realçar aquelas coisas que no meu
entendimento merecem realce: a cooperação, a amizade,
o amor; principalmente o amor, pois é por ele, para ele,
que nascemos, que vivemos...

PROPOSIÇÃO: Assim me proponho nas breves páginas


seguintes a contar a minha história de Macau, "se para
tanto não me faltar o engenho e a arte", o melhor que
posso e sei.

INVOCAÇÃO: Ainda que seja cómodo a qualquer um


sentir-se nas boas graças de alguma divindade, a todas
respeito por igual, mas hão de saber perdoar-me, invoco
apenas a humana raça, o seu engenho, a sua arte, dela
peço compreensão porque a ela a obra pertence.

3
canto primeiro

" heróis do mar, nobre povo"

Porque é de heróis que falamos quando contamos


histórias, ainda que da heroicidade da maioria
duvidemos, por contraposição à nossa própria condição
humana e por duvidarmos da historicidade que os
velhos manuais escolares nos procuraram transmitir.
Mas dá muito jeito ter um herói à mão de semear
sempre que se conta um conto, pois sabe-se de fonte
segura, a voz do povo, que "quem conta um conto
acrescenta um ponto", convindo no entanto não
acrescentar muitos, quando não nunca mais se acaba a
obra, tal como quem desenha uma serpente e lhe dá um
último retoque, ora, se se põe a acrescentar pernas
nunca mais acaba... Os heróis que aqui vou exaltar
poderão até parecer insossos, porque são comuns,
porque são parecidos connosco. Bem vistas as coisas,
talvez sejamos mesmo nós.

Em frente que para trás anda a burra e que como toda a


gente sabe não vai ao mar nem é heroína.

Concordemos que para enfrentar o mar é necessário ter


pelo menos uma qualidade de herói, a coragem. O mar,
esse vasto lençol de águas misturadas com lágrimas,
mas lágrimas de todo o lado e não só de Portugal como
diz o poema que isto de chorar toca a todos. Lágrimas
de mães, esposas e irmãs; as avós essas fizeram-se foi
para rezar, desfiar enormes terços de contas suspensos
de frágeis dedos descarnados em mãos rugosas e
tementes; por aqueles que ao mar se afoitaram, ao mar e
aos mares da vida, lágrimas que primeiro foram o sal da
terra e depois pelas águas da chuva percorreram riachos,
ribeiras e rios até enformarem nos imponentes oceanos.

Que aqui é terra de heróis do mar ninguém duvide, dos


Gamas e Cheng Ho's corre-lhes nas veias o sangue. A
pulso construíram caravelas e naus, sampanas, juncos e
lorchas que de lés a lés percorreram as carreiras das
índias e dos japões, entregando-se na proteção das
Senhoras do Mar, da Póvoa, Nazaré, Ah-Ma ou Kun
Iam. Marinheiros de sua pátria o mar, argonautas do
porvir.

É da luta contra as intempéries que se fortalece o caráter


e se aprendem os laços solidários, a partilha do arroz, a
troca de afetos, a comunhão de uma cidade feita de
experiências e saberes distintos mas que confluem e se
organizam em novo saber, erguida na teia das trocas
culturais e comerciais. Mas é também de pão e de
sangue esta nobreza de que se faz Macau.

canto segundo
" N AÇ ÃO VALENT E E IMOR T AL "

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Nem sempre foi fácil a convivência. Nunca é fácil a
convivência, para mais quando a aliança também passa
pelos interesses e conveniências comuns aos homens.
Mesmo quando os casamentos são resultantes do amor
há sempre uma parcela interesseira que incomoda. É
preciso conivência para certos pecadilhos do outro. Mas
entre os interesses de uns e as conveniências de outros
cá se foi andando, na lufa lufa, até agora.

Desceram das montanhas, vieram dos vales,


percorreram planícies; não ficaram rios ou mares por
navegar, terras onde não se tivesse ido. Viajaram
montados na rosa dos ventos, de bússolas, nónios,
astrolábios e quadrantes equipados. Mão portuguesa em
papel e tinta da china escreveu o mapa novo,
pluricontinental e multirracial.

Pouco a pouco o velho mundo monocromático, apenas


ligeiramente salpicado aqui e ali, foi ficando colorido,
arco-íris em cada um de nós.

Promoveram guerras inúteis, loucos massacres;


ideologizaram impérios, sempre assentes em pés de
barro; mas da lucidez de uns poucos se começaram a
desenvolver todos os esforços para se chegar à paz
fundamental, estado único em que a criação é possível.

Novamente, por sobre as memórias e alguns escombros


do velho mundo da confrontação, urge construir o novo
mundo da comunhão, das redes solidárias, comerciais,
técnicas, do saber, da arte, da cultura, da religião...

As grandes conquistas, afinal, fazem-se pela paz


construindo amizades e celebrando o outro; não pela
guerra jorrando sangue e submissões.

Aq
ui nesta terra que pisamos, palco da transição das
transições: de décadas, de séculos, de milénio, de
soberanias... Construiu-se este presente de cimeiras e
conversações que conduzem a acordos. Quando se
negoceia é necessário saber ser magnânimo, saber ouvir,
ceder, compreender o outro lado talvez mais que o
nosso; para assim se ser ouvido, compreendido,
recebido.

Fazedores da paz! Eis senhores os tecedores do futuro.

Porque os verdadeiros heróis serão os construtores da


paz! Os senhores da guerra serão para sempre banidos
das homenagens dos homens.

Heróis da paz somos todos, dos que se pretendem elite


aos humildes, a paz de que vos falo também se faz de
suor no rosto e calos nas mãos...

7
Es
ta cidade do Santo Nome de Deus e de Ah Má cumpre-
se na força dos seus cidadãos que a constroem valentes
no seu trabalho e imortais em toda a sua tolerância.

canto terceiro

"levantai hoje de novo"

Por vezes demoramos a compreender que os heróis da


história somos nós, homens de rua, comuns.

Pela manhã magotes de crianças de todas as idades


assomam à rua, cercam-nos, tomam a cidade de assalto,
saltitando por aqui e por ali, verdadeiros pardalitos à
solta, trazem nos rostos a felicidade de liberdade que já
vai faltando aos adultos e presa aos cabelos a esperança.
Nos seus gestos soltos a determinação de impor a sua
vontade rebelde.

Como heróis de outras épocas os homens do riquexó,


vindos de um filme antigo para povoarem o nosso
universo dos sonhos. Pedalam as ilusões de algumas
utopias entretanto perdidas. Transportam na sua
simpatia desiludida, por entre o anárquico tráfego
macaense e como se os seus desconjuntados veículos
fossem o último modelo da técnica, deslumbrados
turistas em preguiçosos passeios pelo tempo.

Que dizer dos lavadores de automóveis que nos sorriem


enigmáticos do alto das suas garbosas bicicletas,
espanador na frente, balde atrás, mais garbosos que
generais de cavalaria, por entre penachos e medalhas de
fancaria, montados em pilecas estatais? Que são nobres,
daquela nobreza feita simplicidade, da simplicidade de
quem passeia pela vida lavando os carros dos outros.

Cidade de fogosas operárias do destino que enchem


com seus folguedos as ruas da parte norte às horas de
mudança de turno. Mães e filhas de gargantas sequiosas
e corpos transpirados, ainda assim, transidas de alegria,
transbordantes de vontade de viver, como se no transe
diário estejam a exorcizar alguma estranha forma de
vida.

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É bom de ver o centro da cidade apinhado de
funcionários enfatuados nos seus limpinhos fatos, mais
ou menos passados, bem cheirosos de perfume contra a
humidade e rostos gastos na leitura da literatura oficial.

De azul e roxo transportando elegância controlada pela


frieza dos gestos, movem-se impávidas as croupiers.
Destino de quem tem entre mãos, por um segundo, o
gesto de fazer e desfazer fortunas.

Na azáfama citadina, percorro as ruas, entro e saio de


lojas que vendem tudo, sem comprar nada, apenas
tomando à borla o sorriso das empregadas. Cruzo-me
com turistas de mapa na mão e rostos afogueados. Estão
felizes. Pudera.

Ao começar a noite faço-me transportar pelas ruas da


cidade, entre o lusco-fusco e o raiar luminoso dos
anúncios e painéis, nesses verdadeiros glóbulos da
circulação citadina, vindos de lugar nenhum circulando
sem destino, os táxis. O taxista fala de qualquer coisa
com entusiasmo, não tenho coragem de o desiludir
dizendo que não percebo, deixo as coisas continuarem
assim até me apear.

Satisfeito vou para casa.


São estes, os que se vão levantando do chão e que
ajudam a construir sem o saberem, as mais das vezes, o
universo precário da sociedade.

CANTO QUARTO

"O ESPLENDOR DE PORT UG AL "

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Nem só de gentes vivem as cidades. E o seu esplendor
vem sobretudo das suas ruas, casas, monumentos,
jardins, espaços, cores... É do modo como esta
amálgama de pedras, betão, vegetação, espaço livre e
restos de muitas matérias, se organiza e se dá ao
usufruto que nasce o corpo da cidade, íman das gentes.

Confesso que não partilho o muro de lamentações ao


lado dos que choram a troca de algo antigo por outra
coisa moderna. Se bem que tenha de reconhecer que
sempre que alguma coisa perece; seja pela ação
humana, quer devido às inexoráveis leis da natureza;
uma certa sensação de ausência, muitas vezes
acompanhada por uma dada frustração ou até mesmo
impotência, quando essa perda não aparenta nada de
inevitabilidade ou quando no seu lugar aparecem mais
tarde uns mamarrachos que como se sabe são os
fantasmas das cidades, me invade e me convida ao
recolhimento. Mas de um modo geral entendo estes
perecimentos que com regularidade atingem a estrutura
das cidades, no sentido das leis de Lavoisier, o sentido
da imparável mudança. Se a mudança se dá para melhor
ou para pior não vem ao caso, ela acontece e é
provavelmente intrínseca à vida.

Neste sentido, Macau é um mosaico contrastante de


fascínio. Tanto pela mudança constante e constantes
intervenções cirúrgicas no seu corpo, como pela
convivência lado a lado entre o antigo e o moderno, o
alto e o baixo, o largo e o estreito, o fechado e o aberto,
as cores claras vivas e os deprimentes sujos cinzentos ...

Ao percorrer a cidade verifica-se que afinal a pérola do


oriente é amarelo-vivo, ornada de arabescos, colunas e
cúpulas estilo árabe, lembrando o palácio do vizir;
apesar de ser linda, esta pérola, assemelha-se baixota ao
lado de um imponente e priápico edifício, rei nas
alturas.

De repente, de entre o marasmo paisagístico, surgem


manchas de cores garridas a invadir-nos o olhar em tons
ocres, rosa, vermelhos, amarelos...

Imponentes leões de pedra são eternos guardiões de


singelos templos e de algumas abastadas moradias.

Junto ao rio, os barcos que vão, os barcos que vêm,


sente-se a brisa com cheiro a peixe e mar, deixam-se os
olhos perder no eterno e doce baloiçar das ondas e
deixamo-nos acalentar pela doce recordação desse outro
baloiçar já distante e guardado na memória o baloiçar de
quando ternas mãos de mãe nos embalavam o berço. O
olhar mistura-se às ondas e vai com elas.

Ruelas estreitíssimas onde as paredes nos oprimem e


parecem querer desabar-nos em cima, somos envolvidos
por esquisitos e intensos cheiros a mirra, incenso,
gengibre...

Das ruas largas e espaçosas onde a liberdade se sente e a


respiração flui mais fácil erguem-se planos em direção
ao espaço, convites abertos ao abrir de asas e voar.

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Se Marcel Proust dizia que há algo em certos nomes de
coisas, lugares ou pessoas que exercem sobre nós um
fascínio irresistível que nos faz apetecer tê-las, lá ir, ou
estar com elas, então que dizer de nomes tais como
Largo do Lilau, San Ma Lou, Lou Lim Ieok (esse
pequeno e belo jardim dos caminhos que se bifurcam),
Tap Seak...!?

E que fazer perante a invasão encarnada da Rua da


Felicidade?!...

Nomes inteiros a solicitar revisitação.

Na sonoridade do próprio nome: Macau, Macao, O


Mun, Ah Men... Não há um apelo a puxar para o
mistério?!

canto quinto
"entre as brumas da memória"
Te
rra afligida por tempestades não deixa envelhecer as
brumas, estas, envolvem-na durante grande parte do
ano, mas não se fixam, antes se renovam em grandes
vagas espumosas não deixando assentar poeiras por
muito tempo.

Não se pode viver sem memória; para saber para onde


se vai é necessário conhecer de onde se vem, é
necessário saber que certos labirintos não têm saída.

Ao se ter a noção da dimensão histórica é necessário


também ter a audácia de a ultrapassar sob pena de não o
fazendo enveredar irremediavelmente pelos caminhos
sinuosos da bazófia gratuita, ou até, iniciar a morte
lenta. Como nação, país, povo ou simplesmente cidade.

Assim, de dentro da arca das memórias apenas se


devem tirar os acessórios, devidamente ponderados,
estritamente necessários e fundamentais a cada
momento, a cada situação. Com carinho e cuidado.
Talvez nenhuma outra atividade humana se preste
melhor ao ofício de aprendiz de feiticeiro que o ato de
rescrever a História.

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Sobretudo a tentação em cair no querer fazer História,
na pretensão de ser intérprete de altos desígnios em
nome de nada, na defesa de coisa nenhuma, para lá do
vazio redundante do discurso nada fica; esta situação
leva muitos a saírem da esclarecida humildade e a
enveredarem impantes de orgulho pela fogueira das
vaidades, essa devoradora de almas humanas.

Entre a lição do passado e a necessidade de construir o


presente há que encontrar a equilibrada temperança,
para não parecer cabotino, nem aparentar arrivismo.

Numa cidade em que grossas tempestades naturais


fustigam os seus recantos com regularidade relojoeira,
não há espaço para guardar fantasmas. Nem tempo para
esperar salvadores. Nem para aqueles que ainda trazem
na pele gotas de maresia hereditária de quem esperou à
beira-mar pelo Desejado.
Aq
ui e agora a esperança tem que ser de cada um em si e
de todos na humanidade.

Sem rancores, de agora, ou de outro qualquer tempo.

Porque quando os ventos sopram fortes levam para


longe as mais duras e pesadas memórias, o ar que
respiramos fica mais leve e puro. Desanuviado.

canto sexto

"ó Pátria sente-se a voz"

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A voz a que urge dar ouvidos, não pode continuar a ser
a voz átona, do sangue e do apego à terra, a voz que
rodeia e enleia grudando os corpos ao solo, enraizando;
é a voz polifónica, da vida, da conexão ao resto do
mundo e às estrelas, que desprende e solta os corpos,
libertando.

A cidade grita pelas buzinas dos carros, os apitos das


fábricas, os pregões dos vendedores de tudo e nada...

A cidade murmura nas nostálgicas sirenes dos barcos,


nas conversas da vizinhança, nos tchu san (bom dia em
cantonense) oferecidos com simpatia, nos risos limpos
da criançada...

Os pássaros dentro das gaiolas são levados a passear e


cantam...

Nos templos os bonzos tocam os sinos apelando a uma


prece meditada; nas igrejas cristãs os crentes entoam
cânticos de louvor, fé e esperança; no cemitério dos
mouros, muçulmanos entoam as orações do profeta.

Nas esguias esquinas cegos tocam pianolas a pilhas


fabricadas no Japão, ou algures, no lado de cá do Sião.

Pelas noites os sons aquecem e tornam-se atrevidos e


devassos. Cantores de vozes quentes entoam canções de
amor e raiva, acompanhados por músicos em transe,
ébrios de vontade. Jovens de ambos os sexos balançam-
se num compasso acelerado e louco procurando realizar
todas as promessas do amanhã já agora.

Pelas ruas algumas prostitutas procuram convencer os


homens que passam com uma história que tem mais
corpo que palavras.

Por vezes, os sons tonitruantes de pistolas ferem os


ouvidos, mais alguém que se perdeu na teia emaranhada
da vida, de virtudes e vícios se faz uma moeda. De
quantas moedas se faz uma vida?

Os gatos pingados transportam pesadas urnas, como se


carregassem na pedra de Sísifo todos os pecados do
mundo, a meio da cerimónia um deles para perante o
insinuante apitar de um telemóvel e atende, ali, mais ao
lado...

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De todos estes sons é feita a voz da cidade. E é de gente,
viva. Cheia e múltipla, convida à participação, sem
exclusões.

E a voz desta cidade não é unívoca mas diversa. Nem


sequer é bilingue mas polilingue. Essência da
democracia esta existência de várias falas a muitas
vozes.

E o apelo é este vindo do coração da cidade: venha mais


uma nova voz juntar-se ao nosso coro universal que na
confraria desta cidade também têm lugar os peregrinos
viageiros.

canto sétimo

"dos teus egrégios avós"


Se as avós são por destino encomendadas a desfiar
terços, os "avôs", esses, cumprem-se na arte de sentar os
netos nos seus já trémulos e duros joelhos, apertarem-
nos com seus descarnados braços e contarem-lhes as
mais maravilhosas histórias que aconteceram um dia
pela certa, no tempo em que os animais falavam, as
galinhas tinham dentes e havia duendes, gigantes,
bruxas e fadas...

Fale de formigas rabigas e de raposas espertas na


charneca, ou de pandas e ursos em florestas de bambu,
a sabedoria encantadora dos avôzinhos, pelos contos, é
transmitida aos curiosos e ainda imberbes netos.

Saem manhãzinha cedo a procurar os locais mais


calmos e frescos para praticar o seu tai-chi e assim
ganhar a calma necessária para enfrentar o agitar do
dia. Bengala numa mão, gaiola com um pássaro amigo
ou o jornal na outra, lá vão até ao encontro dos amigos
num banco de jardim, numa repousante e circular
biblioteca, ou simplesmente até ao restaurante do

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costume para um retemperante iam-chá e dois dedos da
sempre apetecida conversa.

Pelas tardes de calmaria e mais humidade que calor,


acocorados pelos passeios vão gastando pedrinhas de
xadrez chinês em exercícios estratégicos de paciência e
sabedoria, impulsionados a golpes de arriscada audácia
e esperteza fina. Jogadores medindo-se na corda bamba
da vida, ninguém vai ao chão, é a amizade quem ganha.

Em terra onde os espaços da sueca ou dominó


escasseiam, o mah-jong é rei e senhor nas mesas gastas
da convivência, onde serenos anciãos vão desfiando a
caruma dos dias e sorrindo ao futuro planeando gestos
manuais de desafio ao destino, vão colocando as

pedras, pontes abertas para a aventura.


Nos intervalos das horas ainda vai restando tempo para
um saudável chá verde e o aclarar da garganta
discutindo com os pang iaos as últimas novidades; o
futuro da terra que obviamente só pode ser melhor se
nas mãos dos seus filhos, sem rancor ou desprezos
inúteis; uma guerra acolá, acordos acoli. Nunca é tarde
para balançar o pulsar da vida.

Se lhes sobra tempo e os soubermos convencer por bons


modos, ainda nos leem a sina, futuro escrito na palma
da mão e confirmado no recortado do rosto, mas como
todas as coisas decidido alhures entre o coração e o
cérebro.

Ah! Destes avós delicados também reza a história e


quanto do que cada um de nós sabe da vida não o deve
ao avô?

Na serena sabedoria dos avós se encerra a chave do


futuro.

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canto oitavo

“que hão de levar-te à vitória”

Um pouco por todo o lado aqueles que se autopropõem


líderes do que quer que seja, assentam as suas posições
em discursos de virilidade duvidosa que apenas
conseguem arrastar a humanidade para o campo da
confrontação acintosa, quando não para a guerra.

Desta afirmação violenta dos líderes apenas podem


resultar, não vitórias efetivas sobre alguma coisa, mas a
submissão forçada da outra parte, a humilhação de
outros seres humanos.

Numa transição como a que se verificou em Macau, em


que representantes de dois países, ainda que nem
sempre isentos dos tiques atrás referidos, mas que no
entanto os conseguiram ultrapassar e chegar a bases de
acordo em que nenhuma das partes se sente humilhada
ou ofendida, passa a constituir um exemplo para os
líderes do mundo inteiro e uma nova forma de resolver
os problemas, sem ser pela anulação de uns em favor da
prosápia de outros. É uma grande vitória de que dois
povos históricos se podem orgulhar e oferecer ao
mundo. Para exemplo.

Não se procura com esta vitória a derrota de quem quer


que seja, se possível for, ela há de ser uma vitória de
todos, por todos, para todos.
A vitória que se deseja é a de que esta cidade continue a
ser porto de abrigo para corações das mais variadas
nações.

Ninguém pode falar em vitórias do bem sobre o mal. De


bons sobre os maus. O que quer isso dizer?

Tal como o mundo lá fora não é a preto e branco mas


colorido; também em cada um por si, ou englobado num
total coletivo chamado pátria, nação, ou qualquer outro
nome que seja atribuído ao grupo, existem variedades
de sentimentos, emoções, razões... O ser, individual ou
coletivo, nem sequer é dual, é múltiplo.

Não se pode por isso mesmo entender o mundo numa


perspetiva maniqueísta.

A vitória que urge celebrar é a vitória do ser sobre ele


mesmo, sobre o caráter tirânico do egoísmo, do espírito
do grupo fechado que leva à marginalização dos
excluídos.

É esta vitória, a da aceitação do outro pelo eu como se


de outro eu se tratasse que tem que ser conquistada, pelo
homem. É um trabalho que não pode ser deixado a
cargo de grupos religiosos mais ou menos fanatizados e
que apesar de possuídos pela melhor das intenções
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acabam sempre por demarcar o seu terreno e ao
incluírem uns, excluem outros.

Numa cidade, digamos acolhedora e aconchegada, como


é Macau, não pode perder esta riqueza que é a das suas
crianças brincarem em cantonense, mandarim,
português, inglês, tagalog, tailandês, hindu, malaio...

Por favor, não permitam que as crianças parem de


brincar.

Está aqui a chave para a vitória alcançar, é só não deixar


perder esta semente.

canto nono

“às armas, às armas”


As nossas armas são livros e as munições poemas...
Nossos guerreiros chamam-se Li Bai, Wang Wei, Bai
Juyi, Camões, Pessanha, Pessoa...
Foi por Macau que ocidente e oriente traçaram poetas.

As suas batalhas cingiram-se ao homérico desafio de


procurar a essência das coisas e é por eles que a
sabedoria nos chega pura e limpa de escolhos. É só ler o
livro que nos legaram.

Sobre os dias claros escreveram a perspicácia do olhar


alcançar para lá do lá e ler na distância sem limites os
limites da espécie humana.
Nos dias cinzentos retrai-se a vista ao para cá do cá e o
homem aparece na sua enorme e impotente pequenez
perante a imponência do universo; descobre-se homem
aqui e agora, nos seus conflitos interiores, nos dilemas

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da existência, na procura da pequenez ganha outras
dimensões, conquista a capacidade de quebrar os limites
à distância.
Das planícies, chega o desejo de chegar ao alto,
contemplado na distância afigura-se inacessível e
desafia. Perante o desejo horizontal, afirma o homem a
sua vontade vertical e deixa seguir o olhar pelo ondular
das espigas.
Subir ao alto das montanhas e ver claro a profundidade,
é comum vontade dos mortais. Mas o alto também
permite ir ainda mais ao alto em nossos corações. E
sussurrar baixinho “somos pequeninos”.
Pelos rios, todos partimos um dia e uns regressam
outros não. Águas de todas as esperanças, elas secam os
olhos das mulheres cansadas na espera.

Os mares são rios que lavaram muitos mais olhos


esperançosos, marés vivas de separação e reencontro.
Barreira e passagem, unem agora o que antes separaram.
E o que separado sempre tem sido, são as terras e as
gentes, não as águas.
Cantam-se deslumbrantes as árvores prenhes de flores,
momentos antes de se carregarem de frutos cheirosos e
deliciosos. Primavera renascendo da profundidade da
terra, o riso das crianças dá continuidade à vida.
É doce a embriaguez do sabor do vinho ingerido em
comuns celebrações de alegria e prazer. Calor que
aquece os corpos, força que quebra regras e leis.
Para lá do desejo de mudança ou da vontade de
permanência, ficam as marcas da ausência nesta
melancolia que ora oprime, ora alivia.

Nas noites escuras e tempestuosas, ficam do mundo


agitado lá de fora ternas memórias, o olhar vira-se agora
para as paisagens do interior e verifica como ele ficou
desarranjado desde a última saída.

As mulheres são as guardiãs do lar, são elas que


administram e calam com lágrimas as ausências. Seios
de vida, onde os guerreiros regressam, fatigados, para
retemperar forças. Mais ativas que passivas, elas salvam
o mundo com o amor.
Canto nono o canto dos poetas, canto nono o canto das
musas apaixonadas.
Aqui, perante este mundo enorme e deslumbrante, se
interroga o poeta: quem sou? de onde vim? que faço
aqui? para onde vou? sou livre? ou obedeço a uma força
exterior que me impele a ser assim?
Estas as vozes do nosso desassossego.

canto décimo

“contra os canhões marchar, marchar”

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Meus senhores e minhas senhoras, agora aqui chegados,
ao décimo canto desta minha crónica, é chegado o
momento de fazer o balanço, ou como se poderá dizer,
em maneira mais aprumada, o discurso do estado da
transição.
Em todas as transições é normal pesar os pratos da
balança e procurar entre o deve e o haver a quem cabe a
fatura dos débitos. O que diga-se acaba quase sempre
por provocar algumas fraturas ou fissuras.

Não me parece que após tantos anos de convivência, em


que os conflitos foram meros pormenores de
circunstância, salvo uma ou duas exceções que
estoicamente confirmam a regra, se deva agora andar às
voltas com este tipo de contas.
Sinceramente, após quatro séculos de vivências
partilhadas, ambas as partes apenas têm a haver a
amizade da outra. Assim a saibam e queiram preservar...

Ao que se vai perdendo, caso o mereça, há que reservar


um respeitoso lugar nos arquivos da memória.
Os anos de juventude que não voltarão, amigos que
partiram para longe, entes queridos que se finaram...
Do que em conjunto temos a lucrar, isso sim, há que
celebrar.
Muitos anos de salutar experiência de vida em comum,
novas amizades que por se construírem do nada se
tornaram mais sólidas, os amores de cada dia...

31
Em Macau, 1999, ano de todas as transições, não deverá
acontecer um corte umbilical na história, sob a
inevitabilidade de tudo ter que recomeçar de novo, e o
tempo escasseia.
O povo deverá sair à rua e festejar, com muito vinho e
alegria, a comemoração dos dias contínuos, desta nova
arca da aliança, da fé e da esperança.
Nas horas exuberantes da festa, porque os festejos são
momentos mágicos, que se consiga a ligação temporal
entre passado e presente, para que estas sementes da paz
e da amizade, aqui tão ciosamente desenvolvidas e
preservadas, possam florescer no futuro.

Por isso, aqui chegados, posso dizer: Macau, 1999,


tenho de ti saudades... Do Futuro.
FIM

33
Texto; Jaime Manuel

Fotos: Jaime; Michael Brandon; Paul Pat Coast; Carlos


Makwá Barreto, et alltri

caricaturas: Sir D. Rudas I

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