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1999 19
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Jaime crespo
Jaime crespo
7/1/1999
MACAU, 1999 OU A CRÓNICA
DA ARCA REDESCOBERTA
introdução
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canto primeiro
canto segundo
" N AÇ ÃO VALENT E E IMOR T AL "
5
Nem sempre foi fácil a convivência. Nunca é fácil a
convivência, para mais quando a aliança também passa
pelos interesses e conveniências comuns aos homens.
Mesmo quando os casamentos são resultantes do amor
há sempre uma parcela interesseira que incomoda. É
preciso conivência para certos pecadilhos do outro. Mas
entre os interesses de uns e as conveniências de outros
cá se foi andando, na lufa lufa, até agora.
Aq
ui nesta terra que pisamos, palco da transição das
transições: de décadas, de séculos, de milénio, de
soberanias... Construiu-se este presente de cimeiras e
conversações que conduzem a acordos. Quando se
negoceia é necessário saber ser magnânimo, saber ouvir,
ceder, compreender o outro lado talvez mais que o
nosso; para assim se ser ouvido, compreendido,
recebido.
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Es
ta cidade do Santo Nome de Deus e de Ah Má cumpre-
se na força dos seus cidadãos que a constroem valentes
no seu trabalho e imortais em toda a sua tolerância.
canto terceiro
9
É bom de ver o centro da cidade apinhado de
funcionários enfatuados nos seus limpinhos fatos, mais
ou menos passados, bem cheirosos de perfume contra a
humidade e rostos gastos na leitura da literatura oficial.
CANTO QUARTO
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Nem só de gentes vivem as cidades. E o seu esplendor
vem sobretudo das suas ruas, casas, monumentos,
jardins, espaços, cores... É do modo como esta
amálgama de pedras, betão, vegetação, espaço livre e
restos de muitas matérias, se organiza e se dá ao
usufruto que nasce o corpo da cidade, íman das gentes.
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Se Marcel Proust dizia que há algo em certos nomes de
coisas, lugares ou pessoas que exercem sobre nós um
fascínio irresistível que nos faz apetecer tê-las, lá ir, ou
estar com elas, então que dizer de nomes tais como
Largo do Lilau, San Ma Lou, Lou Lim Ieok (esse
pequeno e belo jardim dos caminhos que se bifurcam),
Tap Seak...!?
canto quinto
"entre as brumas da memória"
Te
rra afligida por tempestades não deixa envelhecer as
brumas, estas, envolvem-na durante grande parte do
ano, mas não se fixam, antes se renovam em grandes
vagas espumosas não deixando assentar poeiras por
muito tempo.
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Sobretudo a tentação em cair no querer fazer História,
na pretensão de ser intérprete de altos desígnios em
nome de nada, na defesa de coisa nenhuma, para lá do
vazio redundante do discurso nada fica; esta situação
leva muitos a saírem da esclarecida humildade e a
enveredarem impantes de orgulho pela fogueira das
vaidades, essa devoradora de almas humanas.
canto sexto
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A voz a que urge dar ouvidos, não pode continuar a ser
a voz átona, do sangue e do apego à terra, a voz que
rodeia e enleia grudando os corpos ao solo, enraizando;
é a voz polifónica, da vida, da conexão ao resto do
mundo e às estrelas, que desprende e solta os corpos,
libertando.
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De todos estes sons é feita a voz da cidade. E é de gente,
viva. Cheia e múltipla, convida à participação, sem
exclusões.
canto sétimo
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costume para um retemperante iam-chá e dois dedos da
sempre apetecida conversa.
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canto oitavo
canto nono
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da existência, na procura da pequenez ganha outras
dimensões, conquista a capacidade de quebrar os limites
à distância.
Das planícies, chega o desejo de chegar ao alto,
contemplado na distância afigura-se inacessível e
desafia. Perante o desejo horizontal, afirma o homem a
sua vontade vertical e deixa seguir o olhar pelo ondular
das espigas.
Subir ao alto das montanhas e ver claro a profundidade,
é comum vontade dos mortais. Mas o alto também
permite ir ainda mais ao alto em nossos corações. E
sussurrar baixinho “somos pequeninos”.
Pelos rios, todos partimos um dia e uns regressam
outros não. Águas de todas as esperanças, elas secam os
olhos das mulheres cansadas na espera.
canto décimo
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Meus senhores e minhas senhoras, agora aqui chegados,
ao décimo canto desta minha crónica, é chegado o
momento de fazer o balanço, ou como se poderá dizer,
em maneira mais aprumada, o discurso do estado da
transição.
Em todas as transições é normal pesar os pratos da
balança e procurar entre o deve e o haver a quem cabe a
fatura dos débitos. O que diga-se acaba quase sempre
por provocar algumas fraturas ou fissuras.
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Em Macau, 1999, ano de todas as transições, não deverá
acontecer um corte umbilical na história, sob a
inevitabilidade de tudo ter que recomeçar de novo, e o
tempo escasseia.
O povo deverá sair à rua e festejar, com muito vinho e
alegria, a comemoração dos dias contínuos, desta nova
arca da aliança, da fé e da esperança.
Nas horas exuberantes da festa, porque os festejos são
momentos mágicos, que se consiga a ligação temporal
entre passado e presente, para que estas sementes da paz
e da amizade, aqui tão ciosamente desenvolvidas e
preservadas, possam florescer no futuro.
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Texto; Jaime Manuel