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ANAIS DO III CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOLOGIA e IX SEMANA DE PSICOLOGIA 1

18 a 21 Setembro de 2007
ISSN: 1678‐352X
POR UMA VIDA MAIS DIGNA. OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS
DE PALMITAL – SP: O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE UMA ASSOCIAÇÃO

Líége Caldeira - Faculdade de Ciências e Letras, Campus Assis, Universidade Estadual Paulista
“Júlio Mesquita Filho” – UNESP.

Muitos trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho encontraram na prática de


catar materiais recicláveis, a única opção que lhes restou para sobreviver de forma honesta.
Neste trabalho, relataremos a experiência da organização de uma associação dos catadores de
materiais recicláveis da cidade de Palmital–SP. Denominada de ACIPAL, esta associação
segue os princípios da Economia Solidária e do cooperativismo, e aliada ao Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, visa à melhoria das condições de renda e de
trabalho dos catadores, rumo à autonomia financeira e auto-gestão.

Palavras-Chave: Organização popular, Economia Solidária, catadores, cooperativismo e


cidadania.

1. Introdução.
Cooperar significa trabalhar junto com
outras pessoas para realizar, com
sucesso,um mesmo objetivo.
(Cooperativismo, SDS, 1999).
Entre as décadas de 1960 e 1990, o mundo passou por profundas alterações estruturais
– políticas e econômicas – conhecidas como Globalização. Esse processo contribuiu para o
grande avanço tecnológico, que apesar de oferecer indiscutíveis ganhos econômicos, produziu
drásticos efeitos aos países subdesenvolvidos e às camadas mais pobres da população.
Junto com o processo de Globalização, as políticas neoliberais (transferência de
funções estatais para a esfera privada, privatizações com importação de tecnologia), adotadas
em muitos países, causaram grandes mudanças na produção e nas relações de trabalho, e
agravaram intensamente a crise do desemprego e o processo de marginalização e de exclusão
social.
Essa reestruturação, capitaneada pelas empresas multinacionais, afetou principalmente
os países em desenvolvimento como o Brasil e atingiu violentamente os municípios,
extinguindo empregos e deixando imensas parcelas de trabalhadores na informalidade e na
miséria. Milhares de trabalhadores que se depararam com uma vida sem emprego e com a
impossibilidade de criar seu próprio negócio, começaram catar materiais recicláveis e vendê-
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los aos “sucateiros” ou “atravessadores”, exploradores que os revendem às industrias de
reciclagem, obtendo a maior parcela de lucro.
Catar os recicláveis das lixeiras de bairros residenciais ou do “lixão” (área destinada
ao depósito do lixo urbano in natura), é uma prática degradante, mas uma das poucas
alternativas que restou a muitos para sobreviver de forma honesta.
No Brasil, esse processo de exploração tem caracterizado a realidade dos catadores na
maior parte das cidades. Entretanto, visando alterar tal conjuntura, em meados dos anos 90
esses catadores começaram a se organizar em cooperativas ou associações, para lutar juntos
por condições mais dignas e autônomas de trabalho e pela sua inclusão nas políticas
municipais de gestão dos resíduos sólidos.
Organizaram-se também nos níveis regional, estadual e nacional, criando o Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR. Esse movimento, instância
organizativa que defende os direitos e os interesses dos catadores, opera segundo os princípios
do cooperativismo, da Economia Solidária e da auto-gestão, e trabalha no sentido de estimular
a criação de redes de ação conjunta entre as cooperativas. Segundo Veiga & Fonseca (2001),

o cooperativismo (...) é, antes de tudo, uma filosofia do homem na


sociedade em que vive, um pensamento que procura construir uma
nova maneira de processar a economia baseando-se no trabalho e não
no lucro; na ajuda mútua e não na concorrência e competição; nos
valores e necessidades humanas e não na acumulação individual do
dinheiro e na exploração do trabalho (p.17).

O cooperativismo visa o aprimoramento do ser humano em todas as suas dimensões


(social, econômica e cultural), preocupa-se com a qualidade de seus produtos e serviços, busca
o preço justo, preocupa-se com o meio ambiente, bem como em construir uma sociedade mais
equânime, democrática e sustentável. Já existe há quase dois séculos, mas ainda não tem uma
fórmula pronta e imutável para sua implantação, considerando que sua viabilidade dependerá
do funcionamento de cada comunidade. Segundo Veiga & Fonseca (2001),
é reconhecido como o sistema mais adequado, participativo, justo,
democrático e indicado para atender às necessidades e aos interesses
específicos dos trabalhadores. É o sistema que propicia o
desenvolvimento integral do indivíduo por meio do coletivo (p.17).

Possui princípios opostos aos do capitalismo, pois as relações entre empresa e


trabalhador e a empresa e seus clientes são diferentes. A cooperativa não tem patrão, cada
cooperado é dono, possui sua parcela de responsabilidades e deve ter a consciência que sua
colaboração afeta diretamente o todo.
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Baseado princípios como autonomia, intercooperação, independência, adesão
voluntária e livre e gestão democrática pelos membros, o cooperativismo oferece muitas
vantagens para os trabalhadores assim organizados, como o aumento da produtividade do
trabalho através da organização da produção e melhor preço na venda e qualidade de seus
produtos, elimina a dependência com os atravessadores ao vender em grande quantidade
diretamente para grandes mercados, cria e fortalece laços de solidariedade social. No entanto,
lutar para defender todos os princípios do cooperativismo inclui a transformação de valores
capitalistas: competição, individualismo, consumismo.
Para que os princípios do cooperativismo e da Economia Solidária se efetuem na
sociedade, o MNCR tem como parceiros diferentes setores do governo, a Cáritas Diocesana
(instância da Igreja Católica) e algumas universidades públicas.
Conjuntamente, essa grande parceria tem promovido diversos debates em Seminários,
Encontros e Congressos Nacionais e Internacionais, com o objetivo da formação de uma
consciência crítica nacional, sobre a questão das políticas de gestão dos resíduos sólidos vista
como uma possibilidade de reconhecimento e de inclusão social dos catadores. É nesse
contexto, que a Economia Solidária procura dar respostas à necessidade de melhoria das
condições de trabalho e de renda e o resgate da cidadania de muitos trabalhadores.
Em Assis, cidade situada na região oeste do Estado de São Paulo- Brasil, foi
organizada, segundo esses princípios defendidos pelo MNCR, uma cooperativa de catadores
denominada COOCASSIS3. Esta cooperativa tornou-se referência regional, e tem estimulado
a organização dos catadores em cidades vizinhas como Platina, Maracaí, Florínea e Palmital,
visando incluí-los no MNCR e constituir uma rede regional.
A COOCASSIS – Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Assis nasceu
em Setembro de 2002 e atualmente conta com cerca de quase 60 cooperados, dos quais 40
atuam em convênio firmado com a Prefeitura Municipal para a Coleta Seletiva Solidária,
implantada na cidade a partir de junho de 2005. O restante dos trabalhadores continua a catar
seus materiais recicláveis na rua, individualmente. Atualmente o aterro da cidade está fechado.
Esse projeto, assessorado e apoiado desde o início pela Cáritas Diocesana de Assis e
pelo Núcleo de Assessoria à Formação de Cooperativas Populares da Faculdade de Ciências e
Letras da Unesp, Campus de Assis, (que será denominado posteriormente como NACOOP)
contou ainda com o apoio da Prefeitura Municipal de Assis, que patrocinou todos recursos

3
A COOCASSIS conta desde o início com o apoio da Prefeitura Municipal e da Cáritas Diocesana de
Assis e com a assessoria do Núcleo de Assessoria à Formação de Cooperativas Populares da
Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Campus de Assis.
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necessários para a implantação da Coleta Seletiva Solidária. Os catadores ingressantes na
Coleta Seletiva não trabalham mais na insalubridade, e hoje já estão em dia com a previdência
social, garantindo seus direitos previdenciários, incluindo a aposentadoria.
Observamos, como escreve Singer & Souza (2000) “mudanças de qualidade das
condições e relações de trabalho” (p.7). Anteriormente, cada catador recebia de acordo com a
quantidade de material arrecadado. Atualmente toda a arrecadação da Coleta Seletiva
Solidária é dividida igualmente entre os cooperados.
A COOCASSIS tem-se tornado uma referência regional, e juntamente com o Comitê
da Região do Oeste do Estado de São Paulo, ligada ao MNCR, tem estimulado e auxiliado na
organização dos catadores em outras cidades da região, visando a organização de uma rede
social para a comercialização e a transformação conjunta dos recicláveis.
Uma das diretrizes da COOCASSIS, ao lado do MNCR, é também estimular a
formação de uma rede social na região Oeste do estado de São Paulo. Outras cidades vizinhas
de nossa região, como Platina, Maracaí e Florínea, procurou no mês de outubro deste ano, o
NACOOP para ajudar a organizar seus catadores.
Uma das realizações dessa iniciativa é a organização de uma associação de catadores
de materiais recicláveis – ACIPAL, no município de Palmital, localizado nas proximidades de
Assis. Neste trabalho, objetivamos relatar essa experiência, tomando como referência a
experiência da COOCASSIS.

Pretendemos também refletir e discutir sobre todo o processo de organização da


ACIPAL, procurando destacar os aspectos positivos e as dificuldades encontradas e
disponibilizar essa experiência para contribuir com outras organizações de catadores
interessadas.

2. O processo de formação da acipal – Associação dos catadores de materiais recicláveis


de Palmital.

A cidade de Palmital, localizada a 30Km de Assis, na região oeste do Estado de São


Paulo, Brasil; é uma das centenas de cidades brasileiras que presenciaram (muitas ainda
presenciam) o cenário degradante da prática da coleta de materiais recicláveis no aterro
sanitário.
A Prefeitura Municipal de Palmital, a Cáritas Diocesana (estrutura da Igreja Católica),
o NACOOP e a COOCASSIS, trabalharam no sentido de organizar os catadores desta cidade
em uma associação com o intuito de incluí-los na política municipal de resíduos sólidos,
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através da implantação da Coleta Seletiva; oferecer condições mais dignas e autônomas de
trabalho; possibilitar maior garantia de renda e inclusão no sistema previdenciário; melhorar
sua condição de vida e possibilitar que sua categoria seja socialmente reconhecida e
valorizada.
Nesse sentido, participamos semanalmente desde o início, como representantes do
NACOOP, das reuniões com os catadores interessados na formação dessa associação. Ao se
organizar e se unir com outras cooperativas, há a possibilidade de conseguir melhor valor na
venda de seus produtos. Por isso, a organização de redes sociais, é mais uma alternativa para
proteger e fortalecer essas iniciativas.
Um dos pontos de partida da Economia Solidária é reconhecer que na cerrada
competição do capitalismo, a pequena empresa tem maior dificuldade de sobreviver
isoladamente: “O pequeno só é pequeno porque está sozinho” (Singer, 1998, p.124).

Partiremos nesse momento para um relato reflexivo do processo de formação da


ACIPAL.

2.1. A história da “reciclagem4” em Palmital.

No ano de 2003, a Prefeitura de Palmital propôs um plano de reciclagem para a cidade.


Com um programa de geração de renda, 18 famílias de catadores se envolveram e iniciaram o
processo de formação de uma associação. Elaboraram um Estatuto e criaram esperanças com a
possibilidade de ter uma condição melhor de trabalho. O principal apoiador da Prefeitura
ocupava um cargo de “visão especial”, e trabalhava na Secretaria do Meio-Ambiente.
Realizaram diversas reuniões das quais participaram representantes da Igreja Católica,
instituição que também participou desse processo.
A Prefeitura disponibilizou um barracão (com condições muito precárias) para destinar
o material reciclável que o caminhão da Prefeitura coletava nas residências. Esse projeto foi
abandonado no momento em que o principal apoiador da Prefeitura (cargo de “visão
especial”) desistiu do trabalho. Naquele momento a Prefeitura Municipal não estava disposta a
disponibilizar os recursos necessários.
Atualmente, a “reciclagem” ainda passa em alguns bairros da cidade e despeja o
material coletado nesse barracão que está abandonado. Apenas três catadores (de 18 famílias)
continuaram a trabalhar sob essas condições, o restante trabalha sobre condições ainda piores
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no aterro sanitário. Uma das catadoras nos disse certa vez: “– Lá na reciclagem, a gente tem
que fazer as necessidades em um saquinho e jogar para longe, senão ninguém agüenta o fedô,
além do cheiro do lixo”.

Neste caso, a autonomia, um dos principais princípios do cooperativismo, ainda não


havia sido conquistada e o abandono dos apoiadores em um momento inicial, foram letais para
a articulação de um grupo que estava começando a se formar.

2.2. As primeiras reuniões.

No mês de agosto deste ano de 2005, a Prefeitura Municipal de Palmital, entrou em


contato com os professores responsáveis pelo NACOOP e comunicaram que a FUNASA
estava cobrando de Palmital um plano de gestão de resíduos sólidos. Um prazo foi estipulado
para que esse plano fosse elaborado e implementado, ou seria cobrada altíssima multa da
Prefeitura.
A partir desse contato, formamos uma comissão de apoiadores com representantes da
Prefeitura, da Igreja Católica e do NACOOP. Iniciou-se um processo de trocas de informação
entre os cooperados da COOCASSIS e os catadores de Palmital mediante reuniões semanais.
Tais reuniões provocava uma discussão sobre as novas possibilidades do trabalho a
qual se configurava, inclusive sobre tabela de preços dos materiais.
A fala de uma das catadoras ilustra o ânimo que foi gerado com a possibilidade de
conseguir melhorar o preço da venda de seu material: ”Já pensou não ter mais que pegar sutiã
do lixo?”.

É importante comentar sobre o forte envolvimento da Prefeitura Municipal, desde o


início do processo, disponibilizando semanalmente um carro para o transporte da estagiária do
NACOOP, envolvida com este trabalho.

2.3. A formação da primeira comissão representativa.

Nessa reunião estavam presentes o atual Diretor da COOCASSIS, representantes do


NACOOP, diversos representantes da Igreja e da Prefeitura Municipal de Palmital e 25
catadores. Esclarecemos várias dúvidas dos catadores de Palmital e também que a organização
de uma associação não os tornaria ricos, mas melhoraria suas condições de trabalho.

4
Reciclagem é o nome dado por catadores e moradores de Palmital ao Programa de Coleta Seletiva que foi
implantado na cidade em 2003, onde era feita a triagem dos materiais coletados, sob péssimas condições de
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Mediante esses encontros semanais, foi possível evoluir para a eleição informal dos
primeiros representantes do grupo, a qual se constitui em uma comissão representativa de
quatro membros, os quais dois eram catadores da rua e dois eram catadores do aterro sanitário.

2.4. Visita ao “garimpo”.

Neste ítem, trataremos de uma visita feita pela autora ao lixão da cidade de Palmital, e
como se trata de uma experiência pessoal, utilizarei a primeira pessoa do singular.
Compareci ao “garimpo” para visitar os catadores em seu local de trabalho. Eles
denominam o aterro como garimpo, porque é onde eles realmente “garimpam” muitos objetos
pessoais. Foi a primeira vez que pisei nas larvas do lixo e respirei aquele odor.
Quando cheguei, eles ainda estavam sentados esperando o caminhão que fazia a coleta
do lixo na cidade e que não demorou muito. Assim que este foi avistado, os catadores logo
correram em sua direção. O motorista do caminhão, incumbido de despejar o lixo dentro de
uma das valas do aterro, é impedido de fazê-lo pelos catadores, que ficam esperando atrás do
caminhão o lixo ser despejado. Correm um grande risco de uma das mangueiras do caminhão
estourarem, de serem atropelados e de adquirir doenças, pois trabalham sem nenhuma
proteção.
Por um tempo observei. Porém, ao me sentir inútil ali observando, tentei ajudar... Não
tive coragem de pisar no monte de lixo que o caminhão despejou (como todos eles fazem),
pois os meus pés afundariam até o joelho, entre sacolas podres. Mas pelas bordas, comecei a
ensacar os materiais que eles separavam em pequenos montes.
Aquele cheiro horrível, o Sol nas costas, os urubus em volta, as pessoas curvadas sob o
lixo, sujas... Apenas duas horas em um lugar desse, me causou náuseas e dor de cabeça.
Imagino os catadores que vivem trabalhando com isso todos os dias da semana.
Pude assim me aproximar bastante desses trabalhadores e de sua condição degradante.
Enquanto eu ensacava, conversava. Comecei a separar as embalagens de “Tetrapak”, quando a
Isabel me disse:
- “Ô Liége, não perde tempo pegando isso aí não, porque aqui os atravessador só leva
plástico e ferro. Os ferro você põe em uma sacola, os plástico em outra.”
Assustei-me quando vi larvas em uma embalagem de plástico, suja de restos de comida
podre. Logo minhas mãos já estavam marcadas, sujas.

trabalho.
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O grupo, constituído por viver na mesma realidade, se relaciona de forma competitiva.
Quem cata mais, ganha mais. Apesar de conviver de forma competitiva, esses catadores
dividem entre si os garimpos de maior valor, de acordo com a necessidade de cada um.
E a Maria andava pra lá e pra cá, cantando e catando, cantando e catando...
E eu perguntei à ela:
- “Você tá animada Maria?”.
- “Vivendo nesse lixo aqui minha filha, só cantando mesmo... Por um lado é bão
porque eu emagreci. Antes de começar a catar, eu pesava 120kg, agora peso 80Kg. É de tanto
trabalho”.
Tentei me aproximar um pouco de cada um deles, ajudava a ensacar um pouco dos
montes de cada um. Estava ajudando e conversando com a Zelinda, quando um urubu pousou
perto de nós. E ela disse: - “Olha aí, os urubus tão esperando a gente terminar de catar pra eles
poderem comer. Eles que não são loucos de chegar perto de nóis... Já falei até que qualquer
dia, nóis vai comer tudo eles. Só botá na fogueira e já era”.
E depois de mais ou menos duas horas, avistamos um carro se aproximar. Então a
Sueli comentou: – “Que carro chique, quem será que é?”.
Era o carro da Prefeitura que chegou para me buscar, conforme eu havia combinado.
A Maria disse: – “Você já vai Liége? Pensei que você ia almoçar aqui com a gente!”.
O Sr. Mariano, me ofereceu um pouco de sua água para que eu pudesse lavar as
minhas mãos. Acompanhou-me até sua carroça e disse que ele está sem esperanças, pois no
mês passado, catou quase 700kg de papelão, e não deu nem R$300,00. No caminho até o
carro, o Antônio, vulgo Pernilongo, me perguntou: – “Tá fraco aqui, você não acha? Há um
tempo atrás tinha muito mais material”.

Despedi-me de todos, e fui embora naquele carro novo da Prefeitura, que destoava do
cenário.

2.5. A elaboração do Estatuto Social.

Como parte do processo, iniciamos a elaboração do Estatuto a partir de alguns


modelos de arquivo da COOCASSIS. Este foi elaborado e re-elaborado diversas vezes
segundo os princípios do cooperativismo e da Economia Solidária. Foram necessárias muitas
reuniões e o Curso de Capacitação para ajudar os catadores a se familiarizarem e
compreenderem tudo que estava escrito no Estatuto Social, que ainda está aberto a mudanças.
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2.6. A visita ao Parque de Reciclagem de Assis.

A prefeitura de Palmital disponibilizou um ônibus para trazer todos os catadores para


visitar o Parque de Reciclagem em Assis. Ao chegar, eles passearam por todo o Parque a fim
de conhecer o trabalho de uma cooperativa já estruturada. Fizemos uma parada para tomar
café, e assistimos um documentário sobre a história de vida de alguns catadores. Depois, eles
tiveram a oportunidade de ajudar os cooperados da COOCASSIS a triar os materiais na
bancada. Ficaram muito interessados e animados por experimentar um pouco do que será o
trabalho deles futuramente. Também aprenderam como é a separação dos materiais para
vendê-los enfardados. Em Palmital, os atravessadores compram dois tipos de materiais
separados em: Todos tipos de plástico e todos tipos de ferro. Não há seleção mais detalhada
do material como na COOCASSIS, onde cada tipo de plástico tem um destino diferente. O
preço do material valoriza a medida em que é melhor selecionado e limpo. Aí está um dos
motivos pelos quais o material em Palmital é muito desvalorizado, pois os catadores os
vendem contaminados de restos do lixão, e pouco selecionados, além de não enfardados. Na
visita ao Parque eles puderam observar essa diferença, e animaram-se ao encontrar-se com
outros catadores trabalhando em uma cooperativa já organizada.

2.7. A escolha do nome.

Após dar uma breve aula sobre as diferenças de cooperativa e associação, dividimos o
grupo em subgrupos. Eles tinham a tarefa de elaborar algumas propostas de nomes para a
Associação.

As propostas elaboradas foram: ASSOCAMP, ASSOCAP, APML E ACIPAL. Por


aclamação, o nome “ACIPAL” venceu com nove votos.

2.8. Curso de Capacitação – Introdução à Economia Solidária.

O primeiro curso de capacitação –Introdução à Economia Solidária foi oferecido por


três estagiárias5 do NACOOP, realizado em uma Escola Municipal de Palmital e subsidiado
pela prefeitura.

5
Esse curso foi ministrado por três estagiárias do NACOOP: A autora, Kátia Hernandes, e Fernanda Yonezawa.
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No primeiro módulo do cursi, foi tratado sobre a História do trabalho. Conversamos
sobre narcisismo, valores e sentimentos que o capitalismo produz nas pessoas, as
conseqüências da Revolução Industrial e das políticas neoliberais.
No segundo módulo, discutiu-se sobre a História do trabalho, sobre os princípios do
cooperativismo e sobre o Estatuto Social. Subdividimos os catadores, e cada grupo ficou
responsável por estudar e apresentar uma parte do Estatuto. É interessante citar a fala de
alguns catadores:
Isabel Romualdo: – “Sem a ajuda da Prefeitura, não conseguiremos nos estabilizar. Se
não fosse eles, a gente não tava aqui, e não ia aprender nada. O povo tem que ficar unido.
Nunca um virar as costas para o outro. Temos que pensar a associação como uma família. Se
não fosse esse curso, a gente não ia saber de nada, até agora a gente só sabia catar e vender.
Teremos garantia de melhor preço, não para enrricar, mas para ter uma vida melhor”.
Vilza: –“Tudo será repartido em partes iguais. Conseguir ao longo do tempo fazer o
nome da associação”.
Neide: – “Todos lutaremos pelo mesmo objetivo. Nós unidos jamais seremos vencidos.
Se um está desanimado, o outro tem que animar. Temos a responsabilidade no meio-ambiente.
Temos que respeitar nosso trabalho, para que o orgulho do nosso trabalho seja reconhecido”.

2.9. O processo de decisão: “Quem participa do lixo?”.

Em seu processo de formação, a ACIPAL, já enfrentou alguns impasses. A Prefeitura


Municipal fez um comentário de que faria um repasse de verba para os catadores até que a
Coleta Seletiva se consolidasse. Essa informação vazou pela comunidade e rapidamente as
reuniões lotaram de pessoas. Ao todo, eram 47 pessoas envolvidas em todo o processo.
Cadastrados, não cadastrados, catadores, falsos catadores, interesseiros, pessoas que
participaram de algumas reuniões e outros que só começaram a participar depois dessa notícia.
Posteriormente, percebemos que foi um erro oferecer um Curso de Capacitação, se
ainda não estava delimitado quem iria participar efetivamente da associação.
Estudos indicam que em média a coleta de recicláveis garante o rendimento de um
catador a cada 1000 a 1200 casas coletadas. Se Palmital tem 20.000 habitantes, o máximo de
catadores que a associação comportará será 20 pessoas. Se ao longo do tempo, perceber que
caberá mais, tudo bem. Assim, a comissão teve que estudar caso por caso, e com a ajuda do
grupo, decidir quais seriam os 20 participantes.
Foram necessárias várias reuniões para o grupo conseguir elaborar quais seriam os
associados fundadores da associação. A discussão para essa decisão se estendeu de maneira
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demasiado conflituosa, pois cada catador queria defender o critério que lhe interessava. Com
muita dificuldade o grupo elaborou os critérios: Sobreviver da catação, comparecer nas
reuniões, uma pessoa de cada família, cada catador deve ter no mínimo três testemunhas de
que ele sobrevive da catação. O grupo “dos 20” foi composto por pessoas heterogêneas, em
sua maioria mulheres.

Assim, a ACIPAL constitui-se por três grupos diferenciados: Os catadores da


“reciclagem”, alguns que catam na rua, e a grande maioria que trabalha no aterro sanitário.

2.10. O processo eleitoral.

Depois de escolhido os 20 participantes da associação, o próximo passo da ACIPAL


foi realizar o processo eleitoral, eleger a Diretoria e Conselho Fiscal, para registrar a
Associação, criando seu CNPJ.
Durante as reuniões que trataram do processo eleitoral, a Igreja propôs o acréscimo de
um artigo no Estatuto garantindo como dever da Diretoria nomear uma comissão para
assessorar e ajudar a organização da Associação, com membros da comunidade, do poder
público e da universidade. Dessa forma a Igreja e o Estado caminharão conjuntamente com a
ACIPAL, sem fazer parte dela, o que é digno apenas dos catadores.

Durante esse processo, os associados da ACIPAL amadureceram a idéia de eleição e


representatividade para os catadores. Explicamos detalhadamente para eles a função de cada
cargo. Diretoria: Presidente, Vice-Presidente, Secretário, Tesoureiro e Suplente. Conselho
Fiscal: Três titulares e um Suplente. Foi nomeada uma Comissão Eleitoral para planejar e
conduzir o processo. Posteriormente, a ACIPAL é constituida formalemente mediante a
Assembléia de Constituição da Associação dos catadores de Palmital – ACIPAL.

2.11. O Projeto da Coleta Seletiva

O próximo passo, a elaboração do Projeto da Coleta Seletiva de Palmital, utilizamos


como modelo o Projeto de Coleta Seletiva que a COOCASSIS apresentou para a Prefeitura de
Assis. Porém, fizemos algumas mudanças, procurando adaptá-lo à realidade de Palmital.
Aos poucos a identidade grupal se consolidava paralelamente à identidade dos
representantes do grupo. A ACIPAL foi registrada em cartório e o Projeto foi encaminhado
para apreciação na Câmara Municipal.
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No momento atual, o Projeto da Coleta Seletiva já foi implantado na área urbana do
município de Palmital. A associação desenvolve aos poucos sua rede social para a
comercialização entre os municípios vizinhos, sob os princípios do cooperativismo consolida
sua organização e desenvolvimento.

3. Considerações finais.

Ainda hoje, milhares de cidades não possuem um programa de gestão de resíduos


sólidos e muitos catadores continuam trabalhando no aterro sanitário. Aos poucos, com as
cobranças dos organismos ambientais ou responsáveis pela saúde, as cidades se mobilizam no
sentido de dar a destinação correta ao seu próprio lixo.
O MNCR, conjuntamente com a Igreja Católica e algumas universidades, têm sido
responsáveis pela sensibilização do poder público em muitas cidades no sentido da adoção de
políticas de inclusão de muitos cidadãos (catadores) que estavam na miséria ou em condições
precárias de trabalho. Podemos perceber que o cooperativismo ao atuar como um dispositivo
de mudança, já promoveu muitas transformações no mundo do trabalho. Porém, sabemos que
suas ações não resolverão todo o problema do desemprego no Brasil.
A regularização da ACIPAL junto ao cartório e a iminente celebração de convênio
entre esta e a Prefeitura Municipal de Palmital para implantação da Coleta Seletiva, abrem
novas perspectivas para muitos daqueles que há pouco coletavam seus materiais no lixo.
Até agora, os catadores contaram com os apoiadores para elaborar toda parte de
operacionalização da constituição da ACIPAL. Os associados esperam de nós (do apoio) a
tomada de iniciativas. Em muitas reuniões ocuparam a posição passiva de ouvir o que nós
tínhamos a dizer. Por isso observamos que a conquista de autonomia é um processo lento. É
uma construção que demanda tempo.
Acreditamos que nosso papel como assessoria é colaborar para que esse grupo já
constituído se organize de maneira a desenvolver sua atividade de maneira autônoma e auto-
gestionária. Segundo Ladeia & Natário (1998, p.9) “para Marx a teoria continua abstrata
enquanto alguns estiverem pensando, mas se torna uma força prática quando compreendida e
aceita pelas massas”.
Porém, para que tal compreensão ocorra, a necessidade da educação para uma ação
autônoma é uma evidência. Por isso a importância dos cursos de capacitação e das reuniões
semanais para a socialização das informações e a tomada coletiva de todas decisões.
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Pudemos perceber que alguns catadores mudaram sua posição dentro do grupo.
Pessoas que há três meses atrás não se colocavam nas reuniões, hoje expressam seu ponto de
vista.
Acostumados a ouvir a comunicação de forma vertical, os catadores encontram na
associação a possibilidade de voz e do exercício efetivo da cidadania. Isso devolve ao ser
humano sua capacidade de tomar decisões e aumenta sua auto-estima ao perceber que sua
opinião tem valor.
Mas isso ainda não garante o sucesso econômico da ACIPAL, considerando que como
toda empresa inserida no mercado competitivo, essa associação também precisará capacitar
seus membros para realizar diversas tarefas.
O cooperativismo depende da realidade da comunidade, para conseguir efetivar seus
princípios de autonomia, intercooperação, independência, adesão voluntária e livre e gestão
democrática pelos membros.
Podemos tomar como exemplo o atual funcionamento da COOCASSIS. Após seis
meses de implantação da Coleta Seletiva em Assis, a cooperativa enfrenta problemas de
organização interna. Qualquer empresa precisa capacitar seus administradores e gerentes, no
entanto a cooperativa não tem tempo nem dinheiro para capacitar seus representantes. Da
mesma forma esses não podem abdicar das tarefas cotidianas.
Singer (2002) aponta que a auto-gestão exige um esforço adicional dos trabalhadores
na empresa solidária: além de cumprir as tarefas a seu cargo, cada um deles tem de se
preocupar com os problemas gerais da empresa.
Apesar de alcançada a independência parcial dos atravessadores por comercializar o
material melhor selecionado, em maior quantidade e diretamente para grandes mercados, a
COOCASSIS, como muitos empreendimentos, depende de fatores conjunturais do mercado e
da política econômica para firmar-se como iniciativa auto-sustentável. Portanto, fica
vulnerável às condições que não estão sob seu domínio. Outro aspecto a ser considerado é que
os fatores econômicos ainda sustentam as relações de trabalho. Mesmo que o ambiente de
trabalho seja fraterno, se não houver recompensas financeiras, naturalmente os cooperados
vão desanimar, colocando a iniciativa em risco.

O maior inimigo da autogestão é o desinteresse dos sócios, sua


recusa ao esforço adicional que a prática adicional exige. Em geral
não é a Diretoria da cooperativa que sonega informações aos sócios,
são estes que preferem dar um voto de confiança à Direção para que
ela decida em lugar deles. (Singer, 2002b, p.19).
ANAIS DO III CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOLOGIA e IX SEMANA DE PSICOLOGIA 14
18 a 21 Setembro de 2007
ISSN: 1678‐352X

Alguns problemas são passíveis de resolução no curto prazo, mas outros exigem muita
persistência e paciência dos trabalhadores. É natural haver momentos de crise e de bonança,
assim como derrotas e conquistas. Nossa cultura estimula resultados de curto prazo e as
pessoas em geral são imediatistas. Por isso, nem sempre suportam um momento de crise.
Voltando a considerar o processo da ACIPAL, percebemos que por estar no começo de
suas atividades, ainda há muitas expectativas por parte dos associados. Eles estão animados e
esperançosos com o que está por vir. Porém, deverá participar, ao lado da COOCASSIS e de
outras organizações de catadores da construção de uma rede social para a comercialização e a
transformação conjunta dos recicláveis. Assim possibilitará o reconhecimento e valorização
social de sua categoria.

4. REFERÊNCIAS

LADEIA, C. R. & NATÁRIO, E.G. Autogestão e educação. Campinas, FE- Unicamp,


mimeo, 1998.

SINGER, Paul. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. 2.ed. –São Paulo:


Contexto, 1998.
_____________& Souza, André Ricardo de.(Org.) A Economia Solidária no Brasil: A auto-
gestão como resposta ao desemprego. – São Paulo: Contexto, 2000. – (Coleção economia).
_______________. Introdução à Economia Solidária. – 1a ed. – São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2002.
VEIGA, Sandra & FONSECA, Isaque. Cooperativismo: uma revolução pacífica em ação.
Rio de Janeiro: DP&A: Fase, 2001.

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