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18 a 21 Setembro de 2007
ISSN: 1678‐352X
POR UMA VIDA MAIS DIGNA. OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS
DE PALMITAL – SP: O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE UMA ASSOCIAÇÃO
Líége Caldeira - Faculdade de Ciências e Letras, Campus Assis, Universidade Estadual Paulista
“Júlio Mesquita Filho” – UNESP.
1. Introdução.
Cooperar significa trabalhar junto com
outras pessoas para realizar, com
sucesso,um mesmo objetivo.
(Cooperativismo, SDS, 1999).
Entre as décadas de 1960 e 1990, o mundo passou por profundas alterações estruturais
– políticas e econômicas – conhecidas como Globalização. Esse processo contribuiu para o
grande avanço tecnológico, que apesar de oferecer indiscutíveis ganhos econômicos, produziu
drásticos efeitos aos países subdesenvolvidos e às camadas mais pobres da população.
Junto com o processo de Globalização, as políticas neoliberais (transferência de
funções estatais para a esfera privada, privatizações com importação de tecnologia), adotadas
em muitos países, causaram grandes mudanças na produção e nas relações de trabalho, e
agravaram intensamente a crise do desemprego e o processo de marginalização e de exclusão
social.
Essa reestruturação, capitaneada pelas empresas multinacionais, afetou principalmente
os países em desenvolvimento como o Brasil e atingiu violentamente os municípios,
extinguindo empregos e deixando imensas parcelas de trabalhadores na informalidade e na
miséria. Milhares de trabalhadores que se depararam com uma vida sem emprego e com a
impossibilidade de criar seu próprio negócio, começaram catar materiais recicláveis e vendê-
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los aos “sucateiros” ou “atravessadores”, exploradores que os revendem às industrias de
reciclagem, obtendo a maior parcela de lucro.
Catar os recicláveis das lixeiras de bairros residenciais ou do “lixão” (área destinada
ao depósito do lixo urbano in natura), é uma prática degradante, mas uma das poucas
alternativas que restou a muitos para sobreviver de forma honesta.
No Brasil, esse processo de exploração tem caracterizado a realidade dos catadores na
maior parte das cidades. Entretanto, visando alterar tal conjuntura, em meados dos anos 90
esses catadores começaram a se organizar em cooperativas ou associações, para lutar juntos
por condições mais dignas e autônomas de trabalho e pela sua inclusão nas políticas
municipais de gestão dos resíduos sólidos.
Organizaram-se também nos níveis regional, estadual e nacional, criando o Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR. Esse movimento, instância
organizativa que defende os direitos e os interesses dos catadores, opera segundo os princípios
do cooperativismo, da Economia Solidária e da auto-gestão, e trabalha no sentido de estimular
a criação de redes de ação conjunta entre as cooperativas. Segundo Veiga & Fonseca (2001),
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A COOCASSIS conta desde o início com o apoio da Prefeitura Municipal e da Cáritas Diocesana de
Assis e com a assessoria do Núcleo de Assessoria à Formação de Cooperativas Populares da
Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Campus de Assis.
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necessários para a implantação da Coleta Seletiva Solidária. Os catadores ingressantes na
Coleta Seletiva não trabalham mais na insalubridade, e hoje já estão em dia com a previdência
social, garantindo seus direitos previdenciários, incluindo a aposentadoria.
Observamos, como escreve Singer & Souza (2000) “mudanças de qualidade das
condições e relações de trabalho” (p.7). Anteriormente, cada catador recebia de acordo com a
quantidade de material arrecadado. Atualmente toda a arrecadação da Coleta Seletiva
Solidária é dividida igualmente entre os cooperados.
A COOCASSIS tem-se tornado uma referência regional, e juntamente com o Comitê
da Região do Oeste do Estado de São Paulo, ligada ao MNCR, tem estimulado e auxiliado na
organização dos catadores em outras cidades da região, visando a organização de uma rede
social para a comercialização e a transformação conjunta dos recicláveis.
Uma das diretrizes da COOCASSIS, ao lado do MNCR, é também estimular a
formação de uma rede social na região Oeste do estado de São Paulo. Outras cidades vizinhas
de nossa região, como Platina, Maracaí e Florínea, procurou no mês de outubro deste ano, o
NACOOP para ajudar a organizar seus catadores.
Uma das realizações dessa iniciativa é a organização de uma associação de catadores
de materiais recicláveis – ACIPAL, no município de Palmital, localizado nas proximidades de
Assis. Neste trabalho, objetivamos relatar essa experiência, tomando como referência a
experiência da COOCASSIS.
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Reciclagem é o nome dado por catadores e moradores de Palmital ao Programa de Coleta Seletiva que foi
implantado na cidade em 2003, onde era feita a triagem dos materiais coletados, sob péssimas condições de
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Mediante esses encontros semanais, foi possível evoluir para a eleição informal dos
primeiros representantes do grupo, a qual se constitui em uma comissão representativa de
quatro membros, os quais dois eram catadores da rua e dois eram catadores do aterro sanitário.
Neste ítem, trataremos de uma visita feita pela autora ao lixão da cidade de Palmital, e
como se trata de uma experiência pessoal, utilizarei a primeira pessoa do singular.
Compareci ao “garimpo” para visitar os catadores em seu local de trabalho. Eles
denominam o aterro como garimpo, porque é onde eles realmente “garimpam” muitos objetos
pessoais. Foi a primeira vez que pisei nas larvas do lixo e respirei aquele odor.
Quando cheguei, eles ainda estavam sentados esperando o caminhão que fazia a coleta
do lixo na cidade e que não demorou muito. Assim que este foi avistado, os catadores logo
correram em sua direção. O motorista do caminhão, incumbido de despejar o lixo dentro de
uma das valas do aterro, é impedido de fazê-lo pelos catadores, que ficam esperando atrás do
caminhão o lixo ser despejado. Correm um grande risco de uma das mangueiras do caminhão
estourarem, de serem atropelados e de adquirir doenças, pois trabalham sem nenhuma
proteção.
Por um tempo observei. Porém, ao me sentir inútil ali observando, tentei ajudar... Não
tive coragem de pisar no monte de lixo que o caminhão despejou (como todos eles fazem),
pois os meus pés afundariam até o joelho, entre sacolas podres. Mas pelas bordas, comecei a
ensacar os materiais que eles separavam em pequenos montes.
Aquele cheiro horrível, o Sol nas costas, os urubus em volta, as pessoas curvadas sob o
lixo, sujas... Apenas duas horas em um lugar desse, me causou náuseas e dor de cabeça.
Imagino os catadores que vivem trabalhando com isso todos os dias da semana.
Pude assim me aproximar bastante desses trabalhadores e de sua condição degradante.
Enquanto eu ensacava, conversava. Comecei a separar as embalagens de “Tetrapak”, quando a
Isabel me disse:
- “Ô Liége, não perde tempo pegando isso aí não, porque aqui os atravessador só leva
plástico e ferro. Os ferro você põe em uma sacola, os plástico em outra.”
Assustei-me quando vi larvas em uma embalagem de plástico, suja de restos de comida
podre. Logo minhas mãos já estavam marcadas, sujas.
trabalho.
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O grupo, constituído por viver na mesma realidade, se relaciona de forma competitiva.
Quem cata mais, ganha mais. Apesar de conviver de forma competitiva, esses catadores
dividem entre si os garimpos de maior valor, de acordo com a necessidade de cada um.
E a Maria andava pra lá e pra cá, cantando e catando, cantando e catando...
E eu perguntei à ela:
- “Você tá animada Maria?”.
- “Vivendo nesse lixo aqui minha filha, só cantando mesmo... Por um lado é bão
porque eu emagreci. Antes de começar a catar, eu pesava 120kg, agora peso 80Kg. É de tanto
trabalho”.
Tentei me aproximar um pouco de cada um deles, ajudava a ensacar um pouco dos
montes de cada um. Estava ajudando e conversando com a Zelinda, quando um urubu pousou
perto de nós. E ela disse: - “Olha aí, os urubus tão esperando a gente terminar de catar pra eles
poderem comer. Eles que não são loucos de chegar perto de nóis... Já falei até que qualquer
dia, nóis vai comer tudo eles. Só botá na fogueira e já era”.
E depois de mais ou menos duas horas, avistamos um carro se aproximar. Então a
Sueli comentou: – “Que carro chique, quem será que é?”.
Era o carro da Prefeitura que chegou para me buscar, conforme eu havia combinado.
A Maria disse: – “Você já vai Liége? Pensei que você ia almoçar aqui com a gente!”.
O Sr. Mariano, me ofereceu um pouco de sua água para que eu pudesse lavar as
minhas mãos. Acompanhou-me até sua carroça e disse que ele está sem esperanças, pois no
mês passado, catou quase 700kg de papelão, e não deu nem R$300,00. No caminho até o
carro, o Antônio, vulgo Pernilongo, me perguntou: – “Tá fraco aqui, você não acha? Há um
tempo atrás tinha muito mais material”.
Despedi-me de todos, e fui embora naquele carro novo da Prefeitura, que destoava do
cenário.
Após dar uma breve aula sobre as diferenças de cooperativa e associação, dividimos o
grupo em subgrupos. Eles tinham a tarefa de elaborar algumas propostas de nomes para a
Associação.
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Esse curso foi ministrado por três estagiárias do NACOOP: A autora, Kátia Hernandes, e Fernanda Yonezawa.
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No primeiro módulo do cursi, foi tratado sobre a História do trabalho. Conversamos
sobre narcisismo, valores e sentimentos que o capitalismo produz nas pessoas, as
conseqüências da Revolução Industrial e das políticas neoliberais.
No segundo módulo, discutiu-se sobre a História do trabalho, sobre os princípios do
cooperativismo e sobre o Estatuto Social. Subdividimos os catadores, e cada grupo ficou
responsável por estudar e apresentar uma parte do Estatuto. É interessante citar a fala de
alguns catadores:
Isabel Romualdo: – “Sem a ajuda da Prefeitura, não conseguiremos nos estabilizar. Se
não fosse eles, a gente não tava aqui, e não ia aprender nada. O povo tem que ficar unido.
Nunca um virar as costas para o outro. Temos que pensar a associação como uma família. Se
não fosse esse curso, a gente não ia saber de nada, até agora a gente só sabia catar e vender.
Teremos garantia de melhor preço, não para enrricar, mas para ter uma vida melhor”.
Vilza: –“Tudo será repartido em partes iguais. Conseguir ao longo do tempo fazer o
nome da associação”.
Neide: – “Todos lutaremos pelo mesmo objetivo. Nós unidos jamais seremos vencidos.
Se um está desanimado, o outro tem que animar. Temos a responsabilidade no meio-ambiente.
Temos que respeitar nosso trabalho, para que o orgulho do nosso trabalho seja reconhecido”.
3. Considerações finais.
Alguns problemas são passíveis de resolução no curto prazo, mas outros exigem muita
persistência e paciência dos trabalhadores. É natural haver momentos de crise e de bonança,
assim como derrotas e conquistas. Nossa cultura estimula resultados de curto prazo e as
pessoas em geral são imediatistas. Por isso, nem sempre suportam um momento de crise.
Voltando a considerar o processo da ACIPAL, percebemos que por estar no começo de
suas atividades, ainda há muitas expectativas por parte dos associados. Eles estão animados e
esperançosos com o que está por vir. Porém, deverá participar, ao lado da COOCASSIS e de
outras organizações de catadores da construção de uma rede social para a comercialização e a
transformação conjunta dos recicláveis. Assim possibilitará o reconhecimento e valorização
social de sua categoria.
4. REFERÊNCIAS